Trecho do livro "25 anos transformando histórias"
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Prefácio
A Fundação Xuxa Meneghel nasceu num momento im-
portante para a história do país e para os direitos de
crianças e adolescentes. O ano pós-Constituinte de 1989
foi um marco do processo da redemocratização. Os mo-
vimentos sociais estiveram nas ruas reexperimentando o
gosto pela participação e colocando em pauta a convoca-
ção para as urnas: havia um quarto de século que o povo
não votava para a Presidência!
A data também coincide com a publicação da Conven-
ção sobre o Direito da Criança e do Adolescente e seus novos para-
digmas para o reordenamento sociojurídico; a criança no
lugar de sujeito de direito e a prioridade absoluta ao seu
melhor interesse em todas as situações, particularmente
na formulação de políticas públicas. Meses depois vem
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à luz o Estatuto da Criança e do Adolescente, que incorpora as
mudanças propostas pela Convenção e define que Esta-
do, família e sociedade são igualmente responsáveis pela
proteção, a promoção e a defesa dos direitos de crianças
e adolescentes.
É nessa efervescência que a Fundação abre os seus
portões, no dia 12 de outubro de 1989. O local, Pedra de
Guaratiba, uma comunidade de tradição pesqueira, na
Zona Oeste do Rio de Janeiro, com baixíssimos indicado-
res socioeconômicos. A proposta inicial: atender crianças
de 3 a 10 anos em situação de alta vulnerabilidade.
Vieram, então, os últimos 25 anos, um tempo de
profundas mudanças no mundo e no Brasil. Mudanças
que marcaram nossas vidas e imprimiram na instituição
o compromisso com o fortalecimento da democracia e
com a proteção e a promoção dos direitos da criança
e do adolescente como sujeitos de direitos. É assim que
a história da FXM se entrelaça com tantas vidas, tecendo
relações de reciprocidade e transformações mútuas, em
que cada singularidade revela mais uma faceta de uma
nova sociedade em construção. É nesse pano de fundo
que acontecem as trajetórias contadas neste livro.
Para quem teve, como eu, o privilégio de convi-
ver tão próxima a cada uma dessas pessoas, ouvi-las
agora como narradoras de seu protagonismo provoca
o reencontro com as minhas memórias afetivas e co-
loca em perspectiva a minha própria história pessoal e
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profissional. Repetidas vezes ouvimos das pessoas que
nos visitavam esporadicamente, ou pela primeira vez,
que ali se respirava uma atmosfera de bem-estar e in-
tensa energia. No calor das atividades do dia a dia, esse
reconhecimento sempre gratificante pode ter sido atri-
buído muitas vezes a aspectos secundários da vida ins-
titucional, como as habilidades profissionais, o estilo de
gestão, ou até mesmo as qualidades pessoais de tanta
gente envolvida.
No entanto, percorrendo as narrativas que este li-
vro coleciona, resulta um fio comum na essência desse
encontro do um com o todo: o senso de acolhimento
profundo que produz uma permanência duradoura em
vidas, muitas vezes desgastadas pelos processos exclu-
dentes, que exigem, em contrapartida, a construção
cuidadosa de um projeto institucional capaz de ofe-
recer possibilidades para a vida digna a que todos têm
direito. A escuta que precisa ir além, produzindo um
espaço de proteção por meio da convivência huma-
nizada e igualitária e da promoção de atividades de
formação e de integração, para garantir a afetividade e
efetividade dos direitos fundamentais de todos que ali
se encontram.
Ao relatarem como viveram trocas tão significati-
vas com crianças, jovens e outros adultos, os profissio-
nais e companheiros de jornada (Claudia Pinna, Márcia
Gomes, Luiz Carlos, Lourdes Petrocínio) representam
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dezenas de outros colegas – porteiros, auxiliares de ser-
viços gerais, pedagogos, assistentes sociais, nutricionis-
tas, recreadores, professores, psicólogos, cozinheiros e
voluntários – que participaram ativamente na consoli-
dação do modelo sociopedagógico institucional. Uma
experiência apenas possível quando o compromisso vai
além da execução de tarefas e atribuições cotidianas e
ativa um moto-próprio que sustenta desempenhos de
qualidade excepcional.
Thaís Felix, Helcinei (Buiú), Aline (Biscoito), Adria-
na de Jesus, Danuza, Heloisa, Robertinho, Cristiano
Aguiar e Rafael Vicente chegaram à Fundação Xuxa Me-
neghel ainda na primeira infância. Traziam dores expos-
tas, conflitos e desencontros contrapostos ao potencial de
superação que cada um revelou com o passar do tempo.
Para cada uma dessas vidas precoces que chegava ao em-
blemático portão azul houve um colo aquecido pelo en-
tendimento e pela paciência para acolher reações fortes
e sintomáticas do alto grau de estresse de suas circuns-
tâncias familiares e comunitárias. Também encontraram
ali um programa de atividades planejadas para desenvol-
ver sua autoconfiança e resgatar a confiança nos adultos
de seu universo de relações. Seus relatos, fortes e sim-
ples, emocionam por testemunhar o acerto das respostas
institucionais.
Outros fizeram esse encontro com a vida institucio-
nal por escolha (ou falta dela) já adolescentes e jovens.
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Alfredo, Marcio Cataldi, Andréia, Vanessa, Santuza, Iacy,
Elizabeth e Vinicius Santos trouxeram seus desafios e in-
quietudes como um sopro renovador. Chegaram quando
a Fundação ampliava seu olhar para a adolescência e ju-
ventude, respondendo às demandas do encontro de 450
adolescentes, promovido pelo movimento comunitário
“Acorda, Pedra”. Esse desafio, que provocou uma ampla
adequação de toda a estrutura então existente, foi corres-
pondido com sobras pela entrega e envolvimento que se
depreende em cada relato de superação e estruturação de
seus projetos de vida. Talvez esses jovens não tenham a
dimensão de como o crescimento deles amadureceu os
horizontes de todo o trabalho, dando origem ao movi-
mento “Juventude, a cor da Pedra”.
Com a voz das mães/mulheres (Irani e Marilda)
vem à tona a densidade que as relações podem ter
quando quem cuida precisa de cuidado. Na maioria das
vezes, a escuta começa pela dor: da solidão, do sofri-
mento por violências múltiplas, da impossibilidade e
da dependência dos serviços e programas institucio-
nais. No início, as mães concorreram com suas crian-
ças em busca de atenção. Para responder, era preciso
abrir uma brecha de esperança, de possibilidade para
a pessoa cidadã que habita em cada uma, aproximan-
do-a de seus direitos, aumentando sua escolaridade e
profissionalização. As maiores dificuldades, como elas
relatam, estavam no campo relacional, em seu papel
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social de mulher/mãe, e assim nasceram os encontros
de vivências e trocas coletivas, como o programa “Coi-
sas de mulher”, entre outros, para aumentar seu reper-
tório de vivências e informações. Histórias de mulheres
misturadas às de seus filhos, ora bem-sucedidas, ora de
extrema dor.
Nesse último caso estão as vidas perdidas que nem
o apoio familiar nem o trabalho institucional foram ca-
pazes de preservar. A morte precoce de Wesley, Tiago,
Rodrigo Queijinho e Verônica – destino trágico de tantos
outros meninos e meninas assassinados diariamente no
Brasil – impactou suas famílias e a Fundação. Anualmen-
te, essa memória é presentificada pela participação no ato
“Candelária, nunca mais!” e ganhou seu próprio registro
no livro.
Felizmente, ao longo do percurso e da leitura, a
sensação é de que vale muito a pena por tantas vidas
tocadas pela possibilidade de transformação.
Em todas essas histórias está um pouco do brilho
e da generosidade da Xuxa, idealizadora, mantenedo-
ra e animadora principal desse projeto-realidade. Ela,
que desde o início, para além dos recursos, fiou sua ima-
gem pública para que a instituição se consolidasse como
referência na promoção e defesa dos direitos de crianças,
adolescentes, jovens e suas famílias. E que se empenhou
para que esse exercício fosse além de Pedra de Guaratiba,
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participando da articulação com parcerias regionais, na-
cionais e internacionais. Se ela está contando, pode con-
tar com ela.
Angelica Moura Goulart, atual secretária nacional de
Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
e ex-diretora da Fundação Xuxa Meneghel.
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Introdução
“Eu tenho um sonho... de um dia nenhuma criança mais
sofrer qualquer tipo de violência.” – Maria da Graça Xuxa
Meneghel.
eu também Posso fazer
A minha história e a da Fundação Xuxa Meneghel se mis-
turam e se completam. Há 25 anos, no auge da carreira
de apresentadora, aconteceu algo que fez surgir den-
tro de mim o desejo de retribuir às crianças o tanto de
felicidade, sucesso e riqueza, em todos os sentidos, que
elas trouxeram a minha vida. Sou o que sou hoje por
causa das crianças. Então, como fazer retornar a elas um
pouco de tudo o que me deram?
O “click” aconteceu em meados dos anos 1980. Eu
estava no bairro da Pavuna, subúrbio do Rio de Janeiro,
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gravando um especial do Xou da Xuxa. A Globo havia mon-
tado um disco voador enorme em frente a uma casa de
acolhida a menores em situação de risco. Eu deveria des-
cer a rampa e entrar no lugar distribuindo brinquedos
aos baixinhos. Num dos intervalos, uma senhora de
aproximadamente 60 anos aproveitou uma brecha da se-
gurança e se aproximou de mim.
– Xuxa, eu moro no fim da rua. Também cuido de
crianças. Sei que você está muito ocupada, mas poderia
vir comigo, dar um alô aos meus meninos e meninas?
Eu estava realmente ocupada. Além do mais, não ti-
nha nada para dar a eles. Todos os brinquedos eram para
ser entregues durante a gravação. Foi isso que eu disse à
senhora, mas ela insistiu:
– Eles não querem brinquedos, só querem você. São
meninos e meninas que eu pego na rua. Alguns, os pais
abandonaram. Outros são órfãos.
Quando ouvi isso, senti: “Tenho que ir.”
Terminada a gravação, caminhamos pela rua, eu e
a senhorinha. Dobramos a esquina e chegamos a uma
casa amarelo-clara, igual às outras ao redor. Cerca de oi-
tenta crianças me esperavam no portão. A maioria era de
adolescentes e pré-adolescentes, mas havia alguns bebês,
cujas jovens mães também moravam na casa.
As crianças cantaram músicas do meu repertório,
me abraçaram e beijaram, e fui levada para conhecer
os cômodos. Fiquei impressionada com os dormitórios,
porque as camas eram uma ao lado da outra, sem espaço
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para caminhar entre elas. Num dos quartos, uma meni-
na me tomou pela mão.
– Xuxa, a minha cama fica lá, junto da parede. Vem
comigo, quero te mostrar o lugar onde eu durmo.
– Como? Não dá para caminhar.
Ela mostrou:
– Assim!
Tirou as sandalinhas dos pés, subiu na primeira cama
e foi pulando de cama em cama até chegar aonde queria.
– Vem!
Tirei minhas botas e subi nas camas, fui pulando de
uma para outra até me sentar junto dela. A menina ficou
toda feliz! Logo todas as outras crianças queriam que eu
me sentasse nas camas delas, e fiz isso, me sentando um
pouquinho em cada uma.
Chegando ao quintal, vi que a senhora não tinha me-
sas suficientes para todos comerem, a solução era servir
sobre tábuas compridas, pregadas nas paredes e amparadas
sobre apoios. Nos fundos do terreno, dois meninos mais
velhos trabalhavam com cimento e tijolos, construindo
um “puxadinho”, segundo a dona da casa me contou.
Perguntei a ela como conseguia dinheiro para co-
mida e roupas, e me respondeu:
– As pessoas ajudam. Os vizinhos dão comida,
doam roupas.
– E como é o nome desse lugar?
– Não tem nome, é a minha casa.
– As pessoas podem adotar?
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– Não... As crianças que vivem aqui são como meus
filhos.
Senti que precisava ajudar de alguma forma.
– Vou pedir ao pessoal da produção que vá à rua da
Alfândega e compre brinquedos para elas.
A senhora só olhava para mim e sorria.
– Não precisa. Mas se você quiser...
Saí de lá muito tocada. Porque a mulher não queria
nada, não estava pedindo nada. O gesto de eu ter ido dar
um alô às crianças era suficiente. O que ela conseguia
a cada dia dava para alimentar – de várias formas, não
apenas com comida – cerca de oitenta crianças. Foi isso
que mexeu mais comigo.
Voltei para casa olhando as ruas e as casas do subúr-
bio pela janela do automóvel. O mesmo subúrbio onde
passei a infância e a adolescência, uma realidade tão co-
nhecida para mim. Um pensamento martelava a minha
cabeça: “Se aquela senhora, com tão poucos recursos,
pode fazer algo tão bacana, eu também posso fazer. Pre-
ciso fazer. Vou fazer.”
Esse episódio plantou uma semente dentro de mim.
No início, era apenas uma ideia, mas logo foi tomando
forma, se tornando uma planta que eu reguei e entre-
guei aos cuidados dos melhores jardineiros que pude
encontrar, gente em quem confiava e que sabia que era
capaz de dar conta de realizar o que eu sonhava. Assim, a
Fundação Xuxa Meneghel se transformou em um jardim
todo florido e cheio de vida. É o reino que eu sonhei, um
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lugar onde a criança recebe alimentação adequada ao seu
crescimento, carinho, atenção e cuidado suficientes para
se sentir gente, se sentir amada e valorizada, e acreditar
que tem um futuro pela frente.
Na hora de procurar um lugar para a Fundação Xuxa
Meneghel, fomos buscar aquele com menor IDH (Índice
de Desenvolvimento Humano) do município do Rio de
Janeiro na época. E na hora de selecionar as crianças,
constituímos uma equipe que visitou as casas para ver
qual família, dentre as que haviam inscrito seus filhos,
era a mais necessitada. Já recebemos crianças desnutri-
das, espancadas, violadas.
O mais importante é que a Fundação Xuxa Mene-
ghel completou 25 anos e é reconhecida como uma das
instituições de atendimento a crianças e adolescentes
mais importantes, atualmente, do país. No início, aten-
díamos 180 crianças por ano. Em 2014, realizamos cerca
de 30 mil atendimentos em oficinas, projetos sociais e
cursos profissionalizantes.
Nós começamos do zero e aprendemos com os erros.
Construímos um modelo de trabalho que se tornou refe-
rência. Somos frequentemente procurados por instituições
semelhantes e ensinamos como replicar o nosso mode-
lo. Assim, vamos criando redes de pessoas que trabalham
pelo bem, pela saúde, pelo crescimento – em todos os
sentidos – das crianças e dos adolescentes em todo o Brasil.
Quem sabe assim, um dia, nenhuma criança mais
vá sofrer.