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TRATADO DAS AÇÕES -TOMO IV AÇÕES CONSTITUTIVAS NEGATIVAS Tábua sistemática das matérias Parte III Ações constitutivas negativas Capítulo 1 Ação de interdição § 141. Interdição e levantamento da interdição .1.Processo de interdição e sentença. 2. Inquisitividade do processo. 3. Contenciosidade e voluntariedade da jurisdição § 142. Pedido de interdição . 1. Pedido de interdição e processo de interdição. 2. Promoção da interdição, legiti- mação ativa. 3. Procedimento para interdição. 4. Interditando e curador à lide § 143. Processo e sentença de interdição . 1. Perícia médico-Legal. 2. Morte do interditando. 3. Juízo, instrução do processo e julgamento. 4. Juiz e laudo. 5. Decretação de interdição e nomeação de curador. 6. Exame pessoal pelo juiz. 7. Competência judicial. 8. Correção à impropriedade de linguagem. 9. Eficácia da sentença de interdição. 10. Recurso que se interpõe da sentença de interdição. 11. Ministério Público e legitimação recursal § 144. Levantamento de interdição . 1. Pressupostos do levantamento. 2. Legitimação ativa do interditado e do Ministério Público. 3. Regra jurídica geral sobre legitimação ativa. 4. Particularidade da ação de levantamento. 5. Eficácia de coisa julgada formal. 6. Regra jurídica de competência pela conexão. 7. Recaída após o levantamento da interdição. 8. Coisa julgada formal e sentença § 145. Interdição dos surdos-mudos . 1. Surdos-mudos,interdição. 2. Levantamento da interdição § 146. Interdição dos pródigos . 1. Definição. 2. Doentes. 3. Síndrome. 4. Prodigalidade agravada. 5. Pródigo, parte na ação. 6. Regras jurídicas comuns sobre a interdição. 7. Curatela Capítulo II Ações de invalidade § 147. Pressupostos de validade do negócio jurídico e de atos jurídicos “stricto sensu”. 1. Validade e eficácia. 2. Pressupostos de validade. 3. Viciosidade. 4. Confusões de alguns juristas § 148. Existência, validade, invalidade e eficácia . 1.Existir e valer. 2. Valer e ser eficaz § 149. Nulidade e anulabilidade. 1. Problema liminar de ser ou não-ser. 2. Formalismo romano e conceito de nullus”. 3. Dois sentidos, de nullus” e de nulo”. 4. Direito comum. 5. Concepção hodierna. 6. Soluções técnicas quanto ao conceito de nulo. 7. Precisão conceptual indispensável aos sistemas jurídicos. 8. Manifestações tidas como não-escritas § 150. Limites entre o existente e o não-existente . 1.Problemas de técnica jurídica legislativa. 2. Validade e eficácia, erro grave nas confusões de conceitos § 151. Validade e não-validade . 1. Invalidade e ineficácia. 2. Resistência ao exato conceito de ato jurídico nulo; precisão de conceitos. 3. Conceito de nulidade e caracteres do ato jurídico nulo. 4. Eliminação necessária da confusão entre a inexistência e a invalidade. 5. Confusão entre nulidade e alguns caracteres do nulo. 6. Exis-

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TRATADO DAS AÇÕES -TOMO IV

AÇÕES CONSTITUTIVAS NEGATIVAS

Tábua sistemática das matérias

Parte III

Ações constitutivas negativas

Capítulo 1

Ação de interdição § 141. Interdição e levantamento da interdição.1.Processo de interdição e sentença. 2. Inquisitividade do processo. 3. Contenciosidade e voluntariedade da jurisdição § 142. Pedido de interdição. 1. Pedido de interdição e processo de interdição. 2. Promoção da interdição, legiti-mação ativa. 3. Procedimento para interdição. 4. Interditando e curador à lide § 143. Processo e sentença de interdição. 1. Perícia médico-Legal. 2. Morte do interditando. 3. Juízo, instrução do processo e julgamento. 4. Juiz e laudo. 5. Decretação de interdição e nomeação de curador. 6. Exame pessoal pelo juiz. 7. Competência judicial. 8. Correção à impropriedade de linguagem. 9. Eficácia da sentença de interdição. 10. Recurso que se interpõe da sentença de interdição. 11. Ministério Público e legitimação recursal § 144. Levantamento de interdição. 1. Pressupostos do levantamento. 2. Legitimação ativa do interditado e do Ministério Público. 3. Regra jurídica geral sobre legitimação ativa. 4. Particularidade da ação de levantamento. 5. Eficácia de coisa julgada formal. 6. Regra jurídica de competência pela conexão. 7. Recaída após o levantamento da interdição. 8. Coisa julgada formal e sentença § 145. Interdição dos surdos-mudos. 1. Surdos-mudos,interdição. 2. Levantamento da interdição § 146. Interdição dos pródigos. 1. Definição. 2. Doentes. 3. Síndrome. 4. Prodigalidade agravada. 5. Pródigo, parte na ação. 6. Regras jurídicas comuns sobre a interdição. 7. Curatela

Capítulo II

Ações de invalidade § 147. Pressupostos de validade do negócio jurídico e de atos jurídicos “stricto sensu”. 1. Validade e eficácia. 2. Pressupostos de validade. 3. Viciosidade. 4. Confusões de alguns juristas § 148. Existência, validade, invalidade e eficácia. 1.Existir e valer. 2. Valer e ser eficaz § 149. Nulidade e anulabilidade. 1. Problema liminar de ser ou não-ser. 2. Formalismo romano e conceito de nullus”. 3. Dois sentidos, de nullus” e de nulo”. 4. Direito comum. 5. Concepção hodierna. 6. Soluções técnicas quanto ao conceito de nulo. 7. Precisão conceptual indispensável aos sistemas jurídicos. 8. Manifestações tidas como não-escritas § 150. Limites entre o existente e o não-existente. 1.Problemas de técnica jurídica legislativa. 2. Validade e eficácia, erro grave nas confusões de conceitos § 151. Validade e não-validade. 1. Invalidade e ineficácia. 2. Resistência ao exato conceito de ato jurídico nulo; precisão de conceitos. 3. Conceito de nulidade e caracteres do ato jurídico nulo. 4. Eliminação necessária da confusão entre a inexistência e a invalidade. 5. Confusão entre nulidade e alguns caracteres do nulo. 6. Exis-

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tência e nulidade, quanto a defeito de forma § 152. Nulidade, ineficácia e pendência. 1. Não-consistência entre a classe dos atos jurídicos ineficazes e a dos atos jurídicos nulos. 2. Pendência e nulidade § 153. Nulidade e anulabilidade. 1. Invalidade passa-se no mundo jurídico. 2. Nulo e anulável. 3. Inconvalidabilidade da nulidade. 4. Conceito de anulabilidade § 154. Nulidades ditas absoluta e relativa. 1. Crítica ás duas expressões. 2. Outros sentidos das expressões.3. Decisões sobre invalidade § 155. Conceito preciso de anulabilidade. 1. Precisão do conceito. 2. Nulo e anulável. 3. Eficácia interimística do anulável. 4. Plano da validade. 5. Vantagem técnica. § 156. Eficácia do anulável. 1. Eficácia e invalidade. 2. Ataque à eficácia do ato jurídico anulável. 3. Princípio da eventualidade, quanto ás alegações de inexistência, nulidade e anulabilidade. 4. Concorrência cumulativa de alegações. 5. O que se ataca com a ação de nulidade ou com a ação de anulação § 157. Decretação, de ofício, da nulidade, e irratificabilidade. 1. Conteúdo da regra jurídica sobre decretabili-dade de ofício. 2. Insupribilidade, irratificabilidade § 158. Insanabilidade do nulo. 1. Validação e insanabilidade. 2. Pseudo-sanações do nulo. 3. Direito romano e sanação. 4. Significação histórica do prazo preclusivo em se tratando de nulidade de casamento. 5. Negócio jurídico referente a ato jurídico nulo. 6. Ato constitutivo negativo para desconstituição do ato jurídico nulo § 159. Nulidade ou anulabilidade total e nulidade ou anulabilidade parcial. 1. O que a nulidade atinge. 2. Nulidade total. 3. Conceito de nulidade parcial. 4.Direito romano e Direito contemporâneo.5.Separabilidade das partes § 160. Desconstituição por validade. 1. Desconstituição, e não declaração, do ato jurídico nulo ou anulável. 2. Nulidade e anulabilidade. 3. Ordem das questões perante a Justiça e pela Justiça. 4. Ação para se desconstituir § 161. Alegação de não-validade. 1. “Ação” para a desconstituição do ato jurídico nulo, regra jurídica excep-cional. 2. Permissão e dever de decretar de ofício a nulidade. 3. Alegação incidental do nulo. 4. Direito judiciário ou Direito administrativo. 5. Instrumentação pelo oficial público § 162. Invalidades concorrentes. 1. Concorrência de nulidades ou anulabilidades, ou de nulidades e anulabili-dades. 2. Ordem das questões. 3. Ação revocatória falencial § 163. Desconstituição do ato jurídico nulo. 1. Alegação da nulidade. 2. Alegações e princípio da eventuali-dade. 3. Tempo para a alegação da nulidade. 4.Transferência da ação. 5. Quem pode alegar a nulidade § 164. Invocação pelo causador da nulidade. 1. Decretação por invocação do causador. 2. Interesse na decre-tação § 165. Eficácia da sentença que decreta a nulidade. 1.Força e eficácia. 2. Desconstituição § 166. Construção da anulabilidade. 1. Situação do anulável entre o nulo e o válido. 2. Não há invalidade superveniente. 3. Conseqüências da anulação. 4. Efeitos pessoais e conseqüências da anulação. 5. Direito de re-tenção e anulação. 6. Anulação e direitos formativos § 167. Causas de anulabilidade. 1. Defeitos, inclusive vícios. 2. Mínimo de vontade. 3. Atos jurídicos “stricto sensu” § 168. Ação de anulação. 1. Decretação de nulidade e decretação de anulação. 2. Cessão de direitos e de pre tensões § 169. Legitimação ativa nas ações de anulação. 1.Sujeitos ativos da ação de anulação. 2. Conteúdo da regra jurídica sobre a alegabilidade. 3. Exceções à regra juridica sobre alegabilidade. 4. Direito hereditário.5. Cessão

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de direitos e assunção de divida § 170. Legitimação passiva das ações de anulação por defeito de vontade. 1. Sujeito passivo da pretensão anulatória. 2. Negócios jurídicos unilaterais § 171. Extinção da anulabilidade. 1. Anulabilidade extingue-se; nulidade, não. 2. Relativamente incapazes e in-validade. 3. Assentimento a ato de outrem § 172. Ratificação. 1 . Conceito. 2. Sentidos § 173. Natureza jurídica da ratificação. 1. Ratificação, negócio jurídico- 2. Ratificação em sentido estrito. 3. Plano da existência e plano da validade. 4. Manifestação de vontade ratificante. 5. Ratificação tácita e conhecimento dos fatos causadores da anulabilidade § 174. Agente ratificante. 1. Faculdade de ratificar. 2. Pluralidade de titulares. 3. Atos jurídicos ratificáveis. § 175. Eficácia da ratificação. 1. Retroeficácia. 2. Validação ab initio” § 176. Prescrição das ações de anulação, 1. Interesse privado e anulabilidade. 2. “Quae ad agendum sunt tem-poraria, ad excipiendum sunt perpetua”. 3. Renúncia à prescrição § 177. Eficácia da sentença anulatória. 1. Eficácia constitutiva negativa. 2. Restituição em virtude da anulação. 3. Efeitos anteriores à anulação. 4. Cumulação. 5. Transmissão da propriedade. 6. conseqüências da anulação. 7. Anulação de parte do ato jurídico. 8. Direito ao interesse negativo. 9. Ações que a sentença de anulação pré-exclui. 10. Impossibilitação do restabelecimento da situação anterior. 11. Definitividade da anulação. 12. Anulação e interesses de terceiro.13. Conteúdo da regra jurídica sobre restituição e de outras regras jurídicas. 14. “Actio iudicati” § 178. Casamento e ações constitutivas. 1. Nulidade e anulabilidade. 2. Anulabilidades. 3. Ações constitutivas negativas. 4. Litispendência. 5. Declaratividade e constitutividade sentenciais. 6. Separação judicial. 7. Divórcio. § 179. Invalidade das regras jurídicas. 1. Regras jurídicas, existência e validade. 2. Fontes das regras jurídicas.

Capítulo III

Ação de desconstituição de instituição do bem de família e ação de cancelamento do registro

§ 180. Conceito e pressupostos, 1. Conceito. 2. Pressupostos. 3. Circunstâncias posteriores. 4. Ato de insti-tuição. 5. Ato jurídico, a causa de morte, e pré-contrato ou promessa unilateral de contratar. 6. Procedimento edital. 7. Publicação antes do registro. 8. Competência do oficial do registro. 9. Resumo da escritura § 181. Direito de reclamação. 1. Reclamação do interessado. 2. Eficácia real. 3. Nem transcrição nem inscrição. 4. Registro. 5. Reclamação e suspensão do registro. 6. Registro a despeito da reclamação. 7. Natureza da decisão do juiz. 8. Registro contendo o despacho. 9. Cancelamento do registro. 10. Instituição embutida em regra jurídica de transmissão

Capítulo IV

Ação de nulidade de patente de invenção e de modelo industrial, e de registro de desenho industrial e de marca

§ 182. Patente de invenção, 1. Privilégio de patente de invenção. 2. Nulidade. 3. Natureza da invalidade. 4. Nulidade parcial. 5. Causas de nulidade. 6. Legitimação ativa à ação de nulidade. 7. Audiência do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, 8. Competência e rito. 9. “Exceptio pacti’. 10. Sentença e coisa julgada

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§ 183. Desenhos industriais e marcas. 1. Natureza da ação de nulidade. 2. Nulidade do registro. 3. Convales-cença. 4. Legitimação subjetiva para as ações de nulidade. 5. Competência e recursos. 6. Eficácia da sentença de nulidade. 7. Cumulação das ações de nulidade e de indenização § 184. Legitimação ativa. 1. Especialidade do processo. 2. Legitimação ativa. 3. Objeto da patente, pré-exclusões. 4. Interesse e prejuízo. 5. Capacidade de ser parte e interesse. 6. União, litisconsorte. 7. Litisconsór-cio e assistência. 8. Acordo. 9. Assistência pelos Procuradores da República § 185. Suspensão da eficácia da patente e do registro. 1. Suspensão dos efeitos da concessão. 2. Defeito da lei, correção “de iure condito” § 186. Ação de nulidade de marcas. 1. Ações de nulidade, 2. Função do Ministério Público § 187. Procedimento. 1. Rito processual ordinário.2. Competência, no caso de cumulação.

Capítulo V

Ação de denúncia § 188. Conceito de denúncia. 1. Precauções de método. 2. “Competiu”, dies” e denúncia. 3. Denúncia e exigibilidade § 189. Pressupostos. 1. Aformabilidade da denúncia.2.Interesse dos figurantes. § 190. Mora e denúncia. 1, Denúncia e prazo para prestar. 2. Dois ou mais créditos § 191. Espécies de denúncia. 1. Duas espécies. 2. Conceitos § 192. Denúncia e renúncia. 1’ Denúncia e disposição. 2.Problema terminológico § 193. Denúncia, resolução e resilição. 1. Desconstituição e eficácia. 2. Eficácia. 3. Precisões conceptuais. 4. Relação jurídica e denúncia. 5. Eficácia “ex nunc” da denúncia. 6. Começo da eficácia § 194. Ação e procedimento. 1. Ação de denúncia. 2.Negócios jurídicos pendente a lide. 3. Atos processuais

Capítulo VI

Ação de redibição e ação “quanti minoris” § 195, Conceito e natureza dos vícios redibitórios. 1. Vícios redibitórios. 2. Antes da entrega e depois da entrega. 3. Direito romano e direito grego. 4. Momento em que se aprecia o vicio do objeto. 5. “Contratos comutativos’ e responsabilidade por vícios do objeto. 6. Conhecimento pelo adquirente do bem. 7. Prazo pre-clusivo § 196. Anulabilidade e vícios redibitórios. 1. Redibir e anular. 2. Crítica e solução § 197. Duas pretensões em alternatividade. 1. Direito ao objeto e pretensões por vicio do objeto. 2. Alternativi-dade. 3. Vícios do objeto sucessivos § 198. Nascimento e extinção da pretensão à responsabilidade por vício do objeto. 1. Nascimento da pretensão. 2. Vicio do objeto ou defeito “stricto sensu e falta de qualidade. 3. Ignorância do vício do objeto pelo outorgado. 4. Anulação e redibição. 5. Pré-exclusão do nascimento da pretensão. 6. Renúncia à pretensão à responsabilidade por defeito do objeto. 7. Extinção da pretensão por fato de silêncio. 8. Natureza e pressupostos da “reserva” ou “ressalva”. 9. Preclusão.10. Satisfação da pretensão à responsabilidade pelo vício do objeto § 199. Dívidas e bens genéricos. 1. Gênero e espécie. 2. Pretensão ao adimplemento. 3. Vício do objeto nas

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prestações de bens genéricos ou subgenéricos. 4. Indenização de danos § 200. Pretensão a redibição. 1. Nascimento da pretensão à redibição. 2. Como se opera a redibição. 3. Plu-ralidade de bens e vicio do objeto. 4. Responsabilização e liquidação da redibição. 5. Pressupostos das preten-sões nascidas da redibição. 6. Pluralidade de outorgados e pluralidade de outorgantes

§ 201. Pretensão á diminuição do quanto contraprestado. 1. Pressupostos. 2. Exercício da pretensão à diminuição da contraprestação. 3. Pluralidade de outorgados e pluralidade de outorgantes. 4. Como se opera a minoração da contraprestação § 202. Vendas em hasta pública. 1. Pré-exclusão da ação. 2. Abrangência § 203. Pretensão á responsabilidade por vícios do objeto e outras pretensões. 1. Precisões. 2. Pretensão de indenização por inadimplemento e pretensão à responsabilidade por vícios do objeto. 3. Exercício da pretensão por vício do objeto antes da tradição. 4. Pretensão à anulação por erro e pretensão à redibição ou redução. 5. Pretensão à anuiação por dolo e pretensão à redibição ou redução. 6. Qualidade assegurada.7.Dolo do outorgante § 204. Se existe, no direito brasileiro, a exceção de vício do objeto. 1. Comunicação da existência do vício do objeto. 2. Exceção de redução da contraprestação. 3.Exceção de redibição

Capítulo VII

Ação de extinção de usufruto § 205. Desconstitutividade em se tratando de usufruto. 1. Extinção de usufruto. 2. Constitutividade § 206. Eficácia sentencial. 1. Coisa julgada. 2. Exame dos efeitos.

Capítulo VIII

Ações revocatórias § 207. Conceito de revogação. 1. Vinculação e eficácia mínima. 2. Vinculabilidade. 3. Vinculação e revogação. 4. Natureza da revogação. 5. Princípio da irrevogabilidade. 6. Precisões. 7. Técnica legislativa e revogação. 8. Revogação livre e revogação dependente. 9. Doação e revogação. 10. Ação revocatória falencial § 208. Ação de anulação por fraude e revocatório falencial. 1. Caráter da ação de anulação. 2. Objeto da ação de anulação. 3. Eficácia da ação anulatória. 4. Ação anulatória e ação revocatória. 5. Autor. 6.Réus. 7. Processualística. 8. Ônus da prova. 9. Ação declarativa de ineficácia § 209. Ação revocatória falencial. 1. Natureza da ação. 2. Pressupostos da ação. 3. Fundamento da ação. 4. Sentença anterior sobre o ato jurídico. 5. Hipoteca judiciária. 6. Exceção e réplica revocatórias. 7. Anulação e revogação; ação e exceção § 210. Extinção e prescrição da ação de anulação. 1.Direito romano. 2. Direito brasileiro § 211. Anulação de negócios jurídicos onerosos do insolvente, ciente o outro figurante, e enriquecimento in-justificado. 1. Direito romano. 2. Direito brasileiro § 212. Ações cautelares. 1. Para prevenir atos do adquirente ou beneficiado. 2. Se há medida cautelar antes do ato fraudulento § 213. Eficácia das sentenças na ação de anulação. 1.Natureza das sentenças anulatórias. 2. Destino do valor restituído. 3. Frutos. 4. Danos ao réu § 214. Eficácia da sentença na ação revocatória falencial. 1. Força constitutiva negativa. 2. Eficácia executiva mediata § 215. Eficácia da revogação. 1. Espécies. 2. Eficácia relativa resultante da revogação. 3. Ressarcimento even-

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tual do dano. 4. Coisa julgada. 5. Registro e cancelamento

Capítulo IX

Ação revocatória falencial

§ 216. Conceito e natureza. 1. Dados históricos.2. Conceito e pressupostos. 3. Intenção de prejudicar credores. 4. Restituição

§ 217. Legitimação ativa. 1. Síndico. 2. Credor

§ 218. Pressupostos da ação revocatória falencial. 1.“Animus nocendi”. 2. Simulação. 3. Fraude contra credores. 4. Assuntos estranhos § 219. Procedimento. 1. Pedido em processo próprio, procedimento em impugnação, ou em contestação, ou em objeção, ou em embargos de executado ou de terceiro. 2. Rito ordinário § 220. Propositura da ação revocatória falencial. 1. Legitimação ativa. 2. Legitimação passiva. 3. Com-petência. 4. Prazo preclusivo. 5. Seqüestro em caso de ação declarativa de ineficácia relativa e seqüestro em caso de ação de revogação falencial § 221. Ineficacização de decisão transita em julgado. 1.Posição do problema. 2. Sentenças pretensamente atingidas § 222. Restituição dos bens. 1. Conseqüências da declaração de ineficácia relativa ou da revogação.2.Acessões e frutos § 223. Conclusões. 1. Duas ações com fim idêntico. 2. Defeitos das doutrinas. 3. Estado e as ações de ineficácia relativa e de ineficacização. 4. Concurso de credores civil e a ação de ineficácia relativa

Capítulo X

Ação revocatória de doação § 224. Revogação por ingratidão. 1. “Evocatio”. 2. Causas de revogabilidade por ingratidão. 3. Atentado contra a vida do doador. 4. Ofensa física ou psíquica. 5. Injúria grave ou calúnia. 6. Recusa de alimentos necessários ao doador. 7. Perdão e renúncia. 8. Revogação e direitos de terceiros. 9. Ação de revogação § 225. Casos de irrevogabilidade por ingratidão.1. Doações especiais. 2. Doações remuneratórias. 3. Encargos do donatário. 4. Doações em adimplemento de obrigações naturais e doações por dever moral. 5.Doação para casamento. 6. Eficácia da revogação

Capítulo XI

Ação de revogação dos poderes de administração pelo comuneiro § 226. Administração do bem comum. 1. Administração comum. 2. Administração sem explícita deliberação. 3. Escolha § 227. Deveres, função e permanência. 1. Deveres e obrigações do administrador. 2. Ato de administração.3. Maioria

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Capítulo XII

Ação de separação consensual e ação de separação litigiosa

§ 228. Separação judicial em geral. 1. Conceito de separação judicial e pressuposto de existência do casamento. 2. Ação e sentença de separação judicial e pedido de decretação de nulidade ou anulação do casamento. 3. Espécies de separação judicial. 4. Pressupostos da separação consensual. 5. Petição de separação consensual. 6. Acordo sobre a guarda dos filhos. 7. Criação e educação dos filhos. 8. Pensão alimentícia entre os cônjuges. 9. Ação de modificação.10.Exigência do reconhecimento da firma. 11. Acordo sobre a partilha dos bens. 12. Partilha em execução da sentença de separação judicial. 13. Partilha inclusa no acordo inicial. 14. Audiência dos cônjuges. 15. Ratificação ou retratação. 16. Desistência

§ 229. Recurso e coisa julgada. 1. Recurso. 2. Cessação dos direitos da sociedade conjugal. 3. Retratação bilateral. 4. Morte do cônjuge § 230. Homologação definitiva. 1. Eficácia da sentença que homologa a separação judicial. 2. Guarda dos filhos, criação e educação

§ 231. Reconciliação e eficácia. 1. Reconciliação dos cônjuges. 2. Processo e sentença. 3. Morte, antes do trânsito em julgado da sentença. 4. Separação litigiosa, pedido após o pedido de separação consensual § 232. Ações de separação judicial e sentença.1.Separação litigiosa e separação consensual. 2. Sentença na ação de separação consensual § 233. Reconciliação. 1. Conceito. 2. Eficácia

Capítulo XIII

Ação de desapropriação § 234. Conceito e natureza da ação de desapropriação. 1. Conceito. 2. Espécies § 235. Pressupostos da pretensão e da ação. 1. Necessidade pública, utilidade pública e interesse social. 2. Natureza da regra jurídica sobre desapropriação.3. Competência sobre desapropriação. 4. Apreciação judicial. 5. Ato desapropriativo. 6. Bens desapropriáveis. . § 236. Pressupostos processuais. 1. Declaração de desapropriação. 2. Direitos atingíveis. 3. Prazo legal. 4. Indenização. 5. Indenização, registro e mudança de figurantes. 6. Qualificação do demandado. 7. Renúncia à declaração de desapropriação. 8. Acordo. 9. Custas. . § 237. Justiça e execução. 1. Petição inicial. 2. Valor do bem. 3. Mandado de imissão na posse. 4. Ato desa-propriativo

Capítulo XIV Ação popular

§ 238. Fontes e conceito. 1. Fontes. 2. Ação desconstitutiva dos atos lesivos ao patrimônio público ou de enti-dade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural

§ 239. Natureza da ação e legitimação ativa. 1. Ação popular. 2. Titulares sucessivos. 3. Pressupostos objetivos da ação popular

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Capítulo XV

Ação rescisória de sentença e outras decisões § 240. Conceito e natureza da ação rescisória. 1. Julgamento de julgamento. 2. Pressupostos objetivos da ação rescisória. 3. Ação contra a coisa julgada formal.4. Rescindibilidade e ineficácia. 5. Ação e recurso; ação rescisória de sentença e ação de revisão criminal. 6. Legitimação ativa e legitimação passiva § 241. Fundamentos para o pedido de rescisão. 1. Distinções. 2. Eficácia das sentenças rescindíveis. 3. Prevaricação, concussão ou corrupção do juiz. 4. Impedimento do juiz prolator da sentença. 5. Incompetência absoluta do juízo. 6. Dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida. 7. Ofensa à coisa julgada.8. Infração do direito objetivo. 9. Falsidade da prova. 10. Obtenção de documento novo. 11. Invalidade de comissão, de desistência, ou de transação. 12. Erro de fato. 13. Rescindibilidade de sentenças e de acórdãos. 14. Sentença estrangeira e homologação de sentença estrangeira. 15. Prazo para a propositura da ação rescisória de sentença. 16. Influência da coisa julgada na decisão de outra ação. 17. Embargos de terceiro e rescisão. 18. Rescindibilidade total e rescindibilidade parcial. 19. Ação rescisória de sentença proferida em ação rescisória. 20. Direito em tese e ação rescisória de sentença rescisória. 21. Rescisão de atos judiciais que não dependem de sentença ou que essa seja meramente Homologatória. 22. Eficácia sentencial

Capítulo XVI

Ação de revisão de sentença criminal § 242. Dado histórico e natureza da ação. 1. Dado histórico. 2. Natureza da ação

§ 243. Eficácia da sentença na ação de revisão criminal. 1. Constitutividade negativa. 2. Extensão da eficácia

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Parte III

Ações constitutivas negativas

Capítulo 1

Ação de interdição § 141. Interdição e levantamento da interdição 1. Processo de interdição e sentença. A ação de interdição do incapaz é ação com efeito eventual no passado, ex tunc, mas ação e sentença de sua natureza constitutiva, e não declarativa, como erradamente se usa construir. Todas as incapacidades, exceto a resultante da idade (porque nasce com o homem e se extingue com o advento do dia certo, ou em virtude de ato de outrem, suplementando a idade), exigem decisão judicial. O louco, para ser louco, prescinde de ato judicial; e o surdo-mudo. Mas a interdição só existe se houve a decisão do juiz. Quanto à ação de interdição, surge o problema de se tratar de ação constitutiva negativa, ou de ação constitutiva positiva, ou de ação declarativa. O elemento declarativo é alto, porém não preponderante. O estado da pessoa é declarado e o que se constitui é a incapacitação. O argumento de que pode haver eficácia retroativa, o que imporia a classificação da ação como declarativa, não bastaria. Nulidades decretam-se, com efeitos ex tunc, sem que se haja de considerar declarativa a ação. A ação de interdição desconstitui: se há retroeficácia da sentença, a razão está em que se teve de acolher enunciado de fato, relativo ao início da causa. Dá-se o mesmo se propõe ação de nulidade por ser absolutamente incapaz, mas ainda não interditado, quem figurou em ato jurídico. O assunto tem sido descurado. A natureza das ações de interdição de modo nenhum se confunde com a natureza das ações de paternidade ou filiação, inclusive quando se discute a maioridade ou a existência do pátrio poder. Algumas delas são declarativas; as de interdição, não. As decisões, naquelas, têm força de coisa julgada material; nessas, constitutiva. O que fez a confusão foi a eficácia ex tunc, aliás eficácia restrita ás sentenças nas ações de interdição por loucura e surdo-mudez. Uma das conseqüências de tal pensamento é que se não permite a ação declarativa típica, porém cabe, em ação ou em defesa, a alegação da loucura ou da surdo-mudez, própria ou de outrem, com efeito declarativo da sentença que julga essa questão prejudicial (e. g., exceção de direito material de incapacidade do contraente). Existe elemento declarativo na sentença, porém não é preponderante; o constitutivo, sim. A ação e a sentença de interdição têm por fito organizar a defesa do incapaz e assegurar a eficácia erga omnes. Quando o juiz deixa preciso, na sentença, o tempo em que começou a incapacidade, o efeito declarativo de modo nenhum é inerente á sentença de interdição (pode omiti-lo, como é freqüente); é o efeito declarativo da parte da sentença que a essa data se refere, tanto assim que pode esbarrar com a coisa julgada material de alguma sentença anterior em ação diferente ou sobre alegação. ou defesa, com elemento declarativo. A sentença de interdição, essa, é constitutiva, quer se trate de interdição por incapacidade absoluta, quer se trate de interdição por incapacidade relativa. Prática judiciária de dezesseis anos e investigação de mais de um quartel de século posteriores à 1ª edição do nosso Direito de Família (435 e 436), levaram-nos a essa distinção, de conseqüências, teóricas e práticas, relevantes. O efeito declarativo ex tunc não seria erga omnes. A sentença de interdição adquire essa eficácia. (Sobre tratar-se de sentença constitutiva — Konrad Hellwig, Lehrbuch des deu tschen Zivilprozessrechts, 1, 52). A sentença de interdição exclui qualquer outra demanda de interdição ex eadem causa, não porque tenha força de coisa julgada material, e sim porque, sendo constitutiva, importaria reconstituir o constituído (bis in idem). O levantamento da interdição não importa, como se tem pretendido, quebra da coisa julgada material, e sim ação de modificação, á semelhança (não identidade!) das ações com julgamento fundado em equidade. A ação de levantamento é constitutiva negativa, não declarativa (não confundir com os efeitos ex tunc de direito material, quando os há).

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2. Inquisitividade do processo. Note-se que o processo inquisitivo predomina, menos radicalmente, é certo, do que no velho direito português e no luso-brasileiro até o século XIX. Uma das conseqüências mais importantes é a de ser irrevogável e intransmissivel o pedido de interdição ou de levantamento da interdição, pelo interesse do interditando ou do interditado em que, qualquer que seja o conteúdo da sentença, o juiz a profira. Afasta-se, pois, a desistência. O princípio não vale quanto à interdição por prodigalidade. A competência é, precipuamente, do juiz do domicílio do interditando não do que pede a interdição; sem razão, a Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 3 de fevereiro de 1944 (RT 150/132). 3.Contenciosidade e voluntariedade da jurisdição. (a) O processo de interdição é tido por Leo Rosenberg (Lehrbuch des deutscben Zivilprozessrech És, 511) como contencioso, porque assim entendem os legisladores; mas, disse ele, seria mais próprio inclui-lo na jurisdição voluntária. Ora, há variedade na determinação dos limites entre as duas, devido á época. Porém a variedade não depende somente da forma. O elemento histórico muda alguma coisa mais do que o procedimento. A sentença estrangeira de interdição precisa de homologação (Supremo Tribunal Federal, 16 de maio de 1944, JSTF 22/7). (b)O interditando, na ação de interdição, é parte, e tem capacidade processual, embora se nomeie curador à lide. Pode recorrer, inclusive apelar, ainda que não o faça o curador à lide. A curadoria não lhe tira a autonomia processual. Tem capacidade processual para pedir o levantamento. Também pode ele querelar a nulidade da sentença, se não foi ouvido, ou se foi nula a audiência (e. g., sem a presença do juiz) ou a citação. A ação rescisória também lhe é permitida, porque ele foi parte. As regras jurídicas, sobre recorribilidade pelo interditando e pedido de levantamento pelo interditado, levam a essa conclusão. (c) Ainda que não tenha sido proposta pelo órgão do Ministêrio Público a ação de interdição, à função consultiva dele está junta, potencialmente, a função de parte, sempre que ele seria legitimado a propô-la. Dai a sua legitimação para recorrer e para prosseguir no pleito, ainda que o promovente da interdição tenha desistido da causa, ou se tenha dado extinção do processo sem julgamento do mérito. A sua situação, desde o início da demanda, é, in potentia, a de litisconsorte necessário. Não nos serve a figura do Litisconsórcio necessário in actio porque nada obsta a que o órgão do Ministério Público também se desinteresse do processo e promova processo seu, em que parte, desde o começo e in actio seja ele. O direito processual apresenta-nos vários casos como esse, em que o legitimado como parte se satisfaz com a posição de interveniente assistente, equiparado ao litisconsorte: ou de assistente vulgar, ou mesmo, de consultor, ajudando ao juiz. Leva-nos isso a entender que, nos casos de interdição promovível pelo órgão do Ministério Público, se outrem suscitou o processo, somente a conduta expressa ou tácita do Ministério Público o investe da situação de parte. Dele depende, e só dele, litisconsorciar-se ao promovente. Se, na ação pendente, o órgão do Ministério Público se mantém na sua só função consultiva, porque a postulação e a diagnose não permitiam que fosse parte, pode ele inserir-se como parte e, no mesmo processo. pedir a interdição pelo novo fundamento que as condições psíquicas ou neuríticas do interditando configuraram. Não importa distinguirem-se condições anteriores á propositura da ação de interdição e condições novas. A inquisitividade do processo de interdição permite esse aproveitamento, para o qual, concorre, do seu lado, o assente principio de economia processual. (d) A função inquisitiva do juiz dá ensejo a alguns problemas técnicos do processo, que se parecem com os expostos e resolvidos acima. O juiz não tem a promoção; a sua função inquisitiva restringe-se á investigação da verdade sobre o que se articulou e a sua possível revelação a mais; portanto, exclui-se, no estado atual do direito brasileiro, a iniciativa pelo juiz, que se construiria, nos casos especiais, como cumulação de duas funções estatais (a de órgão de promoção e a de julgador), como em todas as iniciativas de ofício. Resta saber-se, abandonando as partes o processo (inclusive o órgão do Ministério Público, se o promoveu, ou se litisconsorciou, ou se recusa a inserir-se na relação jurídica processual como parte), pode o juiz prosseguir na instrução. A resposta, pois que, ex hypothesi, lhe falta a iniciativa (o poder de prosseguir não supõe o de iniciar), é positiva. No mesmo sentido, na Itália, a opinião de S. Castellett (Effetti delia perenzione dei giudizio di interdizione, Rivista di Diritto Processuale Civíle, VI, Parte II, 5, nota 2).

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(e) Uma das conseqüências da transformação da função consultiva em função de parte, em virtude da conduta do orgão do Ministério Público, conforme se disse sob (c), é a de cessar a função de defensor do incapaz, que ele tinha. Desde o momento em que o órgão do Ministério Público se insere, como parte, no processo — o juiz tem de substitui-lo nas funções de defensor do incapaz. Do mesmo modo, se, por falta superveniente do defensor nomeado, o juiz tem de nomear outro, e o órgão do Ministério Público, que fora parte promovente, ou que fora litisconsorte, se retira da relação jurídica processual (e. g., se convenceu de que o interditando sarou), pode ficar a seu cargo— e é bem que fique — a função de defensor do incapaz. Dissemos “pode’, porque, em tais casos, não nos parece que a lei civil faça completa a regra jurídica: o sistema jurídico, se, por um lado, põe a alternação (ou nomeado, na falta do órgão do Ministério Público, ou esse), dá relevo especial, por outro lado, à promoção pelo órgão do Ministério Público. A falta superveniente contém o elemento excludente e o elemento includente. § 142. Pedido de interdição1.Pedido de interdição e processo de interdição. O pedido deve satisfazer ao duplo caráter da interdição, o constitutivo e o inquisitivo. Tratando-se de processo inquisitivo, a liberdade do juiz é maior do que aquela mesma que em geral se lhe dá, mas o Código de 1939 não se afastou, aí, discrepando da tradição do velho direito luso-brasileiro e do brasileiro anterior ao Código Civil, do principio Ne iudex procedat ex officio. O art. 1.109 do Código de 1973 estabeleceu o que tinha de estabelecer para a jurisdição voluntária. A ação de interdição possui a sua estrutura própria, grande dose de inquisitividade, mas é ação como as outras. Perguntava-se, sob o Código de 1939: citem de ser citado o interditando? No caso de insanidade por uso de tóxicos, ou de prodigalidade, exigia-se, na lei especial, a citação. De citação não se falava a respeito da interdição por loucura ou surdo-mudez. Daí ter-se concluído que se dispensava a citação (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo. 14 de fevereiro de 1952, RT 200/298; 2ª Grupo de Câmaras Civis, 2 de agosto de 1952, 20/164). Previa-se que o curatelado tivesse advogado, pois que se lhe permitia recorrer. Quem podia constituir advogado depois de decretada a interdição, com mais forte razão havia de poder fazê-lo para evitar a incursão do Estado na sua esfera jurídica e, principalmente, no que toca à sua pessoa. O Código de 1973, no art. 1.182, § 2ª, foi explicito: “Poderá o interditando constituir advogado para defender-se”. Por isso, se o juiz não tem provas de que a citação seria inútil, convinha sob o Código de 1939 mandar citar o interditando para comparecer ao exame médico legal. Se o não fazia, a audiência do interditando, antes da perícia, continha a vocatio in ius, e havia de existir e ser válida como as citações em geral. Se faltou à audiência o interditando, era e é como se houvesse faltado a citação. Nem sempre é possível trazer-se à força o interditando. Tudo aconselhava que se citasse, primeiro, se tal acontece, ou o juiz se transporta à casa ou lugar de trabalho, ou hospital, em que se achasse o interditando. Sem razão, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 23 de junho de 1944, Iº de 12 de setembro, achou que era sempre dispensável a citação do interditando. Nos Comentários ao Código de 1939 (VIII, 2ª ed., 22 s.) sustentamos a necessidade da citação. o que na jurisprudência fomos atendidos. Agora, o Código de 1973, no art. 1.181, foi claro, tal como queríamos: o interditando tem de ser citado. A competência para o procedimento da curatela de interditos é do foro do domicilio, porque, segundo princípio geral, no foro do domicílio é o em que se propõem as ações fundadas em direito pessoal (art. 94). Se tem mais de um domicilio, em qualquer um deles (art. 94, § 1ª). Se incerto e desconhecido o domicílio, onde for encontrado (§ 2ª). Se não tem domicílio nem residência no Brasil, observe-se o § 3ª, e não o § 2ª. 2. Promoção da interdição, legitimação ativa, A interdição dos insanos e dos surdos-mudos pode e deve ser promovida: a) Pelo pai, ou pela mãe, ou pelo tutor. Se o suspeito de loucura já estava interdito por outro motivo (e. g., prodigalidade), ou a ele se estendia a autoridade do curador que se dera ao pai ou à mãe, o curador pode promover a nova interdição (Direito de Família, 429). b) Pelo cônjuge, ou algum parente próximo, isto é, ascendente, descendente, irmão ou tio (Direito de Família, 429, nota 37). A linha reta de parentesco assegura a todos a legitimação ativa (e. g., netos, 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 6 de agosto de 1948, RT 116/281, e 179/693, bisnetos, avô, avó, bisavós). Excluem-se os afins (Direito de Família, fl ed., 420, nota 37; conosco, Estêvão de Almeida, Manual do Código Civil Brasileiro, VI, 514; J. M. De Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, VI, 385; sem razão, o Tribunal de São Paulo, a 24 de setembro de 1929, RT 72/397). O insano, em estado de lucidez, não pode pedir. Baudry-Lacantinerie (Précis de Droit Civil, 1,

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650) entendia ser sem valor prático o problema; mas tivemos de resolvê-lo duas vezes, em cinco anos. O cônjuge separado judicialmente não pode promover a interdição do outro (4ª Câmara Civil, 19 de agosto de 1948, 176/743). c) Pelo órgão do Ministério Público, de acordo com o Código de Processo Civil, art. 1.178. A 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 22 de setembro de 1947 (RT 170/622), disse que, tendo sido decretada, sem que alguém pedisse, a interdição, é nulo o processo, e pode ser levantada sem que se tenha de observar o processo de levantamento. Ou não foi nula a sentença, e precisa-se de levantamento (eficácia sentencial contrária a outra eficácia sentencial); ou foi nula, e bastaria decretar-se a nulidade. Não se levanta interdição nula; nem se dispensa o procedimento para o levantamento, se de levantamento se precisa. Alguém suscitou a interdição, na espécie o juiz, se lhe cabe, ex hypothesi, fazê-lo. Houve, pois, ilegitimidade de parte. Sentença em ação em que a parte foi ilegítima e sentença rescindivel; não nula. Se não cabia o procedimento de oficio, tem-se de rescindir a sentença. Ou à rescisão da sentença ou ao levantamento da interdição tinha de ir o interessado, que foi parte e não alegou a ilegitimidade de parte. 3.Procedimento para interdição. Os procedimentos de interdição correspondem a ações que têm por conteúdo ato estatal, pelo qual se transforma a atividade de alguém em atividade de incapaz. Referem-se a status, e não a relação jurídica, e nem sempre o elemento eficacial é ex tunc. A expressão “declarar a interdição” é de linguagem vulgar e presta-se a enganos. A interdição é constitutiva, posto que as vezes tenha efeito ex tona o efeito declarativo é de alguma relação jurídica, ínfimo. E de tal natureza que, marcado pelo juiz o início em 1998, outro juiz pode, em ação constitutiva, ou em exceção, julgar ter começado em 1972. Mas há ofensa à res iudicata. O interditando pode ter advogado, tanto assim, que pode recorrer. Mesmo se é advogado, pode agir no próprio nome. O art. 1.182, § 2ª, foi explícito (“para defender-se”). Se o tem, nem por isso se há de dispensar o defensor do incapaz (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 14 de fevereiro de 1952. RT 200/298; 2ª Grupo de Câmaras Civis, 21 de agosto de 1952, 204/164; 10 Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 22 de abril de 1950). Pouco se estudaram a ação e a sentença, por se ter posto à frente o ter-se concebido a ação como de jurisdição voluntária, até que se lhes revelaram o elemento contencioso e a constituição com intuito de publicidade (para o efeito erga omnes). O procedimento especial é de certo modo um elemento contencioso, evidentemente. Não se considera a pessoa interditanda como objetivo de exame, e sim como parte. Assim, a melhor opinião é no sentido de ser objeto da demanda a capacidade do réu, o seu direito de própria atuação na vida jurídica (Konrad Hellwig, Lehrbuch des deu tschen Zivilprozessrechts, 1, 52). Os suscitadores do processo exercem pretensões ligadas ao interesse da família ou do público (ou estatal). Tal atitude, quanto à pessoa, deve ter o próprio policial, para não tratar como coisa o bêbedo, o louco, ou o preso. Por isso, entre as duas conseqüências, os bens do curatelado pagam as custas (inaplicável a regra jurídica sobre o não pagamento das custas se não há defesa no processo); o que não foi interditado tem ação de abuso do direito contra o que promoveu a interdição; e até o interdito contra o promovente abusivo; com maioria de razão contra o promovente doloso. A despeito da nomeação de curador à lide, pode tomar parte ativa no processo e é direito seu (James Goldschmidt, Zivilprozessrecht, § 75, 1), ainda que se trate de interdição por enfermidade grave da psique. Portanto, pode usar de qualquer recurso. 4. Interditando e curador à lide. Interditando é pessoa que ainda não está interditada, mas cuja interdição foi pedida: com ela passa-se a particularidade de defender-se por si e de ter curador à lide, que é o órgão do Ministério Público, ou, se foi esse o promovente. o curador nomeado pelo juiz. A razão da nomeação é a de que o órgão do Ministério Público, no segundo caso, é parte. tem os direitos e deveres da parte; ao passo que, no primeiro caso, a sua função não é a de parte, mas a de defensor, e a de assistência ao interditando (integrativa da capacidade). O curador à lide, no caso de ação de interdição, não tem a função de legitimado a propositura de ações, porque se supõe que a defesa possa ser frágil e precise de ajuda, tal como ocorre ao órgão do Ministério Público, oficiando como curador à lide. Esse acumula duas funções; o curador à lide, não. Não deve o órgão do Ministério Público, quando a interdição não poderia ser promovida por ele, assumir o papel de parte.

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§ 143. Processo e sentença de interdição 1. Perícia médico-legal. O juiz nomeia dois perito. Terão de ser ouvidos o interditando, o curador à lide, o advogado e as testemunhas, se as há. Defensor compreende, ai, o curador à lide e o advogado, salvo se o advogado mesmo foi nomeado curador à lide. Nas causas não promovidas pelo órgão do Ministério Público, esse e o advogado. A existência do curador à lide não dispensa o advogado. Se é o próprio interditando, conforme se permite ao demandado que é profissional, nenhuma nulidade advém disso, se for decretada a interdição. A nomeação do perito só se dá depois que decorre o prazo para as impugnações. O perito vai dizer sim ou não: há ou não há anomalia psíquica. Hoje, só há um perito. Antes, o Código de 1939, art. 607, mal era autuada a petição (pois não havia a audiência prévia do Código de 1973, art. 1.181), o juiz nomeava dois peritos. Se entre eles advinha discordância, o juiz nomeava desempatador (art. 607, § 2ª). O juiz escolhe, com o esperado cuidado, o perito. No art. 421, § 1º 1, diz-se que incumbe às partes, dentro de cinco dias, contados da intimação do despacho de nomeação do perito indicar o assistente técnico. No caso da interdição, o perito é a pessoa competente para o exame e as conclusões. Se, excepcionalmente, e tem assistente técnico, nada obsta a que dele se utilize. O que pode acontecer é que o juiz, a despeito de ter escolhido o perito, entenda invocar o art. 1.109, para obter melhores informes. O laudo é submetido a exame dos interessados na audiência de instrução e julgamento, e o juiz não está sujeito a tê-lo como completo e verídico. Se é certo que em todos os homens se presumem o senso e a razão, todos sabemos que é por sinais extrínsecos, inclusive as palavras, que se prova a loucura, e não repugna a prova testemunhal (Andrea Alciato, Tractatus de Praesumptíonibus, 149). Quanto ás cartas, além da letra e do prenome exarado numa delas, concorre a verossimilhança, que é elemento assaz importante na virtus probandi dos escritos (cioh. Wilh. von Tevenar, TI-ieorie des Beweises im Zivilprocess, nova ed., 242). 2. Morte do interditando. A morte do interditando põe termo ao processo, pela eliminação da pretensão. No entanto, a ação constitutiva negativa de alguma relação jurídica continua, se o interesse persiste. A ação constitutiva de interdição tem de parar; e aí está uma das conseqüências práticas da distinção. Se falece o autor, à pessoa que poderia ter proposto a ação de interdição é facultado continuá-la, dando-se superposição subjetiva processual, não sucessão subjetiva. Aí, os autos da ação de interdição, se já houve o auto do art. 1.181 do Código de 1973, ou, a fortiori, a perícia (art. 1.183, 2ª parte), podem ser remetidos para o juízo em que fora proposta alguma ação na qual a afirmação do autor ou do réu é a de que estava com anomalia psíquica o interditando falecido. Os elementos probatórios não têm eficácia de coisa julgada: apenas servem para apreciação pelo juízo da outra causa. 3.Juízo, instrução do processo e julgamento. A despeito da aparência de simples homologação de laudo, o juiz não está adstrito a eles, porque (a) se trata de processo em que o interditando se manifesta e pode recorrer, (b) terminada a instrução e conclusos os autos, o juiz decreta, ou não, a interdição, (c) o processo é inquisitivo. A instrução é a de audiência, previamente designada, aplicáveis as regras jurídicas comuns. Nada obsta a que, na audiência de instrução e julgamento, como na primeira, se possa inquirir o interditando. No direito anterior não havia aquele interrogatório em primeira audiência, mas o fato de ser exigido, em tese, pelo Código de 1973, seria absurdo que, na audiência de instrução e julgamento, não se pudesse ouvir o interditando. Também tal interrogatório é, de regra, indispensável na perícia. O interrogatório tanto pode ser a requerimento do autor da ação de interdição como do próprio interditando, do órgão do Ministério Público, ou do curador à lide. O que não se pode invocar, sempre, quanto ao depoimento do interditando, é o art. 343, § 1ª, que sendo intimada a parte a depor, do mandado há de constar que se presumirão confessados os fatos contra ela alegados, se não comparece ou se recusa a depor. Temos de distinguir da alegação de que está em estado de anomalia psíquica a alegação, por exemplo, de que o interditando em estado de desespero pusera fogo nas roupas dele e da mulher. O art. 1.183 fala da designação da audiência de instrução e julgamento e, logo após, o parágrafo único cogita

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da decretação da interdição e da nomeação do curador ao incapaz. Pode parecer que a sentença há de ser proferida na audiência. Não: ou o juiz a profere desde logo, ou tem o prazo de dez dias para fazê-lo (art. 456). 4. Juiz e laudo. O juiz fica adstrito ao laudo. As regras jurídicas sobre ordem de diligências e livre convencimento são aplicáveis, e ainda maior liberdade tem o juiz, porque é inquisitivo, por sua natureza, o processo. Por estar no rol das ações de jurisdição voluntária, o art. 1.109 é invocável. No mérito, a sentença sem base em laudo que opine pela incapacidade, seria sem prova suficiente (2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Paraná, 11 de abril de 1944, Paraná Judiciário, 39/438), não, porém, nula. No sentido que expusemos na 1ª edição dos Comentários ao Código de Processo Civil, de 1939, o Tribunal de Justiça de Alagoas, a 16 de fevereiro de 1951 (desembargador Mário Guimarães, RF 140/341), e a Turma Julgadora, a 13 de outubro de 1950 (134/209). A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 12 de maio de 1953 e a 6 de novembro de 1945 (AJ 79/110), salientou que o valor do laudo pericial não vai a ponto de em todo e qualquer caso determinar a interdição, se positivo, pois, se assim fosse, outras provas seriam inúteis, como a audiência do interditando, do defensor e das testemunhas, determinada na lei. É de perguntar-se a nova perícia tem de ser requerida e acolhida antes da audiência de instrução e julgamento, ou se somente por ocasião da instrução. A resposta é no sentido de se acolher tanto a primeira solução como a segunda, porque ao juiz é que cabe designar a data da audiência e, deferido o requerimento feito antes disso, não há obstáculo. Se depois da designação, pode ele mudar a data. É de praxe, antiga e também hoje recomendável, dar-se vista às partes do laudo pericial. Aliás, as partes podem desejar esclarecimento do perito, tendo de requerer ao juiz que manda intimá-lo a comparecer à audiência, formulando, desde logo, as perguntas, sob forma de quesitos (art. 435); e o perito só está obrigado a prestar os esclarecimentos, quando intimado cinco dias antes da audiência (art. 435, parágrafo único). O juiz, dissemos acima, não está adstrito ao laudo pericial: pode formar a sua convicção com outros elementos ou fatos apurados nos autos (art. 428). Além disso, por se tratar de ação posta no processo de jurisdição voluntária, há o art. 1.109. Precisa daqueles elementos ou fatos apurados nos autos. Por isso, pode o juiz, de oficio ou a requerimento da parte (na espécie, também a requerimento do órgão do Ministério Público, ou do curador à lide), a realização de nova perícia (art. 437). Tal perícia tem por objeto os mesmos fatos sobre que recaiu a primeira, e destina-se a corrigir-lhe eventual omissão ou inexatidão dos resultados a que a primeira conduziu (art. 438). No Código de 1939, art. 607, § 1ª, cerceva-se, erradamente, a função do juiz, a ponto de dizer que, “se os laudos declararem a insanidade mental do suplicado, o juiz decretará a interdição”. Decretada a interdição, há apelação, com efeito apenas devolutivo (lª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 21 de março de 1950, RT 186/276), porque, mesmo se a espécie não está prevista na lei, como acontece com o Código de 1973, art. 520, é de permitir-se que se lhe negue efeito suspensivo (art. 1.184: “embora sujeita a apelação”). 5.Decretação de interdição e nomeação do curador. A decretação da interdição e a nomeação do curador são todo incindível, como acontece à sentença de remoção e nomeação de outra pessoa como curador. Se não pode ser nomeado, desde já, o curador definitivo, nomeia-se o curador interino. Na jurisprudência, tem-se dito, com acerto, que se não deve atribuir a curatela a pessoa que, ao tempo da sanidade mental do curatelado. não merecia a confiança dele (e. g., 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 9 de outubro de 1951 (RT 197/279). Mesmo se o Código Civil, art. 413, III, fala de inimigo, sem acrescentar “capital”, é de invocar-se o principio geral (cf. art. 453). 6. Exame pessoal pelo juiz. Antes de se pronunciar acerca da interdição, tem o juiz de examinar pessoalmente o argüido de incapacidade, ouvindo profissional. O profissional é o perito. As críticas que se fizeram a esse enunciado do art. 450 do Código Civil revelam ignorância da função do juiz. Trata-se de demanda, com autor e réu, e não de simples cooperação do juiz (nunca o foi, mesmo ao tempo em que se reputava pura jurisdição

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voluntária). Nem precisaria estar em texto da lei, material ou formal, porque se entende ter o juiz a inspeção direta, sempre que essa possa ser ato de instrução útil. As partes postularam, referiram as provas e produziram-nas. O perito trouxe máximas de experiência, enunciados de fato, que se destinam a informar o juiz, sem a pressuposição de que esse não tenha conhecimento igual, ou melhor; e nunca se lhe tira a pressuposição de ter cultura geral apta a apreciar, e rejeitar, ou aceitar, o que o laudo lhe ofereceu. A inspeção direta é um dos meios para lhe facultar a crítica e a própria medida da atendibilidade. 7. Competência judicial. O foro da interdição é o geral. Onde há juiz especial ou só alguns juizes podem conhecer dos pedidos de interdição, nenhum outro juiz interdita. Se ao juiz do processo do inventário, em que é interessado o incapaz, ainda não interditado, não é dado interditar, de modo nenhum se lhe faculta, a pretexto de ter de ser rápido o andamento do processo, nomear curador à lide ao louco, ou ao surdo-mudo, ou ao intoxicado. A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal entendeu que a lei processual lho permitia (29 de outubro de 1940, D VIII/348; Ad 57/190); mas, em vez disso, a lei vedava-lho, de modo insofis-mável: exigia-se e exige-se pedido, constante de petição fundamentada, feito pela pessoa que a lei considere legitimada para isso; se é o órgão do Ministério Público quem promove, ainda se exige a nomeação do curador à lide. Não só: o processo á contra alguém. o interditando, compondo-se a figura da relação jurídica processual em ângulo. Há autuação, nomeação de perito, ouve-se o interditando, ouvem-se o defensor e as testemunhas do autor e do réu. A nomeação heterotópica de curador, porque o inventário tem de ir depressa, põe acima da pessoa humana os interesses de herdeiros e do fisco. Quem nomeia curador a incapaz não interditado interdita. Não se interdita sem a forma processual inserta na lei. No caso de faltar representante ao incapaz, em processo em que seja interessado, sim; ou no de incapacidade que não depende de interdição, qual a do menor. 8. Correção à impropriedade de linguagem. Quando se empregava no Código de 1939, art. 609, a expressão “sentença declarativa da interdição”, estava-se no sentido vulgar, e não no técnico. Com isso, a lei mostrava que não conhecia a classificação das sentenças em declarativas, constitutivas, de condenação, mandamentais e executivas. E assunto de ciência. Usar do adjetivo “declaratória”, ou “declarativa”, como o de “declarar”, ora no sentido de declaração de relação ou de status, ora de comunicação de conhecimento ou de vontade, ora de constituição, éerro grave. A sentença “que interdita”, é a que decreta a interdição. É isso que se há de entender. Felizmente, com a critica que fizemos ao art. 609 do Código de 1939 (Comentários, VIII, 2ª ed., 30: Tratado das Ações, IV, 1973, 1617), o Código de 1973 riscou o adjetivo “declaratória”: somente fala de “sentença de interdiçao 9. Eficácia da sentença de interdição. As regras jurídicas de ordinário tratam da eficácia da sentença de interdição na sua força especifica e nos seus efeitos. Faz-se a intimação consequência imediata da sentença, que não precisa de requerimento para se produzir. Serão intimadas as partes, isto é, o juiz deve ordenar que se façam as intimações, tanto que se intima aquele mesmo que promoveu o processo. Não se diz, porém, que o curador assume imediatamente; mas é o que resulta da regra jurídica que estatui que o curador, intimado, há de prestar o compromisso. Essa intimação também se faz de oficio. Se há registro especial, a eficácia erga omnes começa com o registro; onde não há, com o registro no Registro das Pessoas Naturais, o que é exigido, e a publicação. O edital não supre, aí, o registro. A eficácia da sentença regia-se pelo art. 452 do Código Civil, que estatula: “A sentença que declara a interdição produz efeitos desde 1090, embora sujeita a recurso”. A força constitutiva, que é intrínseca à sentença (porque ela é constitutiva e o registro parte integrante), depende do registro e, na falta de registro especial, do registro no Registro das Pessoas Naturais da publicação em edital. É a sentença que se publica pelo registro ou pelo edital. Note-se que o Código de Processo Civil de 1939 alterou, de certo modo, o direito anterior, posto que não se pudesse dizer revogado, ou derrogado, pelo art. 609, o Código Civil, art. 452. Enquanto a regra da Lei civil dizia que a sentença de interdição “produz efeitos desde logo, embora sujeita a recurso”, a da lei processual de 1939 impôs que se registrasse imediatamente ou se publicasse três vezes, com intervalo de dez dias, onde não

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houvesse registro especial. Mas, ai, registro e publicação são integrativos da sentença; por conseguinte, os dois artigos não eram inconciliáveis. O art. 452 do Código Civil passou a aludir ao art. 609 do Código de Processo Civil de 1939, como, antes, aludia a outras regras jurídicas de punicidade do direito anterior, plurilegislativo. O Código de 1973 diz que a sentença de interdição produz deito desde logo, embora sujeita a apelação (art. 1.184). É registrada no Registro de Pessoas Naturais e publicada pela imprensa local e pelo orgão oficial três vezes, com intervalo de dez dias. Do edital têm de constar o nome do interdito, o nome do curador, a causa da interdição e os limites da curatela. Assim, hoje, o registro no Registro de Pessoas Naturais e a publicação na imprensa local e no orgão oficial por três vezes, no intervalo de dez dias, é indispensável para a eficácia erga omnes. Mas, com a sentença, mesmo que advenha apelação, produz o efeito típico, desde logo, de modo que só se apaga tal efeito se acontece o provimento da apelação, que o retira. Surge um problema: se não se registrou a sentença de interdição, nem se procedeu à publicação, mas, subindo o recurso de apelação, foi confirmada a sentença e publicado o acórdão, a ainda não há a eficácia erga omnes? Não, porque faltou a publicação na imprensa local e por três vezes no orgão oficial. O que pode ocorrer é que se alegue e se prove que o interessado tinha ciência da sentença ou do acórdão (e.g., o Banco, que teve conhecimento da sentença ou do acórdão, emprega dinheiro levantando com cheque do interdito). Outro problema: houve o registro e só uma publicação, há efeitos erga omnes? Não, salvo se provado que a parte, de interesse contrário, conhecia o registro e a única ou primeira publicação. Os cuidados e atos do curador, no intervalo das publicações, são eficácia constitutiva só interpartes, pois a interdição possui esse elemento constitutivo em dose suficiente (interdição dos psiconeuróticos e dos surdos-mudos). “Desde logo”, significa: a) na interdição dos insanos, se o interditado se acha sob tutela, ou outra curatela, a partir da intimação ao tutor, ou ao curador; se não era incapaz, desde a sentença mesma, pois que nomeia o curador; b) na interdição por surdo-mudez, idem; c) na interdição por prodigalidade, desde a intimação ao pródigo. O registro tem de ser feito desde logo, porque é efeito mandamental da sentença. 10.Recurso que se interpôeda sentença de interdição. O recurso é o de apelação (1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 15 de abril de 1948, RF 124/508). Quanto a terceiros, o prazo de recurso conta-se da publicação do edital (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 10 de junho de 1948, RT 175/307). Não tem efeito suspensivo, quanto à interdição, a despeito da omissão da lei no art. 520 do Código de 1973. O efeito imediato resulta do direito material. Nem, ainda, a apelação é suspensiva quanto à força constitutiva registra-se a interdição; e fazem-se as publicações. Pode ser alegado, no recurso, qualquer fato que altere a conclusão; não, porém, a melhora posterior do interditando. A melhora posterior do interditando tem de ser alegada em ação de modificação, a cuja propositura não é obstáculo a pendência da ação de interdição, inclusive em grau de recurso. 11.Ministério Público e legitimação recursal, O órgão do Ministério Público pode recorrer da sentença de interdição: se concede; se nega, quando foi ele o promovente, ou ocorreu a superposição subjetiva, pela morte do autor. Se o autor não apela, o órgão do Ministério Público não pode apelar; mas, dando-se o caso de não existir, ou ter deixado de promover a interdição algum dos legitimados ativos, nada obsta a que promova, de novo, a interdição. O órgão do Ministério Público pode recorrer se por ele foi promovido o processo. Está certo, de iure condendo; tendo-se, porém, de esclarecer, que, em certos casos, exatamente aqueles em que o órgão do Ministério Público poderia ter promovido o processo, ele fica em situação potencial de parte, dependendo da sua própria conduta a sua inserção na relação jurídica processual. Assim, se aceitou defesa do interditando, nem por isso está privado de intervir como litisconsorte, ou para tomar a si a causa, se o promovente desiste ou se há extinção do

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processo sem julgamento do mérito. Claro que, então, há de ser nomeado pelo juiz o defensor do interditando, a tempo de funcionar. Nenhum ato vale entre a nova função do orgão do Ministério Público e a nomeação, se causa prejuízo ao interditando, não defendido. Também há outros casos em que o órgão do Ministério Público, sem ter promovido o processo de interdição, pode recorrer. E quando exerce a função de defensor. Então, é como defensor que recorre. Tal defensor é parte, como o defensor matrimonii, nas ações relativas ao casamento. § 144. Levantamento da interdição 1. Pressupostos do levantamento. O levantamento da interdição por ter desaparecido (ou não ter existido) a causa, que a motivou, é ação contrária àquela que constituiu a interdição. Uma vez que é parte, na ação de interdição, o interditando, segundo os princípios, tanto lhe há de caber a pretensão ao levantamento da interdição quanto a de rescindir a sentença que o interditou. As razões para se considerar parte, na ação de interdição, o interditando, vigoram para que se tenha como legitimado ativo, principal interessado, no levantamento, o interditado. Assim decidimos em muitos casos, contra a corrente vencedora então. Na doutrina, posteriormente, e com boas razões, 1 M. de Carvalho Santos defendeu a promoção pelo próprio interditado (Código Civil brasileiro interpretado, VI, 404-413). A regra jurídica há de ser terminante. Constrói-se como tendo ele capacidade processual (Andreas von Tuhr, Der Alígemeine TeU des Deutschen Búrgerlichen Rechts, 1, 417, nota 24) e pode constituir advogado. 2. Legitimação ativa do interditado e do Ministério Público. Há a legitimação ativa do interditado. Não é o único legitimado. O órgão do Ministério Público — cuja admissão como parte, na ação de interdição, e delimitada — tem mais ampla missão que é a de proteger a pessoa contra a injusta interdição ou pela injusta continuação da interdição. Por conseguinte, é legitimado, em qualquer caso. O velho direito português e o luso-brasileiro eram omissos, devido à plena adoção do princípio do procedimento de ofício e inquisitivo, quer quanto à interdição, quer quanto ao levantamento. Só a interdição do pródigo escapava a esse regramento de inquisição. A única dificuldade construtiva é quanto a também poder o órgão do Ministério Público recorrer da sentença que levanta; mas a dificuldade é só aparente. Uma vez pedido por ele o levantamento, tem de assumir o papel de parte, e não mais lhe é dado exercer a função típica de ajuda ao juiz, ou ao tribunal, como agente do Estado, do mesmo modo que, promovendo a interdição, não poderia assumir, simultaneamente, a de curador à lide oficial. 3. Regra jurídica geral sobre legitimação ativa. As mesmas pessoas que pediram a interdição podem pedir o levantamento; e aquelas mesmas que, podendo fazê-lo, não o fizeram. Além delas, o curador do interdito, como seu representante. Explica-se isso por ser a legitimação de tais pessoas independente de pretensão a conseguir a interdição: trata-se de pretensão ao processo inquisitivo (Konrad Hellwig, Lehrbucl-, des deutscl-zen Zivil-prozessrechts, 1, 52, nota 5). 4. Particularidade da ação de levantamento. Particularidade da ação de levantamento de interdição é que pode ser promovida com fundamento em nunca ter existido o motivo para a interdição. E ponto firme na doutrina. A eficácia da sentença não é, porém, ex tunc quanto à constitutividade negativa erga omnes. A ação rescisória é outra coisa. Observe-se também que o órgão do Ministério Público, quando promovente do levantamento da in-terdição, não pode desistir da ação. Entra na classe dos pedidos irrevogáveis (James Goldschmidt, Zivilprozessrecht, § 75, 1), devido ao interesse do interditado em obter a decisão, quer se confirme, quer não, o seu status. Promovido o levantamento por alguém que não o interdito, esse é parte (litisconsorte). 5. Eficácia de coisa julgada formal. O que contratou com o incapaz, antes da interdição, pode alegar a capacidade, prová-la, e obter, em processo diferente, que se julgue; porém, depois da interdição, pela força da sentença constitutiva, a sentença de validade seria contra a sentença de constituição da incapacidade, isto é, contra o que se “publicou”. Pela mesma razão, a título de se acoimar de injusta a interdição, terceiros não podem, indiretamente, infirmá-la. A sentença constitutiva, formalmente transitada em julgado, somente se

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impugna pelos meios da ação de levantamento de interdição ou da ação rescisória. Salvo se houve nulidade (invalidade ipso iure). A sentença de levantamento é sentença constitutiva negativa. Só em certos casos tem efeito ex tunc. Porém diz “a partir de ...“, e não “só a partir de Dai poder-se ir com ação que marque antes os efeitos. No tocante a levantamento da interdição, ainda que o laudo conclua pelo restabelecimento progressivo da sanidade, ou pelo restabelecimento do curatelado, pode o juiz achar que ainda não se caracterizou a cura, ou desprezar o laudo diante de outras provas. 6. Regra jurídica de competência pela conexão. De ordinário, os sistemas jurídicos falam de requerimento ou de pedido junto ao processo. Temos, assim, regra de competência por conexão. Afasta-se qualquer ligação ao domicílio presente do curatelado, ou a qualquer outra mudança de circunstância determinante da competência. A regra jurídica que estabelece a junção do pedido ao processo de interdição, livra-se da opinião corrente (que, de lege ferenda, por vezes criticamos) quanto à ligação ao foro geral, considerando subsidiária a competência do juiz que decretou a interdição. Também diverge da norma da Convenção da Haia (sobre interdição) de 17 de julho de 1905. 7.Recaida após o levantamento da interdição. No Código de 1939, art. 611, § 32, dizia-se que, “ainda que se verifique a possibilidade de repetição da moléstia, será levantada a interdição, mas, em caso de recaída, o curador assumirá o cargo, publicando-se novos editais, na forma do art. 609, ou restabelecendose o registro”. O fito era o de simplificar-se a nova interdição, inclusive com dispensa do laudo e bastando a convicção do juiz, sem haver audiência. O Código de 1973 acertadamente retirou tais regras jurídicas, É preciso, se voltar a anomalia psíquica, que se processe a nova ação de interdição. 8. Coisa julgada formal e sentença. A sentença de levantamento de interdição passa formalmente em julgado. E constitutiva erga omnes. A força formal começa com o não ter havido recurso ou com o ter sido confirmada no segundo grau de jurisdição, sem caber recurso, ou, na mesma ou noutro grau de jurisdição, se expirou o prazo. A eficácia erga omnes começa do registro negativo (demos-lhe esse nome técnico), ou da publicação dos editais de que fala o art. 1.184 do Código de 1973, referentes à interdição. § 145. Interdição dos surdos-mudos 1. Surdos-mudos, interdição. Aplica-se aos surdos-mudos o direito material (cf. Código Civil, arts. 451 e 456), pois admite que o juiz assine, segundo o desenvolvimento mental do interdito, a favor dele, os limites da curatela. Quanto aos surdos-mudos, na sentença tem o juiz de assinar os limites da curatela, “segundo o desenvolvimento mental do interdito” (Código Civil, art. 451). Não há incapacidade relativa por surdo-mudo (Tratado de Direito Privado, Tomo IX, § 1.030, 9): ou a pessoa é absolutamente incapaz (art. 59, 111), ou é capaz. Os limites de que acima se fala (art. 451) nada têm com a incapacidade, apesar de serem limites da curatela. Se, na sentença de interdição, se deixa ao surdo-mudo a faculdade de casar-se, o que é possível, atenta a sua sanidade mental e em vista do grau de desenvolvimento intelectual, é necessário o assentimento do curador? O surdo-mudo só não pode casar-se não manifestar, de modo inequívoco, o consentimento (Código Civil, art. 183, IX). 2. Levantamento da interdição. A cessação da surdo-mudez e a aquisição de educação especial são causa de levantamento de interdição; à semelhança da sanidade mental, tratando-se de psicóticos. A ação de levantamento é um dos casos de ação de modificação (constitutiva negativa, quanto à eficácia), salvo se nega o fundamento da interdição.

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§ 146. Interdição dos pródigos 1. Definição. Pródigo é pessoa fisica que faz despesas ou gastos imoderados, superiores às suas rendas, e de cuja atividade está resultando perda ou dissipação do que tem: “desordenadamente gasta e destrói a sua fazenda”, diziam as Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 103, § 6. Sobre isso, veja-se nossos Tratado de Direito de Família (1ª ed., 420-424; Tratado de Direito Privado, IX). Não importa a causa de dissipar; mas o fim útil e normal, ou útil e ligado a convicções filosóficas não patológicas, exclui a pecha de prodigalidade curateláve. No Código Civil, sobrevive o resguardo da esperança dos herdeiros presumíveis, à romana; e é pena que o Código de Processo Civil de 1939, que tantas vezes rompeu textos de direito material, aqui não houvesse realizado, de todo, a retardada evolução. O Código de 1973 deixou o assunto ao direito material. Quanto à interdição do pródigo, ela só o priva de “sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado e praticar, em geral, atos que não sejam de mera administração” (Código Civil, artigo 459). Os atos jurídicos do pródigo em que há de haver a assistência do curador são atos dele, sem que o curador possa chamar a si a prática de tais atos. O curador ao pródigo não o representa. Quanto aos atos que não cabem na regra legal, a capacidade do pródigo é íntegra (2ª Câmara do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, 2 de maio de 1946, RE 109/157). A incapacidade do interdito como pródigo é relativa. Os atos por ele praticados em relação à sua pessoa são válidos; os que pratica em relação a seus bens, sem a devida assistência curatelar, são anuláveis e podem ser ratificados. A anulabilidade de tais atos só pode ser arguida: a) pelo próprio pródigo; b) pelo cônjuge ou ascendente ou descendente. A curatela dos pródigos é deferida na mesma ordem em que as demais, pre-valecendo as mesmas regras de escusas e incapacidades, garantia, exercício e prestação de contas, que observam em relação à tutela. 2. Doentes. Deve-se apreciar a prodigalidade, para os efeitos da interdição, de forma relativa, isto é, tendo-se em conta os rendimentos da pessoa e a repetição de seus atos de esperdicio bonitário. Entre os pródigos estão os oneomaníacos (impulso irresistível a comprar objetos de toda a espécie), os dipsomaníacos (impulso a beber, uma vez que com isso dissipem o que possuem), os depravados de qualquer espécie que dilapidam a fortuna ou o patrimônio em diversões, mulheres, luxo, doações, empréstimos etc.: “... illum quotidie vidit luxuriose, vel ladendo, vel donando, vel pretiis vilibus, et ex causa non subsistente bona sua alienantem, aut id genus alia facientem” (G. A. Struve, Compendium Digestorum, 31, tese 90). 3. Síndrome. A prodigalidade é tida pela psiquiatria como síndrome degenerativa, e muitas vezes manifestação inicial de loucura. Aliás, já assim pensavam os reinícolas, mais adiantados, nesse como em outros pontos, do que muitos tratadistas recentes. Para eles, a prodigalidade era espécie de demência, ou depravação mental. Concluíam-no dos próprios atos irregulares do pródigo, atos característicos, que a manifestavam de modo in-confundível: “ex his colligitur prodigalitatem esse depravationem mentis pronae in effusionem propria substantiae.” 4. Prodigalidade agravada. A interdição por prodigalidade agravada, como se o pródigo é ao mesmo tempo desmemoriado, paranóico, demente catatônico, hipermaníaco, regula-se pelo que se estabelece quanto à curatela dos loucos, inclusive no que se refere à promoção pelos parentes e pelo Ministério Público, pois que em tais casos o pródigo entra legalmente na classe dos loucos de todo o gênero. Sendo a prodigalidade o único sintoma de degeneração, só podem promover a interdição legal o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. A prodigalidade resulta de distúrbios de ordem vária, que somente o exame médico-legal pode diagnosticar. A regra é ser preciso esse exame. Para se conciliarem esse princípio e o do art. 1.185, havemos de entender que deve ser feito, de ordinário o exame de sanidade; excepcionalmente, deve dispensar-se, se requer a dispensa, ou se o juiz aplica o art. 130 ou o art. 1.109. 5. Pródigo, parte na ação. No direito anterior aos Códigos estaduais, a despeito da falta de texto, sustentamos que o pródigo é parte; argumentamos então com a opinião de Manuel de Almeida e Sousa (Notas de Uso Prático, II, 613), que reputava nula a sentença, se o pródigo não tinha sido citado. A relação jurídica processual

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não se formou. A legislação posterior confirmou a construção. Aliás, com a boa doutrina européia não seria possível pensar-se de outro modo. No Código de 1973, na esteira do que sustentáramos, o artigo 1.181 foi explícito: “o interditando será citado...” 6. Regras jurídicas comuns sobre a interdição. Os “artigos antecedentes’, a que se refere o art. 1.185, são todos os aplicáveis, isto é, nos arts. 1.177-1.184, udos, porém, cautelosamente, como relativos ã incapacidade do pródigo. Salvo decretação por outro motivo. As provas têm outra extensão que a dos arts. 1.177-1.184, porque tendem a mostrar fatos patrimoniais, — fatos de dissipação. O exame de sanidade é necessário. No art. 1.177, posto no início do Capítulo VIII, diz-se que a interdição pode ser promovida pelo pai, mãe ou tutor, pelo côn-juge ou algum parente próximo e pelo orgão do Ministério Público. No Código Civil, O art. 460 estabelece que o pródigo só incorre em interdição, “havendo cônjuge, ou tendo ascendentes ou descendentes legítimos, que a promovam . Não mais existindo tais parentes, levanta-se a interdição (art. 461). E só tais pessoas podem argUir a nulidade de atos do interdito, praticados durante a interdição (art. 461, parágrafo único). É de perguntar-se a) continuam a reger a espécie os arts. 460 e 461, com o parágrafo único, ou b) a despeito de se tratar, ai, de assunto de direito material, é ao art. 1.177 da lei processual que se há de atender. A solução certa é a solução a). 7. Curatela. A curatela começa desde que da sentença é intimado o curador nomeado. Daí parte a eficácia; não a eficácia erga omnes, que a sentença constitutiva somente possui desde o registro, e a publicação dos editais. A curatela dos incapazes dos arts. 1.177-1.184 começa desde a intimação ao curador à lide, mas a interdição parte da sentença.

Capítulo II

Ações de invalidade § 147. Pressupostos de validade do negócio jurídico e de atos jurídicos “stricto sensu” 1. Validade e eficácia. Para que o ato jurídico possa valer, é preciso que o mundo jurídico, em que se lhe deu entrada, o tenha por apto a nele atuar e permanecer. É aqui que se lhe vai exigir a eficiência, quer dizer — o não ser deficiente; porque aqui é que os seus efeitos se terão de irradiar (eficácia). A sua eficiência é a afirmação de que o seu suporte fático não foi deficiente —satisfez todos os pressupostos essenciais: capacidade do agente, objeto lícito e forma exigida ou não proibida em lei. A regra jurídica é mais exata se diz “objeto lícito e possível” e se alude a pressupostos materiais essenciais, além daqueles dois primeiros (capacidade e objeto). Eflicere (ex, ficere) dá efficiens e efficax, mas causa efficiens é que se diz, para que se deixe o nome ‘eficácia’ à irradiação dos efeitos. O negócio jurídico ou o ato jurídico stricto sensu nulo éde suporte fático deficiente, e — de regra — é negócio juridico, ou ato jurídico stricto sensu ineficaz; o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu anulável é de suporte fático deficiente, mas o negócio jurídico ou o ato jurídico stricto sensu é eficaz enquanto se não admite, em sentença, que não tenha eficácia. Por isso mesmo, não se pode ligar o conceito de invalidade (nulidade, anulabilidade) ao de eficácia. O ordenamento jurídico somente atribui validade ao ato jurídico que corresponde a suporte fático que é suficiente e eficiente, isto é, suficiente e não-deficiente ou não-deficitário: porque é suficien te, entra no mundo jurídico como negócio jurídico ou como ato jurídico stricto sensu; posto que possa ser deficiente. Quando se trata de saber quais são os negócios jurídicos, ou os atos jurídicos stricto sensu, válidos, o que importa é arrolarem-se os pressupostos de validade, que o mesmo é dizer-se de não-ocorrência de causas de nulidade ou de anulabilidade. A questão da eficácia e da ineficácia é estranha ao assunto, se bem

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que possa acontecer que a classes de invalidade corresponda o ter ou o não ter eficácia o ato jurídico que se inclui nelas. Por outro lado, se algum dos elementos do suporte fático é posterior à entrada dele no mundo jurídico, e isso suscita questão do tempo em que se há de verificar se foi satisfeito o pressuposto de validade, veremos que isso de modo nenhum nos permite tratar em termos de pressupostos de eficácia os pressupostos de validade. Tenhamos sempre presente que a validade e a invalidade (nulidade, anulabilidade) só diz respeito aos negócios jurídicos e aos atos jurídicos stricto sensu. Não há atos-fatos jurídicos válidos, ou não válidos. Nem atos ilícitos, ou fatos jurídicos stricto sensu. O pagamento, por exemplo, pode ser ineficaz; não, inválido. 2. Pressupostos de validade. Os pressupostos de validade concernem: a) ao sujeito ou sujeitos do ato jurídico, que consentem ou devem assentir; b) ao objeto do ato jurídico; c) a elementos do ato jurídico relativos ao gestum (forma + o que é essencial em ato, sem ser a forma em sentido estrito): forma externa e interna. Se a falta de satisfação do pressuposto acarreta deficiência que se faz sentir, no mundo jurídico, desde a entrada e para sempre, do suporte fático (nulidade), ou desde a entrada dele mas por algum tempo (anulabilidade), é questão de técnica legislativa que o sistema jurídico resolve, conforme os seus intuitos de política jurídica. Em verdade, subordinados a formalismos externo e interno rígidos, os povos primitivos tratavam as espécies, que hoje temos como de deficiência, por espécies de insuficiência: o suporte tático não entrava no mundo jurídico, em vez de entrar, posto que deficitariamente (nullius momento); era inútil (expressão que foi a única que foi empregada por Gaio, no segundo e terceiro livro das Instituições, pois só uma vez, III, 176, se disse (“nulla” a “obligatio”). Quando Gaio (II, 123) falou de cessação de impedimento, com efeito de convalescença, ou (II, 198, 212 e 218) de confirmação do mutile, ou (II, 147) de efeito do “nullus”, o sentido já está adulterado (Ludwig Mitteis, Rôrnisches Priuatrecht, 238, nota 4). O “nullum esse” não se confundia com o “ad irritum revocari”, “recidere”, “irritum fieri” (cf. Gaio, II, 145, 146). Quando a mudança de filosofia introduziu a diferença entre não-existir e não-valer, a alteração consistiu em que se concebeu como podendo entrar no mundo juridico o suporte fático que antes não poderia entrar: a nulidade passou a ser deficiência, e não insuficiência. Antes somente o que poderia ser cassado, cair (caducidade), revogado, rescindido, resolvido, é que entrava no mundo jurídico. O tido pro non scripto não era: não entrava no mundo jurídico; nem hoje entra. O nullus não entrava, e hoje entra. Inanis dizia-se o ato jurídico que não ofendia às regras jurídicas de forma, mas, por outra razão, era desnecessário, vazio, oco (in-agnis); e. g., se há duas escrituras do mesmo negócio jurídico, como se o legado consta do testamento e do codicilo, a segunda é inane (Celso, L. 12, D., de probationibus et praesumptionibus, 22, 3: et hic igitur cum petitor duas scripturas ostendit, heres posteriorem inanem esse, ipse heres id adprobare iudice debet) e o ônus da prova tem o herdeiro, que o alega; se o pai da mulher morta reclama juros do dote e o viúvo os reclamava sobre o que não se completara do dote, há compensação, salvo se o pai alimentava a filha, porque então “inanis usurarum stipulatio compensationi non proderit” (Papiniano, L. 42, § 2, D., soluto matrimonio dos quemadmodum petatur, 24, 3); se algumas coisas fazemos como se não fôssemos o agente (ex nostro contractu originem trahunt, nisi ex nostra persona obligationis initium sumant), fazem inane o nosso ato (inanem actum nostrum afficiunt): por isso mesmo, não se pode estipular, nem comprar, nem vender, nem contratar, de modo que outro, em seu nome próprio atue — “et ideo neque stipulari neque emere vendere contrabere, ut alter suo nome recte agat, possumus” (L. 11, D., de obligationihus et octionibus, 44, 7). Verdade é que ora falta o objeto, inteiramente, ora se alude a exceção peremptória (Otto Gradenwitz, Die Ungiltigkeit obligatorischer Recbtsgeschàfte, 303, nota 1), ora — e esse é o sentido científico mais aconselhável — à falta de identidade entre o que é sujeito e o que manifesta a vontade, O ato de quem gere negócios de outro, em nome do outro, não é ato jurídico da outra pessoa: os negócios jurídicos, que ele suscitar, gerindo, são inanes, vazios, e só a ratificação os poderia encher. Hoje, a gestão de negócios é ato jurídico stricto sensu; não negócio juridico, nem ato real (da classe dos atos-fatos jurídicos); a fortiori, ato inane. A ratificação do dono do negócio é que enche o inane dos negócios. A essencialidade do pressuposto, de cuja falta resulta a nulidade do ato jurídico, depende de regra jurídica. Por isso, algumas infrações que causam, em determinados sistemas jurídicos, nulidade, apenas tornam, noutros sistemas jurídicos, anulável o ato jurídico. É o que se passa, por exemplo, com o dolo, que no direito brasileiro somente produz anulabilidade. Há problema de técnica legislativa. O legislador primeiro cogita da invalidade. Depois, aponta, dentre as causas de invalidade, o que se há de considerar causa de nulidade e o que se há de ter

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como causa de anulabilidade. A ciência chegou a convicções precisas no tocante às infrações de regras jurídicas sobre ilicitude do objeto, sobre impossibilidade ao tempo da conclusão e sobre forma. Não há concordância, de iure condendo. no que se refere aos defeitos de vontade. No que respeita à capacidade, compreende-se que se faça corresponder à incapacidade absoluta a nulidade e à incapacidade relativa a anulabilidade. 3. Viciosidade. A noção de vitiosus é de origem sacral; deve ser velhíssima, porque a regra “Quod initio vitiosum est, non potest tractu temporis convalescere” (Paulo L. 29, D., de diversis regulis luris antiqui, 50, 17) refer&se a “nuílus’, estava, sem generalização, em Javoleno (L. 201, D., 50, 17) e em Licínio Rufino, discípulo de Paulo, como aquele “amicíssimus” (Plínio, Ep., VI, 15), e deve ter sido apenas formulada por Paulo, que já faz vitiosus e nullus sinônimos, quando no direito sacral e no direito público, nem sempre o vitium importava inexistência (Th. Mommsen, Rômisches Staatsrecht, 1, 115 s.). O sacral abrangia a vida toda; não separava, como o direito, o mundo fático e o jurídico. Quando o direito cogita do vitiosus, comete esse erro de fazer coincidentes vício e inexistência. Muito mais tarde, o vício (da vontade) já é algo que se observa dentro do direito, razão por que não se pode traduzir, hoje, literalmente, a regra paulina da L. 29, D., de diversis regulis luris antiqui, 50, 17. 4. Confusões de alguns juristas. Falando-se de elementos e pressupostos essenciais, não se devem confundir os dois planos, o da validade e o da eficácia; menos ainda, qualquer deles e o terceiro, que em verdade é ao rés da realidade, o da existência. Nenhum erro maior do que, por exemplo, o de Emilio Betti (Teoria Generale dei Negozio Giuridico, 158), ao cogitar dos essentialia negotii, dos naturalia e dos accidentalia negotii em termos de efeitos essenciais, naturais e acidentais. A coisa alheia, vendida, é causa de ineficácia, e não causa de invalidade. § 148. Existência, validade, invalidade e eficácia 1. Existir e valer. Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade. Nem tudo que existe é suscetível de a seu respeito discutir-se vale, ou se não vale. Não se há de afirmar nem de negar que o nascimento, ou a morte, ou a avulsão, ou o pagamento valha. Não tem sentido. Tampouco a respeito do que não existe: se não houve ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido. Os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entraram (plano da existência) no mundo jurídico e se tornaram, assim, atos jurídicos. 2. Valer e ser eficaz. Os fatos jurídicos, inclusive atos jurídicos, podem existir sem serem eficazes. O testamento, antes da morte do testador, nenhuma outra eficácia tem que a de negócio jurídico unilateral, que, perfeito, aguarda o momento da eficácia. Há fatos jurídicos que são ineficazes, sem que a respeito deles se possa discutir validade ou invalidade. De regra, os atos jurídicos nulos são ineficazes; mas, ainda ai, pode a lei dar efeitos ao nulo. Nulidade, anulabilidade e ineficácia são conceitos que não se podem confundir. A língua portuguesa, desde séculos, não os confunde. Confundem-no pessoas que se alimentam com livros e escritos de sistemas jurídicos diferentes. Nulidade e anulabilidade decretam-se, pois é preciso que se desconstitua o ato jurídico. Se não se desconstitui em certo prazo o ato juridico anulável, torna-se válido. Ao ato jurídico nulo em princípio não se estabelece prazo. Nulo foi, nulo é, nulo será. Ambas, nulidade e anulabilidade, são deficiências do suporte fático. Não há nulidades ou anulabilidades supervenientes. O que pode sobrevir é a ineficácia, que é falta de efeito. O ato jurídico nulo pode ser deficiente e já sem efeito, desde a sua perfeição; ou ser válido e sem eficácia. Em principio; atos jurídicos nulos são sem efeitos.

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Se a invalidade desaparece, há sanação. Se desaparece a ineficácia, há pós-eficacização. Se o que era ineficaz se fez eficaz, diz-se que há eficacizacão. No Código de Processo Civil de 1939, art. 1.045, V, falava-se de vícios que “anulam” as sentenças em geral, e no Código de Processo Civil, tanto esse como quanto o de 1973, não se conhece um só caso de anulabilidade. Nulidades e rescindibilidades, sim. § 149. Nulidade e Anulabilidade 1.Problema liminar de ser ou nâo-ser. O problema de ser ou não-ser, no direito como em todos os ramos de conhecimento, é o problema liminar. Ou algo entrou ou se produziu e, pois, é, no mundo jurídico; ou nele não entrou, nem se produziu dentro dele, e, pois, nâo é. Enunciados tais têm de ser feitos, a cada momento, no trato da vida jurídica. As vezes, incidentemente; outras vezes, como conteúdo de petições, de requerimentos, ou em simples comunicações de conhecimento. O ser juridicamente e o não-ser juridicamente separam os acontecimentos em fatos do mundo jurídico e fatos estranhos ao mundo jurídico. Assente que todo fato jurídico provém da incidência da regra jurídica em suporte fático suficiente, ser é resultar dessa incidência. dá aqui se caracteriza a distinção, primeira, entre o ser suficiente e o ser insuficiente e o ser deficientemente. Para algum ato jurídico, qualquer que seja a espécie do ato, ser deficiente, isto é, para que seja deficitário, é preciso que seja. A despeito da claridade de tais enunciados, reminiscências filosóficas, que correspondem a idades superadas, perturbam aqueles que se não dão conta de que há inúmeras espécies de ser. Logo de começo, em Teoria Geral do Direito, e não só de Direito Privado, alguns juristas permitem que se identifiquem nada e nulo, inexistência e não-. validade, que o mesmo é dizerem que o negócio jurídico nulo não existe. A súbitas, enfrentam o problema dos negócios jurídicos nulos, ou do atos jurídicos stricto sensu nulos, que têm alguns ou algum efeito, e caem na contradição mais gritante: se o nulo não existe e se há nulo com efeitos, há efeito do que não existe e, pois, do nada. A educação lógico-matemática e fisica de século XX repele tais imprecisões conceptuais. Certamente, a produção de efeitos pelo nulo não ocorre sempre, érara; mas bastaria que, cm algumas espécies, surtisse efeitos o negócio jurídico nulo, ou o ato juridico stricto sensu nulo, para se ter de admitir que o ato jurídico nulo exista, seja. Se o ser pode não produzir efeitos, efeitos não podem vir do não-ser, do nada, do inexistente. Compreende-se o esforço dos pensadores do direito para se reduzir ou eLiminar essa contradição, que depõe contra a segurança racional do seu conhecimento. Em vez de procederem à distinção entre o inexistente e o nulo, o que a evitaria — procuram atribuir o efeito do ato jurídico nulo a algo que estaria no seu lugar; e. q., fato jurídico não-negocial, fato ajuridico (nova contradição, porque seria efeito jurídico de fato que não seria juridico). Os juristas alemães e italianos, não todos, incorreram nisso e reduziram os negocios jurídicos nulos a cômoda expressão com que se designam não-entidades, não negócios (por exemplo, Philipp Lotmar, Uber Causa im rómischen Recht, 10 s. August Thon, Rechtsnorm und subjektives, Recht, 358; Ferdinand Zrádlowski, Das rõmische Priuatrecht, II, § 60, nota 4; Franz Leonhard, Die WahI bei der Wahlschuld, Jenings Jcxhrbúcher, 41, 42 s.; recentemente, Domenico Rubino, La Fattispecie e gii effetti giuridici prelimincri 86 a). A reação a isso está em E. Windscheid (Lehrbuch, 1, Y cd., 313, inclusive em nota de Theador Kipp; nas edições anteriores, § 69, texto e nota 1 d). A despeito do erro dos processualistas alemães, sob influência dos civilistas romanizantes, de admitirem ação declarativa em caso de nulidade (absoluta), a doutrina mais recente repetiu a identificação do nulo com o inexistente (Konrad CosackMitteis, Lehrbuch, 1, 8ª ed., 147; K. Burchard e H. O. de Boor, Búrgenliches Recht. 1, 61» AIfred tvianigk, Willenserklàrung und W/lensqeschàjt, 189; Hopp, Eigentunisuorbehait und Eigentunisanwartschaft, 30 si A identificação denuncia que ainda se raciocina com o elemento romanistico, correspondente a convicções filosóficas e técnicas superadas. Aquela concepção faz vazio o nulo; essa, ainda o deixa cheio de não-i. Naturalmente, as variantes são muitas e têm determinação gnosiológica, provavelmente psicanilitica, econômica e de estruturação política. 2.Formalismo romano e conceito de “nullus’. O formalismo romano construiu, com os seus sinais exteriores, visuais, bem mediterrâneos, o mundo jurídico, de modo que o não-jurídico era o não-construído, o não-existente, o nec ullus. Ser ato jurídico era ser formal, de tal sorte que se teve de construir, depois, a teoria das nulidades não ligadas á infração da forma. Qualquer pessoa podia arguir ser nulo o ato, porque ele não existia, não era, e podia arguir a inexistência como podia andar pelas estradas vazias, pelas ruas. O juiz não o via,

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porque o ato não era. Ser, ou não ser. O espírito romano tinha de ficar aquém de toda noção de ato anulável, do que existe e pode, em dadas circunstâncias, vir a não ter existido. Quando ele construía, a sua construção lã ficava; era no mundo. Fechara-se o negócio jurídico; e, se alguma razão, concernente ao passado, havia, para que não tivesse sido, o caminho único — para o Romano — era abri-lo, cortá-lo, rescindi-lo. Compreendia que se rescindisse o negócio jurídico, não que se anulasse: ou o nec ullus, ou o ullus; se quer desfazer, tem-se de demolir, rescindir. 3.Dois sentidos de “nullus’ e de nulo”. Na medida que se ia caracterizando o significado de nulo, à diferença de nullus, que perdia o significado latino e apenas se conservava para a exposição do direito romano clássico e pós-clássico, porém não do uso moderno, os juristas foram vítimas de confusões e obscuridades lamentáveis. Se bem que E. 1. Bekker (Uber die Cou pansprozesse, 36) tivesse posto o dedo na chaga, chamando a atenção para a freqúente confusão entre negotium nullurn e negotiurfl omnino non existens, uns tentavam manter o conceito romano, a despeito da mudança da filosofia e das regras jurídicas novas, e outros adaptavam tudo, que se afirmara em direito romano, ao conceito novo, que foi o de “qualificação” de ato jurídico. Se uns, como Siegmund Schlossmann (Zur Lehre uon Zwange, 17), exprobravam a última atitude, outros viam que a transformação conceptual se operara (e, q., Philipp Lotmarr, Uber Causa im rômischen Redil, 11 s.), porque não é (hoje) o mesmo dizer-se “hic emptio non est” e “haec emptio nuila est”. As linguas ocidentais, românticas, ou não, refletiram o que se passava nas convicções filosóficas, e teve-se de atender àdistinção. No caminho, não importa se há quem tente considerar o nulo como o só aparentemente existente (e, g., Joseph Unger, System, II, 140 5.; Ernst Zitelmann, Irrturn und Rechtsgeschàft, 288 e 377; contra, energicamente, Josef Kõhler, Der Kauf einer fremden Sache, ZeitschriJt Júr deutsches Búrgerliches Recht und franzõsisches Ziviirecht, VIII, 502, e Rudolf Leonhard, Der Irrtum ais Ursoche nichtiger Vertráge, li, 2ª ed., 5 s.), ou como só não existente para o direito (E. Windscheid, Lehrbuch, J, T ed., 423 s., nota 1; cp. Otto Karlowa, Das RechtsgeschàJt und seine Wirkung, 117). O ato jurídico nulo não é inexistente, porque satisfaz mínimo de suporte fático, que basta para se falar de ato juridico, embora nulo, e não basta para ser válido, nem, sequer, somente anulável. Para a anulabilidade, exige-se outro mínimo de suporte fático (Minimaltatbestafld). Não se pode, para se raciocinar com esses conceitos, recorrer às fontes romanas, porque não as tinham (cf. Rudolf Leonhard, Der Ini-turn ais Ursache nichtiger Vertráge, II, 7; Siegmund Schlossmann, Zur Lebre varri Zwcinge, 23; sem razão, B. Windscheid, Lehrbuch, 1, 424 s., nota 2). 4. Direito comum. No direito comum, há duplo sentido de ato jurídico, que se deve evitar: ora se fala de ato jurídico como o elemento do suporte fático, de que resulta o fato jurídico, irradiador de efeitos, ora de ato jurídico como o que entrou do suporte fático no mundo jurídico (cp. Ferdinand Regelsberger, Pandekten, 1, 488; Ernst Zitelmann, Irrtum und Rechtsgeschàft, 293). O ato é que é elemento do suporte fático; ato jurídico éo suporte fático, em que há o ato, tal como entrou no mundo juridico (certos, Hermann lsay, Die Wiilenserklàrung im TaLhestand des Rechtsgeschdfts, 2; E. Natter, Die teilweise Nichtiqkeit, 2 s.). Se disséssemos que há atos jurídicos nulos, e nulo fosse igual a inexistente, haveria contradição evidente; por que não existiria ata jurídico, e sim somente ato mais outros elementos que compuseram suporte fático que não entrou no mundo jurídico. A contradição agravar-se-ia com a afirmação de que há ação declarativa para se decidir sobre nulidade, e não ação constitutiva negativa. Ação declarativa é sabre existência ou inexistência — ou do fato jurídico, ou do efeito, ou da relação jurídica. Se se pede a declaração de que tal fato não existe, a questão de ser nulo, ou não, o ato jurídico, é questão prévia, constitutiva negativa, que se pode pôr na própria ação declarativa, por força do princípio da decretabilidade de oficio, em se tratando de nulidade, e em consequência da distinção mesma entre nulidade e anulabilidade, O ato jurídico nulo é tratado como se nao tivesse existido nunca; mas existiu e existe até que transite em julgado a decisão que o desconstitua. Por isso, embora excepcionalmente, pode ocorrer sanação como se foi estabelecido por lei prazo preclusivo, ou se foi permitida a ratificação pela pessoa que se tornou capaz. 5. Concepção hodierna. A concepção hodierna das nulidades reflete, como as dos antigos, concepção do ser: o nada não existe no mundo, porém o vazio pode existir; porque espaço vazio é gás rarefeito, há milhares de átomos em centímetro cúbico de espaço interestelar. No estudo que se faz, códigos à mão, das nulidades, não se pode dizer, nem sequer, que elas tenham existência só simbólica, s (r); porque o nulo existe, negarlhe existencialidade (existência experimental) e só lhe reconhecer existência simbólica não seria traduzir a

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concepção contemporânea, posto que tenha sido a dos juristas que, sem a explicação da declaratividade pela alegabilidade incidenter e, pois, também, em questão prejudicial, admitem a ação declaratória, em caso de eiva de nulidade. Tal o que aconteceu com os juristas alemães, que aceitaram ou não resistiram ao emprego, pelos advogados e juizes, da ação declarativa do § 256 da Ordenação processual alemã. Era surpreendente a simplicidade com que, diante das dificuldades causadas, por seu romanismo tardio, procediam, como, e. g., ao dizerem, quanto ao § 1.329 do Código Civil alemão (exigência da “ação’ de nulidade), que “outros princípios fundamentais valem para o casamento nulo” (e. g., G. Planck, Búrgerliches Gesetzbuch, 1, 1ª ed., 145; Kammentar, 1, 4t 229). Quando se exige a “ação’, ou a “ação ordinária”, é que só se permite a acionabilidade em “ação”, e não incidenter: excluiu-se o acionar-se em questão prejudicial, ou era exceção e por isso, somente por isso (dizem), a ação declarativa seria fraca. Ora, encontraria ela o negócio jurídico nulo, ou o ato jurídico stricta sensu nulo, que teria de desconstituír. Quando a lei não exige ação autônoma, ou ação de rito especial ou de rito ordinário, a ação declarativa é fraca; todavia, uma vez que tal nulidade é decretável a qualquer momento, suscite-a quem, interessado, a suscitar, ou de ofício, o juiz, ao sentenciar, primeiro decide a questão prejudicial e, pois, desconstitui; após isso, declara. Ao declarar, já o negócio jurídico nulo ou o ato jurídico stricto sensu nulo, não é mais, não pertence mais ao mundo jurídico, já estava desconstituído. 6. Soluções técnicas quanta ao conceito de nula. No adotar essa ou aquela linha de limites, tem liberdade o legislador; porém seria expor-se a si, a expor os outros aos riscos dos cães de Pavlov, indecisos entre círculos e triângulos, considerar o mesmo fato como existente e inexistente, ao mesmo tempo, no mundo jurídico. Por outro lado, dentro do existente, toda precisão se há de dar aos conceitos referentes à defeituosidade dos negócios jurídicos: o negócio jurídico nulo é defeituoso; o negócio jurídico anulável também o é. Além disso, herdamos a noção de rescisão, romana, de que os antigos juristas, impotentes para a criação da classe dos negócios juridicos anuláveis, e dos atos juridicos stricta sensu anuláveis, lançaram mão. 7. Precisão conceptual indispensável aos sistemas jurídicas. Certamente, o legislador é livre no incluir, ou não, no conjunto da inexistência, ou no conjunto da existência (mundo jurídico), o nulo. Porém terá de o tratar, sempre, como inexistente, se naquele conjunto o incluiu, ou como existente, se o incluiu nesse. Não pode classificar o nulo como não-sendo e tratá-lo como ser, nem classificá-lo como ser e tratá-lo como não-sendo. São exigências elementares de lógica, a que não se pode furtar qualquer jurista digno do seu ofício. Tomemos, por exemplo, a declaração de vontade. Ou ela foi feita, ou não foi feita. Não se pode dizer que a declaração de vontade pelo que estava coagido, ou ameaçado, não foi feita; foi-o, embora atingida pelo defeito. Defeito não é falta. O que falta não foi feito. O que foi feito, mas tem defeito, existe. O que não foi feito não existe, e, pois, não pode ter defeito. O que foi feito, para que falte, há, primeiro, de ser desfeito. Toda afirmação de falta contém enunciado existencial negativo: não há, não é, não existe; ou afirmação de ser falso o enunciado existencial positivo: é falso que haja, ou que seja, ou que exista. Faltar é derivado de fallere. como falso; ao passo que defeito vem de deficio (facio) e sugere estar mal feito. O nulo é negação da validade; não é negação da existência. Mesmo porque se pressupôs o existente; tanto que nulo e não-nulo existem. A classe vazia e a classe cheia têm existência porque a classe é e os sinais se referem à vaziez ou ao enchimento (vazio, não-vazio = cheio). Sem se dar conta do que se pressupôs, cair-se-ia em paradoxo, pois fa e ‘— fa não seriam contraditórios se fa não pressupusesse que f existe e a existe: a conjunção de “f existe’ e “a existe” implica ( E x ) fx e, portanto, fa concede E x ) fx ) (cf. Everett 3. Nelson, Contradiction and the Presupposition of Existence, Mind, 55, 1946, 319 s.). 8. Manifestações tidas coma não-escritas. Há regras jurídicas que limpam o campo dos atos jurídicos mais rigorosamente do que com as sanções de nulidade, anulabilidade e rescindibilidade. São as regras jurídicas que mandam considerar-se não-escrita alguma manifestação de vontade, ou comunicação de vontade, de conhecimento, oú de sentimento, ou parte dela. A técnica jurídica lança mão, aí, de expediente externo, que é o de jogar a manifestação ou comunicação, ou a parte dela, no conjunto das manifestações ou comunicações ou partes inexistentes, em vez de só as empurrar para o conjunto complementar das manifestações ou comunicações não-válidas e rescindíveis. O ato, tido por nulo, é; o não-escrito não é, não existe. A eficácia da sentença, que o proclama, é declarativa; não constitutiva negativa. Daí preferirem alguns textos legais a expressão “inexistentes”. Os juristas que não distinguem o não-existente e o nulo excluem a classe nula, e tropeçam com ela a cada

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momento porque o direito, histórica e sistematicamente, alude à ela. Ao pretenderem tratá-la como sinônimo de não-existente, cometem erro de lógica (confusão entre “nulo” no sentido de não ter todas os elementos componentes, de modo que os que têm não operam, e não-existente”). § 150. Limites entre o existente e o não-existente 1. Problemas de técnica jurídica legislativa. A técnica legislativa encontra problemas concretos muito delicados, ao traçar os limites entre o existente e o inexistente: a) o ato em que foi um dos “sujeitos”, ou o “sujeito”, quem não é pessoa (= sem capacidade de direito), há de ser tido como inexistente ou existente mas nulo? b) Há de ser tido como inexistente, ou como nulo, ou como anulável, o ato em que foi agente o louco, o surdo-mudo, ou o menor? c) o negócio em que a violência, o erro, ou a fraude, causou a manifestação ou comunicação, é de ser considerado inexistente, nulo ou anulável? Desde que se inclui numa classe o fato relativo a ato, tem-se de ir às conseqüências da classificação, exceto no que a lei mesma as exclua. Existir, valer, e ser eficaz são conceitos tão inconfundiveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia (Hans Kelsen, Hauptprobleme, 14). O que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não e. 2. Validade e eficácia, erra grave nas confusões de conceitos. Se o que praticou o ato não era legitimada jurídico, por ser estranho ao declarado o declarar, ou estranho ao manifestar o manifestado, ou estranho ao comunicar o comunicado, declarou, manifestou ou comunicou, fora da ordem interior em que o mundo jurídico encadeia os direitos, as pretensões e ações, posto que dentro do mundo jurídico. A sanção pode ser a nulidade; mas essa sanção supõe infração das leis reguladoras do ato jurídico, em vez de acontecimento fora. Quem declara a vontade de vender a casa que pertence a outrem não infringe regra material ou formal do negócio jurídico; talvez haja observado todas elas: o que em verdade fez foi contratar a respeito do que lhe não pertence e, pois, por se pôr fora de ordem, ineficazmente. Os juristas alemães chamaram ao estado dessa declaração fora de trilhos, heterotópica, Rechtlosigkeit, que é o negociar “sem direito” a fazê-lo; e Alois Brinz (Lehrbuch der Pandekten, 2ª ed.,IV, 439) pôs claro que aí não se trata de nulidade: não se pode considerar nulo o negócio jurídico do possuidor, que pode mesmo vir a ser eficaz. Ao negócio jurídico, em si mesmo, nada faltou. Na teoria das nulidades, o estudo do processo histórico tem sido inferior â contribuição histórica. Há excesso de romanismo, que ficou, e insuficiência de conhecimento profundo do direito romano das nulidades. A tal ponto vai a confusão, que âs vezes podemos dizer: “Mas o direito romano não conhecia a teoria das nulidades!”; e outras: “Exatamente isso é a teoria romana da nulitas = não-existência!”. § 151. Validade e não-validade 1. Invalidade e ineficácia. A respeito dos atos jurídicos defeituosos, a terminologia tem sido caótica, se não contraditória; e é fácil calcular-se quão nociva ao direito tem sido essa falta de exatidão e de clareza. Que é nulo? Que é anulável? Que ê ineficaz? A distinção entre nulidade e ineficácia é assente na distinção entre validade e eficacidade, depois que a ciência do direito apurou, a fundo, que a defeituosidade não se identifica com a falta de requisitas para a irradiação de efeitos. Toda validade se liga ao momento em que se faz jurídico o suporte fático; toda eficácia será produção da juridicidade do fato jurídico. A venda e compra da coisa alheia é ineficaz; pode vir a ser eficaz. O não poder executar a obrigação produz o efeito da indenização. Se o terceiro, que devia ser ouvido, não no foi, o negócio jurídico é ineficaz quanto a ele. A expressão “invalidade” (= não-validade), elas: o que em verdade fez foi contratar a respeito do que lhe não pertence e, pois, por se pôr fora de ordem, ineficazmente. Os juristas alemães chamaram ao estado dessa declaração fora de trilhos, heterotópica, Rechtlosigkeit, que é o negociar “sem direito” a fazê-lo; e Alois Brinz (Lehrbuch der Pandekten, 2ª ed., IV, 439) pôs claro que aí não se trata de nulidade: não se pode considerar nulo o negócio jurídico do possuidor, que pode mesmo vir a ser eficaz. Ao negócio jurídico, em si mesmo, nada faltou.

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Para se ver quanto os tratadistas de direito romano versaram os problemas de nulidade e de anulabilidade com elementos novos, que os Romanos estranhariam, basta lê-los. Por outro lado, misturaram atos jurídicos ineficazes e atos jurídicos nulos, ineficácia e nulidade. Toda identificação de anulabilidade (conceito novo) com rescisão é, para o direito romano, falso: o direito romano desconhecia aquele conceito. Conhecia a nulidade (para ele, = inexistência): nullum est negotium, nihíl actum est (Gaio, III, 176); e conhecia a rescisão. Nos casos de vício do consentimento (dolo, fraude), o direito romano nada possuía, a principio, de sanção: as partes tinham de prometer a indenização, fixada ou não, em caso de vicio do consentimento, e era a actio ex stipulati que se havia de propor, e o Pretor foi além — criou a exceptio doli; depois, o Pretor, talvez C. Aquilius Gaílus, contemporâneo de Cícero, lançou a actio de dolo, que levava à restituição ou á indenização, porém só se construía a sua eficácia como de rescisão, ou diminuição da prestação. Nenhuma nulidade, ou anulabilidade. Quanto à violência, ou era efetiva, ou ameaça, metus. Aquela, eliminando a vontade, era causa de nulidade (no sentido romano); essa, não: o ato jurídico, a despeito da coação moral, existiu. A crer-se em Cicero (in Verrem, II, 3, 65) foi o pretor Octavius quem criou a ação quod per vim aut metum abstulisset, para a reparação do dano causado pela violência. A exceptia quod metus causa podia ser usada antes de se executar o prometido. Nem nulidade, nem anulabilidade. Quanto à lesão, os imperadores Diocleciano e Maximiano estatuiram que, se o vendedor fora lesado em mais de metade do preço, podia demandar pela rescisão (L. 2, C., de rescindenda venditione, 4, 44). O réu podia completar o preço. No caso dos vícios da coisa, já as XII Tábuas haviam cominado a pena do dobro ao vendedor que houvesse afirmado qualidades que a coisa vendida não tinha, e foi a jurisprudência que estendeu tal responsabilidade àquele que houvesse ocultado a existência de vícios. Os Edis curules, a quem tocava a polícia dos mercados, regularam o assunto. O comprador podia pedir a diminuição do preço, ou a redhibitio, que era o re-haver o preço. Nem nulidade, nem anulabilidade; quase re-dava (L. 21, D., de aedilicía edicto et redhibitione et quanti minoris, 21, 1: “. ..id circo redhibitio est appellata quasi redditio”), resolvendo-se o contrato (L. 23 § 1: “resoluta emptione”). Ê certo que Alois Brinz (Lehrbuch der Pandekten, 2ª ed., II, 422, nota 71, e 424) e Otto Karlowa (Das Rechtsgeschàft und seine Wirkung, 159) falavam de anulação; porém não era isso o que se passava, nem é o que hoje se passa. O conceito romano era o de resolutio, e o defeito da coisa é que causava a actia redhibitoria — não o do contrato de venda e compra. A lei fizera resolução legal o que fora resolução convencional, com a actio ex stipu lati. Lei de D. Duarte (18 de março de 1435) supunha a existência, no direito português, das ações de enjeitamento (redibitória e de diminuição do preço) e foi feita “por escusar tais demandas e dar avisamento aos compradores” de cavalos e outras bestas em Evora, a fim de perderem “toda a esperança de desfazer a venda ou troca” (Ordenações Afonsinas, Livro IV, Título 22, §§ 2-5, onde se atribui à lei, com razão, a data de 18 de março, em vez de 28, que consta do manuscrito de Santarém). As Ordenações Manuelinas (Livro IV, Titulo 16) puseram em relevo o enjeitamento de escravos com doença ou manqueira, e acrescentaram que o dito sobre os escravos de Guine’ ‘ aja lugar nas compras e vendas e trocas, escambos de todas as bestas, que por quaisquer pessoas foram compradas, vendidas, trocadas, e escambadas, que se quiserem enjeitar por manqueira ou doença”. Se o vicio não era doença ou manqueira, guardava-se “o que por direito fôr achado”, isto é, o que se houvesse de seguir, em direito romano. Nas Ordenações Filipinas (Livro IV, Titulo 17, §§ 8 e 10), estatui-se: “E ainda que os escravos se não podem enjeitar por qualquer vicio e falta de ânimo, como atrás he declarado, as bestas se podem enjeitar por os tais vícios, ou faltas do ânimo, assim como sem causa e não lhe sendo feito mal algum, se espantarem, ou empinarem, ou rebelarem” (§ 8, 2ª parte). “E as coisas, que não são animadas, quer sejam móveis, quer de raiz, se poderão enjeitar por vicias, ou faltas, que tenham, assim como um livro comprado, no qual falta um caderno, ou folha em parte notável, ou que está de maneira, que se não possa ler, ou um pomar, ou horta, que naturalmente sem indústria dos homens produz plantas ou ervas peçonhentas” (§ 10). O principio evitava a remissão ao direito romano. 2. Resistência ao exata conceito de ato jurídico nu/o; precisão de conceitos. Alguns juristas chegam a não compreender que possa haver diferença entre inexistente e nulo (e. g., Francesco Messineo. Istituzioni di Diritto Civiie, 1, 220; Alfredo Fedele, La !nuaiiditâ dei negozio giuridico, 32; von Eulitz, Unqúitigkeit von Verwaitungsakten wegen Irrtums 12 s.; F. Drogoul, Essai d’une Theorie qénérale des Nullités, 88). Porém, além da regressão a Roma. o que importa tal atitude, choca-se ela com os sistemas jurídicos, a ponto de se pretender, depois, distinguir entre inexistências (e. g., Massimo Ferrara-Santa-Maria, Inefficacio e InopponibiIitâ, 15): não existir e ser inválido, como? Não pode ser deficiente, o que não existe, o que não é.

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Para ser deficiente, é preciso que exista. O que não existe nem é válido, nem inválido: não entrou, ou já não está, no mundo jurídico. Revela pouco estudo de lógica e, mais ainda, da estrutura dos sistemas lógicos, pensar-se que, se há o conceito de inexistência esse há de estar no mundo juridico: e seria cometer o erro inverso — em vez de se forçar a inserção do nulo no inexistente, forçar-se-ia a inserção do inexistente no nulo, trazendo-se aquele para o mundo jurídico. Assim, quando Mário de Simone (La Sanatoria dei Neqozio giuridica nu lia, 95) tentou pôr a inexistência, a nulidade (e a anulabilidade) como graus de validade, não atendeu a que o suporte fático insuficiente, que é o do inexistente, não entra no mundo jurídico. Nulo e anulável entram; o que não entra é o que não existe e, por isso mesmo, se diz inexistente. Inexistente, porque ficou fora do mundo jurídico: dele pode-se falar, de dentro do direito, como, de dentro da casa, se pode falar do que se passa ou se passou na rua. O conceito de negócio jurídico inexistente ou de ato jurídico stricto sensu inexistente é metajuridico; não é mais do que o enunciado da não-juridicização do ato. Estão-se a contemplar dois mundos, o dos fatos e o jurídico. Não existir, estando no mundo jurídico, seria absurdo; não se pode raciocinar, em qualquer ciência, sem se respeitar o que é lógico, o que é matemático e o que é físico. A categoria do inexistente é ineliminável, porque o mundo jurídico não abrange todo o mundo fático, nem se identifica com ele; a categoria do nulo existe, porque se teve de classificar e nomear o que é o mínimo tolerado dentro do mundo jurídico, embora para ser apontado como extremamente viciado, deficiente. Não se pode dizer que o conceito de inexistente seja inútil ao jurista: é de interesse do nadador saber onde acaba a piscina. Ainda no plano da eficácia, o ato inexistente é ato que não poderia produzir efeitos; o ato jurídico nulo, o que não os produz, porque é nulo. A ineficácia do inexistente é consequência de não-existir; a ineficácia do nulo é supressão. Vê-se no ato jurídico nulo, a falta, o défice, a cavidade, o suporte fático sobre que a lei incidiu e entrou no mundo jurídico sem que enchesse o molde legal. Se A estava morto quando se diz que testou, não há testamento: o negócio jurídico inexiste. Se A vendeu a lua, não há negócio jurídico de venda e compra. Se A trocou o perfume do roseiral pela cadeira, não houve negócio jurídico. Se A doou o pedaço de carne ao cão alheio, x, A não doou (a doação não existe) — A apenas derrelinquiu a carne, ou destruiu bem. Se A doou o pedaço de carne ao seu cão y, A usou a sua propriedade móvel, consumindo-a — não doou. O ato humano, ainda se havia intenção de que entrasse no mundo jurídico como negócio jurídico, ou como ato jurídico stricto sensu, não é ato jurídico, se nele não entrou. Não se fez jurídico. Se falamos de ato jurídico nulo, ou de ato jurídico anulável, supomos que o ato humano entrou no mundo jurídico e é nulo ou anulável. Porque nulo e anulável são conceitos do mundo jurídico. No mundo fático, não há nulidades nem anu-labilidades. No próprio mundo jurídico, somente há nulidades e anulabilidades de negócios jurídicos e de atos jurídicos stricto sensu. 3. Conceito de nulidade e caracteres do ato jurídico nulo. O conceito de nulidade não coincide, já vimos, com o de inexistência. Tanto assim que é possível, nos casos concretos, tirar-se algo do nulo, o que se não conceberia, se nulo e inexistente fossem o mesmo. Nulo não alude a não-ser, mas apenas a não valer. Os negócios jurídicos nulos e os atos jurídicos stricto sensu nulos são os que foram criados com vicio grave; tal que: a) são insanáveis as suas invalidades e irratificáveis, tanto que confirmação deles, a rigor, não há, há afirmação nova, ex nunc, e de modo nenhum confirmação; b) qualquer interessado, e não só figurante, pode alegar e fazer ser pronunciada a nulidade, dita, então, deficiência absoluta; c) o juiz, encontrando-as, ainda se não arguidas, pode decretá-las; d) para suscitar o pronunciamento judicial sobre elas não precisa o interessado propor demanda (ação ordinária, ou não), e até incidenter é suscitável; e) não corre prescrição da pretensão à decretação da nulidade; j) é sem efeito. Ora, no direito escrito, há casos de nulidade em que falta alguma dessas propriedades — o que bem mostra que alguma ou algumas se lhes podem tirar — o que se não poderia admitir se nulo fosse o mesmo que inexistente. O ato jurídico nulo é ato jurídico deficitário, mas é atos jurídico. Não é zero-negócio jurídico, ou zero-ato jurídico stricto sensu; é ato jurídico menor que um ( 1). Quando se admite que a sua estrutura não seja a do negócio jurídico nulo do tipo mais completo (insanabilidade, irratificabilidade; alegabilidade pelo simples interessado; decretabilidade do ofício; desnecessidade de propositura de “ação”; im-prescritibilidade; ineficácia), aproxima-se de 1, sem no alcançar, e sem alcançar ser, sequer, da classe dos atos jurídicos anuláveis, que também são menores que 1, sem serem zero. São raros, porém o direito positivo conhece: negócios jurídicos nulos sanáveis ou ratificáveis; negócios jurídicos nulos de alegação relativa, e não pelo simples interessado; negócios jurídicos nulos cuja nulidade não é decretável de ofício; negócios jurídicos nulos para cuja decretação de nulidade se precisa de “ação” e, por vezes, de “ação ordinária”; negócios jurídicos nulos a que se fixou o prazo preclusivo, ou de prescrição, para ser pedida a decretação da nulidade;

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negócios jurídicos nulos, mas eficazes no todo ou em parte dos efeitos. Dá-se o mesmo, embora mais raramente, com atos jurídicos stricto sensu nulos. O conceito de nulidade é, portanto, entre o tipo mais completo e o menos desfalcado possível, isto é, entre o nulo, tal como o feixe daquelas propriedades o define, e o nulo abcdef —1ª ou abcdef — e, ou abcdef — d, ou abcdeJ — c, ou abcdef — b, ou abcdef — a. Essas considerações, em espíritos de educação científica, logo provocam as questões cruciais, que os juristas superficiais não viam: Até onde se podem eliminar propriedades das nulidades, sem que os negócios jurídicos nulos deixem de ser nulos, para se tornarem anuláveis? Onde começa o plano dos negócios jurídicos anuláveis? 4.Eliminação necessária da confusão entre a inexistência e a invalidade. Logo após a publicação do Código Civil alemão, juristas, levados pelos escritores romanizantes e pelos Motive (1, 126), entendiam que só era negócio jurídico o negócio jurídico válido. No texto da lei, falava-se, porém. de negócio jurídico nulo (e. q., §§ 125, 135, 138 e 140) e seria difícil deixar-se de considerar existente o negócio jurídico nulo (cf. Fritz Friedmann, Rechtshandlung, 14 sj. O negócio jurídico é dirigido à produção de eficácia: se produziu, ou não, essa eficácia, não importa ao conceito de negócio jurídico. Assim, o negócio jurídico nulo é negócio jurídico, e o testamento, antes da morte do testador, também o é, sem se precisar de recorrer à distinção entre negócio jurídico efetivo ou não (wirkliches u. unwirkliches Rechtsgeschàft), de que se socorria Ernst Zitelmann (Die Rechtsgeschàfte, 285 s.). Há, ou não há o negócio jurídico; se há, ou é válido, ou é nulo, ou é anulável; pode também, ser rescindível, ou não; e ser eficaz ou ineficaz. O suporte fático pode fazer-se fato jurídico, no caso negócio jurídico, que é espécie de ato jurídico, e esse, de fato jurídico: o fato jurídico terá toda a eficácia, ou parte dela, ou nenhuma. O negócio jurídico é nulo, ou é anulável, porque alguma regra jurídica sobre nulidade ou sobre anulabilidade o atinge, mas entra ele no mundo jurídico. O mesmo raciocínio far-se-áquanto aos atos jurídicos stricto sensu. 5. Confusão entre nulidade e alguns caracteres do nulo. (a) Tem-se procurado identificar a nulidade do negócio jurídico com a insanabilidade do defeito. Se o fato constitutivo do negócio jurídico foi atingido, ou há não-validade sanável, ou há não-validade insanável. O nulo seria o insanável, o incompletavel (assim Leonard Jacobi, Die fehlerhaften Rechtsgeschãf te, Archiv fur die civilistische Praxis, 86, 73). Tal identificação remonta, pelo menos, a C. G. von Wãchter (Pandekten, 1, 422 e 434). Não raro, as leis referem-se à nulidade que pode ser “sanada” pelo tempo. Cai por terra a afirmação. (b) Há a opinião de que as nulidades são sempre alegáveis (alegabilidade aberta) pelos interessados em que os negócios jurídicos nulos não logrem efeitos que, de direito, não têm. A expressão “nulidade absoluta” seria, a rigor, pleonástica; porque toda nulidade (ipso iure) é absoluta. A última proposição é verdadeira, porém a recíproca não no é: há anulabilidades que, nessentido, seriam absolutas. (Outros sentidos de nulidades absolutas são nulidades plurilaterais, ou contra ou a favor de todos, nulidades insanáveis.) (c) A decretabilidade de ofício também tem sido considerada elemento essencial, sinal, da nulidade, que é ipso iure. A nulidade supõe sanção. Não existir não é sanção — é repulsa radical: nulidade o é. Certamente, casos há em que a lei diz que se tratem declarações ou manifestações de vontade como inexistentes, “não-escritas”, porém, ai, a sua atitude é de pré-exclusão ou de enunciado prévio e geral de não-existência, e não de simples reprovação. Para o direito já livre da identificação romana (nullus = inexistente), a ordem jurídica trata o negócio jurídico nulo ou o ato jurídico stricto sensu nulo como se nascesse impróprio à vida, e não como natimorto, porém, ainda assim, como ser. Por isso, é — de regra — insanável a nulidade, irratificável e decretável de ofício. Ocorre, todavia, que, a) se a lei faz dependente de “ação” a decretação da nulidade, ou de algum procedimento adequado (ordinário, especial), fica ao juiz cortado o seu poder e dever de a decretar. Outrossim, b) se a lei risca diretamente esse elemento essencial. Quanto a a), a questão desloca-se e dela trataremos sob (d): quanto a b), a atitude do legislador seria contraditória: deu a sanção de nulidade, portanto a de enérgica reprovaçao dentro da ordem jurídica, e permitiu a impotência do juiz diante do nulo. A alegabilídade só em “ação”, por parte dos interessados, não é, sempre, determinante da indecretabilidade de ofício; mas é preciso que a lei o diga. Aliás, ainda a respeito de ineficácias per exceptionem prectorianas), o direito romano teve decretabilidade (para ele, declarabilidade) de oficio (Otto Gradenwitz, Die Ungúltiqkeit, 70, 73 s., 116 s). (d) O ramo de direito, em que nasce o negócio juridico, trata a nulidade, invalidade de pleno direito, como argúível em qualquer processo, ainda incidenter. Se esse ramo de direito exige a ‘ação”, ou a “ordinariedade”

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ou “especialidade” de rito (‘ação”), é que o legislador lançou mão da técnica do direito processual, ou com o propósito de a materializar, ou, apenas pelo hábito, ou desenvoltura, ou desatenção, de misturar direito material e processo. Por isso mesmo, a livre arguibilidade não poderia deixar de ser considerada característica material das nulidades ipso iure, salvo onde o próprio direito material, contra os princípios, houvesse “materializado” a exigência do rito. A argúibilidade incidenter é, pois, elemento indiciante, fortíssimo, da nulidade, que é invalidade ipso fure. Não só: uma vez que a exceção à regra provém do direito processual e, quasempre se mantém de direito processual, apesar da inserção em código ou em lei esparsa de direito material — o interessado tem a ação e pode exercê-la, sem a observância da regra excepcional, se a lex fori, sendo outra que a do sistema a que pertence o direito material, não a adotou. Essa consideração de serem de Estados diferentes a lei de direito material e a de direito processual põe em relevo, de um lado, a importância da classificação da regra jurídica como sendo, de ordinário, regra de direito processual heterotópica. e, do outro, as conseqüências, no plano internacional, da eventual ‘materialização” da regra pelo direito material em que se inseriu. Em estado puro, a nulidade produz ação, mas independe de “ação” e até incidenter pode ser arguida. A decretabilidade só em ação (ope exception is), tratando-se de nulidade, superpõe à divisão sistemática romana (ipso fure, ope exception is); é medida legislativa que atenua da sua radicalidade o inválido ipso fure; e esse nulo só se pode ter como, em verdade, nulo, em vez de anulável, se mantém elementos, sinais, de não ter passado à classe do anulável. (1) Ineficácia, sem ser por motivo de defeituosidade, não resulta de nulidade, nem a produz. A nulidade pode produzir ou não produzir ineficácia. Há atos anuláveis — e até nulos! — eficazes. A ineficácia não é, de modo nenhum, sinal de que o negócio jurídico seja nulo. Por outro lado, a nulidade não basta, em todos os casos, para se afirmar a ineficácia. Ser ineficaz, por deficiência de suporte fático, apenas indicia tratar-se de nulidade; se não se mostra ter havido deficiência, — nem sequer indicia. A questão é tanto mais grave quanto se apura que as legislações, mesmo a alemã, são obscuras. O 1 Projeto, § 108, identificava negócio jurídico nulo e negócio jurídico ineficaz, portanto negócio jurídico nulo = — f, a que é falso, pois que se conhecem efeitos de negócios jurídicos nulos (Código Civil alemão, §§ 1.323 s.), ainda quando se exija serem efeitos provenientes do conteúdo do negócio jurídico. Aliás, os mesmos juristas que identificam nulo e ineficaz, definem a anulabilidade por ser dependente da eficácia da sentença a anulação e pois, pela coexistência da invalidade de segundo grau com a eficácia. Anulável seria nulo e (ou mas) eficaz; nulo, ou inválido ipso iure, — nulo e ineficaz. 6.Existência e nulidade, quanto a defeito de forma. A concepção da ineficácia sem ser por infração da forma foi posterior à concepção da nulidade (= inexistência) por ser sem a forma o negócio jurídico. Primeiro, em casos de violação de leis cogentes sem se ter violado a forma, se concebeu a repetição do que fora pago. A tal ponto resistia o espírito ronsano ao “não valer” distinto do ‘não ser” que, à época da legis actio o doador não se podia recusar à execução da doação infringente — tinha de cumprir o negócio jurídico com vicio de forma e, após, pela legis actio per condictionem, repetir o quanto doado. Tudo isso mostra como a concepção romana do nullus se tinha de confinar na dicotomia fundamental do ser e do não-ser. Para obter certos efeitos relativos, não lhe restavam outros meios que esses, como se, devendo passar do existente ao não-existente, tivesse de fazer longos percursos. Se examinamos o caso das doações, vemos que o direito romano conseguia relativizar a invocação da infração (só a parte lesada), evitando a argúição por todos que o entendessem, e permitindo que a vítima deixasse de argui-la; tudo isso, sem recorrer à noção de anulabilidade, a que era impermeável. A adoção da sanção de nulidade, no sentido romano ( inexistência), para violações de regras de direito co-gente atingiria o ato mesmo, o negócio, que assim, não entraria no mundo jurídico. Preferia a esse conceito de não-ser o de ser seguido de outro ser superposto e em sentido negativo: a repetitio. Que era a repetitio? O direito romano exigia a causa de dar. A toda dação havia de preceder causa. Se a causa faltava, o negócio jurídico era sine causa. Assim, executado ele, o executante sofria prejuízo e esse detrimento havia de ser reparado. Daí a criação dos prudentes, fundada em equidade (L. 206, D., de diversis regulis iuris antiqui, 50, 17; L. 14, D., de condictione indebiti, 12, 6: “Nam hoc naturam aequum est neminem cum alterius detrimento fieri locupletiorem”; L. 66, D., 12, 6: “ex bono et aequo”). A dação transferia a propriedade; depois, re-pedia-se — tal é o repetere dos textos. A ação não se fundava no negócio jurídico; superpunha-se, temporal e conceptualmente, a ele, e era quasi ex contractu.

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§ 152. Nulidade, ineficácia e pendência 1.Não-coincidência entre a classe dos atos jurídicos ineficazes e a dos atos jurídicos nulos. A confusão entre nulidade e ineficácia agravou-se no direito comum. Chegou-se a definir o nulo pelo ineficaz 1= nulo igual ao que não tem efeitos) e chamou-se de nulos a muitos casos de ineficácia sem nulidade. Nulo é, de certo, a que é eivado de causa de invalidade e, de regra, não produz efeitos: se falta o primeiro pressuposto, nulo não há: ao passo que a técnica jurídica tem admitido exceções à exigência do segundo pressuposto. O que é verdade é que o conceito de ineficácia não é unitário (= dentro de si, sem classes; e Otto Fischer, Konversion unwirksamer Rechtsgeschâfte, Festgabe for Adolf Wach, 8 s.. e Emil Strohal, Relative Unwirksamkeit, 2 s., bem o mostraram), razão por que há negócios jurídicos ineficazes não-nulos. Por isso mesmo, foi erro de L. Enneccerus (Lehrbuch, 1, 512, nota 3) considerar a alienação dos aquestos conjugais pela mulher como nula: é ineficaz, e o § 1.398 do Código Civil alemão o diz; outro, o ter o ato juridico do tutor (ou do curador), nos casos previstos como atos que seriam dependentes de autorização judicial, como nulo: é ineficaz. Seria, como se viu, de todo inconveniente identificarem-se nulo e ineficaz. A venda e compra a non domino é válida e eficaz, no plano do direito das obrigações, porque a venda e compra é negócio jurídico consensual. Se à vista e com declaração de transmitir o vendedor ao comprador a propriedade e a posse, ex hypothesi não tem ele propriedade, que transmita, mas pode dar-se que tenha posse. O acordo de transmissão é sem o efeito de transmissão da propriedade, por faltar ao vendedor poder de dispor. Se a venda e compra foi a prazo, o vendedor assumiu dever e obrigação de prestar o que prometeu prestar, sendo sem qualquer importância, para a existência, a validade e a eficácia do contrato, que é consensual, o pertencer ao vendedor a coisa vendida, ou não lhe pertencer, ou, ainda, existir, ou não existir. Não se trata de venda e compra nula, solução que revela bem parcos conhecimentos juridicos nos que a afirmam; nem de venda e compra condicional, artifício inadmissivel que se vê no acórdão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 10 de junho de 1947 (RCJB 82/17). O que ocorre é, tão-somente, não poder ser prestado o que se prometeu — o que se resolve com a pretensão às perdas e danos, por inadimplemento da obrigação oriunda do contrato consensual de venda e compra, mesmo se houve o acordo de transmissão, porque o acordo de transmissão é adimplemento do contrato de venda-e-compra à vista e na espécie —não satisfez a obrigação de prestar a coisa vendida (inadimplemento positivo do contrato). A falta de poderes não determina nulidade, nem inexistência (sem razão, i. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, VIII, 269, e 26, 317). O ato jurídico do gestor de negócios ou do procurador sem poderes suficientes existe e vale — não tem eficácia quanto ao dominus negotii, o que é outra coisa. A ratificação dá-lhes essa eficácia. 2. Pendência e nulidade. Os negócios jurídicos nulos distinguem-se dos negócios jurídicos pendentes. O negócio jurídico condicional au a termo já tem o seu suporte fático dentro do mundo jurídico: se assim não fosse, não seria negócio jurídico; o que lhe falta não concerne à existência ou à validade, mas à eficácia. É o que também acontece aos negócios jurídicos mortis causa, enquanto vive o testador, ao acordo sem entrega e à transmissão em negócio jurídico sobre imóveis sem o registro no registro predial. São negócios jurídicos em que não existe, ou ainda não existe elemento do suporte fático que é dispensável para o negócio ser jurídico e valer, mas que é indispensável para ter eficácia. Aqui, seria errado pôr-se como negócio jurídico pendente o em que faltou ao relativamente incapaz a assistência do titular do pátrio poder, do tutor, ou do curador. Trata-se de invalidade (sem razão, Hans CarI Nipperdey, 39ª ed. alemã de L. Enneccerus, Lehrbuch, § 189, nº 3). A falta de poderes de procuração, sim, não é causa de nulidade, mas de ineficácia. O mandante não tem de propor ação de nulidade ou de anulação, mas a ação declarativa da inexistência de poderes, com o que se porá claro que o ato do mandatário foi só seu, sem eficácia quanto ao mandante, ou foi seu, no que excedeu os poderes. Disse o Código Civil, art. 1.296: “pode o mandante ratificar ou impugnar os atos praticados em seu nome sem poderes suficientes”; e no art. 1.297 acrescentou: “o mandatário, que exceder os poderes do mandato, ou proceder contra eles, reputar-se-á mero gestor de negócios, enquanto o mandante lhe não ratificar os atos.” Nenhuma alusão à validade; ai, o mandante não é figura do negócio juridico; e o negócio jurídico, que houve, é ineficaz quanto a ele. Tudo se passa como a respeito dos atos de disposição por parte do não-titular. Os negócios jurídicos que precisam de ratificação, sem serem inválidos, são pendentes; por exemplo: os que

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foram feitos pelo falso representante, ou pelo procurador que excedeu os poderes, ou quando já extinta a procuração. Não assim, os efeitos em nome falso. Pendência irremediável tem-se no negócio jurídico em que um dos figurantes “representou” pessoa inexistente. § 153. Nulidade e anulabilidade 1.Invalidade passa-se no mundo jurídico. O negócio jurídica nulo ou o ato jurídico stricto sensu nulo corresponde a suporte fático que, nulamente embora, entrou no mundo jurídico. Seria equivocante dizer-se que se há de tratar de ato que pelo menos exista como suporte fático (e.g., Emilio Betti, Teoria Generale deI Negozio qiuridico, 298: . . . un negozio siccome nulo pressupone per lo meno che il negozio esista come fattispecie9. O ato jurídico nulo entrou no mundo jurídico: se assim não fosse, nulo seria igual a inexistente; não haveria distinção entre o não-ser e o ser nulamente. Já no suporte fático está o défice; a despeito do défice, o ato penetrou no mundo juridico, embora nulamente, exposto, de regra como ato juridico de suporte fático gravemente deficitário, a ataques fáceis e de quem quer que tenha interesse. Não nasceu morto, o que seria não nascer; nasceu impróprio àvida, por sua extrema debilidade. Quem quer que traduza por anular (decretar a anulação) o “rescindere”, ou o “discedere”, ou o “infirmare”, ou o “distrahere”, ou o “dissolvere”, ou o “revocare”, o “infringere”, dos textos romanos, baralha coisas distintas entre si e com o hodierno conceito de anulabilidade. Todos aqueles termos nada têm, tampouco, com o nullus, a nullitas, o negotium nullum, o nullius momenti, que são conceitos, negativos, no plano da existência. O conceito de anulabilidade compôs-se no direito comum, nao sem graves confusões com o de ineficácia. Não se pode ligar a fontes romanas a distinção entre nulidades e anulabilidades, devido a haver o direito civil e o direito pretório (e. g., Siegmund Schlossmann, Zur Lebre vom Zwange, 27 Otto Lenel, Uber Ursprung und Wirkung der Exceptionen, 135; certo, Ludwig Mitteis, Zur Lehre von der Ungúltigkeit der Rechtsgeschâfte. (Iberings iahrbúcber. 28, 95): houve casos que se poderiam considerar — aproximativamente — como de anulabilidade, tanto no direito civil (e. g., Gaio, III, 123; L. 4, D., de coliusione detegenda, 40, 16) quanto no direito do Pretor. No direito comum e no brasileiro, precisou-se a dicotomia. O Reg. nº 737, de 25 de novembro de 1850, arts. 682-694, acentuou-a, posto que usasse de errada terminologia. O escrito de August Thon (Die rechtsverfolgende Einrede, Jherinqs Jabrbúicher, 28, 41; Rechtsnorm und subjektives Recht, 269) mostrou que se pendia, no direito alemão, para o conceito de impugnação (não só alegação, mas também ato de volição). 2. Nulo e anulável. O nulo é ato que entrou, embora nulamente, no mundo jurídico: também entra, e menos débil, no mundo jurídico o suporte fático do negócio jurídico anulável. Nulo e anulável existem. No plano da existência (= entrada no mundo jurídico), não há distingui-los. Toda distinção só se pode fazer no plano da validade. Se disséssemos que aquele não existe, confundi-lo-íamos com o inexistente; se disséssemos que nulo é o que não tem efeitos, transplantaríamos ao plano da eficácia problema que só há de ser posto e resolvido no plano da validade. Trata-se de distinção interna ao plano da validade, baseada em maior ou menor gravidade do défice. Nada adianta aduzir-se que a anulabilidade é mais próxima da ineficácia superveniente; nem é suportável ao espirito científico o distinguirem-se existente e nulo, e falar-se de declaração de um e de outro, pois a decisão declarativa supõe existência ou inexistência, e nunca pode subir ao plano da validade. Nesse, a distinção entre nulidade e anulabilidade é criação técnica, que determina tratamentos diferentes, um dos quais é o da imprescritibilidade das ações de nulidade, ligada à sua irrenunciabilidade. Seja como for, é à técnica legis-lativa que toca discriminar as causas de nulidade e as de anulabilidade para que se observem os dois regimes, internos ao plano da validade, atendidas modificações que se entendam, na lei, indispensáveis. Quasempre, essas modificações de limites entre as duas espécies de invalidade provêm de causas históricas, de pedaços de sistemas jurídicos diferentes (e. g., o romano, o germânico, o canônico, o foraleiro), que perduram no sistema jurídico vigente. 3.Inconvalidabilidade do nulidade. A nulidade é inconvalidável: não sobrevém, jamais, validação; salvo se lei nova apanha o mesmo suporte fático, o faz não-deficitário, ou simplesmente anulável, e lhe põe data anterior, o que só é admissivel se o direito, feito pelo poder estatal ou pelo poder constituinte, o permite, ou se a lei mesma, que regeu a entrada do suporte fático no mundo jurídico, “construiu” alguma integração postenor do suporte, atribuindo-lhe efeitos ex tunc, o que, em verdade, destoa da boa técnica jurídica. De ordinário e, pois, segundo os princípios gerais, toda pretendida confirmação é referência ao conteúdo do negócio jurídico nulo,

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em negócio juridico ex novo. 4.Conceito de anulabilidade. Mostrou E. C. von Savigny certa perplexidade em que se pusesse no mundo jurídico, como ocorridas no plano da validade, a nulidade e a anulabilidade, porque, dizia ele, e o repetiu Otto Gradenwitz (Die Ungúltigkeit, 4), o nulo não é e o anulável é. Mas o erro provinha da confusão entre o nullus, que é nada, que não é, e o nulo, segundo o direito e a filosofia posteriores, que é, embora invalidamente. Para o direito romano, a critica estava certa; não para o direito contemporâneo, onde, está claro, a confusão não continuou nos espíritos. Defeituosidade não é inexistência. Para ter defeito, ou defeitos, é preciso existir. A anulabilidade é defeito menos grave — há o defeito de que resulta a nulidade, que é mais grave. Tudo se passa no plano da validade, e não no plano da existência. Defeito que não se sana, mas só defeito. Foi o direito comum, que, atendendo a profundas mudanças na filosofia e na economia do mundo medieval e pós-medieval, fez de nulidade terminus technicus do plano da validade (cp. A. 5. von Engelbrecht, Die Bestàtigung nichtiger und anfechtbarer Rechtsgeschàfte. 19 s.). Quanto á conversão, em vez de se pretender, como seria o caso de quem sustentasse a ratificabilidade do nulo, ser possível recompor-se o suporte fático com o elemento nulo, nada importa, — o próprio suporte fático há de conter o que baste a se encontrar a incidência de outra regra jurídica, isto é, de outra regra jurídica que faça entrar validamente no mundo jurídico o que, se tratasse de regra juridica em que se pensou, seria nulo. No suporte fático, falta c, ou há, de mais, d, de modo que ab ou abcd não entra validamente no mundo jurídico, é nulo; mas há regra jurídica que admite ab, ou abd, e então há conversão. Não há, portanto, qualquer paradoxo (sem razão, Quirin Lieven, Das nichtlge und das anfechtbare Rechtsgeschàft, 57). A nulidade pode ser argúida, de regra, por qualquer interessado, não porque o ato jurídico não seja, mas porque não produz qualquer efeito (Heinrich Cremer, Beschrànkte Nichtigkeit, 6; CarI Petersen, Die Bestàtiqung nichtiger und anfechtbarer Rechtsgeschàfte, 36). É isso que mais leva os menos expertos á confusão entre o inexistente e o nulo. Ambos não têm efeitos. Mas um não é; e o outro é. Um pode, excepcionalmente, ter efeito; e o outro, não. § 154. Nulidades ditas absoluta e relativa 1.Crítica ás duas expressões. A nulidade, diz-se, é absoluta; nulidade relativa é a anulabilidade. Devemos evitar os dois adjetivos “absoluta” e “relativa”; porque, empregando-os em diferentes sentidos e baralhando a esses, a cada momento, os juristas e juizes cometem erros sem conta. O sentido adequado de relatividade e de absolutidade é o referente aos limites subjetivos da eficácia: relativa é a eficácia só atinente a um, ou a alguns; absoluta, a eficácia erga omnes. Ora, já essentido não pode ser o que serviria a se distinguirem o nulo e o anulável. Absoluta, no plano da validade, seria a invalidade alegável por um, que fosse, de todos os interessados; e relativa, a que só pudesser alegada por alguém, ou algumas pessoas apontadas na lei. E esse o critério das leis. As confusões, a que acima aludimos, levam a falar-se de invalidade relativa, quando se aliena a coisa empenhada, hipotecada, anticrética, ou o titulo caucionado, ou a coisa alheia, espécies em que apenas se trata de ineficácia. São confusões derivadas da insuficiência de cultura lógico-matemática dos juristas e da sua formação retórico-oratória, óbice ao rigor de terminologia e a reflexão percuciente. A relatividade no tocante à ação (de anulação) é a que consta da regra juridica onde se diz que só os interessados as podem alegar, e aproveitam exclusivamente aos que alegarem, salvo o caso de solidariedade, ou indivisibilidade. Só o começo de tal texto aqui nos importa entender. E de notar-se, desde logo, que se fala de “interessados”, expressão que aparece, idêntica, noutros lugares; e. g.: As nulidades podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Já aí ressalta que os “interessados” são “interessados” segundo conceito de “interesse”, que não é, de modo nenhum, o conceito de “interesse” que serviu a se cogitar de “interessados”, em casos de anulabilidades. Se só um fosse o conceito, a única diferença consistiria em ser

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alegável pelo Ministério Público, quando houvesse de intervir, a nulidade. Ora, nem historicamente, nem dentro da sistemática do direito privado, seria possível tal dilatação da alegabilidade do anulável. O Código Civil argentino, art. 1.047, 2ª e 3ª partes, diz que a nulidade (= “nulidad absoluta”): “Puede alegarse por todos los que tengam interés en hacerlo, excepto eI que haja ejecutado eI acto, sabiendo o debiendo saber ei vicio que lo invalidaba. Puede también pedirse su declaración por eI Ministerio Público en eI interés de la moral ó de la lev.” No art. 1.048, estatui-se: “La nulidad relativa”, expressão que se refere à anulaçõo, “no puede ser declarada por eI juez sino á pedimento de parte, ni puede pedirse su declaración por eI Ministerio Público en eI solo interés de la lev, ni puede alegarse sino por aquelos en cuyo beneficio la han establecido las leyes”. A expressão “declarada”, a respeito da nulidade e de anulação, ai está por “pronunciada”, e não no sentido estrito de “declarada”, tal como se precisou na classificação quinqual das decisões judiciais por sua eficácia. Porém, no tocante à legitimação ativa para a ação de anulação (= de “nulidad relativa”), o texto argentino é melhor do que o brasileiro de 1916: em vez de aludir a “interessados” criando ambiguidade com a expressão do art. 146 (argentino, art. 1.048), fala de “aquellos en cuyo beneficio la han establecido las leys”. Seria errado ler-se: “aqueles em desproveito de cuja esfera jurídica nasceram, se modificaram, ou se extinguiram direitos, pretensões, ações, ou exceções”, ou “os interessados a que a eficácia própria do negócio jurídico ofenderia”, ou coisa que o valha. Seria passar-se ao plano da eficácia quando o problema tem de se confinar no plano da validade. Nesse, o que se pode e deve entender e’ “aqueles em cujo benefício se há estabelecido na regra jurídica sobre deficiência do suporte fátíco e anulabilidade”. 2.Outros sentidos das expressões. Os juristas, segundo W. A. Lauterbach (Disserta tiones accademicae, disp. 76, nº 38), distinguiam a nul/itas absoluta e a nuílitas respectivo, e 3. H. Boehmer (lus Ecclesiasticum Protestantium, Lib. IV, Art. 1, §§ 141 e 142), a nuílitas absoluta e a nu/luas secundurn quid., Mas, para outros, a relatividade concernia á sanabilidade (e. g., Cbr. O. Múhlenbruch, Doctrina Pandectarum, Lib. 1, § 114). A acionabilidade, atribuida somente a certa pessoa, ou a certas pessoas, e pois a ratificabilidade por ela é que distinguem hoje, para outros, as nulidades em relativas (respectivas) e absolutas (Adolf Priem, Gibt es eine Mittelstufe zwischen Nichtigkeit und Anfechtbarkeít?, 31; Ludwig Mitteis, Zur Lebre von der Ungtiltigkeit der Rechtsgescbàfte, Jahrbúcher fúr die Dogmatík, 28, 131). 3.Decisões sobre invalidade. Ambas as sentenças que decretam a nulidade e a anulabilidade são constitutivas negativas: após a sua eficácia, nada existe no mundo jurídico, no tocante à res deducta. § 155. Conceito preciso de anulabilidade 1.Precisão do conceito. A anulabilidade é a não-validade, dependente de decretação que reduza a nada o negócio jurídico e os seus efeitos, decretação subordinada a não estar prescrita a ação de anulação. A decretação da nulidade desconstitui o negócio jurídico existente; a decretação da anulação desconstitui o negócio jurídico existente e desconstitui-lhe a eficácia. Aqui, ponto da distinção, no direito brasileiro, entre a nulidade e a anulabilidade. Não se precisa pedir a declaração da ineficácia do nulo; pede-se a desconstituição do existente nulo: a declaração da ineficácia seria sem outro alcance que elucidativo. Não assim quanto à decretação da anulação: então, não bastaria pedir-se declaração de ineficácia e, pedida, seria prematura, porque ainda não se decretara a anulação e poderia ser desfavorável a decisão: ter-se-ia de pedir, antes, e obter-se, a decretação da anulação, sem a qual a eficácia não seria atingida. A extinção ex tunc é efeito da decisão: eficácia da sentença contra eficácia do anulável; + x — x = 0. É isso o que diz essa regra jurídica que estabelece que as anulabilidades não têm efeito antes de julgadas por sentença, nem se pronunciam de oficio. No art. 1.046 do Código Civil argentino: “Los actos anulables se reputan válidos (?) mientras no sean anulados; y sólo se tendrán por nulos desde eI dia de la sentencia que los anule.” Aliás, só a sentença trânsita em julgado tem essa força. Sentença, em sentido largo: decisão, ainda que em questão prejudicial, com força constitutiva negativa. 2. Nulo e anulável. A imagem mais própria para se diferençar o nulo e o anulável é a de coleção de cubos (elementos), empilhados regularmente, formando o suporte fático, a que ou faltou algum dos cubos, vendo-se o

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espaço vazio, e é a imagem do suporte fático do negócio nulo, ou a que algum dos cubos menores não foi junto, mas é juntável pelo que o devia ter posto lá, o cubo complementar, ou, pelo tempo mesmo que decorreu, não pode ser mais visto o vazio. Há direito negativo, que se exerce contra o negócio jurídico anulável, pretensão e ação constitutivas, negativas, tal como existe direito negativo, pretensão e ação constitutivas negativas contra o nulo. Porém, enquanto o direito fundado na anulabilidade tem base no negócio mesmo, que tem eficácia e contra ele e a sua eficácia vai a alegação de ser anulável, o direito á decretação da nulidade é reação do mundo jurídico contra os negócios jurídicos gravemente deficitários. Existe, nos sistemas juridicos, regra juridica, que permite aos “interessados”, no sentido do art. 146 (“todos los que tengam interés en hacerlo”, art. 1.047 do Código Civil argentino), reagirem contra o nulo: isto é, se têm interesse nisso, pedirem que o suporte fático gravemente deficitário seja expelido do mundo juridico. E a permissão da luta contra o que entrou no mundo jurídico sem ter efeitos entre os figurantes, embora possa, com a sua presença, perturbar (não dizemos “prejudicar”) a esfera jurídica dos figurantes e dos terceiros. Há o ser sem validade e há o ser sem eficácia, que é de “interesse” remover do mundo jurídico. Assim como os que têm interesse na declaração da existência ou inexistência da relação juridica, ou da falsidade ou autenticidade do documento, podem pedir a declaração, os que têm interesse na decretação da nulidade podem pedir que se desconstitua o ato jurídico nulo. Alarga-se a legitimação subjetiva exatamente porque há maior número de pessoas que podem ter interesse em que se diga o que é que é e o que é que não é e em que se diga o que é que é nulo e o que é que não é nulo. Em vez disso, anulabilidade supõe que só seja interessado em obter a decretação desconstitutiva quem foi contemplado pela lei como protegido (= beneficiado) pela regra jurídica sobre ser anulável o negócio juridico, ou quem tem função de proteger. Somente nessentido é que se há de falar de direito de impugnação (Anfechtungsrecht), ou, ao invés, de direito à anulação; o direito à declaração da existência, ou da inexistência da relação jurídica, ou da falsidade, ou autenticidade, e o direito à decretação da nulidade são, por igual, direitos negativos. O que daqueles distingue a esses é serem atinentes a interesse que não é interno ao ato jurídico de que se trata: é externo, forâneo; o que écoessencial ao mundo jurídico e aos seus princípios de seleção de suportes fáticos é que lhe fique distinguir o que nele não pode entrar, o que entra sem poder irradiar efeitos, o que entra mas é nulo e o que entra mas é anulável. 3.Eficácia interimistica do anulável. O anulável produz efeitos. Só os deixa de produzir quando trânsita em julgado a sentença constitutiva negativa. Então, apagam-se, como se não tivessem sido eficácia (ex tunc), os efeitos anteriores. Não se dá isso com a decretação do nulo: desconstitui-se o ato jurídico; não, a eficácia, porque não se desconstitui o que se não constituiu. Quando se diz que não se pode impugnar negócio jurídico nulo, ou ato jurídico stricto sensu nulo, porque não há eficácia a extinguir-se, ex tunc, está certo: impugnar é lutar contra efeitos. Mas nem toda alegação contra o inválido é impugnação: não se impugna o nulo, porque se fez do conceito de impugnação conceito de luta contra o ser e os seus efeitos. 4.Plano da validade. Erro tão grande quanto considerar-se válido, mas atacável, o ato jurídico anulável é o de ter-se a anulação como destruidora de efeitos, e não do ato jurídico. A sentença anulatória desconstituiria apenas eficácia (A. F. Rudorff, em G. F. Puchta, Pandekten, 4ª ed., 98; F. W. Christians, Uber die sog. “relative Nichtigkeit” der Rechtsgeschàfte, 21). A anulação vai mais fundo, desce ao plano da existência, desconstitui o próprio ato jurídico, donde não haver, depois, qualquer diferença entre o ato jurídico nulo, a que se decretou a nulidade, e o ato jurídico anulável, que se anulou (i. Baron, Pandekten, 8a ed., 107; Josepb Unger, Svstem, II, 140). Tudo se passa como se ato jurídico não tivesse havido — donde a incidência da regra jurídica de restituição (art. 158; Ferd. Regelsberger, Pandekten, 1, 634; Alois Brinz, Lehrbuch, IV, 2ª ed., 405), sem necessidade de querela. O ato jurídico anulável pode vir a ser válido, o que não ocorre com o ato jurídico nulo; mas ser anulável é ser inválido. Quando se diz que até à anulação o ato jurídico anulável vale, como faz CarI Petersen (Die Bestàtigung nichtiger und anfechtbarer Rechtsgeschàfte, 98) confundem-se validade e eficácia. A ação de anulação nasce do fato de haver defeito no ato jurídico. Não é efeito do ato jurídico em si; é efeito do que é contra direito, com sanção anulatória, no ato jurídico. Tanto é dizer-se que o suporte fático deficitário entrou no mundo jurídico e o défice dá causa à anulabilidade, quanto ver-se na anulabilidade qualidade do ato juridico. (F. W. Christians, Uber die sog. “relative Nichtigkeit”, 20), o que é menos feliz. O direito, que nasce, é distinto dos direitos que se irradiam do ato jurídico em si (Rudolf Schlottmann, Die Anfechtbarkeit, 59), razão por que pode ser transferido e a ele renunciar (E. C. von Savigny, Spstem, III, 538).

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5. Vantagem técnica. Na doutrina alemã, à diferença da nossa, que lhe leva, nesse ponto, a palma, tem-se por válido o ato jurídico impugnável. O direito brasileiro frisou que se trata de duas espécies de invalidade, o que mais corresponde aos fatos e ao conceito de defeito dos atos jurídicos” (erro, dolo, coação, simulação, fraude contra credores, falta de assentimento de outra pessoa). A concepção do ato jurídico anulável (ou impugnável, segundo o conceito de Anfechbarkeit da doutrina alemã) como ato jurídico ipso iure válido, mas atingível, restringe, até à contradição, o conceito de anulabilidade (ou impugnabilidade); e são de repelir-se palavras como as de Joseph Unger (System, II, 159), que o tinha por válido mas suscetível de ataque, ou as de tantos outros que põem o conceito de nulidade no plano da existência e o de anulabilidade no plano da validade (confusão que culmina em B. Windscheid e em L. Arndts; cf., certos, Otto Karlowa. Das Rechtsgeschàft und seine Wirkung, 158; Heinrich Cremer, Beschrànkte Nichtigkeit, 6 s., cp. F. W. Christians, Uber die sog. “relative Nichtigkeit’ der Rechtsgeschãfte, 20 que considerou a anulabilidade qualidade do negócio jurídico, a que corresponde a ação). No direito brasileiro, tal atitude seria absurda. Assim, temos três conceitos precisos, referentes a planos, ode existência, o de eficácia e o de validade. Se há fato jurídico, existe no mundo jurídico: porque o fato que está no mundo jurídico é que se diz jurídico. O fato jurídico já produz ou vai produzir efeito ou efeitos, ou teria de os produzir e ocorre que os não produza. Dentre os fatos jurídicos, há os que provêm de atos humanos; dentre eles, uns entraram como negócios jurídicos, outros como atos jurídicos stricto sensu e outros apenas como atos-fatos jurídicos. A invalidade, a nulidade e a anulabilidade somente concernem aos negócios jurídicos e aos atos jurídicos stricto sensu. A invalidade compreende a nulidade e a anulabilidade. § 156. Eficácia do anulável 1. Eficácia e invalidade. O anulável tem eficácia; é inválido, porém há duas espécies de invalidade: o nulo é uma delas: outra, o anulável. Esse fato de ser anulável, sem ser nulo, e o de ter efeitos, o que o nulo não tem, levaram a construções diferentes do anulável: a) uns disseram que a anulabilidade é o nulo (ah initio), que só se revela (ou o revelam) quando a sentença, devido à ação proposta, o mostra, porém tal construção é regressiva à teoria romana do nulo e, no fundo, teve por fito reduzir o anulável ao nulo e ambos ao inexistente, para afirmar a eficácia declarativa das decisões nas ações de nulidade e de anulação (regresso, portanto, a tempos anteriores à distinção mesmo entre nulo e anulável): b) outros quiseram caracterizar o anulável como o que pode ser desconstituído, confusão mais grave ainda, porque mantém o conceito superado de “nulo = inexistente”, embora admita a distinção entre nulo e anulável; c) finalmente, tem-se o nulo como o desconstituível, que não precisa de desconstituição de efeitos, pois não os irradia, e o anulável como o desconstituivel que precisa da desconstituição para que se extingam, ex tunc, os efeitos. A última é a construção científica dos nossos dias. Se alguém pretende efeitos do nulo, o interessado vem com a alegação da nulidade, que leva em si, como consequente, a de inexistência de efeítos. Se o juiz reconhece a nulidade, desconstitui o negócio jurídico nulo: pode-se dizer que a sua sentença tem a força de extinguir, ex tunc, o ato juridico, repelindo o suporte fático gravemente deficitário; não se pode dizer que tem eficácia de extinguir os efeitos do negócio jurídico, ex turic. Não se extingue o nada. A sentença de anulação, sim: extingue, ex tunc, negócio jurídico e a eficácia que se produzia. 2. Ataque á eficácia do ato jurídico anulável. Exigindo-se ao que tem ação de anulação, e não na propôs, algum dos efeitos do ato jurídico anulável, não pode o réu — salvo se cabe, aí, reconvenção, o que depende do direito processual — opor a anulabilidade. Não há exceção dilatória de anulabilidade. Nem exceção peremptória ainda se cabe reconvenção: aí, qualquer referência a exceção seria errônea; o direito, que se exerce, é direito negativo, cuja acionabilidade em reconvenção (ação, não exceção!) depende da lei processual. (É estranho que Konrad Hellwig, Lehrbuch, 1, 254, tenha afirmado a existência da exceção peremptória, no caso do § 2.083 do Código Civil alemão, antes de esgotado o prazo de prescrição: a exceção do § 2.083, peculiar àquele Código Civil, é resquício do direito de impugnação; sobre isso, Emil Strohal. Schuldúbernahme, iherzngs Jahrbúcher, 57, 326: “Surrogat des weggefallenen Anfechtungsrechtes.”) O que tem alguma obrigação decorrente de negócio

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jurídico anulável há de cumpri-la, enquanto não se tem a desconstituição desse em decisão trânsita em julgado. Se esgotou o prazo prescricional. para se exercer a ação de desconstituição, nada há a alegar-se em ação, ou em reconvenção: a exceção de prescrição encobriu a eficácia da ação. Se houve cessação do direito mesmo a pedir a anulação (e. g., se houve ratificação expressa, ou execução voluntária da obrigação anulável, o que importa renúncia a todas as ações, ou exceções. de que dispusesse contra o ato o devedor), contra o réu, titular da extinta ação de anulação, o autor da ação não opõe exceção: alega a validade; ou. se o réu reconvém, a sua defesa. Alguns juristas erram ao dizerem que, prescrita a ação de anulação, o ato jurídico anulável torna-se válido. Basta pensar-se em que à prescrição se pode renunciar. 3.Princípio da eventualidade, quanto às alegações de inexistência, nulidade e anulabilidade. A anulabilidade, dissemos, não exclui a eficácia: o ato jurídico anulável existe, não vale, mas é eficaz. Não afasta isso casos em que as leis atribuem certos efeitos ao nulo; nem faz equivalentes nulidade e ineficácia. O anulável é eficaz; o nulo é ineficaz, porém nem toda ineficácia decorre de nulidade. Nada obsta a que os pedidos obedeçam ao princípio de eventualidade: a) pede-se a declaração de inexistência; b) se é desfavorável a decisão nessa questão prejudicial, a decretação da nulidade; c) se ainda é desfavorável a decisão em b), a decretação da anulabilidade; d) se o é em c), a declaração de ineficácia. A questão d) pode ser posta antes de a), ou de qualquer outra. As outras são sujeitas a ordem inalterável. Seria errôneo julgar-se a questão da anulabilidade antes da questão de nulidade, ou aquela ou essa, antes da questão da existência da relação jurídica. 4.Concorrência cumulativa de alegações. Algumas vezes não há alternação de pedidos, mas concorrência de causas. E. g., alega o réu que é o proprietário do terreno, porque o terreno era do seu pai, de quem é o único herdeiro, e porque o comprara antes da morte do seu pai (cf. Konrad Hellwig, Lehrbuch, 1, 612). O suporte fático, em certos casos, é quase o mesmo e poderia dar-se incidência de duas ou mais regras jurídicas. A solução, quanto à escolha pelo titular do direito, tem de atender a que a simples existência simultânea das pretensões não as modifica, nem extingue uma delas. Apenas, se houve satisfação de todo o interesse, a outra cessa de existir na medida em que tal satisfação ocorreu. Também cessa, se houve ato inequívoco do titular preferindo a uma. Não é ato inequívoco de tal espécie o do titular que só exerce a ação própria de uma delas: o exercício da ação não é escolha, pois não há regra jurídica que obrigue a cumular ou a preferir. A concorrência pode ser em direitos, que tenham fito constitutivo negativo, como se dá com os direitos à decretação da nulidade ou da anulação: e. g., o negócio jurídico é nulo, por incapacidade do que manifestou a vontade e por ilicitude: anulável, por erro, por violência, por dolo, ou por fraude contra credores. Se é desfavorável uma decisão, passa-se ao exame da outra questão. 5.O que se ataca com a ação de nulidade ou com a ação de anulação. Discute-se na doutrina o que é que a ação de anulação ataca. (O mesmo raciocínio há de ser desenrolado a propósito da ação de nulidade, exceto quanto à eficácia, que, de regra, não há no negócio jurídico nulo). Ora, entendem os juristas que se vai contra a declaração de vontade, e é indisfarçável a cincada do Código Civil alemão, §§ 119 s.; ora, que é a relação jurídica que se pretende desconstituir; ora, que é o ato jurídico mesmo. O assunto exige certas precisões de conceito e de linguagem. Nulo, ou anulável, diz-se o ato jurídico, e não a manifestação de vontade (ou a comunicação de vontade, de conhecimento ou de sentimento), porque essa é elemento volitivo do suporte fático; portanto, algo antes de haver ato jurídico. Relação jurídica é a relação imediata ou mediata, que se estabeleceu com a incidência da regra jurídica no suporte fático; portanto, algo simultâneo ou depois de haver negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu. Quando o suporte fático penetra, ao incidir sobre ele a regra jurídica, ao colori-lo, ao marcá-lo, no mundo jurídico, nasce o negócio jurídico (= juridiciza-se o suporte fático, o negotium), ou o ato jurídico stricto sensu, sem nada lhe faltar, ou faltando-lhe algo, gravemente ou menos gravemente. O que é nulo, ou anulável, é o ato jurídico, ainda quando, por exemplo, se trata de assentimento à manifestação de vontade, que não houve, por parte de representante legal. O défice está no suporte fático; não se pode, todavia, falar de nulidade de suportes fáticos, ou de fatos. Os conceitos de nulo e de anulável concernem ao ato jurídico; são conceitos que graduam, em depressão, o jurídico. Não há negócio nulo, nem anulável; há negócio jurídico nulo ou anulável. Não há ato humano nulo, ou anulável; há atos jurídicos stricto sensu nulos ou anuláveis. Os fatos, como fatos foram, e não deixam de ser: a) não podermos atingi-los, porque são fora do mundo jurídico, onde não há reversibilidade do tempo (Facta infecta feri non possunt); por

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conseguinte, não podem ser desconstituídos: b) nem poderíamos declará-los não ocorridos, porque seria falso, e não seria digno do homem construir sistema jurídico com proposições mentirosas, ou permiti-las. Só a revogação é que tira vox ao suporte tático. Erram também os que tudo põem no plano da eficácia: a nulidade e a anulabilidade não dizem respeito aos efeitos. Mais uma vez a confusão entre o ato jurídico e a sua irradiação de eficácia. O nulo e o anulável nem adjetivam suporte tático, nem efeitos; adjetivam negócios jurídicos. Não há lugar para o nulo e o anulável no mundo dos fatos puros (físicos); nem no plano da eficácia, embora já seja ele dentro do mundo jurídico. A nulidade e a anulabilidade ocorrem no mundo jurídico, para onde entraram suportes táticos com défice grave, ou menos grave; porém o plano, em que ocorrem, é o do negócio jurídico mesmo ou do ato jurídico stricto sensu: aí é que está o plano da validade; anterior é o da existência; posterior, o da eficácia. Quando o negócio juridico é unilateral, desconstituído ele, com a decretação da anulação, desconstituída fica a eficácia: aquela opera ex tunc; e com a causa extingue-se o efeito. (A ida ao pretérito é possível, porque se está no mundo jurídico e a regra jurídica pode preferir o apagamento desde o início.) Nos negócios juridicos plurilaterais, constituídos por dois ou mais negócios jurídicos, a anulação de um deles não implica, só por si. a anulação do outro; salvo se o outro negócio jurídico cai no vácuo, são de admitir-se casos em que outro negócio juridico, tomando o lugar do anulado, componha o negócio plurilateral. Se anulada foi a aceitação, a oferta perdura como era, com o seu teor e o seu prazo, se o tem: exceto se, ao pedir a anulação, o que aceitou, anulavelmente acrescentou que não aceitava. Alguns juristas, diante desse fato, dizem que tanto se pode pedir a anulação do negócio jurídico quanto da declaração de vontade (e. g., Andreas von Tuhr. Der Alígemeine Teil, II, 301), o que envolve confusão entre os dois mundos, o mundo dos fatos da vida e do físico e o mundo jurídico, ao mesmo tempo que se ressente da concepção romana da oferta não-obrigatória (= nãonegócio jurídico). Se. de um lado, há mais de duas pessoas, pode ser parcial, subjetivamente, a anulação, e subsistir, quanto à outra ou às outras, o negócio jurídico plurilateral. Tratando-se de deliberação por votos, é princípio a priori (portanto, só suscetivel de exceção em regra jurídica especial) que a anulação de votos que não altere o deliberado não atinge a deliberação como negócio jurídico plurilateral. § 157. Decretação, de ofício, da nulidade, e irratificabilidade 1. Conteúdo do regra jurídico sobre decretabilidade de ofício. A nulidade é, hoje, a qualidade mais pejorativa, que pode ter o ato juridico, por lhe faltar, no suporte fático, certo elemento de grande relevância, tornando-o deficitário, ou por haver presença de elemento que a tal ponto o corrói, como a não-observância da regra jurídica sobre forma especial, ou a ilicitude do objeto. Mas é preciso, para que seja nulo o ato jurídico, que a invalidade se produza ipso iure, sem necessidade de “ação”, salvo regra jurídica especial que, por algum fundamento à parte, exija a propositura da ‘ação” em processo próprio. As anulabilidades, não; essas dependem, sempre, da propositura da ação, em processo próprio. Se a lei fala de nulidade, a visibilidade do vício e a sua gravidade concorreram, de iure condendo, para que se concebesse a sanção como de nulidade, e não como de anulabilidade. O que alega a nulidade está diante de suporte fático, que entrou no mundo jurídico, mas profundamente comprometido. Por isso mesmo, o juiz, encontrando fatos que a provem, tem o dever de decretar a nulidade do ato jurídico. Desde que, com o exame dos fatos levados à cognição do juiz, pode ele discerni-la, viola a lei se não na pronuncia — o que é assaz importante saber-se, para o cabimento de recursos, como, por exemplo, o recurso extraordinário fundado em textos constitucionais. A alegação da nulidade pode ser, portanto, incidenter, sempre que haja interesse em que se tenha por nulo o ato jurídico: e corre ao juíz o dever de desconstituir o ato jurídico que tão deficitariamente se constituiu. Quem alega a nulidade não pode renunciar à alegação; nem há renúncia, mesmo em negócio jurídico bilateral, ao direito de alegação (pretensão constitutiva negativa). Porém, quando se diz que não existe ação de nulidade, por certo se confunde ação. de direito material, e “ação”, processo; todavia, nada impediria que se propusesse ação ordinária de nulidade, nos casos em que a lei não a exige, porque ao juiz tocaria, examinada a petição, ou depois, pronunciar a nulidade. Quando se diz que não é possível extinguirem-se os efeitos do ato jurídico, pois que se não produziram, nem se produzem (e. q., Andreas von Tuhr, Der Aliqemeine Tel, II, 281), desatende-se a que a ação não se dirige à extinção de efeitos, e sim à desconstituição do ato jurídico (plano de existência), e a que, não raro, os par-ticulares e o próprio Estado atribuem efeitos a atos jurídicos nulos, o que torna indispensável a aplicação da lei

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pelo juiz. As ações de nulidade de testamento por insanidade do testador são o exemplo mais prestante. Os princípios que ai se exprimem, foram os que inspiraram regra jurídica sobre a decretabilidade de ofício da nulidade. A decretação da nulidade incumbe ao juiz quando conhece do ato, ou dos seus efeitos e a encontra provada, não lhe sendo permitido supri-la, ainda a requerimento das partes. (Nada obsta a que alguém ceda o direito à alegação da nulidade, e há-se de entender que cedeu o direito de que nulamente se disporia; não se trataria, sempre, de procuração em causa própria). Para se ter tal ação, basta que se atribuam efeitos ao ato jurídico, a ponto de se ferir a esfera jurídica de alguém. Se o ato jurídico é nulo e foi em fraude contra credores, ou simulado, ou doloso, ou obtido sob coação, não há necessidade de se alegar o menos, que é a causa de anulabilidade, se pode alegar o mais, que é a nulidade. Se prejudicado seria o credor por se tratar de ato de disposição praticado pelo devedor, pode ir, na execução, contra o bem de que se dispôs (não houve efeitos de transferência) e, contra os embargos do terceiro, que pretende haver adquirido o bem, arguir a nulidade. Se há nulidade, o credor falencial não precisa de propor ação de nulidade — alega a nulidade, incidenter. Não há revogação de atos jurídicos nulos. A alegação de simulação, ou de fraude, na disputa entre credores, é ação anulatória, excepcionalmente sem rito ordinário; a alegação de nulidade, na disputa entre credores, é ação de nulidade, ação, de regra, sem rito ordinário. A revogação por fraude, na falência, só se refere a atos juridicos “anuláveis”. A regra da decretabilidade de ofício, em se tratando de nulidade, sofre exceções, e. g.: se há regra jurídica que exige o rito ordinário às ações de nulidade de casamento: ou que exige o rito ordinário, em se tratando de decretação de nulidade de hipoteca; lei que só admite a decretação da nulidade da fundação por ilicitude ou por impossibilidade do objeto, citados os administradores, em ação ordinária. Também as nulidades de patentes de invenção, modelo de utilidade, desenho ou modelo industrial somente podem ser alegadas em ação ordinária. 2.Insupribilidade, irratificabilidade. As nulidades são insupríveis. Nem os figurantes podem ratificá-las, sem lhes pedir o suprimento. Em todo o caso, admite-se a sanação da nulidade do casamento por incompetência do juiz. O ato jurídico nulo é nulo para sempre, ainda que cesse a causa da nulidade: o direito do tempo marca-o. Se o legislador pode tornar anulável, ou válido, o que era nulo, depende do direito constitucional, e a solução do direito brasileiro é negativa por haver o principio da irretroeficácia das leis. Quando se diz que a ratificação do ato jurídico nulo só tem efeitos ex nunc, ou se tem de tratar como ato jurídico novo, empregam-se expressões impróprias. Em verdade, o que se pode ter dito é que o ato jurídico, a que se chama, erradamente, ratificação, porque tem por fito repetir o que nulamente se praticou, não pode ter a eficácia que só o ato jurídico anterior, se nulo não fosse, teria. E tautológico. Por isso mesmo, o § 141, alínea 1ª, do Código Civil alemão, que fala de Bestàtigung, a respeito de ato jurídico nulo, para o considerar novo, foi infeliz na redação. O que é novo e não tem efeito ratificativo (aí, igual a desinvalidade; cf. a regra jurídica sobre ratificação em caso onde o efeito é preenchente ex tunc), ratificação não é. A redação do § 141, alínea 1ª, chocou-se com a doutrina (e. g.. Lothar Seuffert, Die Lebre von der Ratihabition, 105; Ferdinand Regelsberger, Pandekten, 1, 640; E. 1. Bekker, Svstem, 1, 2ª ed., 229; Alois Brinz, Lehrbucb, IV, 2ª ed., 444; Griesinger. Zur Lebre von der Ratibabition, 26; Paul Lútteken, Erôrterungen úber der Satz: Quod vitiosum est ..., 42; A. Siegerist, Lebre von der Ratibabitiou, 89; Richard Wittil≤owski, Die Bestdtigung, 13; Scheller, Bedeutung und Wirkunq der Ratihabition, 55). § 158. Insanabilidade do nulo 1. Validação e insanabilidade. A validação, principalmente pela ratificação, sem a excepcional atuação de Iex nova retroativa, portanto com o suporte fático e a incidência da regra jurídica do tempo que o pôs, deficiente, no mundo jurídico, só se justifica quanto aos atos jurídicos anuláveis, — não quanto aos atos jurídicos nulos. O nulo é irratificável, como o é o inexistente; ratificação do nulo seria contradictio ir terminis. Nos casos mesmos de regra jurídica nova, que diz ser válido o que era nulo, em verdade há incidência dessa lei nova no mesmo suporte fático, que a outra considerou deficiente e essa considera eficiente (= sem défice). Não é isso, está-se a ver, tornar válido, e sim fazer jurídico e válido. Com eficácia retroativa, se o sistema jurídico o permite à lei e essa o entende impor. Se, após essas considerações, examinamos qualquer regra jurídica que. a despeito de se

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haver tido a espécie como de nulidade, permite a sanção, logo percebemos que o conceito de nulo não deixa de ser o de nulidade insanável e toda explicação da antinomia está na regra jurídica excepcional, e não naquela de que resultou classificar-se a espécie como de nulidade. Como (perguntar-se-á) se há de explicar essa regra jurídica excepcional, se ela mesma diz que há sanação, na espécie, apesar da nulidade? (Naturalmente, não havemos de perder tempo com o art. 1.423 do Código Civil italiano, que ousou pôr em lei a antinomia: o nulo não é suscetível de convalidação, se a lei não dispõe diversamente). 2. Pseudo-sanações do nulo. Tem-se de começar pela eliminação das espécies que alguns juristas têm apontado como de sanação do nulo, sem no serem. Os negócios jurídicos sobre coisas futuras e sobre coisas alheias não são negócios jurídicos nulos; são negócios jurídicos com eficácia deficitária: a eficácia real prometida fica diferida, ou se prestam perdas e danos ao que foi promissário. A aquisição pelo que havia de prestar não valida: eficaciza. Nem nulos, nem anuláveis são tais negócios jurídicos. Não há défice neles: há-o no que seria efeito deles. Nem se pode falar de sanação, se o que prometeu dispor adquire a coisa, ou, sendo alheia, se o dono dela adimple pelo que prometeu a prestação. Na espécie do condômino, que impõe servidão sobre o fundo comum, também de nulo, ou de anulável, não se há de falar: as manifestações de vontade dos condôminos vão-se jun-tando, sem que, a qualquer momento, se possa falar de constituição nula ou anulável (sem razão, Alfredo Fedele, La Invaliditá deI negozio giuridico, 115): os elementos do suporte fático agregam-se, de um em um, ou, unidos, alguns permanecem, até que se complete o suporte fático. A nulidade supõe já existir o negócio jurídico. Aí, o negócio jurídico ainda não existe: o suporte fático está em formação, pela complexidade subjetiva do negócio. 3.Direito romano e sanaçâo. O direito romano não admitia a sanatôria do nulo, tanto mais quanto ao seu conceito de “nulo = inexistente” seria absurdo juntar-se qualquer conceito de sanação. Pretendeu-se que, para as doações e os testamentos nulos por vicio de forma, tivesse havido sanação. O direito romano antigo não concebia a doação como negócio juridico formal. Justiniano fé-lo formal, com insinuatio: havia a nulidade, no sentido romano, por certo; a chamada convalescença não seria, aí, mais do que conversão da doação entre vivos em doação mortis causa. Tampouco, o testamento nulo por defeito de forma podia ser validado: a L. 16, § 1, C., de testamentis, 6, 23, não se refere a testamento nulo por defeito de forma, mas a vicio do legado e do fideicomisso (depois, L. 1, § 2, C., communia de legatis et fideicommissis, 6, 43). A solução da obrigação do legado ou do fideicomisso não fazia valido o legado nulo ou o fideicomisso nulo; apenas, tendo o herdeiro executado aquele, ou esse, cientemente, não poderia repetir (ao suporte fático da competiu indebiti faltaria o elemento da ignorância). No entanto, ainda reconhecido testamento nulo, podia ser levantada a questão da nulidade pelo herdeiro. Nem se hão de interpretar a L. 8, D., de hereditatis petitione, 5, 3 e a L. 3, D., de lege Cornelia de falsis, 48, 10, como se fossem exceções à L. 210, D., de diversis regulis juris antiqui, 50, 17 (Quae ab initio inutilis fuit institutio, ex post facto convalescere non potest); nem no seria a cláusula codicilar, pela qual se fazia codicilar o que era testamental (conversão!). A alusão à sanatória do nulo por defeito de forma foi consequência da fusão de duas filosofias diferentes, umas das quais a da supremacia da substância, que chegou ao auge no direito canônico. No entanto, o direito intermédio repelia qualquer sanação do testamento nulo, a despeito da influência canônica. Nunca se chegou à confirmabilidade do nulo, sanando-se a nulidade. No direito costumeiro francês, sim, quanto ao testamento. O Código Civil francês rejeitou a regra antinômica quanto ao testamento, e deixou-a quanto à doação (art. 1.340), se bem que a doutrina e a jurisprudência a estendessem àquele. O Código Civil italiano de 1865, art. 1.311, na esteira do Código albertino, adotou as duas; o vigente (art. 1.423) põe o princípio, e acrescenta que a lei pode admitir sanação, inserindo alhures as duas regras (arts. 590 e 799). 4. Significação histórica do prazo preclusivo em se tratando de nulidade de casamento. A regra jurídica sobre sanação da nulidade do casamento, extinto o prazo preclusivo para a ação constitutiva negativa, é reminiscência do desprezo, se não hostilidade, do velho direito canônico às formas. Hoje, tanto o Codex Juris Canonici (§§ 1.094 s.) quanto o direito evangélico (E. Friedberg, Lerbuch des Katholischen und euangelischen Kirchen-rechts, & ed., 482 s., e 491, nota 25) reduziram a incompetência a impedimentum impediens. A regra jurídica da ratificabilidade do casamento anulável apanha qualquer casamento anulável por defeito de idade ou outra incapacidade: há anulabilidade, e não nulidade. A ratificabilidade existe, ainda se não há regra jurídica especial. Dá-se o mesmo quanto a sanação se nulo ou anulável o casamento de que resultou gravidez.

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O conceito de negócio jurídico nulo é ligado ao de insanabilidade; a sanatória do nulo é contradictio in terminis, dissemos. A espécie do prazo preclusivo grita, no sistema jurídico; como outros resíduos de séculos mortos, porém não de todo extintos em alguns espíritos, ocasionalmente encarregados de redigir leis. A exigibilidade da ação ordinária para a decretação da nulidade do casamento, não; não nos causa ela tal perplexi-dade; porque, para a aplicação do direito objetivo, o Estado é livre para exigir esse ou aquele rito ou forma, sem cair em contradictio in terminis: o conceito de nulidade nada tem de necessariamente ligado à decretabilidade de ofício; e pode haver, e há espécies, em que a cognição do magistrado, em processo regular, é necessária, ou, pelo menos, útil. É de lamentar-se que, a respeito, muitos juristas ainda estejam saturados de romanismo, ou em estado de confusão, devido aos dois conceitos, o romano de nullus e o moderno de “nulo’. 5. Negócio jurídico referente a ato jurídico nulo. No terreno fático, o que tomou parte em negócio jurídico nulo pode querer dar-lhe eficácia. Bastaria cumpri-lo, conhecendo a nulidade: não poderia repetir o que houvesse prestado. Se, porém, quer validá-lo o direito está diante de pessoa que exerce a autonomia da vontade e tem de admitir no mundo jurídico esse suporte fático. Se lhe desse entrada como validação, con validação, ratificação, ou o que quer que se chame, criaria, no mundo jurídico, choque de conceitos (nulidade, ratificação-validação). O problema técnico faz-se menos problema sutil do que problema de bom senso: se o nulo não se valida, e o que poderia negociar validamente, quer que seja válido aquilo que antes quisera nulamente, nenhuma razão há para que, respeitados os princípios do sistema jurídico, se dê entrada, no mundo jurídico, a esse suporte fático, porém como outro ato jurídico. Toda manifestação de vontade é manifestação no momento em que ocorre: é fato puro, do mundo dos fatos, e sujeito ao principio de irreversibilidade do tempo. Não se pode imprimir duas vezes na mesma película fotográfica: luz entrou, luz desenhou as imagens do momento. Ou o sistema jurídico reage contra o suporte fático, em cuja composição se metem (remissivamente) elementos do suporte fático que antes já entrara, nulamente, no mundo jurídico, e não há negar que tal atitude destoa do sentimento de liberdade, que é um dos sentimentos fundamentais do homem e está à base da evolução jurídica; ou o sistema juridico recebe esse novo suporte fático. Não pode recebê-lo como integrativo do negócio jurídico nulo, porque, por definição, nulo éo que não se pode sanar. Recebe-o como negócio jurídico novo. Novo é, e como novo irradia eficácia. Se essa eficácia há de abarcar o tempo entre o negócio juridico nulo e o novo, ou entre a eficácia daquele e o novo, é questão que só se pode resolver como questão de interpretação do conteúdo do negócio jurídico novo. Ainda que remonte a algum daqueles momentos, a eficácia é ex novo. Não se pode falar de ratificação; a fortiori, de convalidação, ou sanação. O conteúdo do negócio jurídico novo é que é continente do conteúdo do outro: remete a ele, faz seu o que antes se manifestara. Para que houvesse convalidação do nulo, seria preciso que se pudesse abstrair do negócio jurídico novo, isto é, que o novo ato jurídico fosse como a ratificação do negócio jurídico anulável. Tal como se precisaram os conceitos de inexistente, nulo e anulável, não é admissível, desde a lógica, que se convalide o inexistente ou o nulo: ali, não há ser, sem validade, que se possa validar; aqui, há ser que se define exatamente como não-validável. 6. Ato constitutivo negativo para desconstituição do ato jurídico nulo. Uma vez que os negócios jurídicos nulos não se podem convalidar, é lógico que o seu estado inicial se prolongue para sempre, somente empurrado para a não-existência pela decisão, ou pelo ato dos figurantes, que aí é menos contrarius consensus do que reconhecimento, sem se identificar com esse, em sua espécie puramente declarativa, nem com aquele, em sua pura constitutividade negativa. Os sistemas jurídicos tratam a nulidade como pré-determinadora de ineficácia, sem que se negue a possibilidade de algum efeito, ligado, excepcionalmente, à existência e a despeito da insanabilidade. A ineficácia abrange mais do que o nulo-ineficaz. A anulabilidade não impede a eficácia; é lógico que o anulável, irradiando efeitos, como irradia, possa ser sanado, inclusive pela ratificação, que ai é integrativa. § 159. Nulidade ou anulabilidade total e nulidade ou anulabilidade parcial. 1. O que a nulidade atinge. A nulidade concerne ao ato jurídico. O ato jurídico é que é nulo. Quando se diz “crédito nulo”, “obrigação nula”, em verdade se usa de elipse: “crédito oriundo de ato jurídico nulo (ou de parte

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nula de ato jurídico)”, “obrigação oriunda de ato jurídico nulo (ou parte nula de ato jurídico)”. Crédito e obrigação são efeitos; efeitos são ou não são, existem ou não existem; efeitos não são válidos, nem inválidos. Os juristas romanos podiam falar de obligatio nulla, porque se punham no lado da existência; nós nos sistemas jurídicos que distinguem o ato jurídico inexistente (não-ato jurídico) e o nulo, não podemos empregar ‘obrigação nula” senão elipticamente. O que é nulo é o negócio jurídico, não a obrigação. Por outro lado, há obrigações que derivam de atos-fatos jurídicos, de atos ilícitos, de fatos jurídicos e de fatos (jurídicos) ilícitos, e nunca se poderia, ainda elipticamente, falar de obrigação nula. De ordinário, a nulidade atinge o todo do ato jurídico. Pode ocorrer que não no atinja em toda a sua extensão objetiva ou subjetiva, e temos, então, a nulidade parcial. 2. Nulidade total. Se há, enfeixados, dois ou mais atos juridicos, ou com pluralidade de figurantes de cada lado, ou de um só lado, ou sem pluralidade, a nulidade de cada um deles não se contagia aos outros: uns podem valer, sem que o outro ou os outros valham. A nulidade de qualquer um, no seu todo, é nulidade total, e não parcial. 3. Conceito de nulidade parcial. A nulidade pode ser concernente só a parte do ato jurídico, se é separável, ou em relação a algum dos figurantes, ou a algum dos objetos ou partes do objeto, ou à forma de certa parte. Não se pode pensar em nulidade parcial, sem se pensar em negócio jurídico complexo. Todas as causas de nulidade são possíveis causas de nulidade parcial. Se a parte nula é essencial a todo o negócio jurídico, nulo é todo ele. Não há contrato, se é nula a oferta, ou se e nula a aceitação. A inseparabilidade resulta da natureza do negócio jurídico ou do ato jurídico stricto sensu, ou da subordinação do todo à parte nula, no caso de saberem os que manifestaram a vontade, ou de o saber o que a manifestou, que seria nula a parte. Isto é: qual teria sido a conduta deles, ou dele, quanto ao resto. Certo, quem quis o ato jurídico o quis todo, mas as circunstâncias podem mostrar que se quis o resto, ainda sem a parte. Assim se chega à discriminação do suporte fático em mínimo que seria de admitir-se (= desejar-se) e máximo que seria atingível pela nulidade sem que se excluisse o resto. O ônus da prova incumbe a quem afirma não estar prejudicado o resto; mas só após ter alegado e provado o outro interessado que há parte nula. Se esse mesmo circunscreve a alegação à nulidade parcial, O que sustenta a validade do resto está eximido do ônus de alegar e provar. Em todo o caso, o juiz pode decretar, de ofício, a nulidade, para além do alegado; ou só julgar provada a nulidade de parte separável. A exigência da alegação só concerne à anulabilidade; quanto à nulidade, somente a regra jurídica especial pode excluir a decretação de ofício. Donde se conclui que a diferença é a priori e se prende aos dois conceitos de nulidade e de anulabilidade. No mesmo negócio jurídico, é de ocorrer que uma parte seja nula, e outra, anulável. Então, separáveis, cada uma se rege por seus princípios próprios. Se há três partes e uma delas nem é nula, nem anulável, a separabilidade permite que a terceira fique a coberto pela regra Utile per mutile non vitiatur. 4. Direito romano e direito contemporâneo. Há, porém, certa diferença entre o principio do direito comum, baseado na L. 1, § 5, D., de verborum obligationibus, 45, 1 (‘nam sit tot sunt stipulationes, quot corpora, duae sunt quodammodo stipulationes, una utílis, alia inutilis, neque vitiatur utilis per hanc mutilem”) e o do Código Civil alemão, § 139: ali, as circunstâncias haveriam de ser alegadas e provadas, que mostrassem haver a contagiação; aqui, o que se tem de alegar e provar é a não-contagiação. Pondo-se de parte a decretabilidade de ofício, há interesse prático em se assentar qual a concepção do direito brasileiro. O princípio primeiro, que está implícito no sistema jurídico, é o da contagiação: a lei cria exceções, conforme foi antes exposto. Tal princípio resulta da unidade do ato jurídico, a despeito da sua complexidade as exceções emanam dessa complexidade, quando se afrouxa o laço interno a ponto de se terem por separáveis partes dele. Por isso mesmo, se há pluralidade de atos jurídicos, o princípio primeiro é o princípio da nâo-contagiaçâo e só a excepcionalidade da dependência íntima entre eles, ou parte deles, permite que se abra brecha ao principio. Quando, por exemplo, se diz que é nulo o negócio juridico, em que uma das pessoas figurantes é menor de dezesseis anos, e por ele foi vendida casa em que cada pessoa tinha parte indivisa, primeiro se há de entender que é nulo todo ele, e não só

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na parte do menor, cabendo ao adquirente alegar e provar a validade do negócio jurídico no tocante às partes não alienadas pelo menor. A solução do direito comum — lógica, no sistema que ele adotara — seria a nulidade só da parte do negócio jurídico concernente ao menor, salvo aos interessados a alegação e prova da contagíação . A regra jurídica que faz nula a doação com ofensa à sucessão legitima (cp. Código Civil argentino, arts. 1.830-1.832; uruguaio, art. 1.626, 1ª alínea) é exceção às regras jurídicas da excepcional contagiação. Aliás, o pensamento que se traduziu no § 139 do Código Civil alemão já se havia revelado no art. 1.039, 2a parte, do Código Civil argentino: “La nulidad parcial de una disposición en ei acto no perjudica á las otras disposiciones válidas, simpre que sean separables.” Proveio do art. 803, 1) e 2ª partes, do Esboço de Teixeira de Freitas. como das regras jurídicas que entraram no Código Civil brasileiro de 1916, art. 153. 5. Separabilidade das partes. Se a nulidade ou a anulação é referente à incapacidade de algum, ou alguns figurantes, tem o juiz de verificar se o objeto do ato jurídico permitiria que separassem as partes dele, correspondentes aos diferentes figurantes. Somente após a resposta quanto à possibilidade da separação, é que se há de inquirir do que quiseram as pessoas, e se teriam querido o mesmo, se soubessem que a parte ou partes do ato jurídico seriam tidas por nulas. Naturalmente, já se não cogita da pessoa ou das pessoas que deram causa a nulidade. A mesma atitude se deve assumir diante das outras nulidades: se proveio de infração de regra jurídica sobre forma, ou se ilícito ou impossível o objeto, ou se foi preterida alguma solenidade, que a lei considere essencial à sua validade, ou se há regra jurídica especial sobre a nulidade. O juiz pode decretar, de ofício, a nulidade que não foi alegada: decreta-a, quanto ao todo, ou quanto a parte do negócio jurídico; e deferir o pedido de decretação da nulidade total ou só parcial, ou só quanto a parte do pedido, mas, uma vez decretada, qualquer alegação contra a decisão (e. g., em agravo) tem de ser pelo interessado na validade de parte ou de partes. Decidindo de uma vez, o juiz deve partir, no exame, de que o ato jurídico é todo nulo, e só após apreciar a alegação de ser válido; ainda se vai decidir de ofício, pela razão de não ir além do que deve ser a sua função de decretar nulidade. § 160. Desconstituição por validade 1. Desconstituição e não declaraçâo, do ato jurídico nulo ou anulável. Todos os que definem o ato jurídico nulo como aquele que não produz efeitos, portanto “nulidade = ineficácia”, cometem, desde logo, o erro de definir o fato de ser como o ter determinadas conseqüências, e topam, adiante, com o desmentido dos fatos: há atos jurídicos nulos que surtem efeitos: e efeitos correspondentes ao seu conteúdo, o que, de si só, bastaria para se afastar qualquer teoria escapatória, que atribuísse o efeito ou efeitos a fato jurídico, ato-fato jurídico, ou simples fato, que, com a nulidade, ficasse no lugar. A nulidade é consequência de défice, défice que diz respeito à entrada inidônea no mundo jurídico, como se a causa ê o ser menor de dezesseis anos o agente, ou a incapacidade do louco, ou a do surdo-mudo que não pode exprimir a sua vontade, ou a de pessoa julgada por ausente. Na lei brasileira, também são causas de nulidade o ser ilícito ou impossível o objeto do ato jurídico, o não revestir o ato jurídico a forma prescrita em lei, o ter sido preterida alguma solenidade que a lei considere essencial à sua validade, o tê-lo a lei” taxativamente” considerado nulo, ou ter-lhe negado (qualquer) efeito. A última parte tem a consequência de ser nulo todo negócio jurídico a que a lei negue toda a eficácia. Se algum efeito surte, não é nulo pelo fato de a lei lhe negar efeito, posto que o possa ser por outra. Demais, a regra jurídica que faz nulo o ato jurídico a que a lei nega efeito, não permite que se identifiquem nulidade e ineficácia: o ato jurídico stricto sensu ou o negócio jurídico totalmente ineficaz é nulo; mas o ato juridico stricto sensu ou o negócio jurídico nulo não é, necessariamente, totalmente ineficaz — só o é de regra. 2. Nulidade e anulabilidade. A nulidade ocorre sem ser preciso que haja algum ato de alguém para que ela produza a sua consequência. Aqui, surge o problema da definição de anulabilidade. Quando dizemos que o ato jurídico é nulo, aludimos a causa e consequência simulâneas; quando dizemos que é anulável, só aludimos à causa. Há dois momentos: um, que é o do vício, e outro, que é o do efeito do vício. O ato jurídico é nulo, desde já; o ato jurídico nulo será apontado, explicitamente, como incluído na classe dos atos jurídicos nulos, quando

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se proferir a parte declarativa da causa da sentença constitutiva negativa, mas a parte constitutiva negativa o fará cair na inexistência (= fora do mundo jurídico), como acontece ao ato jurídico anulável, que se julgar, desconstituindo-se. A sentença, na ação de anulação, desconstitui mais do que na ação de nulidade, porque é mais desconstituir-se o anulável que desconstituir-se o nulo. Quando o autor, na ação de nulidade, a alega, o seu papel não é diferente daquele que exerce o autor, na ação de anulação. Ambos vão contra o ser jurídico, ainda que àquela alegação se permita a postulação incidenter ou de ofício. A diferença exsurge quando se aprecia a posição do réu: na alegação de nulidade do negócio jurídico, ele objeta, e o juiz, salvo espécie excepcional, aprecia desde logo a objeção; na alegação de anulabilidade, o réu tem de vir com a sua ação em reconvenção, ou em ação à parte, salvo regra jurídica especial. (Cumpre aqui, não se identificar o conceito de anulabilidade, tal como se cristalizou no direito ocidental, desde que se distinguiram nulidades, anulabilidades, rescisões e impugnações, com o de impugnabilidade. A anulabilidade é objeção que exige ação própria; não é simples direito de impugnar contra direito, Gegenrecht.) 3. Ordem das questões perante a Justiça e pela Justiça. Porque há três planos, o da inexistência, o da nulidade e o da anulabilidade, um acima do outro, essa é a ordem em que se hão de apresentar, discutir e julgar as questões: primeiro questões de inexistência, por isso mesmo que são no plano da existência, em que toda a função do intérprete ou do juiz é declarativa; depois, as de nulidade, pois, aí, tem o juiz função declarativa positiva e constitutiva negativa de X; finalmente, as de anulabilidade, porquanto o juiz, que anula, declara, implicitamente, que é, e não é nulo, mas anulável, e desconstitui mais do que x. Quando o juiz anula, destrói mais do que quando julga a nulidade: quem decreta nulidade, pouco encontrou que destruísse; quem anula (= decreta anulação), muito encontrou para destruir. Essa diferença entre o que se desconstitui, na decretação do nulo e na decretação do anulável, é responsável pelo erro de se crer “declarável”, em vez de decretável, a nulidade (exagera-se, então, o elemento declarativo); e permite que se alegue, eventualiter, a anulabilidade: julga-se, primeiro, a inexistência, se foi alegada; depois, a nulidade; finalmente, a anulabilidade. A nulidade, por ser grave, é mais perceptivel: por isso, quando o juiz ou a própria autoridade administrativa a encontra provada, deve pronunciá-la, ainda que não tenha havido alegação; o funcionário público, e não só o juiz, há de negar atendimento ao ato jurídico, se há prova da nulidade, inclusive abstendo-se de registrá-lo, se lhe incumbe serviço de registros públicos. Dirse-á que o negócio jurídico pode ser nulo, e não estar provada nulidade. Não infirma isto o principio: à regra jurídica sobre nulidade só se deixa de atender quando ainda a sua incidência não está provada, isto é, quando ao funcionário público, ou ao juiz, ou aos interessados, não se exibiu todo o suporte fático deficitário. 4. Ação para se desconstituir. A nulidade e a anulabilidade distinguem-se perfeitamente, salvo exceção legal, como a respeito do casamento, em não poder alguém recusar-se a atender o que deriva de ato jurídico anulável. Enquanto não se decreta a anulação, o ato jurídico é, e está apenas exposto à ação, de modo que toda conduta contrária a ele é anti-jurídica. Em todo o caso, as leis às vezes exigem a sentença, em ação constitutiva negativa, com rito ordinário, ou especial, para se decretar a nulidade, o que não exclui outras propriedades ordinárias da nulidade. § 161. Alegação de não-validade1. “Ação” para a desconstituição do ato jurídico nulo, regra jurídica excepcional. Já vimos que, de regra, o direito material, em que se constituem os negócios jurídicos, adota o princípio da arguição da nulidade em qualquer ocasião, ainda incidenter. A exceção à regra, ainda quando se trate de norma inserta em código, ou em lei esparsa de direito material, salvo evidente propósito de materialização, pertence ao direito processual, por-que é a esse direito que cabe determinar a forma adequada das “ações” e a própria necessidade de “ação”. As regras jurídicas sobre só se processar em ação ordinária a decretação da nulidade ou anulação de casamento ou a decretação de dissolução de sociedade por ações ou são regras jurídicas de processo, razão por que o lugar próprio é o direito processual. 2. Permissão e dever de decretar de ofício a nulidade. Quando se diz que alguma nulidade pode ser pronunciada de oficio, a regra, ainda quando inserta no direito material, dirige-se ao juiz, para lhe permitir ou

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lhe ordenar que a pronuncie. Permitir-lhe ou ordenar-lhe. Se foi usado o verbo “pode”, só se permitiu; se foi usado o verbo “deve” ou “há de ser”, ou “será”, há-se de entender que se fez dever do juiz pronunciá-la. Esse dever, está claro, somente pode derivar do direito judiciário e, pois, da lex fori. A cisão é sutil, mas relevante: a decretabilidade de ofício pode ser edictada pelo direito material; o dever de decretar só se pode criar na lex fori. Foi a longa permanência do direito material e processual juntamente, quasem discriminação, que levou a se inserirem em leis civis e penais regras de direito judiciário, e vice-versa. Na medida que se teve de distinguir do que era direito material, regedor da res in iudiciurn deducto, o que era direito de organização da justiça e processual, foi que a prática aproveitou e serviu à precisão classificatória. A decretabilidade de oficio significa que se permitiu, pelo menos, ao juiz que, conhecendo do ato, como res deducta, lhe decrete a nulidade — quer dizer, o desconstitua. No conceito não está incluído que se não precise propor “ação”, ou que se possa alegar, em exceção ou defesa, onde quer que se pretendam efeitos ao ato jurídico nulo. Se bem que a decretabilidade de oficio, a prescindibilidade ou dispensa de “ação” e a alegabilidade por qualquer interessado costumem aparecer juntas, são conceitos distintos, e deles pode usar o legislador e a seu sabor, em combinações ou isoladamente. Em princípio, a decretação de ofício é permitida. 3. Alegação incidental do nulo. Se alguém invoca ato jurídico nulo, para fundamento dos seus direitos, pretensões e ações, a outra parte pode, durante o processo, ainda incidentemente, isto é, ainda como questão prejudicial, ou quanto a algum efeito que se lhe espere, ou haja esperado, alegar a nulidade. Por outro lado, quem pleiteia, ou vai a juízo, tendo de invocar ato jurídico de que lhe provenham direitos, pretensões, ou ações, e a atribuição de eficácia a algum negócio jurídico nulo invadiria a sua esfera jurídica, direta ou indiretamente, imediata ou mediatamente, pode, ainda que incidentemente, arguir a nulidade. O que adquiriu a propriedade está exposto, se foi nulo o ato jurídico da alienação, à ação de reivindicação pelo alienante. O devedor, que pagou em virtude de negócio jurídico nulo, pode pedir a repetição do pago, ou recusar-se a pagar, se ainda não no fez. Mais: se o credor pretende a compensação, é de afastar-se essa com a alegação e prova da nulidade do negócio jurídico. Para fazer patente a nulidade, para que se neguem efeitos ao ato jurídico nulo, não se precisa propor ‘ação”; mas isso não significa que não exista a ação de nulidade. É a velha confusão entre ação (de direito material) e “ação” (de direito processual). Mais grave ainda, in casu: entre ação (de direito material) e “ação ordinaria Daí logicamente se passa a discussão da natureza (ou, melhor, eficácia) da decisão na ação de nulidade. Ou o nulo é não-existência, tal como na lei romana e entre os juristas romanos; ou nulo é o existente, não-válido de pleno direito. Se a concepção romana ainda subsiste, a ação de nulidade é declarativa negativa, e o juiz profere que não existe o ato jurídico. Se outra é a concepção do direito positivo, como acontece no sistema jurídico brasileiro, a ação é constitutiva negativa; o ato jurídico foi feito, é nulo, e a sentença decreta-lhe a nulidade, empurrando-o para a inexistência. O fato de se poder, incidenter, alegar a nulidade contribuiu para maior tur-vamento do assunto, porque, proposta a ação declarativa da não-existência de alguma relação de direito, e arguida a nulidade na petição, ou depois, o juiz teria de pronunciar a nulidade do negócio jurídico e, após, a inexistência da relação jurídica. Em verdade, porém, alguns juristas não viram esse fato, esse pré-surgir de questão prejudicial (constitutiva negativa) e pensaram que a ação de nulidade fosse declarativa (e, g., Andreas Tuhr, Der Alígemeine Teil, II, 281; na tradução espanhola, 111, 311; aliás, a frase-titulo “Não existe ação de nulidade” foi enxerto errado, do tradutor). O resíduo romanistico “declaração de nulidade” também concorrera para isso. Outrossim, o tomarem-se ineficácia e inexistência como o mesmo: há o existir, sem eficácia, e o nulo excepcionalmente eficaz. 4. Direito judiciário ou direito administrativo. Outro problema, semelhante ao da exigência processual da “ordinariedade” ou da “especialidade” da “ação”, ou, apenas, da ‘ação”, é o da exigência, de direito judiciário, ou de direito administrativo, da “ordinariedade”, ou da “especialidade”, ou, simplesmente, da “ação”, para se desconstituir o ato do órgão do Estado, que recebeu, ou constituiu, formalmente, o ato jurídico. Ali, foi o direito processual que impôs o rito; aqui, é o direito judiciário, ou o direito administrativo. O exemplo mais eminente é o da desconstituição das escrituras públicas. 5. Instrumentação pelo oficial público. Se o ato juridico é nulo, a fortiori, se é inexistente, o fato de ter sido

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instrumentado pelo oficial público não no torna revestido de pressupostos tais que se tenham de satisfazer as exigências que a lei possa fazer para anulação dos atos públicos. A escritura pública é ato de direito judiciário (na tradição do nosso direito), posto que pudesser concebida como ato de direito administrativo, e goza de certa fé, e dela decorre, por exemplo, a exigência do procedimento ordinário para ser desconstituido. Se ocorre que o ato jurídico é nulo, e no pronunciar-se a nulidade não se ataca a fé que a escritura pública contém, a separabilidade do negócio juridico e do instrumento permite que se decrete a nulidade do ato, sem ser preciso decretar-se a nulidade do instrumento. Praticamente. permite que se decrete, incidenter, a nulidade do ato, sem ser preciso que se proponha a “ação ordinária”. Se, porém, há inseparabilidade, como se o tabelião enunciou que estava presente o declarante, e não estava, têm-se de propor, cumulativamente, as duas ações constitutivas negativas, a de nulidade do negócio juridico e a do instrumento. Casos ocorrem em que a própria ação de declaração de inexistência tem de ser cumulada com a de nulidade do instrumento. Outros em que o ato jurídico é apenas anulável e vai ter implícito, no pedido, se não se explicitou, o pedido de nulidade do instrumento (e. q., alegação de coação no próprio cartório do tabelião). A declaração, que se encontra nas escrituras públicas, de que B pagou o preço e A recebeu, não é dos figurantes do contrato ou do pré-contrato, pelo qual se aliena ou se grava algum bem: é do tabelião. O tabelião é quem diz, em comunicação de enunciado de fato, que houve entrega e recebimento da contraprestação. Dai a necessidade de se ir contra a escritura pública sempre que se diz não ser verdade que se entregou o preço e, pois, que se recebeu. § 162. Invalidades concorrentes 1. Concorrência de nulidades, ou de anulabilidades, ou de nulidades e anulabilidades. Pode acontecer que o ato jurídico, além de ser anulável pela coação, pelo dolo ou por outra causa, seja anulável por outra causa de invalidade, ou nulo. De iure condendo, ou a) se entende que, havendo a nulidade, a vítima tem o dever de alegá-la antes, e o juiz o de pronunciá-la, ou b) apenas se dá ao juiz pronunciá-la, sem se excluir ao figurante o arguir a anulabilidade sem impedir a anulação. O argumento a favor de a) consiste em se fazer ressaltar que a anulação vai contra os efeitos do ato jurídico e o ato jurídico nulo não os tem. Tal concepção do anulável, exatamente coincidente com o inválido eficaz, agradou aos juristas alemães, devido ao conceito de “impugnação”, que eles adotaram, apagando-se, assim, um tanto da invalidade para se pôr em relevo o ataque à eficácia. Porém essa solução técnica não é melhor do que a que se formou, durante séculos, para se definir o anulável; nem é necessária, como pareceu a Rudolf Leonhard (Beitráge zur lrrtumslehre, Deutsche iuristen-Zeitung, 10, 20), e a G. Planck (Kommentar, 1, 4ª ed., 280). Com razão, Theodor Kipp (Uber Doppelwirkung im Recht, insbesondere úber die l≤onkurrens von Nichtigkeit und Anfechtbarkeít. Festschrift fOr Ferdinand von Martitz, 211 e 224 s.). O que se tem de dizer (e é tautológico) é que a nulidade passa à frente; o que se pede é a anulação, mas, ao bater o juiz na cunha, pelo vício, que arrebentaria o ato jurídico, todo ele se esboroa. Em alguns casos de coação, o ato jurídico se torna imoral, ou o é. Uma coisa é a pretensão à tutela jurídica, que tem o coacto, ainda que nulo o ato jurídico (pessoa forçada a receber quantia para não separar judicialmente ou divorciar), e outra, a ação de direito material, res in iudicium deducta. A doutrina alemã, excluindo que se peça a decretação da anulabilidade do ato jurídico nulo, desatende a isso. 2. Ordem das questões. Na concorrência das anulabilidades, há certa ordem de apresentação, pela abrangência. a) Quem tem ação de anulabilidade por dolo tem mais do que se só tivesse ação de anulabilidade por erro. Porque no suporte fático do ato jurídico eivado pelo dolo há o elemento do erro, contido no elemento do dolo. Não exclui isso que, noutro ponto do mesmo ato jurídico anulável por dolo, haja elemento de erro, sem que tenha havido dolo. Por exemplo: dolo e erro na transmissão. Idem, quando se dá concorrência legislativa: uma lei aponta o dolo; outra, o erro, sem o admitir incluso no dolo. B) Quem tem ação de anulação pela coação pode tê-la também por erro ou dolo, ou as duas. Por exemplo: B, coagido por A, dirige manifestação de vontade a C, ou mesmo a A, crendo que não tem suficiência para se fazer ato jurídico, ou que é nulo (não só anulável); 8, coagido por A, assina contrato, em que A diz ser dono da colheita, sem no ser, e ao mesmo tempo troca os limites do terreno (coação, dolo e erro, respectivamente). Não raro o dolo ou a coação, ou ambos concorrem

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com os vícios ocultos da coisa, nos contratos comutativos. Quanto ao erro, não; as qualidades, de que tratam as regras jurídicas sobre a nulabilidade dos atos jurídicos, não são as mesmas de que fala a regra jurídica sobre vícios redibitórios, razão por que acabam os prazos preclusivos, concernentes à ação quanti minoris e à ação redibitória sem ter expirado o prazo prescricional das ações de anulação. Quem compra vinagre em vez de vinho erra; não tem ação redíbitória ou quanti minoris, tem ação de anulação por erro (Franz Haymann, Anfechtung Sachmúingelgewdhr und Vertragserfíillung, 10 s.). Quem compra vinho, que se diz não ácido e é ácido, a ponto de poder invocar a regra jurídica sobre vícios redibitórios, não erra, ignorou o que era oculto. 3. Ação revocatária falencial. Diferente é o que se passa em relação à ação revocatória falencial. A diferença da revogação da doação, por ingratidão de donatário, a ação revocatória do credor, por fraude contra credores, tem por fito a subtração à manifestação de vontade do devedor (vox) do que foi vontade de fraudar credores. A sentença, que se profira, favoravelmente ao autor, sanciona a subtração daquele elemento volitivo de que resultaria, ou de que resultou o eventus damni aos credores. A manifestação de vontade do devedor, no que não ofenderia nem ofende os credores, fica. O ato jurídico não deixa de ser. Não cai no nada. Não há qualquer decretação de anulação, à diferença do que ocorre com a ação anulatória fundada no ter o ato provindo de devedor insolvente. A revocatória, que se baseia na lei de falências, somente revoga quanto àquele elemento volitivo, de que falamos; não decreta nulidade, nem anula. Por não se verem tais diferenças entre as ações anulatórias e as revocatórias falenciais (noutros sistemas jurídicos também revocatórias ordinárias), gravemente se turvou a discussão, a ponto de se ter recorrido ao inadmissível conceito de nulidade subjetivamente relativa, ou de anulação subjetivamente relativa. § 163. Desconstituição do ato jurídico nulo 1.ãlegação da nulidade. A nulidade, salvo se é exigida. por lei, a decretação judicial, pode ser tomada em consideração pelos funcionários públicos administrativos, desde que conste de processo, se bem que a eficácia da sua decretação em despacho administrativo se tenha de limitar ao plano do direito processual administrativo. Se o ato administrativo é sujeito a apreciação judicial, a despeito da preclusão no plano administrativo, também o é a decretação de nulidade; se o não é, nem por isso a decretação de nulidade impede que se lance mão da ação em juízo para a alegação e prova da validade. E, então, de se notar que a eficácia da sentença não é constitutiva negativa: quanto à pretendida nulidade, é declarativa positiva, como o seria a sentença desfavorável na ação de nulidade; quanto à decisão administrativa em si mesma, constitutiva negativa dessa, pela existência, no sistema jurídico, da apreciação judicial dos atos dos poderes públicos. O funcionário público nega a sua colaboração com os negócios jurídicos nulos, cuja decretação de nulidade não foi reservada à decisão judicial. se lhe incumbe, por exemplo, proceder a registro, ou, em se tratando de mandamento judicial não-trânsito em julgado, levantando dúvida. Outrossim, há de negar a sua colaboração, integrativa de forma ou de fundo, se está em causa a constituição de negócio jurídico que seria nulo. 2.Alegações e princípio da eventualidade. A nulidade é maior falha que a anulabilidade. Por isso mesmo, pode essa ser invocada eventualiter; quer dizer: para o caso de ser repelida a alegação de nulidade. Passa-se o mesmo com as exceções e as rescisões: primeiramente se há de julgar a nulidade; caso seja improcedente o pedido de decretação, julgar-se-á a exceção, que é simples encobrimento de eficácia, ou a rescisão, que é abertura da relação jurídica. Por outro lado, em princípio, ainda que só se alegou a anulabilidade, ou a rescisão, ou só se levantou exceção, é dado ao juiz — e é do seu dever — decretar a nulidade, incidenter. As vezes, resulta provada a sua ocorrência das próprias palavras daquele que propôs a ação, exigindo o cumprimento, como se o autor deixa escapar a ilicitude do objeto. Outras vezes, o que poderia argúi-la, cala; nem por isso o juiz se exime do dever de decretá-la, pelo princípio da irrenunciabilidade das alegações de nulidade, raramente excetuado, inclusive quanto às nulidades por efeito de forma (Hans Reichel, Zur Behandlung formnichtiger Verpflichtungsgeschràfte, Arch iv for civilistische Praxis, 104, 135). 3. Tempo para a alegação da nulidade. Sempre que regra especial não há, que exija ação autônoma, a nulidade pode ser alegada a qualquer tempo do processo, mesmo incidenter. Trato incidental diz-se o da matéria, quando não seja a do pedido na ação proposta, e, no tocante à nulidade, ainda quando a ação se refira a algum efeito

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que se pretenda ter sido produzido pelo ato jurídico nulo. A regra é não ser preciso propor-se a ‘ação” de nulidade, que é constitutiva negativa: basta alegar-se a nulidade, ou vê-la o juiz, ainda em ação de declaração. Porém isso não significa que a ação de nulidade seja declarativa, como se alastrou ainda entre grandes juristas. A expressão “declaração de nulidade” trai a reminiscência romanística do “nullus = inexistente”. 4. Transferência da ação. A ação para decretação da nulidade de relação juridica pode ser transferida, porque é ligada ao interesse e, pois, ao direito subjetivo à desconstituição. Com a transferência, que só é útil se não podia alegar a nulidade o adquirente, esse pode exercer a ação em nome e interesse próprios. A procuração in rem suam seria outra coisa posto que Andreas von Tuhr (Der Alígemeine Teil, II, 282, nota 14) tenha negado aquela e só admitido a essa. O transferente está diante de ato jurídico que é, embora nulamente; a transferência aproveita ao transferido, sempre que, sem ela, não poderia ele alegar a nulidade e, não na alegando, o negócio jurídico o atingiria. Quem compra estabelecimento, em que alguns negócios jurídicos nulos criariam obrigações, mas a nulidade decorreu de ilicitude de objeto alegável pelo adquirente do estabelecimento, não precisa de que se lhe transfira ação de nulidade: tem interesse e ação. Se, porém, não houve compra do estabelecimento, e a alguém aproveitaria a decretação da nulidade, para que pudesse contratar com a outra pessoa que negociou nulamente, há interesse em adquirir a ação de nulidade. Dir-se-á que, contratando com ela, poderia alegar a nulidade do negócio jurídico anterior; porém isso falharia onde essa pessoa não pudesse alegar a nulidade, por ser sua a torpeza, e onde a pessoa, que a poderia alegar, estivesse de posse das provas. 5. Quem pode alegar a nulidade. O princípio da alegabilidade do nulo por aquele contra quem se querem efeitos é o que domina essa matéria. De modo que estão legitimados os que têm interesse no afastamento do pretendido efeito, sejam contratantes ou não, sucessores, ou simples atingidos pela eficácia que se pretende exista. Essa eficácia, que se diz existir e não existe, foi o elemento que levou os juristas a conceituar a ação de nulidade como declarativa. Mas, se bem apuramos, vemos que se pedira a declaração de ineficácia após decretação de nulidade do negócio jurídico. Quando os credores podem alegar nulidade de negócio jurídico, em que o devedor dispôs de algo do seu patrimônio, não pedem declaração de ineficácia (aliter, nos casos de fraude a execução), e sim decretação de nulidade, após a qual a declaração de inexistência de efeito é implícita. No concurso de credores, uma coisa é pedir declaração de ineficácia e outra pedir decretação da nulidade. O credor hipotecário pede a decretação da nulidade da hipoteca anterior à sua; e a declaração de ineficácia, contra a sua, da hipoteca posterior. O devedor pode alegar a nulidade da cessão de crédito e a ineficácia em relação a si, que são situações diferentes: ali, pede-se desconstituição; aqui, declaração (a despeito do a técnico “não vale” que está no Código Civil de 1916, art. 1.069; cp. Código Civil argentino, arts. 1.459-1.463). Se a cessão é nula, a obrigação do devedor de pagar ao cessionário seria efeito atribuido ao negócio jurídico nulo; se a cessão não foi notificada ao devedor, esse pode solver a obrigação dando-se por notificado conforme a regra jurídica sobre notificação do devedor em caso de cessão de crédito. § 164. Invocação pelo causador da nulidade 1. Decretação por invocação do causador. No concernente às nulidades, a regra jurídica diz que as nulidades podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Só se exige o “interesse”. Em se tratando de nulidade por infração de regra jurídica de forma (processual), o juiz não há de considerar inválido o ato se a nulidade for arguida por quem lhe tiver dado causa; mas a regra jurídica só se refere às nulidades processuaís, que sejam por infração de regra jurídica sobre forma. Nenhuma incidência tem no que é de direito material a questão, isto é, quanto à res in fudicium deducta. Nos textos do direito privado não há regra jurídica semelhante, nem igual. Resta saber se há princípio geral, de que se deduza. Alvaro Valasco (Decisionum Consultationum ac rerum iudicatarum, 1, 148) escreveu: “lis autem, quae prohibente lege fiunt, tanquam nuílis, ... ipsemet, qui fecit, potest contravenire.” Quanto aos atos jurídicos que se praticaram contra leis proibitivas, aquele mesmo, que os praticou, pode arguir a nulidade. Na decisão 222, nº

4, de Antônio da Gama, e em Aires Pinhel (Ad const. Cod. de bonis maternis, E. 1, § 3, nº 73) diz-se o mesmo. Miguel de Reinoso (Observa tiones Practicae, 532) desceu ao caso das alienações proibidas: “... in omnibus alienationibus rerum, quae alienari prohibita sunt generaliter, verum esse posse admitti ad alienationem revocandam ipsum alienatorem qui alienavit, seu alienationi consensit.” Pretendeu-se que se teriam de distinguir as nulidades a favor do público, as nulidades a favor do causador do

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ato e as nulidades a favor de outrem. A distinção existe (e. g., Álvaro Valasco, Decisionum Consultationum ac rerum iudicatarurn, 150: Manuel Álvares Pêgas, Resolutiones Forenses, III, 359); porém os dois juristas portugueses que Manuel Gonçalves da Silva (Commentaria, IV, 301) citou, para tirar da distinção que o causador do nulo não pode invocar a nulidade se a regra jurídica invalidante não foi a seu favor, não dizem isso: Álvaro Valasco escreveu que, se o próprio causador do nulo pode invocá-lo, com mais forte razão aquele em proveito de quem se edictou a regra jurídica; Manuel Álvares Pêgas apenas excluiu a arguibilidade pelo que não tem interesse. 2.Interesse na decretação. O poder ser arguida pelo próprio causador do nulo a nulidade não dispensa que se lhe inquira do interesse. Se não há interesse na decretação, inclusive o de evitar multa ou outras penas, excluído está o causador do nulo; porém como outrem qualquer estaria. § 165. Eficácia da sentença que decreta a nulidade 1.Força e eficácia. E romanismo escusado identificarem-se inexistência e nulidade. O inexistente declara-se tal; o nulo, desconstitui-se, porque, por mais profunda que seja a deficiência, o suporte fático entrou no mundo jurídico. Por isso mesmo que foi profunda a deficiência, facilita-se a decretação; mas é preciso que se decrete, ainda que incidenter e ex oflicio. 2.Desconstituição. Se é declarada a incapacidade, mesmo que seja em incidente de desconstituição do ato jurídico, tudo se passou sem qualquer efeito, em virtude da carga de declaratividade; não se precisa de qualquer alusão à eficácia ex tunc da sentença de decretação da nulidade, ainda que incidenter. Se nada foi prestado, em virtude do ato juridico nulo, nenhum problema surge, porque efeitos não houve e, portanto, efeitos não é preciso que desapareçam. Se o absolutamente incapaz prestou, ou se outro figurante prestou ao absolutamente incapaz, tem o figurante de restituir ao incapaz o que dele recebeu, ou o equivalente, e tem ação para haver do incapaz o que reverteu em proveito desse. No sistema jurídico brasileiro, há principio geral, comum às nulidades e às anulabilidades: ninguém pode reclamar o que, por obrigação inválida, pagou a um incapaz, se não prova que reverteu em proveito dele a importância paga. Cumpre que se não confunda tal regra jurídica com a regra jurídica em que se cogita de algum ato jurídico válido da pessoa capaz que depois se tornou incapaz, ou ato jurídico válido do incapaz, representado, ou assistido, de modo que só o pagamento é feito, depois, ao incapaz, cientemente; ao passo que, naquela, se supõe a nulidade ou anulabilidade do ato jurídico, em virtude do qual se prestou algo. Na primeira espécie, não houve pagamento, porque nada era devido, ou, com a eficácia da sentença anulatória, nada se deveu. Tratando-se de coisa certa, nada obsta a que se cumule com a ação de nulidade a de reivindicação, enquanto, em relação às ações de anulação, a ação de reivindicação é efeito, de regra mediato, da sentença desconstitutiva. Se só em parte reverteu em proveito do incapaz o que se prestou em virtude de ato jurídico nulo, ou de ato jurídico anulável, a restituição é somente quanto a essa parte. Se, durante a eficácia do ato jurídico anulável, o devedor prestou, a sentença posterior, que anula o ato jurídico, induz que incidiu a regra jurídica sobre pagamento a incapaz, e não a regra juridica sobre o ato jurídico do capaz que se tornou incapaz. § 166. Construção da anulabilidade 1. Situação do anulável entre o nulo e o válido. A anulabilidade tem de ser construída, porque, entre o nulo e o válido, a sua natureza é como esfumada, algo de zona cinzenta entre o negro do nulo e o branco da validade. Trata-se de validade condicionada, pois que produz efeitos? Assim, Walter Jellinek (Der fehlerhaJte Staatsakt und seine Wirkung, 46). Mas, como considerar-se válido o negócio jurídico anulável, somente ou prin-cipalmente porque produz efeitos, se teria de conceber a sentença anulatória como à semelhança da sentença de rescisão, ou de resolução? Seria apagarem-se diferenças que foram estabelecidas, solidamente, pela história e pela dogmática. Tampouco mereceria acolher-se a explicação de Carlo Esposito (La Validità delie leggi, 279), fundada na distinção entre ato e atividade, que excluiria a contradição da atividade com o ordenamento

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jurídico, em se tratando de anulabilidade. Ora, na rescindibilidade, que é menos, tal contradição pode ser discutida — não na anulabilidade. A anulabilidade é invalidade menos grave: e o nulo eventua!, em vez do nulo inicial. Ora, aí, a eventualidade marca. 2. Não há invalidade superveniente. Quanto à invalídade sobrevinda, a lógica obriga a tê-la como contradictio in terminis. O testamento, pela feitura de outro, não se invalida; revoga-se. Ao nascimento de herdeiro necessário, se o testador era sem qualquer um, ou se ignorava tê-lo, o testamento “rompe-se”. Não há nulidade, nem anulabilidade. “Repouse-se”, também, se o testador ignora existirem outros herdeiros necessários. A venda e compra condicional, com o perecímento do objeto, não se torna nula: extingue-se, nos casos de impossibilitação de fazer ou de não fazer — não fica nula; no caso de culpa, ou de já estar em mora, o devedor, responde ele. Os exemplos acima são os que Ferdinand Regelsberger (Pandekten, 1, 636) entendia serem de invalidade superveniente, mas a dogmática jurídica repele tal unificação, um tanto desabusada, dos modos de extinção. A nulidade ou a anulabilidade somente pode sobrevir, se sobrevém lei, que a estatua: o suporte fático não era deficiente, e faz-se deficiente, pela retroatividade de tal lei. Mas, aí, já se está no campo do direito intertemporal, onde a lex nova, se pode, no sistema jurídico, retroagir, pode adotar sanatória do nulo; e ainda que se lhe vede retroagir, alargando, limitando ou extinguindo a sanatória do anulável. 3. conseqüências da anulação. Anulação lança no não-ser o ato jurídico, que era, embora anulável. Tal o efeito constitutivo negativo da sentença; e somente, no direito brasileiro, da sentença. De regra, as nulidades podem ser decretadas de oficio, quando o juiz as encontra. As anulabilidades, não. A eficácia constitutiva negativa da anulação é ex tunc. Tudo que a sentença pode alcançar é expelido do mundo jurídico. Se ato jurídico de disposição foi anulado, a disposição tem-se como se não houvesse acontecido: o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção, que, em virtude do ato jurídico anulável, passara ao patrimônio do disponente, tem-se como se nunca tivesse saído dele; no patrimônio, em que o pusera o ato jurídico dispositivo, tudo se passa como se nele nunca estivesse estado. Não se trata de ficção. A sentença, em plano de realidade pura, desconstituiu o ato jurídico, desde todo o começo (ex tunc). Se a coisa não estava, ao ser alienada, no patrimônio de quem a alienou, porém no de outra pessoa, é ao patrimônio dessa que volta. Quem obtém a anulação do ato jurídico de disposição pode, por isso, reivindicar. Todavia, tudo que se passou, juridicamente, durante o tempo entre a disposição e a anulação, é respeitado pela sentença — razão por que a reivindicação não pode ir buscar o que se adquiriu por modo originário, ou pelo registro no registro de imóveis, que pode ser aquisição originária. O que usucapiu pode objetar a usucapião, ainda que não tenha, no momento, a sentença, porque essa é apenas declarativa. Anulada a dação em soluto, o credor é titular do crédito, ex tunc, com as garantias que tinha, sem que a ação de anulação se haja de dirigir contra o fiador, o dono dos créditos caucionados, ou o proprietário da coisa penhorada, ou hipotecada, ou dada em anticrese (o litisconsórcio é apenas facultativo): se creram na eficácia de dação em soluto, creram em eficácia de ato jurídico anulável, que agora se anula. Se a sentença anulou transferência de quota de sociedade de responsabilidade limitada, o adquirente passa a nunca ter sido sócio, e o alienante, a tê-lo sido sempre. Se anula assunção de dívida, o credor pode demandar o devedor que se tivera por liberado. Anulado o crédito hipotecário, ou anticrético, a sentença tem eficácia mandamental para se cancelar o registro. Anulada a cessão de crédito, pode o credor exercer o crédito cedido; e o debitor cessus pode invocar a sentença, contra o cessionário que lhe exija a prestação. Se o devedor já pagou, o pagamento fez-se a não-credor; se ignorava a anulabilidade da cessão, o devedor notificado está liberado. A sentença tem eficácia de reestabelecimento da situação anterior; a fortiori, a ação de restituição, se a sentença não trouxe carga suficiente para aquela eficácia. De regra, a eficácia real esgota a restituição. Se não na esgota, têm-se de pedir perdas e danos, como sucedâneo do efeito real. Os direitos que terceiros adquiriram originariamente não são atingidos pela eficácia real da sentença anulatória, nem pelas sentenças na ação de restituição. O adquirente do imóvel, se o registro estava em nome do alienante, e adquirira de boa-fé, é inatingível pela eficácia; se de má-fé, a restituição atinge-o, segundo os princípios que regem a aquisição pelo registro; sem que, a respeito do segundo ou posterior adquirente, se possa indagar de boa ou de má-fé. Os direitos que o adquirente adquirira, sem ser pelo decorrer de tempo ou por elementos só objetivos, extinguem-se. É de boa-fé o terceiro que ignora anulabilidade; de má-fé, o que a conhecia ou a devia

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conhecer. O terceiro que só veio a conhecê-la pela propositura da ação pode ser que esteja incólume à eficácia sentencial no tocante a direitos que foram adquiridos antes. Se a restituição não se pode dar, indeniza-se: o figurante, pelo equivalente; o terceiro, pelo enriquecimento injustificado. 4. Efeitos pessoais e conseqüências da anulação. Se do ato jurídico, que se anula, se haviam irradiado deveres, obrigações, direitos e pretensões de ordem pessoal, é como se nunca tivessem existido. Se, em adimplemento, se deu algum bem, o ato jurídico abstrato de transmissão não é contagiável pela anulabilidade do negócio jurídico causal: seria preciso para a anulação dele que, a respeito dele, tivesse ocorrido o mesmo defeito de vontade. A responsabilidade pode ser fundada no enriquecimento injustificado. Se foi terceiro que solveu a divida, a anulação não atinge esse ato jurídico de adimplemento (Erich Jung, Die Bereicherungsansprúche, 113). Observe-se que, tratando-se de pagamento, em sentido estrito e exato, não há pensar-se em anulabilidade: pagamento é ato-fato jurídico. 5. Direito de retenção e anulação. Os figurantes têm direito de retenção: a entrega há de ser contra entrega; é certo que as pretensões de restituição não se originam da mesma relação jurídica, mas nascem da anulação do mesmo ato jurídico, de que resultaram as relações jurídicas desfeitas. A data para se entender devida a restituição é a data do ato jurídico anulado (Konrad I-{ellwig, Lehrbuch, 1, 235. nota 21), e não a da anulação. O prazo de prescrição somente começa a correr da data do trânsito em julgado, porque, até então, se procedia à desconstituição do ato jurídico. 6. Anulação e direitos formativos. Nos atos jurídicos que irradiam direitos formativos, a sentença de anulação extingue tais direitos, ou o estado jurídico, que se estabelecera com o exercício do direito formativo. Se houve opção, retrovenda, ou escolha, ou ratificação, ou aprovação, a sentença de anulação desconstitui a opção, a retrovenda, a escolha, a ratificação, ou a aprovação, e restitui o direito formativo. Aliás, se, ao propor a ação de anulação, o autor manifestou a vontade, que seria a sua, se não tivesse ocorrido a causa invalidante, ou tal manifestação resulta do próprio pedido de anulação (quem pede anulação da aceitação recusa a oferta; quem escolheu entre duas coisas, a e b, se pede anulação da escolha de o, escolhe b; quem pede a anulação do exercicio do direito de recobrar a coisa, conforme cláusula negocial, desinteressa-se do seu direito formativo). Em todos esses casos, se havia prazo, a anulação implica a manifestação de vontade inversa. Dá-se o mesmo em caso de aceitação ou de repúdio de herança, ainda que esteja esgotado o prazo (Otto Wendt, Unterlassungen und Versãumnisse, 275). Se trata de direito formativo extintivo, a anulação restabelece a situação anterior; portanto: o que renunciara à herança, aceitou-a; o que exerceu o direito formativo resolutório, ou o direito de resolução que se estabelecera no contrato, volve à situação que tinha antes de o exercer; se anula a revogação do testamento, esse é que contêm as declarações de última vontade; se anula a denúncia, o contrato fica intacto. Durante a ação de anulação do ato jurídico, pode haver desistência, ou desistência e renúncia. A ratificação de ato jurídico anulável, contém, como efeito, extinção da ação, devendo-se tomar por termo e julgar-se, para outro efeito: o efeito da extinção da relação juridica processual. Nos casos em que é possível ratificação do ato jurídico anulável, pode o interessado interpelar a pessoa que teria de assistir o relativamente incapaz e não o assistiu, para que, no prazo, que for marcado, manifeste, ou não, o seu assentimento, entendendo-se que o silêncio significa ratificação. Cf. Código Civil alemão, § 108, alínea 2ª. § 167. Causas de anulabilidade 1. Defeitos, inclusive vícios. Têm-se como causas de anulação, defeitos, inclusive, pois, os vícios de vontade, considerados como elementos que, embora de menor importância que os elementos de cuja falta resulta nulidade, desfalcam o suporte fático e são suscetíveis de fundar a anulação. No direito brasileiro, além dos vícios, estão a incapacidade relativa do agente e as faltas de assentimento de outrem. Concebe-se a vontade do relativamente incapaz como parte de um dos cubos, que perfazem o suporte fático, e o assentimento do que

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assiste o incapaz como outra parte. A imagem permite que se pense nos cubos, de cuja falta resulta a anulabilidade, como cubos pequenos que, junto aos das vontades manifestadas, comporiam cubo igual aos dos outros elementos. A técnica legislativa tomou a incapacidade do absolutamente incapaz como falta de todo um elemento, o elemento volitivo, posto que manifestado: o espaço está lá, vazio, porém marcado, pois que elemento volítivo fático houve, se bem que de incapaz. O mesmo acontece em se tratando de ilicitude, ou de impossibilidade do objeto, ou de falta da forma, ou de infração de regra jurídica sobre solenidade, ou de outra, que lhe negue validade, ou quaisquer efeitos. É nulo o ato jurídico se praticado por pessoa absolutamente incapaz, ou quando for ilícito, ou impossível, o seu objeto, ou quando não revestir a forma exigida em lei, ou quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade, ou quando a lei explicitamente o declarar nulo ou lhe negar efeito. Ora, as causas de anulação não têm a mesma gravidade. Ou há vontade, que se não completou com outra, portanto há vontade, posto que necessite de outra; ou há vontade viciada (erro, dolo, coação, simulação, ou fraude contra credores). Nos casos de nulidade por ser absolutamente incapaz o agente, a vontade é de agente que juridicamente não pode querer: nos casos de incapacidade relativa há vontade de agente que pode, juridicamente, querer, porém que precisa de ter o assentimento de outrem. Nos demais casos de anulabilidade, houve vontade, houve agente que pôde, juridicamente, querer, mas a vontade mesma foi viciada, anulável o ato jurídico: por incapacidade relativa do agente, ou por vicio resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude, A menção não é exaustiva; porque há faltas de assentimento de outrem, anulantes (ou causadoras de nulidade), sem que se refiram à incapacidade do agente. 2.Mínimo de vontade. Todo negócio jurídico exige mínimo de vontade. Sem vontade, o negócio jurídico não é (= o suporte fático não penetra no mundo jurídico). Por isso, a questão do falso e da autenticidade é questão que se põe no plano da existência: é, ou não é; houve, ou não houve vontade. O negócio jurídico, para ser nulo, tem de ter no seu suporte fático cubo de vontade, posto que absolutamente incapaz o agente. A vontade que aparece no negócio jurídico anulável é vontade de quem pode querer; o que se lhe exige é que tenha havido assentimento de outrem, se o caso é um dos que cabem na regra jurídica sobre anulabilidade por incapacidade relativa, ou em regra jurídica especial, e que não tenha ocorrido erro, dolo, violência, simulação, ou fraude contra credores. 3. Atos jurídicos stricto sensu . Quanto aos atos jurídicos stricto sensu, também se exige, de regra, vontade que entre no mundo jurídico e não seja viciada. § 168. Ação de anulação 1. Decretação de nulidade e decretação de anulação. Enquanto a nulidade pode ser decretada incidentemente e de ofício, a anulação exige processo em que se articule a anulabilidade e se peça a anulação, com inteira defesa pela outra parte. Não quer isso dizer que o demandado não possa articular, contra o demandante, a anulabilidade do ato jurídico. Donde o problema de se saber em que ações se pode defender o demandado com a alegação do vício. Sempre que a ação se transforma em ordinária, ou sempre que se trata de embargos de terceiro, nada obsta a que o demandado, ou o terceiro embargante peça anulação (e. g., a mulher, por ter faltado o seu assentimento). Se o dolo, a coação e a simulação são, de si sós, crimes, nem por isso se há de inserir nas causas de nulidade o ato, para se considerar nulo, pois houve manifestação de vontade do que sofreu com o dolo, a coação, ou a simulação; e a sanção é a da anulabilidade (cf. P. Vogel, Der Begriji des gegen die guten Sitten verstossenden RechtsgeschàJts, 40). Se a ilicitude está no objeto, incide a regra jurídica sobre nulidade. O meio ilícito não faz sempre nulo o ato jurídico (e. g., bebedeira, aproveitamento de momento de euforia ou de entusiasmo por alguém a quem queira agradar ou perante quem deseje aparentar fortuna). Se o negócio jurídico é abstrato, nem o ilícito nem o dolo, a coação, ou a simulação pode vir à tona, salvo entre figurantes do negócio jurídico subjacente, simultâneo, ou sobrejacente (cf. E. Heise, Die Anwendung der §§134, 138 BGB., aul die abstrakten Rechtsgeschàfte, 62 s.; Th. Erlanger, Der Gesetzeswiderspruch der §§ 134, 138 BGB., mit § 817 BGB., 64 s.). Nas ações executivas de títulos extrajudiciais pode o réu alegar a incapacidade, ou a coação (4ª Câmara da Corte de Apelação de São Paulo, 9 de outubro de 1935, RT 107/513), ou o dolo, ou a simulação, causas de

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anulabilidade, porque o processo toma o rito ordinário. Idem, na ação cominatória. 2. Cessão de direitos e de pretensões. Na discussão sobre se o cedente continua com a ação de anulação após a cessão, ou se transfere ela ao cessionário, cedo se assentou que a ação lhe fica, pois que singular a sucessão (Martin Bruck, Die Bedeutung der Anfechtbarkeit for Drítte, 37; G. Planck, Kommentar, 1, 4ª ed., 378; Franz ,Jahn Wie gestaltet sich die Anfechtung eines gegenseitigen Vertraqes ...?, 37). Ao cessionário não se transfere, nem lhe nasce ação de anulação. Quem somente sucede em direitos e pretensões, e não em deveres e obrigações, não é legitimado à ação de anulação. Se sucede no dever e obrigação, é preciso indagar-se também sucedeu na ação de anulação, o que é questão de fato. Pode dar-se que o cedente, que é sempre livre de renunciar à ação, a tenha, em vez de conservá-la, ou de a ela renunciar, transmitindo-a ao cessionário. Por isso mesmo o cessionário, que está em dúvida sobre essa transferência, tem a seu alcance a ação declarativa em que se lhe diga se tem a ação, ou se não na tem (Franz Jahn, Wie gestaltet sich die Anfechtung eines gegenseitigen vertrages ...?, 39). Se vai logo com a ação constitutiva negativa, essa questão é questão prévia, que o juiz decide antes de se pronunciar sobre os pressupostos da anulação. § 169. Legitimação ativa nas ações de anulação 1. Sujeitos ativos da ação de anulação. Para todos os casos de decretabilidade de anulação, a legitimação ativa cabe àquele ou àqueles a favor de quem se estabeleceu a regra jurídica sobre ilícito anulante. Tratando-se de incapacidade relativa, o próprio incapaz ou a pessoa que ao ato jurídico deveria ter assistido. Se o relativamente incapaz o é por idade e ocultou, maliciosamente, “dolosamente”, a idade, inquirido pelo outro figurante, ou se espontaneamente se declarou maior, não tem ação de anulação. Tratando-se de erro, dolo, ou coação, legitimado ativo é a vitima do erro, do dolo, ou da coação. Se houve simulação, a ação de simulação absoluta, que não é a de anulação, nem a de nulidade, mas declarativa negativa, compete a qualquer dos figurantes e a terceiro interessado. A ação de simulação relativa prejudicante é de anulação e toca a quem foi lesado pela simulação, ou pode por ela ser lesado, ou aos órgãos e representantes do poder público. A ação de anulação por fraude contra credores só é proponível pelo credor a que a fraude ofende. A ação de anulação do ato jurídico por falta de assentimento de outrem é de exclusiva legitimação do que deveria assentir. Se A cede a C o crédito contra B, A continua com a ação contra B se há anulabilidade, com invocação da regra jurídica da anulabilidade se houve transmissão por instrumento ou intermédio de outrem. A cessão do crédito não transfere as ações de anulação. Poder-se-ia discutir o direito próprio do cessionário; mas ele não no tem. Se houve cessão de crédito e assunção de divida, nem por isso se entendem transferidas as ações de anulação. Se há sentença anulatória, a restituição é do que prestou ao que pediu a anulação, de modo que o cessionário terá de ir contra o cedente, que recebeu, por lhe não ter sido entregue o que se restituiu ao cedente, nem lhe caber ação de enriquecimento contra o autor da ação, devedor (cf. Georg Pontheim, Das Anfechtungsrecht, 72). Aliás, cessionário tem ação declarativa contra o cedente, tratando-se de contrato bilateral (Franz Jahn, Wie gestaltet sich die Anfechtung eines gegenseitigen Vertrages ..? 39). Se a manifestação de vontade do representante tem vício, tem o representante a ação de anulação (Bernhard Josef Schippan, Wirkungen and Wesen der Anfechtung, 34). 2. Conteúdo da regra jurídica sobre a alegabilidade. Só os interessados podem alegar as anulabilidades e a alegação só aproveita a quem a alegar, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade. O relativamente incapaz é sempre interessado, respeitada a regra jurídica que pré-exclui a alegabilidade se houve ocultação dolosa da incapacidade relativa, ou se o incapaz, no ato de se vincular, se declarou capaz. O assentimento do marido aos atos jurídicos da mulher, ou da mulher aos atos jurídicos do marido, quando exigido por lei, não é requisito resultante de incapacidade, razão por que, quanto aos atos jurídicos do marido, só têm ação a mulher ou seus herdeiros, e, quanto aos atos jurídicos da mulher, o marido ou seus herdeiros.

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3. Exceções á regra jurídica sobre alegabilidade. (a) Do ato jurídico stricto sensa, concernente à fixação do preço, por terceiro, ou de outro ato jurídico, que consista em determinação da prestação por terceiro, pode ser pedida a anulação pelos figurantes ou pelo terceiro. Tal determinação tem relevãncia para os que tomaram parte no negócio jurídico, ou para o único figurante (e. g., promessa de recompensa com determinação do prêmio deixada a terceiro). A espécie não cria exceção à regra juridica sobre a alegabilidade: o ato jurídico não é do figurante, e por ele pode ser pedida a anulação, ainda que também o possa quem o praticou. A manifestação de conhecimento do terceiro é ir-revogável. Tal ato jurídico, que contém manifestação receptícia (G. Planck, Kornmentar, II, 1, 351; Otto Warneyer, Kommentar, 1, 559; contra, Paul Oertmann, Recht der Schulduerhóltnisse, 177, e l-{einrich Dernburg, Das Búrgerhche Recht, 11, 1, 226, nota 8), quando tenha de ser por equidade, pode ser anulado por ineqoidoso. A opinião de G. Planck (II, 1, 352) sobre ser irrelevante a iniquidade não-ressaltante e poder-se declarar, judicialmente, a ressaltante, não quadraria bem ao sistema brasileiro, porque ou o fundamento da anulação é o dolo do terceiro, ou é o erro do terceiro. O argumento de que a regra jurídica sobre erro de terceiro só se refere à transmissão errônea da vontade por instrumento, ou por interposta pessoa, e o terceiro, nas espécies de que se trata, não transmite vontade do figurante, é de pôr-se de lado, porque tal regra jurídica é o fundamento da anulação do ato jurídico do terceiro, em tais espécies: nem se está a pensar em anulabilidade do ato jurídico do figurante, ou dos figurantes, e sim em anulabilidade do ato jurídico do terceiro. A anulação. que se pede, é de ato jurídico do terceiro, e não do ato jurídico em que se deixou ao terceiro determinar a prestação. Trânsita em julgado a sentença que anule o ato jurídico do terceiro, tem ele de prestar nova declaração de Vontade (Paul Oertmann, Recht der Schulduerhâltnisse, 178). Também aqui não tem razão G. Planck (II, 1, 352), nem Heinrich Dernburg (II, 1, 226), para quem incidiria a regra jurídica de ineficácia do contrato. Se a determinação da prestação foi deixada a juízo arbitral, os recursos e ataques são os que o direito sobre juízo arbitral estabelece (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, arts. 30, 1 e li, e 33, §§ 1ª e 39). (b) Exceção à regra jurídica sobre alegabilidade tem-se em matéria de disposições de última vontade, ou, em geral, declarações de vontade para depois da morte (e. g., designação, em testamento, do diretor da empresa). Legitimados ativos são os que foram beneficiados pelo negócio jurídico causa mortis em que há a disposição, ou os que seriam beneficiados com a anulação. Não são legitimados, por sucessão ao disponente falecido, mas sim por direito próprio. As ações de anulação, que têm os beneficiados pelo testamento, ou os que seriam beneficiados com a anulação, competem a cada um dos legitimados, de per si; mas a eficácia da sentença, se a ação apenas foi proposta por um, ou alguns dos legitimados, aproveita a todos. A opinião contrária, que expendeu Andreas von Tuhr, (AUgemeiner TeU, II, 304), não somente resulta de reminiscência inadmissível da querela inofliciosi testamen ti, como também desatende ao fato de poder ser a anulação do interesse dos outros legitimados. herdeiros necessários, legítimos, testamentários, legatários, ou outros beneficiados. A eficácia da sentença desconstitui a disposição de última vontade, de modo que, após a anulação, nada fica: aí está a razão de aproveitar a todos os que poderiam propor a mesma ação. Não se pode deslocar para o plano da eficácia, fugindo-se, de todo, ao plano da existência do ato jurídico, a questão dos efeitos sentenciais em matéria de disposições de última vontade, ou de outras declarações para depois da morte. Quando se diz que a anulação pode não interessar ao herdeiro legítimo, por ter de ocorrer o acrescimento, diz-se verdade; mas não é argumento para se adotar a anulabilidade somente a respeito de quem propõe ação de anulação. O herdeiro legitimo pode pedir que se anule a disposição a favor de herdeiro testamentário, ainda que a outro herdeiro testamentário passem os bens, mesmo porque não se exige, para a propositura, que o interesseja apenas pecuniário e imediato. Nos negócios jurídicos entre vivos, se há duas ou mais pessoas que de um lado figuram, é óbvio que cada uma ataque, independentemente, o negócio jurídico, se o vício somente eiva a sua manifestação de vontade (Konrad Hellwig, Lehrbuch, III, 111 s., acabou por assim pensar, soltando a opinião anterior, ex-pendida em Anspruch und Klagrecht, 189). Mas, aí, a eficácia da sentença somente concerne á parte do negócio jurídico, referente ao autor da ação, ainda assim se tal parcialização do negócio jurídico é possível. Não se pense em anulação subjetivamente relativa, e sim em incidência das regras jurídicas sobre incontagiação da invalidade parcial. 4.Direito hereditário. A anulabilidade apanha a declaração de deserdação (cf. Quirin Lieven, Das nichtige iind das anfechtbare Rechtsgeschãft, 2), bem como a declaração formal da manifestação de vontade, pela qual o decujo pré-excluiu a incidência das regras jurídicas sobre exclusão da herança. A ação de anulação pode adquirir-se por sucessão hereditária. Qualquer co-herdeiro pode exercer a ação de anulação, com efeitos para todos, se favorável a sentença.

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5. Cessão de direitos e assunção de dívida. Os cessionários e os que assumem divida alheia não têm ação de anulação do ato jurídico, de que proveio o crédito cedido ou a divida assumida. Entendeu Emil Seckel (Die Gestaltungsrechte, Fest gabe Richard Koch, 223) que tem ação de anulação o que assume a dívida alheia, se a obrigação assumida é o único efeito, ou o efeito restante da relação jurídica de crédito (e. g., se assumira dívida oriunda de promessa de doação anulável). Porém sem razão: a ação de anulação continua com o titular da relação jurídica; o que assume a dívida não pode pretender a desconstituição, se aquele em favor de quem se estabeleceu a tutela anulatória não exerceu o seu direito de ir contra o negócio jurídico, em que foi figurante. O mesmo autor admitiu que o sucessor a título singular do proprietário, que anulavelmente gravara a coisa, proponha anulação, pois que, uma vez que se fez proprietário, tem interesse em que não exista o gravame; porém isso traria complicações invencíveis, porquanto a anulação do negócio jurídico abstrato iria alcançar o negócio jurídico causal entre o antigo proprietário e os terceiros que com ele trataram, tanto mais quanto quem adquire coisa gravada de regra compra por menos. Quanto à cessão da ação de anulação, pretendeu-se que não seja possível cedê-la, mas, apenas, passar-se procuração em causa própria (Andreas von Tuhr, Aligemeiner Tel, II, 306 s., e Die unwiderrufliche Vollmocht, 65). O erro, que não tem sido visto, está em que não se dá atenção a que existe o direito a anulação, posto que não exista a relação jurídica, que o ato jurídico anulável extinguiu. O ato jurídico anulável existe e tem efeitos, de modo que não há outro direito, no patrimônio do cedente, que o de ir contra o ato jurídico anulável, de cuja anulação, sim, vai resultar, com eficácia ex tunc da sentença, a restituição do que foi objeto de disposição. O obstáculo, que Andreas von Tuhr apontou, não existe: a relação jurídica, a que se refere a manifestação de vontade anulável, não existe mais; nºo pode ser dela inseparável a relação jurídica que deriva da anulabilidade. Vai existir, com a desconstituição do ato jurídico. § 170. Legitimação passiva das ações de anulação por defeito de vontade1. Sujeito passivo da pretensão anulatória. Nos negócios jurídicos bilaterais, sujeito passivo da ação de anulação é o outro figurante, ainda que tenha havido representação legal ou voluntária desse. Alguns sistemas jurídicos admitem que se dirija a ação contra o terceiro, se conhecia o dolo e recolheu da manifestação de vontade, imediatamente, algum proveito. No direito brasileiro, não há tal regra jurídica (aliter, Código Civil alemão, § 123, alínea 2ª, 2ª parte). Se houve dolo de terceiro e um dos figurantes o soube, a anulação vai contra o figurante, devendo ser citado o terceiro, se querem efeitos de coisa julgada contra ele. Assim é que se há de entender a regra jurídica sobre a anulabilidade por dolo de terceiro, se disso soube um dos figurantes. O terceiro, esse, responde pelo ato ilícito absoluto, ou pelo interesse negativo, ou pela culpa contratual, se estava em relação jurídica com o autor da ação de anulação e em tal caráter obrou com dolo. Nada obsta a que se cumule à ação de anulação, dirigida contra o outro figurante, a ação de indenização. Falecido o outro figurante, contra o qual havia de se dirigir a ação de anulação, sujeito passivo é o herdeiro. Ainda depois de ceder os direitos que adquiriu por efeito do negócio jurídico bilateral, o outro figurante ou seu herdeiro continua sujeito passivo da ação de anulação: a ação de anulação desconstituí o negócio juridico bilateral, e não só os direitos (efeitos) que tenham sido cedidos; nem se há de exigir a quem cede dar contas ao cessionário de tudo que se passou com ele, ao concluir o negócio jurídico bilateral. O que se disse sobre a cessão também se entende com os outros atos de disposição. Se houve, do outro lado, dois ou mais figurantes, se não há pluralidade de negócios juridicos bilaterais, independentes entre si, a melhor solução é a que exige dirigir-se a ação contra todos os figurantes, salvo se ação de anulação já não teria razão de ser contra algum deles. Se ação de anulação (e. g., por dolo) só existe em relação a um dos figurantes, sujeito passivo é o figurante que deu ensejo à anulabilidade; para que a sentença tenha eficácia contra os outros, é preciso que sejam citados ou outros figurantes: obter se cabe aplicar-se a regra jurídica sobre incontagiação. A sentença contra um não tem efeitos contra os outros; nem se pode falar de tal eficácia, separável a parte do contrato, por incidência da regra jurídica sobre incontagiação. Se a sentença anula todo o negócio jurídico bilateral, e não foram citados todos os que sofreriam a eficácia constitutiva negativa da sentença, o que acontece é que, quanto a eles, não passou em julgado a sentença. Se intimados da sentença, nada argúem, a sentença passa em julgado contra eles, de modo que a eficácia sentencial é completa, se bem que possa nascer a esses figurantes ação rescisória contra sentença. Tem-se procurado pôr no plano exclusivo do direito material a questão (respeito à regra jurídica sobre incontagiação, que dela decidiria, G. Planck, Kommentar, 1, 381, Paul Oertmann, Recht der Schu)dverhàltnisse, 448, CarI Crome, System, 1, 349; contra, Eduard Hólder, Kommentcr zum Allgemeinen Tel, 319, Rudolf Leonhard, Der Aligemeine TeU, 449,

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Konrad Hellwig, Anspruch und Klagrecht, 189). Ora, a questão, se escapa da incidência da regra jurídica sobre incontagiação, é processual: não pode haver coisa julgada contra quem havia de ser citado para a ação; se houve falta de citação, a sentença não tem eficácia contra o não citado, mas, se vem a ser intimada a esse, ou ocorre recurso, ou preclusão, adquire-a. Se recurso foi interposto e não foi provido, tollitur quaestio: com a intimação abriu-se a porta para eficácia contra o figurante não citado, que pode estar diante de decisão infringente de direito e, pois, rescindível. Se recurso não foi interposto, houve a preclusão, e o figurante mesmo, não citado, permitiu a eficácia recente da sentença, sem que isso, no direito brasileiro, lhe tire o direito à propositura da ação rescisória. 2. Negócios jurídicos unilaterais. Tratando-se de manifestação unilateral receptícia, titular passivo da ação de anulação é a pessoa que a tem de receber. Se a manifestação de vontade se dirigiu a duas ou mais pessoas (e. g., denúncia da locação a locatórias em comum), a ação há de ser contra todas elas, sob pena de não ter eficácia contra as não citadas a sentença que se proferir. Também aqui o problema passa a ser de direito processual, porque, feita a intimação da sentença ao que não foi citado, tem o intimado de recorrer, se não quer que passe em julgado. Se a manifestação de vontade podia ser dirigida a pessoa de direito privado ou a pessoa de direito público, à escolha do manifestante, a ação de anulação dirige-se contra o sujeito de direito privado, ainda quando a lei entenda que a manifestação de vontade teria de chegar através da autoridade, salvo se o interesse é de pessoa de direito público. Estando em causa negócio jurídico unilateral não-recepticio, têm-se de distinguir as espécies em que alguém algo adquiriu. imediatamente, como efeito do negócio jurídico unilateral nãoreceptício, e as espécies em que não houve aquisição direta. Nesse ponto, convém que se precise o que é aquisição imediata e o que é aquisição mediata. Aquisição imediata ou proveito imediato é a primeira aquisição ou primeiro proveito, em con-traposição a segunda aquisição, ou segundo proveito, ou posterior aquisição ou proveito (Paul Oertmann, Unmittelbar erlangter rechtlicher Vorteil, Seufjerts Blàtter, 71, 285; Wilhelm Kluckhohn, Die Person des Anfechtungsgegners. Archiu for die civilistische Prax is, 113, 37). Portanto não somente a aquisição que deriva de novo negócio jurídico, mas também qualquer aquisição que vem após, sem ter havido qualquer negócio jurídico. Não se exige qualquer relação de sucessão, basta que algum fato posterior ocorra que, suposto ter havido o ato que se pretende anulável, determine a aquisição. Em termos mais rigorosamente cientificos: basta que no suporte fático da regra jurídica, de cuja incidência resulta o fato de aquisição, ou de criação de proveito, esteja, como um dos elementos, o ato jurídico anulável. Por exemplo, tratando-se de derrelicção, o ocupante; tratando-se da renúncia da propriedade imóvel, o que tem titulo em cuja história se suponha ter havido a renúncia; tratando-se de promessa de recompensa, o que prestou o serviço ou praticou o ato, positivo ou negativo, a ser recompensado (antes disso, a promessa de recompensa é revogável, de modo que não precisaria ser anulada). A doutrina é assente (G. Planck; Kornmentar, 1, 380; Hugo Rehbein, Das Búrgerliche Gesetzbuch, 1, 199 5.; Johannes Biermann, Búrgerliches Recht, 1, 191; sem razão, por negar a anulabilidade da derrelicção, Eduard Hôlder, Kommentar zum Allgerneinen Teu, 318; Justus Wilhelm Hedemann, “Herrenlose” Briefe, Das Recht, 11, 946). Quanto aos títulos ao portador, é legitimado passivo o portador do título no momento da propositura da ação de anulação, e não o primeiro adquirente do titulo (Arnold Langen, Die Kreationstheorie, 128); que, aliás, se de boa-fé, tem por si a regra jurídica que limita a defesa à alegação de invalidade ou de direito pessoal ao emissor ou subscritor contra o portador. A propositura da ação e a sentença não têm efeitos contra os portadores posteriores (sem razão, Arnold Langen, Die Kreationstheorie, 130); daí a conveniência de se fazerem citações por edital, ainda que seja citado na própria pessoa o portador do título ao tempo da propositura da ação de anulação. Para citação edital não se precisa. no direito brasileiro, que alguém haja adquirido algum direito, ou obtido algum proveito. Pode ser feita se a coisa derrelicta ainda não foi ocupada, ou se o imóvel renunciado não é objeto de algum direito ou proveito que se baseie no fato de ter havido renúncia, ou se o título ao portador ainda não foi adquirido por alguém. O titular da ação pode ignorar toda a posteridade de atos após a criação do titulo, ou da prática do ato jurídico, tanto mais quanto é de interesse público que se faça o mais prestamente possível a citação edital, para segurança do tráfico jurídico. Discute-se no caso da ocupação a derrelicção pode ser anulada por ato voluntário aformal: L. Enneccerus (Lehrbuch, 1, 520, nota 17) afirma-o; nega-o Andreas von Tuhr (Der Allgemeine Tel, 1, 311, nota 89); mas a questão está em que a derrelicção é irrevogável, mesmo se ninguém ocupou a coisa; o que

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se pode dar é que derrelinqtiente venha a ocupar, ele mesmo, a coisa que derrelinqúiu. Ê preciso, o que não fez L. Enneccerus, prestar-se atenção à definitividade da derrelicção. Cumpre ainda observar-se que a anulação alcança a manifestação de vontade, contida na derrelicção, porém não o abandono da posse; por conseguinte, não se considera perdida ou extraviada a coisa. No direito brasileiro, a ação de anulação do reconhecimento da paternidade, ou da maternidade, tem de dirigir-se ao reconhecido e à mãe, ou ao pai do reconhecido, respectivamente, se esse o reconheceu. § 171. Extinção da anulabilidade 1. Anulabilidade extingue-se; nulidade, não. A nulidade não se extingue; o que é nulo não passa a ser válido. Para que pudesse tornar-se válido o que foi, por definição, nulo para sempre, seria preciso que lei nova, permitindo-o o sistema jurídico, tornasse válido, sob a sua vigência, o que era nulo e, pois, insanavelmente inválido sob a vigência da outra lei. A anulabilidade extingue-se: a) pela atuação do tempo, sem que se exer-cessem a pretensão e a ação de anulação; b) ou pela ratificação. A prescrição tem de ser tratada à parte, porque prescrição não é extinção: é encobrimento da eficácia, pelo exercício da exceção. 2. Relativamente incapazes e invalidade. Se o relativamente incapaz celebra negócio jurídico, sem que assinta o seu pai, mãe, titular do pátrio poder, tutor, ou curador, que devia assistir, há anulabilidade; e, enquanto não se escoa o prazo de prescrição, pois que, se escoa, não mais pode ser alegada, pode o pai, ou mãe, tutor, ou curador, pedir que se decrete a anulação do negócio jurídico. Para que cesse a anulabilidade, é preciso que o pai, mãe, tutor ou curador assinta posteriormente, isto é, renuncie à ação de anulação; ou que o incapaz, tornando-se capaz, ratifique. Essa ratificação é mais estreita (no sentido geométrico) do que a ratificação pelo dono de negócios: o gestor de negócios atuou por outrem, o dono do negócio, sem qualquer manifestação de vontade desse — a ratificação enche todo esse vazio; o negócio jurídico, em que devem figurar (aliás, con-figurar) o relativamente incapaz e o pai, mãe, seu tutor, ou curador, é ratificável se, vindo a tornar-se capaz o relativamente incapaz, esse o ratifica. No primeiro caso, aquele que devia perfazer a unidade de querer, o 1 de vontade, a perfaz (assentimento posterior); no segundo, o que não poderia, antes, ter dado toda a vontade, 1, e agora poderia, junta ao que deu o que faltou. Ai está diferença conceptual entre nulo e anulável. Não há sanabilidade possível ao nulo. Se não se adota o termo nulidade, como abrangente da nulidade e da anulabilidade (o que se deve evitar), nulo é o negócio jurídico atingido pela invalidade insanável, e anulável o que é atingido pela invalidade sanável: o défice desse é preenchivel; o do outro, não. Quando a lei disse que o ato anulável pode ser ratificado pelos figurantes, define-o, de certo modo. Mas a definição é apenas aproximada. 3. Assentimento a ato de outrem. Além da incapacidade relativa do agente, são causa de anulabilidade: a falta de assentimento da pessoa que devia assentir, por atingir o ato interesse do que há de prestar o assentimento (do marido ou da mulher): é o assentimento fracionário (a + b = 1); e o vicio de vontade (resultante de erro, dolo, coação, simulação, ou fraude): é o assentimento desfalcado 1 — x). Também aí é possível o assentimento posterior pelo que deveria ter assentido, e não assentira; e a ratificação pelo que, antes, só teria podido concluir validamente o negócio jurídico, com assentimento de outrem, pois que o ratifica, se já não é exigido esse assentimento: no primeiro caso, a vontade no negócio jurídico era a ( 1, e passa a ser a + b = 1; no segundo a (1, e passa a ser A = 1 = (a + b = 1), porque, já agora, não sendo subjetivamente complexo, poderia A prestar o assentimento 1 e, a fortiori, ratificar (= juntar b a a). § 172. Ratificação 1. Conceito. Ratus, em ratibabitio, está por firmus (L. 12, § 1, D., ratam rern haberi et de ratibabitione. 46, 8;

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Lothar Seuffert, Die Lebre von der Ratihabition, 6; Beckhaus, Uber die Ratibabition, 5; Griesinger, Zur Lebre von der Ratihabition, 6; Andreas Seip von Engelbrecht, Die Bestátiqung, 36 s.). 2.Sentidos. Há dois sentidos de ratificação; o estrito; e o lato, compreendendo a ratificação do ato jurídico anulável e a ratificação pelo dono do negócio (ratiabição, ratibabi tio). Na L. 25, C., de donationibus inter virum et uxorem, 5, 16, fala-se de ratihabitiones negotiorum, a respeito de doações entre cônjuges e de outras (e. q., de mútuo ao filho-família, L. 7, C., ad senatus consultum Macedonianum, 4, 28). Na L. 23, D., de negotiis gestis, 3, 5, fala-se de ratificação no sentido de ratiabição. Dai o sentido largo que passou à linguagem jurídica luso-brasileira e de outros países (cf. Lothar Seuffert, Die Lebre von der Ratihabition, 2; E. Sintenis, Das Praktiscbe gemeine Civilrecht, 1, 2ª ed., 159 s.), se bem que Lothar Seuffert haja frisado a diferença entre o sentido da ratificação (Bestàtigunq) e o da ratiabição (Genehmigung). O que há de comum é que, ali, se “completa” o que faltava à manifestação de vontade própria, e aqui se insere o que faltou de vontade de outrem (cf. Griesinger, Zur Lebre von der Ratihabition, 30). Se o ‘nuílus” permitiu a ratiabição foi porque lhe faltava, no mundo jurídico, toda a manifestação de vontade (plano da inexistência), o que o punha na mesma plana que a ratiabição em casos de gestão de negócios alheios. Em verdade, assim não era, no direito clássico (Paulo, L. 29, D., de diuersis regulis iuris antiqui, 50, 17). Os exemplos que 13. Windscheid (Lehrbuch, 1, § 83, nota 10) dá são posteriores. Na L.63, D., de ritu nuptiarum, 23, 2, Papiniano falou de casamento inexistente de Prefeito com mulher da província, e casamento de mulher menor com o tutor, não se aludindo a ratificação, mas Paulo (L. 65) permitiu fazerem-se eficazes, após renúncia do cargo, as núpcias do que, servindo na milícia, casou, contra mandata, com mulher da mesma província; mas sem retroeficácia: seriam “legítimos” os filhos nascidos depois da nova manifestação de vontade. Na L. 4, § 6, D., de officio proconsu lis et lega ti, 1, 16, Ulpiano tratou da nomeação de legado, antes de entrar na província o procônsul: mas aí, a ratificação é ásemelhança da que ocorre na gestão de negócios. Quanto aos textos posteriores, o da L. 25, C., de donationibus inter virum et uxorern, 5, 16, atribui retroeficácia ao testamento, excepcionalmente. Idem, quanto à L. 7, C., ad senatus consulturn Macedonianurn, 4, 28 (cf. Lothar Seuffert, Die Lebre von der Ratihabttion, 133; sem razão, quanto à sua teoria da retroeficácia, Beckhaus, Uber die Ratibabition, 11). Quanto à eficacização a respeito de alguém, que assinta, de modo nenhum se confunde com a ratiabição. A ratificação do ato jurídico anulável, essa, sim, é resultante da teoria da anulabilidade segundo o direito moderno, e do Jure suo uti nemo cogitur. A eficácia ratificativa parifica-se com a renúncia à ação de anulabilidade e, até certo ponto, mas também não de todo, praticamente, com a prescrição da ação (cf. doseph Unger, System, II, 165; Griesinger, Zur Lebre von der Ratihabition, 24 s., E. Marks, Die Bestâtigung nicbtiger und anfecbtbarer Recbtsgeschàfte, 40; Richard Wittkowsk, Die Bestátigung nichtiger und anfechtbarer RecbtsgescbóJte, 36). A ratificação tem aí a eficácia de extinguir a ação, o que não poderia ter em se tratando de nulidade, porque seria ir ao passado edificar no que não suporta edificação, fazer válido o nulo. Nem se poderia recompor com o elemento novo o suporte fático, como parecia possível a Beckhaus (tiber die Ratibabition, 11), nem dar àratificação tal eficácia integral de encher o défice do ato jurídico. (Sobre isso Richard Wíttikowsky, Die Bestàtigung nichtiger und anfechtbarer Recbtsgeschàfte 24, contra A. F. L. Gregory e C. E. A. Koeppen.) § 173. Natureza jurídica da ratificação 1. Ratificação, negócio jurídico. A ratificação é negócio jurídico unilateral, oriundo de manifestação de vontade não-receptícia (Karl Gareis, Aligemeiner Teu, 178), a despeito de crê-la receptícia a doutrina do direito comum, que a reduzia à renúncia àação de anulação e, então, em alguns doutrinadores se admitia a bilateralidade da renúncia. Hoje, tem-se a renúncia por unilateral e apenas se vê na ratificação coincidência com a renúncia, quanto à eficácia (CarI Crome, Spstem, 1, 356; Martin Scherer, Augemeiner Teu, 292; Eduard Hôlder, Kommentarzum AI/gerneinen Teu, 320; Alfred Steger. Die Anfechtbarkett, 72; Rudolf Schlottmann, Die Anfechtbarkeit, 78). Se a ratificação foi posta em negócio jurídico bilateral, ou comunicada a alguém, não importa, porque a sua eficácia, como ato jurídico unilateral, nãoreceptício, se produziu. Discute-se a ratificação pode ser posterior ao exercício da ação de anulação. Responde afirmativamente, com razão, Rudolf Schlottmann (Die Anfechtbarkeit, 78); negativamente, Alfred Steger (Die Anfechtbczrkeit, 73) e CarI Petersen (Die Bestàtigung, 100). O que não se pode dar é a ratificação após o trânsito em julgado da sentença constitutiva negativa; até isso ocorrer, é possível a ratificação, e. g., no dia anterior ao em que a sentença passaria em julgado. A ratificação pode ser após o prazo prescrícional, ainda que já trânsita em julgado a decisão que julgou prescrita a ação (aliter no direito alemão, devido a ser preclusivo o prazo, CarI Petersen, Die

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Bestàtigung, 100 sj. A ratificação é irrevogável, desde que entra no mundo jurídico. Levaria a erros dizer-se que é irrevogável desde que começa de produzir o efeito ratificativo (e. g., H. Junker, Die Genehmigung, 20). De ordinário, tal efeito é simultâneo à perfeição do ato; porém não é necessariamente assim. Tal momento do efeito também não se confunde com o momento do passado que o efeito atinge (ex tunc). Para ratificar, é preciso que, no momento, a pessoa, que vai ratificar, possa pedir a anulação, ou que a ação esteja apenas prescrita. E preciso que se conheça o ato jurídico anulável, que se ratifica (Rudolf Schlottmann, Die Anfechtbarkeit, 79; Richard Wittikowski, Bestàtigung, 61; Alfred Steger, Die Anfechtbarkeit, 72), se bem que não seja necessário estar convicto da anulabilidade o ratificante. O erro do ratificante sobre ser, ou não, anulável o ato jurídico é irrelevante (CarI Crome, Svstem, 1, 358). A inserção em negócio jurídico bilateral, ou a comunicação, de modo nenhum a atinge em sua não-recepticiedade, inclusive se é comunicada a terceiro. A sua eficácia é erga omnes (Ernst Eck, \/ortràge, 1, 128; cp. para o direito comum. Lothar Seuffert, Die Lebre von der Ratihabition, 138). Se a ação de anulabilidade é de duas ou mais pessoas, cada uma tem de ratificar; a que ratifica, sozinha, perde a ação, sem que as outras percam. Se há duas ou mais ações de anulabilidade, a ratificação só relativa a uma causa não se estende à outra, ou às outras causas. Se a anulabilidade não cessa com o ato ratificativo de um, é inoperante esse. 2. Ratificação em sentido estrito. A ratificação, referindo-se a ato jurídico anulável, é, portanto, a manifestação de vontade, não recepticia, que retira o defeito, ou o possível defeito do ato jurídico anulável. Não é a renúncia à ação de anulação, ou à pretensão à anulação, ou ao direito de pedir a anulação. E ato jurídico de que resulta a extinção do direito de pedir a anulação, da pretensão à anulação e da ação de anulação; não é a extinção por vontade, em ato renunciativo. A renúncia é deixação, quasempre manifestação receptícia de vontade; a ratificação do ato jurídico anulável não é receptícia. A eficácia da renúncia é ex nunc: a da ratificação do ato jurídico anulável, ex nunc. A ratificação dirige-se ao ato jurídico anulável, a cujo suporte fático deficiente se refere: a renúncia dirige-se á eficácia do ato jurídico, válido ou anulável, — a direitos, pretensões, ações ou exceções. Os juristas quasempre, no se repetirem uns aos outros, não procuraram caracterizar, a fundo, a diferença, o que não foi sem graves prejuízos para a ciência. Assim, quando Andreas von Tuhr (Der Aligerneine Tel, II, 319), definiu, como outros muitos, a ratificação do ato jurídico anulável (Bestàtigunq) como a renúncia (Verzicht) ao direito de impugnação (ou à ação de anulação), que punha em perigo os efeitos que o ato juridico já havia produzido, caiu no grave erro de definir fato do plano da existência e do plano da validade, em termos de fato do plano da eficácia, A ratificação não é renúncia a direito; é ato que não retira, é ato que supre o que faltava, ou podia faltar ao ato jurídico anulável. Por isso, vai à data do ato jurídico anulável, remonta ao tempo em que o suporte fático entrou no mundo jurídico, enche o défice, integra. Extingue a pretensão ou a ação de anulação: põe ato jurídico para suprir o defeito, ou possível defeito do suporte fático do ato jurídico que ela cura, Não é parte do ato jurídico anulável; é outro ato jurídico, que tem o efeito de integrar o suporte fático do ato jurídico a que se refere. Por isso mesmo, não está sujeito à regra jurídica sobre forma, a que estaria sujeito o ato jurídico ratificado. (No Código Civil argentino, art. 1.059, há a melhor definição de confirmação ou ratificação do ato jurídico inválido, que jamais escreveram legisladores, e honra a Vélez-Sarsfield: “La confirmación es eI acto jurídico per eI cual una persona hace desaparecer los vicios de outro acto que se halia sujeto a una acción de nulidart.”) 3. Plano do existência e plano da validade. O ato anulável pode ser ratificado pelos figurantes, salvo direito de terceiro. A ratificação retroage à data do ato. Temos, aí, a afirmação de que, ratificando-se o ato jurídico anulável, se lhe vai ao suporte fático; não se alude a efeitos — alude-se ao ato jurídico em si. Indo-se ao próprio ato jurídico, atingem-se o plano da existência e o plano da validade, razão por que a eficácia da ratificação éex tunc quando se vai ao plano da existência e ao plano da validade, toda irradiação de efeitos é desde lá, desde o ponto de espaço-tempo-energia a que se remontou. Exprime-se isso, concisamente, com as expressões “retroage á data do ato”. O ato da ratificação deve conter a substância da vinculação ratificada e a vontade expressa de ratificá-la. (Com aquela independência de pensar e paixão da verdade que o extremou entre os juristas do seu tempo,

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Teixeira de Freitas, Esboço, art. 813, evitou dizer que ratificação, confirmaçâo, é renúncia; disse que ela cobre a anulabilidade e “contém virtualmente a renúncia de alegar ou demandar a nulidade, por via de ação, ou de exceção, ou por outro qualquer meio”, o que passou, em parte, ao Código Civil argentino, art. 1.058. Vélez-Sarsfield, à altura de o entender, glosou-o em nota ao art. 1.059: “La confirmación contiene virtualmente renuncia de la acción de nulidad; pero toda renuncia no constitue confirmación.,. Ia confirmación tiene sólo por objeto reparar los vicios deI acto a que se refiere”.) 4. Manifestaçâo de vontade ratificante. A ratificação é negócio jurídico, cujo suporte fático se pode compor de declaração de vontade, ou por ato ou atos voluntários que impliquem vontade de ratificar o ato jurídico anulável. A manifestação de vontade não é receptícia (excelente o Código Civil argentino, art. 1.064: “La confirmación, se expresa ó tácita, no exige eI concurso de Ia parte a cuyo favor se hace.”). Não é preciso que seja expressa, pois que é escusada a ratificação expressa, quando a obrigação já foi cumprida em parte pelo devedor, ciente do vicio que a inquinava. O mesmo seria dizer-se: resulta do cumprimento da obrigação, ou seja total ou parcial, ou por pagamento, ou por outro qualquer meio (Teixeira de Freitas, Esboço, art. 817; Código Civil argentino, art. 1.063, que fez bem em retirar a parte final do art. 817 do Esboço, onde se disse que nada importaria que o adimplemento fosse sob protesto ou reserva de alegar a anulabilidade). A solução da divida sob protesto, ou reserva, não é ratificação do ato anulável. Há toda a conveniência em que se não ponha àqueles que são tidos por devedores o dilema de pagar puramente, ou de não pagar: a solução sob protesto, ou com reserva unilateral, é instituto indispensável no trato da vida, se o devedor tem ação de nulidade ou de anulabilidade, ou condictio. Diga-se o mesmo do protesto, que evita atribuir-se à manifestação de vontade o conteúdo que se presumiria. Se o devedor não recebe o pagamento sob protesto, ou reserva, tem o credor de ir a juízo; e ai o devedor há de argúir a anulabilidade, sob pena de se ter como ratificado, tacitamente, o ato jurídico anulável. Se o titular da ação de anulação aceita o adimplemento, ou se o exige, ou pede a reparação por falta de cumprimento —judicial ou extrajudicialmente — ou se aliena, grava ou consome o objeto que recebeu em virtude do ato jurídico anulável (aliter, se apenas toma medidas de conservação ou no interesse do outro figurante, a quem teria de restituir), há ratificação tácita do ato jurídico anulável. O perdão não contém ratificação: o que não é negócio jurídico não pode conter negócio jurídico, e a ratificação do ato jurídico anulável o é, ainda que não no seja o ato juridico anulável que se ratifique. A remissão de divida é negócio jurídico, e contém ratificação. Demandado o devedor, se abstêm de alegar a anulabilidade e pedir a anulação, entende-se que ratificou o ato jurídico anulável. Só o trânsito em julgado da sentença, que decidiu quanto a efeitos, positivamente, caracteriza a ratificação do ato jurídico anulável; salvo se, por exemplo, na reconvenção o réu pediu perdas e danos com fundamento no ato, ou alegou, sem alternativa, compensação. 5. Ratificação tácita e conhecimento dos Jatos causadores da anulabilidade. Discute-se, para que exista ratificação tácita do ato jurídico anulável, é preciso que o interessado conheça os fatos de que resultou a anulabilidade e entenda que tem a ação de anulação. Quanto à ratificação expressa do ato jurídico anulável, claro que se há de referir ao défice do suporte fático, tanto assim que, se há duas ou mais causas de anulabilidade, a ratificação por uma não implica a ratificação pelas outras. Se se trata de ratificação tácita do ato jurídico anulável, tem-se de levar em conta que o conteúdo ratificativo depende de atos, de atividade. Se se prova que o agente não sabia que o ato jurídico era anulável, não se lhe pode atribuir tê-lo ratificado. Há regra jurídica que alude à ratificação quando a obrigação foi cumprida em parte pelo devedor, ciente do vício que a inquinava. Deve ler-se como se estivesse escrito: “ainda em partes.” A ciência do vicio não estava apontada no Código Civil francês, art. 1.338 (a doutrina e a jurisprudência foram assentes, cf. E. Laurent, Príncipes, 18, 640 s.; Th. Huc, Commentaire, VIII, 344); e já assim era no velho direito luso- brasileiro. Sil-vestre Gomes de Morais (Tractatus de Executionibus. V, 57) exigia a ciência; e Manuel Álvares Pêgas (Resolutiones Forenses, 1, 439) transcreveu razões de 1678 (questão entre os moradores da Vila de Fronteira, em Portugal, e o Marquês de Fronteira), em que alegou a falta de ciência como causa de insuficiência do suporte fático da ratificação: ‘é necessário ciência explícita do prejuízo”, “o que se ignora não se ratifica”, para se induzir ratificação não basta a ciência geral, mas é necessária, especialissima, do ato, que se ratifica”, “é ne-cessário outrossim que tivesse notícia das nulidades, que competiam contra a declaração.” Aliás, a ratificação

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mesma poderia ser anulável por erro, dolo ou violência; inclusive se tácita (Teixeira de Freitas, Esboço, arts. 819 e 820). Ou por fraude contra credores; ou por incapacidade de agente. Ora, na ratificação tácita, uma vez que não se tem a “expressão” da ratificação por palavras, a verificação de que se errou, ou se ratificou por violência, ou dolo, é revelação de vício: não tem, pois, razão Andreas von Tuhr (Der Aligemeine Teu, II, 320) em distinguir a ratificação expressa e a tácita, para dizer que essa não precisa ser eliminada pela anulação (no direito alemão, impugnação). Teixeira de Freitas (Esboço, art. 820) estava certo: o agente, que, por exemplo, cumpriu a obrigação, tem de alegar e dar prova do erro, dolo ou violência. A ratificação do ato jurídico anulável por ter havido coação somente vale se, ao tempo em que a pessoa ratifica, já cessou a coação. Após a sentença que decretou, em último grau de jurisdição, a anulação, não mais cabe ratificação. A “ratificação”, que se fizer após isso, é sem objeto; se durante o processo da ação rescisória daquela sentença, há de entender-se renúncia à ação de rescisão. A ratificação dos atos jurídicos e dos atos-fatos jurídicos (e. g., pagamentos), praticados pelo gestor de negócios, ou pelo mandatário sem poderes suficientes, nada tem com a ratificação a que se refere a regra jurídica sobre atos jurídicos anuláveis. E preciso não se confundir ato jurídico anulável com ato ou ato-fato jurídico de quem o praticou sem ser a pessoa que o podia praticar, o dominus negotii. No direito brasileiro, não há a ratificação tácita do ato jurídico anulável (Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 5 de maio de 1945, CD 37/317), salvo por ato de adimplemento, total ou parcial. Regras jurídicas exaurem a disciplina da ratificação dos atos jurídicos anuláveis. A ratificação do ato jurídico ou dos atos-fatos jurídicos praticados pelo gestor de negócios ou pelo mandatário sem poderes pode ser tácita. Enunciava Lothar Seuffert (Die Lebre uon der Ratihabition, 33) que, havendo prazo para a eficácia do ato jurídico, ou parte dela, a ratificação somente se pode dar se ainda não expirou o prazo. Por exemplo, se o vicio é na oferta de contrato, com prazo (Konrad Wohlwill, Die Genehmigung, 114 s.). Na L. 25, § 1, D., ratam rem haberi et de ratihabitione, 46, 8, Africano falou do procurador que reclamou a dívida de quem podia alegar prescrição e garantiu a ratificação; (donde a questão: se o credor não o ratificasse, e teria o devedor ação (condictio) contra o procurador, por ter cobrado dívida prescrita? A solução afirmativa impõe-se. Mas nada tem o assunto com a tese de Lothar Seuffert. Na L. 71, § 1, D., de solutionibus et liberationibus, 46, 3, Celso pôs o caso do fiador que pagou ao procurador do credor e o credor só ratificou o recebimento depois de passar o tempo para o fiador se liberar. Aí, a solução do texto é a favor da tese de Lothar Seuffert. Na L. 29, § 6, D., mandati vel contra, 17, 1, sim, dá-se-lhe a ação mandati. No fundo, a contradição entre Sabinianos (Africano) e Proculeianos (Celso): aqueles negavam a eficácia após o prazo; esses, não (Ernst Zimmermann, Die Lehre uon der stellvertretenden negotiorum gestio, 265, 268 e 274). Os efeitos do ato do representante sem poder podem ser mantidos pela ratificação posterior a eles e aos prazos; se os efeitos do ato jurídico anulável produziram-se, a ratificação pode vir a qualquer tempo. § 174. Agente ratificante 1.Faculdade de ratificar. A faculdade de ratificar só pertence a quem é titular da ação de anulação (ou seu representante, em se tratando de absolutamente incapaz), se podia praticar o ato jurídico, que exsurgisse anulável, e de acordo com as exigências legais, se as há. O titular é o que praticou o ato jurídico anulável, ou o herdeiro ou outro sucessor. Quanto aos testamentos, a ação pertence aos interessados, em vez de ao testador: testador não pede anulação de testamento, nem disso precisaria — revoga-o, inclusive fazendo outro; quem não tem ação de anulação não ratifica — portanto, testador não ratifica testamento anulável. Ratificação seria outro testamento (sem razão, Heinrich Dernburg, Das Borgerliche Recht, V, § 46, IV, 4; Andreas von Tuhr, Der Aligemeine Teu, II, 321, Franz Leonhard, Erbrecht, 233; certos, L. Enneccerus, 19ª-2J? eds., 91; G. Planck, Kommentar, V, 4ª ed., 363, Felix Herzfelder, Erbrecht, J. v. Staudingers J-(ommentar, V, 398; errado, o Código Civil argentino, art. 1.065). 2. Pluralidade de titulares. Se há mais de um titular da ação de anulação, quem pode exercer separadamente

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a sua pode separadamente ratificar o ato jurídico anulável. 3. Atos jurídicos ratificáveis. O relativamente incapaz pode ratificar, ao tornar-se capaz. Se cumpriu em parte, ou no todo, a obrigação, antes de atingir a capacidade, não há ratificação. Tratando-se de incapacidade relativa, a ratificação somente é possivel depois de desaparecer a incapacidade relativa. Tratando-se de incapacidade absoluta, não há ratificação possível, ainda sobrevindo a capacidade. De modo que as regras jurídicas sobre ratificação somente concernem às anulabilidades e, se a causa foi incapacidade relativa, após se tornar capaz aquele a favor de quem se deu a sanção de anulabilidade. Quem, relativamente incapaz, executa, ainda totalmente, a obrigação, a despeito da anulabilidade do ato jurídico, de modo nenhum sana; porque o incapaz não pode ratificar, como não poderia, validamente, praticar o ato juridico. Se a ratificação foi expressa, é tão inválida quanto o ato jurídico que se pretendeu ratificar. Quanto aos atos anuláveis por erro, dolo, coação, ou simulação, a ratificação tem a consequência de extinguir a ação de anulação. Em se tratando de fraude contra credores, não há pensar-se em ratificação — há, por parte do credor, renúncia à ação de anulação, porque não é figurante do ato jurídico. § 175. Eficácia da ratificação 1. Retroeficácia. Quanto à eficácia, a ratificação tem-na ex tunc. É nota característica. Se não se quis que a eficácia fosse a mesma, ter-se-ia querido outra coisa que ratificar. A eficácia da ratificação é só negativa da invalidade; porque o ato jurídico anulável produziu os seus efeitos, a ratificação nada lhes acrescenta. Quando se diz que a ratificação retroage à data do ato, o enunciado não se refere aos efeitos do ato, porque esse, apenas anulável, os teve; refere-se ao efeito desinvalidante. Erga omnes, o ato jurídico deixou de ser inválido, suscetível de anulação, e deixou-o desde o começo. A negatividade da eficácia é que torna a ratificação tão parecida com a renúncia à ação anulatória, sem se identificar com ela (sem razão, além de Andreas von Tuhr, já criticado, Scheller, Bedeutung und Wirkung der Ratihabition, 58, e A. Siegerist, Lehre von Jer Ratiohabítion, 98 s., que não viram ser negativo da invalidade o efeito, razão para não se poder dispensar o instituto). Acertado, Griesinger (Zur Lehre von der Ratihabition, 55) frisou a distinção entre renúncia à ação e ratificação, porque essa nega a ação, por seu efeito, ao passo que aquela a extingue. Não é sem valor, teoricamente, embora não lho quisesse reconhecer CarI Petersen (Die Bestâtigunq, 65 s.). 2. Validação “ab initio”. O efeito da ratificação, pela obturação do défice do suporte fático, em que ela consiste, é a validação ab initio: o ato jurídico, pelo enchimento do que faltara ao suporte fático, para que o ato jurídico fosse válido, faz-se válido, ex tunc. A manifestação de vontade atinge aquela que se achava no suporte fático deficiente e, ao entrar no mundo jurídico, valida o ato jurídico anulável. Tudo mais é efeito do ato jurídico ratificado. A ratificação apenas o torna inatingível pela ação de anulação, que não mais existe. Os efeitos do ato jurídico anulável, antes e depois, são os mesmos, razão por que, em nenhum momento, o fiador, o dono da coisa dada em penhor, caução, hipoteca ou anticrese, pode opor-se a que qualquer devedor por ato jurídico anulável ratifique. Ratificação de ato jurídico anulável não é renúncia. A ratificação expressa, ou a execução voluntária da obrigação anulável, inclusive a que resulta de adimplemento, mesmo parcial, pelo devedor ciente, importa renúncia a todas as pretensões, a todas as ações, ou exceções, de que dispusesse contra o ato o devedor. Tal explicitação, oriunda do Código Civil francês, art. 1.338, alínea 3ª é tautologia: decorre da definição mesma de ratificação de ato jurídico anulável. Mas, em técnica legislativa, aconselhável, para se evitar divergência na doutrina e na jurisprudência. Por exemplo: é de afastar-se considerar-se questão de interpretação se a ratificação contém, ou não, renúncia à pretensão de indenização acessório, como faz L. Enneccerus (Lehrbuch, 1, 3Oª-34ª eds., 521 sj, e absurdo admitir-se pedido de indenização do interesse negativo (certo, Otto Warneyer, Kommentar, 1, 264). O que persiste é a ação de indenização pelo delito; outrossim, persistem as ações que nascem do ato jurídico, válido ou não, como a ação de vício redibitório e a quanti minoris. Se não se quis a validade desde o começo, não se quis ratificar; quis-se repetir o ato jurídico. § 176. Prescrição das ações de anulação

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1. Interesse privado e anulabilidade. O ato jurídico anulável produz todos os seus efeitos (e. g., a tradição transfere a propriedade mobiliária, o registro transfere a propriedade imobiliária). A sentença, que decreta a anulação, desfaz efeitos, ao passo que a sentença que decreta a nulidade nada encontra de efeitos que possa desfazer; desconstitui o ato jurídico e nada mais. Por isso mesmo, quando a prescrição ocorre, a anulabilidade desaparece — não porque a prescrição extinga a pretensão, mas porque a pessoa, a favor de quem se estabelece a regra jurídica de anulabilidade, deixou de pedir a anulação e nasce aos terceiros interessados o direito a considerar válido o ato jurídico. E um ponto, esse, que não tem sido estudado convenientemente, nos sistemas jurídicos que conservam o conceito de anulabilidade (em vez do conceito de impugnabilidade, a que correspondem prazos preclusivos, e não prescricionais). Há consequências do que dizemos sobre a anulabilidade: o prescribente pode renunciar à prescrição, mas o terceiro não pode sofrer dano com a renúncia; o interesse que se protege com a sanção de anulabilidade é privado, e não público, donde a ratificabilidade; a prescrição não opera como se o interessado houvesse ratificado o ato jurídico anulável, mas só o tutelado pela lei pode opor a exceção de prescrição e não pode renunciar a ela, prejudicando terceiro. 2. “Quae ad agendum sunt temporarici, ad excipiendum sunt perpetua”. Na L. 5, § 6, D., de deli mali et metus exceptione, 44, 4, Paulo disse que a certo tempo acaba a ação de dolo, mas a exceção compete perpetuamente, pois o autor tem em seu poder escolher quando haja de exercer o seu direito, ao passo que aquele, contra quem se demanda, não tem em seu poder quando haja de ser demandado (haec perpetuo competit, cum actor quidem in sua potestate habeat, quando utatur suo iure, is autem cum que agitur non habeat potestatem, quando conveniatur). Donde o adágio: ‘Quae ad agendum sunt temporalia, ad excipiendum sunt perpetua.” Nele implicita está interpretação errônea do texto de Paulo, que entende ser “haec” referente a “exceptio”, em geral, e não só á exceção de dolo, de que estava a falar. E interessante observar-se que o Código Civil italiano, art. 1.442, alínea 4ª, pôs em texto legal o adágio: “L’annullabilità puó essere opposta daíla parte convenuta per lesecuzione deI contratto. anche se é prescrita lazione per farIa valere.” Os inconvenientes práticos são enomnes: o que teria a ação de anulação, por erro, violência, ou dolo, ou incapacidade legal, e não a exerceu no prazo prescricional, ainda pode, perpetuamente, alegar o vício de vontade, o a incapacidade legal. Não se precisaria, para se negar a permanência da exceção, negar-se que, com a prescrição, ficasse a obrigação natural (1 F. 3. Sommer, Rechtswissenschaftliche Abhondlungen, 1, 6 s.). Nem se pode provar que, em direito romano, a toda ação prescrita sobrevivesse exceção. Nem há de ser necessariamente preclusivo o prazo para que a exceção não subsista (A. Grawein, Verjàhrung qesetzliche Bel ristung, 140 s.). O principio mesmo não existia, nem existe, no direito brasileiro. A prescrição da ação não destrói a pretensão, encobre-a; a ação é que, antes poderia ser exercida, epe exception Is; mas ai excep tio está em outro sentido (o que levou a muitos a pensarem em prescrição de exceções). Na L. 5, § 6, D., de deli mali e metus exceptione, 44, 4, Paulo atendeu a que “haec exceptio’ (a exceção de dolo) “perpetuo competit”, porque existe, ao lado da ação, e independente dela, para que não sofra o demandado o dano que nasceria de não poder executar, a ação de indenização. 3.Renúncia á prescrição. Se a ação de anulação prescreveu, só a renúncia à prescrição pode torná-la exercível, inclusive pela não-oposição da exceção de prescrição. Não é a mesma coisa que existir, no sistema jurídico, prazo preclusivo — razão por que é de toda relevância saber-se, de antemão, que o prazo, no sistema juridico brasileiro, como outros prazos relativos à anulabilidade, é prescricional, e não preclusivo. O juiz não pode, sem provocação, pronunciar a anulação. Ainda naqueles casos em que pode haver exceção oponível (exceptio dou, exceptia metus causa, exceptio simulationis), nem tal exceção é sobrevivência da ação eficaz de anulação, nem corresponde, em extensão, a ela. Nem se diga que, com a prescrição, o ato jurídico se torna eficaz; ele o era, e continua, apenas (o que Heinrich Cremer, Beschrãnkte Nichtigkeit, 6, não viu) já incobrível pela exceção de prescrição que se oponha à ação de anulação (= no direito alemão, não mais exposto a impugnação o ato jurídico). § 177. Eficácia da sentença anulatoria 1.Eficácia constitutiva negativa. A sentença, que se profere na ação de anulação, é de eficácia constitutiva

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negativa: desconstitui o anulável; após ela, não há o nulo, mas o nada, o inexistente. Por isso mesmo, com o trânsito em julgado, não há diferença entre o que se desconstituiu como nulo e o que se desconstituiu como anulável. A distinção somente tem sentido antes da decretação da anulação, em sentença trânsita em julgado. 2.Restituição em virtude da anulação. Anulado o ato, têm os figurantes de voltar ao estado em que antes dele se achavam e não sendo possível a restituição, porquanto impossível essa tutela especifica ou mesmo a obtenção do resultado prático equivalente, serão indenizados com o equivalente. O sistema jurídico brasileiro tem o mérito de se não referir à retroatividade, nem de lembrar a in integrum restitu tio. De um lado e do outro, restabelece-se o anterior estado de coisas, isto é, o estado em que se achavam os bens da vida, num e noutro patrimônio. Não se leva em conta qualquer efeito do contrato ou negócio juridico unilateral anulado (e. g., a denúncia da locação, em cláusula contratual, a remissão de divida, ou reconhecimento de direito do outro contraente, ou de terceiro), salvo se só houve anulação parcial que não atingiu o elemento a que o efeito corresponde. Voltam os créditos cedidos; voltam à eficácia as dividas remitidas; as quantias pagas são restituidas. E tudo se passa como se não tivesse havido cessão de crédito, remissão de dívida, ou pagamento. 3.Efeitos anteriores á anulação. Enquanto não passa em julgado a sentença que anula, deve quem pelo ato juridico se obrigou prestar o prometido, a fim de não incorrer em mora; porque, se a sentença favorável for reformada e transitar em julgado, os efeitos do ato juridico hão de ficar intactos. Trânsita em julgado a sentença, não há mais obrigação de prestar, nem mora. Se o autor pôs a alternativa anular, ou, se o aceita o réu, ser obrigado a indenizar, tem-se como proposta a ação de anulação, e ofertada a transação. Se o fundamento é o dolo, tem o autor a ação de indenização, e, g,, por ocultação dolosa de qualidade, que se não confunde com a ação de abatimento em caso de vicias redibitórios, ainda se a espécie é a em que o alienante conhecia o vicio ou o defeito. 4.Cumulação. A ação de anulação por violência, ou dolo, pode ser cumulada com a de erro. Idem, com as ações edilícias concernentes a vícios redibitórios. 5.Transmissâo da propriedade. Se houve transmissão da propriedade de bem móvel, a anulação tem a eficácia de fazê-la voltar do adquirente ao transmitente ou a quem, no momento, seja o seu sucessor, sem ser preciso que se dê a retrotransmissão. Se a transmissão fora de bem imóvel, o conteúdo do livro de registro de imóveis evidencia-se inexato e tem de ser pedido o cancelamento, pois, sem isso, o registro continuaria a produzir efeitos. Se para a transmissão houve acordo, tem-se por anulado, com eficácia sentencial, constitutiva negativa, desde que ele foi feito, e a situação jurídica tal como era — como se nenhuma transmissão tivesse havido. Ainda assim, é preciso ter-se em vista que a anulação do contrato de venda e compra e outros contratos consensuais não importa, necessariamente, a anulação do negócio de adimplemento (Erfúllungsgeschãft). Tal com-sorte ocorre quando os dois negócios juridicos se concluíram juntos, num só ato de vontade, e a deficiência do suporte fático é comum (Otto Warneyer, Komrnentar, 1, 258). Por exemplo: o) se o contrato foi de venda e compra entre A e C, sem que A pudesse transmitir, por ter apenas pré-contrato quanto ao prédio vendido, e A propõe a anulação do contrato por dolo de C, a sentença não atinge o negócio juridico entre A e C, posterior, em que A, sem abrir mão da ação pelo dolo, transmitiu a C o prédio; b) se A vendeu bem da mulher, que cria lhe seria vendido por ela, e essa venda, válida mas ineficaz, é anulada por defeito de forma, o negócio de transmissão posterior, formalmente válido, não é atingido pelo julgado. São negócios jurídicos juntos os de venda e compra e transmissão que se fazem na mesma escritura, dizendo-se “vende e transmite etc. . Aí, o contrato consensual e o negócio jurídico real estão sob o mesmo guante. Se o segundo ou posterior adquirente tem o bem imóvel, restitui o figurante-réu na ação o que corresponde ao imóvel, não o imóvel mesmo, que outrem já adquiriu conforme o registro. 6.Consequências da anulação. Com a anulação do negócio jurídico, caem todos os direitos, pretensões. ações e exceçoes acessórios, como o penhor, a hipoteca e a fiança (Hugo Rehbein, Das Búrgerliche Gesetzbuch, 1, 200), ainda assim observada a lei; salvo se o fiador, ou o que deu o bem em garantia se obrigou para o caso de anulação do negócio jurídico (G. Planck, Rommentor, 1, 375), o que se há de presumir, se, ao tempo da

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garantia, conhecia a anulabilidade (Erwin Riezier, i. ir Stoudingers Kommentar, 7ª e8ªª eds., 1, 548). 7. Anulaçâo de parte do ato jurídico. Tal como acontece com o nulo, pode o anulável só concernir a parte do negócio jurídico, ou do ato jurídico stricto sensu. O art. 153 refere-se assim ànulidade como à anulabilidade. Inclusive quando há dois ou mais manifestantes de vontade, Se o negócio com muitos manifestantes de vontade foi concebido unitariamente, de modo, que só o adimplemento por todos tenha caráter de adimplemento, a de-cretação da anulação — por dolo, por exemplo, de um dos vendedores — atinge todo o negócio (Rudolf Leonhard, Der Aliqemeine Tel, 450). Diga-se o mesmo quanto às manifestações ou comunicação de conhecimento e de sentimento. Se há dois ou mais outorgantes e a alienação é nula, ou apenas anulável, quanto a algum deles, é preciso indagar-se, para se saber se há ou não separação, se a alienação foi feita por parte de cada um, ou se do negócio jurídico resulta que o negócio jurídico foi unitário (cp. 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo. 1ª de junho de 1943, RT 146/696); e. g., se foi declarado que se comprava o prédio todo, e não as partes (A, 8 e C vendem o edifício tal, por x: e não: A vende um terço, por x, 8, um sexto, por y, e C, três sextos, por z). Não há solução a priori (como pareceu à 1ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação da Paraíba, 27 de julho de 1943, RF 58/80), para a questão da separabilidade; posto que, como o que mais acontece, seja de presumir-se que sejam separáveis as outorgas (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 14 de março de 1944, RT 153/601). Nem se pode afirmar a priori que, nulo ou anulado o contrato, em virtude do qual se criaram e entregaram títulos cambiários, ou cambiarifomnes, a nulidade ou anulação apanhe tais títulos. São eles títulos abstratos, de modo que somente entre pessoas em contacto pode vir à tona o negócio jurídico subjacente, justajacente, ou sobrejacente (sem razão, por demasiada generalidade, o acórdão da 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 6 de agosto de 1942, RT 140/164). A propósito, discute-se há presunção iuris tanturn de não ser separável a parte, ficando a quem sustenta a validade o ônus da prova de ser separável e, pois, incólume. A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 29 de julho de 1947 (flJB 82/20), afirma existir presunção Jacti, àdiferença do § 139 do Código Civil alemão. 8.Direito ao interesse negativo. O que obtém a anulação do contrato por dolo, ou coação, tem direito ao interesse negativo, isto é, aos danos sofridos pelo fato da conclusão do contrato (= danos que não teria sofrido se o contrato não tivesse sido concluído). Por exemplo: despesas do contrato; despesas que um dos contraentes fez com o adimplemento do contrato, ou com a aceitação da prestação; danos que sofreu com o adimplemento ou a aceitação da prestação; dano que um dos contraentes sofreu por ter confiado na validade do contrato e ter deixado, na ocasião, de concluir outro. Não há limitação ao que seria montante do interesse positivo (interesse de exceção contratual ou Vertraqserfúillunqsinteresse): a regra jurídica do direito brasileiro fala de restituição. 9.Ações que o sentença de anulação pré-exclui. Quem obtém anulação de contrato não pode pedir resolução, ou resilição, por inadimplemento, ou rescisão por vicios redibitórios, ou redução do preço. Se o fez antes, ressalvando a ação de anulação, n sentença, em tal ação, tem eficácia de restituição, como se não tivesse ocorrido resolução, resilição, rescisão ou reducão do preço, Levados em conta os evitamentos de danos. Se o que pede a anulação também pede a resolução, resilição, rescisão, ou diminuição do preço, o pedido é alternativo, e tem-se de julgar primeiro o pedido de anulação (Otto Warneyer, Nornrnentar, 1, 259). 10. Impossibilitação do restabelecimento da situação anterior. Perde o seu direito à anulação (diz-se) quem tornou impossível o restabelecimento do estado em que se achavam os contraentes; não, porém, quando a impossibilidade não proveio de culpa sua (Otto Warneyer, Kornmentar, 1, 259). Tal construção não é a melhor, porque reduz ao restabelecimento do estado anterior ao contrato toda a eficácia da sentença na ação de anulação. A eficácia constitutiva negativa é a força mesma da sentença; o restabelecimento é posterius. Nada obsta a que, a despeito da impossibilitação do restabelecimento do estado anterior, por culpa do autor da ação de anulação, se julgue a desconstituição do negócio juridico que não pode depender do que somente concerne à reparação.

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11. Definitividade da anulação. Uma vez anulado o negócio jurídico, não mais se pode reconstituir, tal como fora; nem e possível revogar-se a anulação, a) se em virtude de sentença, porque não se revoga coisa julgada, nem desconstituição ou constituição, em decisão trânsita em julgado, b) se em virtude de negócio de reconhecimento negativo, porque a conclusão dele exclui a revogabilidade, segundo os princípios. Se se quer restabelecer a situação, que existia, enquanto ele teve eficácia, que se eliminou ex tunc, só há o caminho de novo contrato (6. Planck, Kommentar, 1, 379): então, não é o contrato anulado, que revive; é outro, talvez válido, no qual situação criada por ele corresponde à que o outro havia criado. 12. Anulação e interesses de terceiro. A anulação atinge, por vezes, interesses de terceiro. A sentença, constitutiva negativa, não desconstítuí só entre as partes — desconstitui, e isso já importa não-ser. O não-ser não é apenas entre os contraentes; é, também, entre os contraentes e terceiros. O mesmo acontece a respeito de negócios jurídicos unilaterais e dos atos jurídicos stricto sensu. Uma vez que a eficácia da anulação é ex tunc, tudo se há de restabelecer sem se atender ao que ocorreu no meio tempo. Assim, se um dos contrôentes cedeu o crédito e notificou o devedor, essa notificação não exclui que a eficácia da sentença de anulação atinja a cessão de crédito (Heinrich Dernburg, Das Borgerliche Recht, 1, 396, nota 4). Se, durante o tempo em que o negócio jurídico foi observado pelo que deu algum bem móvel, ou imóvel, terceiro adquire, ao pedido de anulação se há de juntar o de decretação da anulação do titulo do terceiro, se conhecia o vicio, em caso de simulação, ou a declaração de ineficácia se é o caso e, pois, em consequência, o cancelamento do registro. O terceiro pode opor usucapião, ou outro modo originário de aquisição, segundo os princípios. Se o terceiro adquiriu o bem imóvel pelo registro, e o seu título não foi anulado, não se pode pensar em reivindicação. 13.Conteúdo da regra jurídica sobre restituição e de outras regras jurídicas. A regra jurídica concernente à restituição, incide, ainda que seja pela prestação do equivalente, se não mais é possível restituir-se o que foi prestado pelo relativamente incapaz, ou o que foi prestado a ele, no que lhe aproveitou (3ª Câmara Civil da Corte de Apelação de São Paulo, 6 de novembro de 1936, RT 105/183). Quaisquer outras indenizações, e. g., pelo ato ilícito absoluto do que tratou com o relativamente incapaz, dependem de sentença em ação de indenização, aliás cumulável à de anulação do ato jurídico (cp. 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 13 de junho de 1939, 121/178). A regra jurídica atinge quaisquer anulações, inclusive em se tratando de anulabilidades por falta de assentimento do cônjuge. O que acima dissemos sobre a necessidade de se cumular ao pedido de anulação o de indenização não tem cabimento em se tratando de coação, porque está implícito no pedido ou na decisão que atendeu ao fato de ter sido coator o figurante ou de ter tido ciência da coação posterior o figurante. Tratando-se de ato jurídico anulável por incapacidade relativa por idade do figurante, o outro figurante pode, em reconvenção, alegar o ato ilícito do relativamente incapaz, ou, em defesa, o dolo do menor, relativamente incapaz, havendo, no primeiro caso, condenabilidade à indenização pelo ato ilícito absoluto e podendo ocorrer, no segundo caso, propositura de ação de indenização, se não foi apresentada, também, reconvenção. A regra jurídica não incide em se tratando de nulidade e rescisões, razão por que, decretada a nulidade da arrematação, da decisão de imissão, ou de outros atos processuais, ou a rescisão de sentença, a restituição é do que se transferiu invalidamente, ou por efeito de sentença rescindida, mais as perdas e danos (certo, a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 13 de setembro de 1944, RT 154/653). De modo nenhum se há de invocar a lei para as restituições em virtude de resolução de contrato bilateral; sem razão, o acórdão da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 25 de abril de 1946, RT 163/724, que lamentavelmente confundiu resolução de contrato bilateral com anulação. Se o ato juridico é nulo, a decisão já pode mandar restituir, não só condenar a restituir. Idem, se foi declarado ineficaz o ato. Em ambas as espécies, não há, propriamente, condenação a restituir. Alguns acórdãos esporádicos tentaram introduzir na restituição a que se refere a regra jurídica a apuração da boa-fé, o que de modo nenhum está no nosso direito e somente poderia ter a consequência de eliminar, em matéria de restituição da posse, a responsabilidade em caso de deterioração ou perda da coisa e de determinar direitos a frutos, a benfeitorias, ius tollendi e direito de retenção. Não há a respeito de anulações (a fortiori, a respeito de nulidades), por incapacidade, proteção do figurante de boa-fé. Leituras apressadas são causadoras de tais asserções, que o sistema jurídico brasileiro repele (errado, e. g., o acórdão da 3a Câmara Cível do

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Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a 17 de junho de 1948, i 30/401). A restituição, por incidência da regra jurídica é completa, nada tendo com o assunto as regras jurídicas sobre posse, porque, anulado o ato juridico, de que derivou a posse, não há pensar-se em posse (certo, a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 13 de setembro de 1944, RT 154/658). 14. “Actio iudicati’. Anulado o ato jurídico, restituem-se os figurantes ao estado em que antes dele se achavam e, não sendo possível a restituição, porquanto impossível a tutela especifica ou mesmo a obtenção do correspondente resultado prático, indenizam-se com o equivalente. Pergunta-se: à ação de anulação écumulável a reivindicatória ou a de indenização, ou a sentença é dotada de eficácia executiva imediata, caso em que não se precisaria do mandado judicial para pagamento de quantia certa, nem o sequestro de bens ou rendimentos do devedor, nem os mandados por haver obrigação de fazer ou de não fazer (chamada “autonomia do juízo de anulação”), ou da sentença de anulação, de eficácia executiva mediata, apenas nasce ação ludica ti? No direito brasileiro, a ação de anulação não faz a posse do bem que foi alienado entrar no patrimônio do autor, ou do devedor, em se tratando de anulação por fraude contra credores, ou da massa. O que pode ser desconstituído pela sentença, desconstitui-se, mas o processo de cancelamento depende de mandado, ou de pedido noutro juízo, conforme a espécie. A sentença contém elemento condenatório bastante para se registrar a hipoteca judiciária. A ação de reivindicação somente nasce se o condenado a restituir não entrega a coisa. Tal ação não existe antes de se dar a anulação; portanto antes do trânsito em julgado da sentença constitutiva negativa, com eficácia condenatória a restituir. Não se pode pedir, desde logo, com a inicial da ação anulatória, a reivindicação, salvo para a eventualidade. O sistema jurídico brasileiro não estabeleceu, no art. 158 do Código Civil, cumulação sucessiva; nem essa se entende existir sem regra jurídica especial, que, na espécie, a crie. De modo que se tem de executar a sentença, de acordo com os princípios de direito processual. § 178. Casamento e ações constitutivas 1.Nulidade e anulabilidade. Consideradas como motivos jurídicos para impedir o casamento, as causas vedativas operam anteriormente; quando, porém, além de impedirem, declaram que os matrimônios infringentes serão irritos, os seus efeitos estendem-se e operam depois de celebrado o ato. As vezes, se diri-mentes absolutos, tornam nulo o matrimônio; outras vezes, se relativos, fazem-no anulável. As nulidades ora são sanáveis, ora insanáveis. Das nulidades só uma é sanável: a que provém da celebração do ato por autoridade incompetente, nulidade que desaparecerá se não se alegar dentro do prazo legal a partir da realização do casamento. Quanto aos impedimentos derivados da adoção, cumpre notar-se que a adoção também está sujeita a nulidades e anulabilidades. No primeiro caso, o casamento da adotada com o adotante, ou vice-versa, não é nulo, porque nula é de pleno direito a adoção. No segundo, o casamento seria nulo, porque a adoção não é nula, e sim anulável, e a nulidade relativa não tem efeitos antes de ser julgada por sentença. Julgada, a sentença tem eficácia ex tunc. Demos o exemplo. Foi adotada por A, que tinha trinta anos, a maior B, com quem depois se casou. Aqui, a adoção, por ser eivada de nulidade, não vicia o casamento. (Note-se que os princípios que regem a nulidade da adoção não são os que regem a nulidade do casamento). Na ação de nulidade de casamento, o réu ou a ré pode opor a nulidade da adoção. Aliás, bastaria que a argúisse o defensor vinculi ou o Ministério Público. 2.Anulabilidades. As anulabilidades são, todas, sanáveis: a) o que contraiu casamento enquanto incapaz pode ratificá-lo, quando adquirir a necessária capacidade, e essa ratificação retrotrai os seus efeitos à data da celebração; b) quando requerida por terceiros a anulação do casamento do menor, por motivo de idade, poderão os cônjuges ratificá-lo, em perfazendo a idade fixada pela lei, ante o juiz e o oficial do registro civil; c) a falta de idade fica suprida implicitamente, se resultar gravidez; é o clássico dizer canônico Malitici suppleat aetatem; d) a anulabilidade derivada do casamento do raptor com a raptada deve ser equiparada, para esse efeito, à anulabilidade do casamento do coacto, cuja ação respectiva prescreve em dois anos contados da

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celebração ou preclui em seis meses. O sistema jurídico não contém nenhuma regra jurídica sobre a sanabilidade do casamento anulável por ter sido contraido entre o raptor e a raptada, mas é de crer-se que a tenha incluido na regra jurídica referente aos coactos, se esqueceu ao legislador prover àquele caso quando fixou os prazos de prescrição e preclusão. A anulabilidade oriunda da falta de consentimento sana-se com a aquiescência, isto é, com o consentimento posterior. 3.Ações constitutivas negativas. As ações de nulidade promovidas pelo Ministério Público, bem como a de rescisão da sentença que decretou a nulidade ou a anulação, têm de ser dirigidas contra os cônjuges, como litisconsortes necessários. O cônjuge de outro casamento da parte, cujo interesse pode ser prejudicado com a sentença, é lítisconsorte voluntário. Todos podem recorrer e pedir rescisão da sentença que lhes causou dano. A regra jurídica da validade do casamento por falta de idade, se adveio gravidez, incide ainda que o menor tivesse menos de quatorze anos, tendo sido anterior ou posterior ao casamento a concepção (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 21 de março de 1952, RT 200/309). 4.Litispendência. As ações de nulidade ou de anulação só induzem litispendência quando o mesmo seja o fato trazido a exame e o mesmo o pressuposto invocado. Em todo o caso, ainda que seja o mesmo fato e o mesmo pressuposto invocado, não há litispendência se, num processo, ré é a mulher e autor o marido, e, noutro, réu o marido e autora a mulher, ou vice-versa. 5. Declaratividade e constitutividade sentenciais. A ação de declaração da existência ou inexistência do casamento nada tem com a ação de invalidade (absoluta ou relativa). E ação declarativa. Tampouco, com a ação fundada no interesse em se “provar” a identidade de um dos cônjuges. A ação de nulidade ou de anulação do casamento é ação constitutiva, um de cujos efeitos é dar-se baixa no registro do casamento (efeito mandamental), e outro, o da coisa julgada material; mas a sua força está na constitutividade. A ação de declaração da existência ou inexistência do casamento é ação declarativa, cuja força está na produção da coisa julgada material. Há, no processo, o defensor matrimonii, que é parte. Pode ter efeito mandamental, no caso de ter havido registro. Tanto na ação de nulidade do casamento dos genitores (Giuseppe Chiovenda, Principii, 603) quanto na ação declarativa da existência ou inexistência do casamento, o filho é interveniente da classe dos assistentes equiparados ao litisconsorte. A ação de nulidade ou de anulação de casamento éação constitutiva (negativa), com efeitos de declaração, condenação e mandamento (a cancelação do registro). Permite reconvenção e não produz litispendência quanto á ação de separação judicial. (De regra, as ações de nulidade são mais do que ações declarativas: ou são constitutivas, como a de nulidade ou de anulação do contrato ou a de nulidade ou de anulação do casamento; ou são mandamentais, com forte dose de constitutividade, como a de nulidade de patente de invenção ou marca de fábrica). Para afastar a confusão que a expressão “declarar a nulidade” tem produzido, como se tais “declarações” de nulidade fossem declarações, no sentido da classificação das ações, vale a pena lembrar os enunciados de Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 472): “Uma pretensão, que envolve a nulidade, não é declaração de nulidade, mas a criação dela”, posto que não tenha o processualista alemão atendido a que toda decretação de nulidade consiste em fazer o ato juridico passar da “existência nula” à “não-existência”. 6.Separação judicial. A ação de separação litigiosa é de rito ordinário. Alter, a de separação consensual. A ação é constitutiva; portanto, a sentença que a julga procedente. A res in iudicium deducta não está na relação jurídica matrimonial, porém na pretensão à (separação judicia)l que nasce de algumas das causas mencionadas na lei. Se o autor invoca mais de uma causa, dá-se cumulação objetiva. Se cumulou a ação de separação judicial e a de nulidade do casamento, a cumulação é eventual (só se passa ao julgamento da ação de separação judicial se a outra foi julgada improcedente; se foi julgada procedente, a de separação judicial está prejudicada). As ações de separação judicial permitem reconvenção pelo mesmo ou por outro fundamento.

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Tanto as ações de separação litigiosa quanto as de separação consensual não continuam com a morte de uma das partes. Falta-lhes, desde esse momento, ‘objeto”. Aqui, entra em discussão se a falta do objeto produz cessação da relação jurídica processual, ou da sua eficácia. Se falta o autor, a relação jurídica processual cessou. O réu pode pedir ao juiz que declare a inexistência da relação desde a morte e regule as despesas: não é verdade (sem razão, Giuseppe Chiovenda, Principii, 1248) que “a” relação processual sobreviva. Se faleceu o réu, cessou a relação jurídica processual. O outro paga as custas e pode pedir a declaração da inexistência da relação jurídica processual, com a conseqúente extinção do processo sem julgamento do mérito. O que há é processo, sem a relação jurídica processual, tal como acontece entre o despacho da petição inicial e a citação do réu. Tanto nas ações de nulidade quanto nas de separação judicial (ou divórcio) há alimentos provisionais; porém não se há de pensar em provisio ad litem se propõe ação declarativa de inexistência do casamento (aLter, se positiva a ação declarativa), Da relação jurídica matrimonial irradiam-se pretensões, a que podem corresponder ações, como a pretensão a obter autorização judicial supritiva do assentimento do outro cônjuge. Tal ação é constitutiva e, em princípio, de rito especial. Mas é ordinária a ação para se declarar a existência do assentimento marital (ação declarativa, típica, bem como para a ação (constitutiva) de nulidade do assentimento dado. Todos os elementos patrímoniais que intervenham no pedido são causas conexas ou conseqúentes. Questão de trato delicado é a de ser, ou não, questão prejudicial, nas ações de separação judicial (ou causa prejudicial, se pendente, para as mesmas ações de separação judicial), a questão ou causa de existência ou de nulidade do casamento. Noutros termos: se, levantada a prejudicial (questão ou causa) de existência ou validade do casamento, pode o juiz, sem a resolver ou antes de resolvê-la, decidir sobre a separação judicial. Natu-ralmente, o problema também surge, para as ações de nulidade, ou de anulação, nos casos de prejudicial de existência. 1) Vejamos os casos de separação judicial: a) Se, na ação de separação judicial, a outra parte levanta a questão da inexistência ou nulidade do casamento, tem de fazê-lo em causa matrimonial incidental à outra — portanto, para serem julgados na mesma sentença, em reconvenção: b) Se já a levantou, portanto em causa matrimonial à parte, a ação declarativa de existência ou de inexistência do casamento é causa prejudicial à de separação judicial, como à de nulidade ou à de anulação do casamento, e cabe ao juiz da ação declarativa conhecer da ação de separação judicial ou de nulidade, ou de anulação, pela conexão. Se os autos se acham noutro juízo, têm de ser remetidos ao juízo competente, onde se procederá à reunião das ações. Se a ação de separação judicial foi proposta antes, a ação declarativa é, pela mesma razão, de competência do juizo em que se intentou aquela. A existência do casamento é pressuposto necessário da separação judicial; c) Se fora intentada, antes, a ação de nulidade ou de anulação do casamento, há conexão, porém a validade do casamento não é pressuposto necessário da separação judicial, porque a propositura de ação constitutiva negativa não é causa prejudicial para ações que se baseiem na relação jurídica constituída. 2) Nos casos de nulidade de casamento, a ação declarativa da existência ou da inexistência do casamento é causa prejudicial: dá-se a conexão; e a existência do casamento é pressuposto necessário da validade ou nulidade do casamento; só é válido ou nulo o casamento que existe. Se a ação declarativa ainda não foi proposta, tem de o ser no juízo da ação de separação judicial que já se propôs, em reconvenção. 3) O que acima foi dito só se refere às causas prejudiciais. Quanto aos pontos prejudiciais, que tiram a sua eficácia, para todos os casos, da coisa julgada material (E. Menestrína, La Preqiudiciale, 121 sj; a coisa julgada material sobre a inexistência pré-exclui, prejudicialmente, qualquer demanda sobre a nulidade ou a anulação. ou a sociedade conjugal; a coisa julgada material sobre a nulidade ou anulação pré-exclui, como ponto prejudicial, qualquer outra ação de nulidade ou anulação ou sobre sociedade conjugal; mas a coisa julgada material sobre separação judicial não importa ponto prejudicial para a ação de nulidade, ou de anulação, ou para a declarativa de existência ou inexistência, nem a de nulidade ou de anulação, para a declarativa de existência ou de inexistência. Se a questão da existência ou da nulidade ou anulação foi decidida, como mérito (portanto causa), produzindo o ponto prejudicial, então é esse ponto, e não o da separação judicial, que se pode invocar como res iudicata. 4) Se o cônjuge propõe, em cumulação objetiva eventual, ação de nulidade ou de anulação e ação de separação

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judicial, julga-se primeiro aquela, que é causa prejudicial dessa. Rejeitada a arguição de nulidade, passa-se ao julgamento da ação de separação judicial. Nas ações de separação judicial, de nulidade ou de anulação, e mesmo declarativa de existência ou inexistência do casamento pode surgir a necessidade de alguma declarativa incidental, de que a de falsidade de documento é exemplo. Suspende-se o juízo, desde que in limine verifique o juiz que se trata de causa prejudicial incidente. Raramente se justificaria no segundo grau de jurisdição, porque seria, em muitos casos, demanda nova cuja sentença teria de produzir coisa julgada material quanto à causa julgada pela sentença recorrida; porém não é de excluir-se a priori, nem o argumento contra a admissão procede naqueles casos em que a matéria é nova. Se um dos cônjuges é apontado como bígamo e se discute a nulidade do segundo casamento, tendo ele arguido a nulidade ou anulabilidade, ou a inexistência do primeiro, tem de ser resolvido, antes, o problema de existência ou validade do primeiro casamento. Suspende-se o julgamento da ação, se trata de causa prejudicial (outra ação); ou se julga primeiro a causa prejudicial da cumulação objetiva. 7.Divórcio. A diferença entre a separação judicial e o divórcio está em que aquela dissolve a convivência conjugal, a sociedade matrimonial, e esse atinge o vinculo. § 179. Invalidade das regras jurídicas1.Regras jurídicas, existência e validade. As regras jurídicas, quaisquer que sejam, são atos jurídicos. O elemento a mais que as diferencia dos outros atos jurídicos é o da regulação estatal.Declarações unilaterais de vontade e declarações bilaterais e plurilaterais podem regular e então se fala de cláusulas normativas; as regras juridicas também regulam, mas a fonte é estatal e o fim consiste em estabelecer os pressupostos para que os outros atos jurídicos existam, valham e tenham eficácia. Atos podem não ter entrado no mundo jurídico, ou ter entrado sem validade, ou lhes faltar algum efeito, ou alguns efeitos, ou todos os efeitos. 2.Fontes das regras jurídicas. Todas as regras jurídicas, escritas ou não-escritas, e não só as leis, as medidas provisórias e os decretos, têm de obedecer à Constituição. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal, o Regimento Comum, o Regimento do Supremo Tribunal Federal, o Regimento do Superior Tribunal de Justiça, ou de qualquer tribunal, a resolução ou a instrução administrativa, ou aviso, ou qualquer outro texto jurídico, é suscetível de apreciação de inconstitucionalidade. A própria legitimidade da Presidência da República ou da Vice-Presidência da República, ou de eleição dentro de alguma das câmaras ou tribunal, também o é. As regras jurídicas que provêm de atividade estatal que não é a de legislar (estrito senso) têm de obedecer a alguma lei, ou decreto, ou outra fonte. Há a descida, desde a Constituição até aos simples avisos e demais regras jurídicas de baixo nível.

Capítulo III

Ação de desconstituição de instituição do bem de família e ação de cancelamento do registro § 180. Conceito e pressupostos 1. Conceito. Bem de família é o prédio destinado a residência, a que a lei confere isenção de execução por dividas, exceto as de tributos sobre o mesmo prédio. A isenção, na sistemática do Código Civil, arts. 70-73, e

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da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, arts. 260-265, mas não da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, dura enquanto vivem os cônjuges e até que os filhos completem a maioridade. Portanto: se todos os filhos atingem a maioridade, vivos os pais, ou um deles — até que morra o cônjuge sobrevivente; se, ao morrerem os pais, os filhos, ou alguns, ou um deles ainda não é maior, ou suplementado — até que o último atinja a maioridade, ou tenha obtido capacidade por suplemento de idade. Esse efeito especial da suplementação é dependente de decisão constitutiva, se houve ato do titular do pátrio poder, ou sentença do juiz, ou declarativa, nos casos de casamento, exercicio de emprego público efetivo, colação de grau em ensino superior, estabelecimento civil ou comercial com economia própria. A despeito da usada expressão ‘chefes de família”, pode a instituição ser feita por ato do marido, ou da mulher, sobre bens seus, ou por ambos, sobre bens comuns, ou dos pais ou pai do menor, ou dos menores. O bem não pode ser em comunhão indivisa com estranhos, de modo que escapa à proibição a comunhão pro diviso dos apartamentos, e em comunhão pro indiviso com filho ou filhos. Era errada e continua de ser a opinião que excluia as terras de lavoura, pastagem ou pomares. 2.Pressupostos. São pressupostos: a) haver casamento ou filhos, ou, a fortiori, casamento e filhos; b) estar no patrimônio do instituidor ou dos instituidores, exclusivamente, o bem a que se quer dar a destinação a residência; c) ser o bem de valor até o limite legal, salvo se o imóvel é residência dos interessados por mais de dois anos (Decreto-Lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, art. 19, na redação da Lei nº 6.742, de 5 de dezembro de 1979). O pressuposto b) é de validade, porque se supõe ter sido registrado devidamente; o pressuposto a) também é de validade, como o pressuposto c). Se houve infração de regra jurídica, que exige não terem dívidas os instituidores, há apenas ineficácia relativa. O bem não pode ser em comunhão pro indiviso com estranhos, mas pode ser em comunhão pro diviso, em apartamentos, com estranhos, ou em comunhão pro indiviso com filhos. A despeito da expressão “chefes de família’, que aparece no Código Civil, art. 70, pode ser instituidor a mulher, como podem ser os pais dos menores, ou só um deles. Família não é só a que se constitui com o casamento. A regra jurídica sobre o limite legal não tem incidência retroativa (4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 28 de julho de 1944, RF 101/92). Se o prédio foi instituido em bem de família, quer pelo marido, quer pela mulher, quer por ambos os pais dos menores, quer por um só, somente com o assentimento dos filhos pode ter outro destino, ou ser alienado. Instituido em bem de família por duas pessoas, cônjuges ou pais de incapazes, é preciso que haja o consentimento de ambas. 3.Circunstâncias posteriores. Se o prédio foi constituído em bem de família, quer pelo marido, quer pela mulher, quer por ambos, somente com o consentimento dos dois e o assentimento dos filhos pode ter outro destino ou ser alienado (assim se há de entender a regra jurídica sobre alienação e destinação). Se houve mudança de residência, não importa; a lei não distinguiu: o que o bem da família protege é a “família”, ainda quando (e principalmente quando) lhe faltem meios para pagar outra casa de habitação. J. M. de Carvalho Santos (Código de Processo Civil Interpretado, Vil, 259) está certo; e errado o acórdão da Corte de Apelação do Distrito Federal, de 5 de outubro de 1934 (AJ 37/326). Sempre que possivel, o juiz determinará que a cláusula recaia em outro prédio, em que a família estabeleça domicílio. No ato da instituição devem os instituidores, ou não ter dívidas, ou só as ter de valor tal que possam ser pagas por outros bens dos instituidores. Quem alega a ineficácia relativa da instituição, tem, pois, de provar que, não paga a dívida, não poderia ser executada, ao tempo do vencimento, sem atingir o bem de família. Não há recurso contra a decisão que defere o pedido, ou que o indefere (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 264, § 39) 4.Ato de instituição. Quando se diz que a instituição do bem de família se há de fazer por escritura pública, com a destinação a domicílio, apenas se trata de constituir negócio jurídico. Trata-se de regra jurídica somente de direito euremâtico, de forma não processual. Regra jurídica de direito extrajudicial. Pertence ao direito civil e, se inserta em lei processual, apenas reproduz parte da regra de direito civil. Mas engano seria tê-lo como formador, por si, de eficácia do negócio jurídico. A escritura pública não basta — a declaração de vontade, a que se alude, é da classe daquelas declarações de vontade, a respeito das quais não se estabelece a eficácia dos

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negócios jurídicos: há outros elementos integrantes — a publicidade (procedimento edital notarial), o registro e, eventualmente, a cognição judicial. A rigor, só esse ponto é processual, com forte dose de jurisdição voluntária. 5.Ato jurídico, a causa de morte, e pré-contrato ou promessa unilateral de contratar. Nada obsta a que se institua em testamento o bem de família; nem que, tendo havido promessa de constitui-lo, resulte de sentença em ação de emissão de declaração de vontade, que se transcreverá por publicação, porque o negócio jurídico tem essa publicidade especial, e a sentença “constitui”, porém não confere eficácia erga omnes. São pontos, esses, de grande relevância teórica e prática. 6.Procedimento edital. O procedimento edital a que se reporta a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 261, precede ao registro. E um dos raros casos em que o procedimento por éditos foi entregue ao notário, tratando-se de mais do que das publicações de registro. Historicamente, quando se retirou aos juizes parte da cooperação nos negócios jurídicos, exatamente se lhes conservou o presidir ao procedimento edital instrucional ou integrativo. 7.Publicação antes do registro. A publicação antes do registro tem a conveniência de não surpreender o público sobre a data em que começa a eficácia erga omnes. O sistema das leis sobre registros públicos, anteriores, ou não, ao Código de Processo Civil, interpretando demasiado à risca o art. 73 do Código Civil de 1916, verbis “transcrita no registro de imóveis e publicada na imprensa local”, ordenava registrar-se antes de publicar-se; de modo que ficariam duas possíveis datas de eficácia (registro e publicação). A concepção do Código de Processo Civil do Distrito Federal, que o Código de Processo Civil de 1939 adotou e está na Lei nº

6.015, de 31 de dezembro de 1973, é a que consulta os métodos de técnica do procedimento edital instrucional. 8.Competência do oficial do registro. A competência do oficial do registro de imóveis da situação do bem a ser destinado atende a que é o bem que é “afeto a fim”, e não se há de pensar no próprio foro do domicilio do instituidor ou dos instituidores. 9.Resumo da escritura. Do edital consta o “resumo da escritura”, porque a escritura, nos seus pormenores, interessa aos figurantes, e não ao público. Qualquer defeito se sana com o registro, exceto se há erro na identidade dos instituidores ou do prédio, caso em que o registro pode ser retificado, a pedido de quem tenha pretensão a reclamar. § 181. Direito de reclamação 1. Reclamação de interessado. Se alguém se diz prejudicado, tem de reclamar dentro do prazo legal de trinta dias, contados da data da publicação do edital. A reclamação exige-ser escrita e dirigida ao oficial do registro de imóveis. Há pretensão a reclamar, e. g., o que tem direito real sobre o prédio, ou posse que não seja direta (imediata) em relação aos instituidores, o credor por dividas anteriores à publicação feita. 2.Eficácia real. A eficácia real só se inicia com o registro. A simples lavratura da escritura pública não impede a penhora por dívida do instituidor (6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 28 de janeiro de 1947, RF 115/124, OD 45/389). 3.Nem transcrição nem inscrição. No Código de 1939, dizia o art. 650 que, findo o prazo, sem reclamação, o oficial público “transcreveria” a escritura e arquivaria o exemplar do jornal, em que se fez a publicação. Sem pertinência fora o Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1939, art. 277 (“inscrição” antes da publicação). Entenda-se publicação antes da “transcrição”. Não mais se faz no livro de registros diversos; porém no “livro

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próprio”. Havia “transcrição”, e não “inscrição”. Na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, o art. 263 não alterou o que antes se estatuia. Apenas há entender-se que a designação genérica de registro engloba transcrição e a inscrição a que ele se refere (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 168). 4. Registro. Formalidade essencial, a falta de registro no Livro nº 3 é causa de ineficácia; portanto, sem eficácia erga omnes. Esses efeitos somente começam depois de registrada a escritura pública, palavra por palavra, na respectiva matricula. O instituidor ou instituidores não respondem pelos danos que alguém sofra com a falta dos registros; mas o oficial responde, inclusive ao instituidor ou aos instituidores. 5.Reclamação e suspensão do registro. O Código de 1939 inseria regras de direito dos registros, não de processo civil, nos arts. 647-651, pr.; somente nos § § 1º-3º do art. 651 cogitou da eventualidade de ofensa à pretensão (de direito material) a instituir bem de família e, pois, do nascimento da ação de instituição de bem de família. A ação somente nasce dessa ofensa à esfera juridica do pretendente à instituição do bem de família (art. 651). O Código de 1973, art. 1.218, VI, manteve o direito anterior. Mas adveio a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, arts. 260-265. O procedimento edital provocatório é estranho, aí, ao processo civil: é função do oficial do registro de imóveis e a “reclamação” do provocado tem a eficácia de suspender o registro. Então, se o pretendente não se conforma, a relação jurídica processual está formada com o seu pedido ao juiz, para que, a despeito da reclamação, o registro se faça. A ação é puramente mandamental: tudo que foi constitutivo se perfez antes de tal pedido. Para o registro, não tendo havido reclamação, toda competência tem o oficial do registro de imóveis, de modo que a sua função dispensaria o processo civil. Em verdade, a ação que se propõe é apenas no caso de ter havido reclamação eficaz. O pretendente exerce-a para obstar à eficácia da reclamação, O mandamento, que ele impetra, é negativo da eficácia da reclamação; não é mandamento negativo de mandamento, como o da ação de embargos de terceiro. O pedido do art. 264, § 1ª, da Lei ré 6.015 (antes, art. 651, § 1ª, do Código de 1939) instaura a relação jurídica processual, sem a lei ter obrigado à angularidade, por se tratar de ação que transformou a “reclamação” administrativa em causa de ação. Pode-se somente perguntar se sobre o “requerimento” do pretendente deve falar ou é permitido falar o provocado, o que estabeleceria a angularidade e faria a transformação da ‘reclamação” em acho, em provocatio ad agendum. Que o juiz não precisa ouvir o reclamante, está claro na lei, que disso não tratou. Se pode ele ouvir o reclamante, é questão que não tem resposta a priori, pois que não se firma em qualquer pretensão do reclamante a ser ouvido pelo juiz: ou esse ordena o registro, em sentença de cogníção incompleta (isto é, com ressalva), ou denega-o. No primeiro caso, há o recurso do pretendente ao registro, que é o de apelação. No segundo, não há recurso: contra o mandado do juiz somente se há de admitir a eficácia mandamental da ação constitutiva negativa (de nulidade da instituição) ou a eficácia mandamental da ação executiva por dívida anterior à instituição. A ação executiva a que se referia o Código de 1939, art. 651, parágrafo 2ª, in fine ou a) era ação de execução de título não-judiciário, sendo que, ai, somente a sentença final (cognição completa) podia ter a eficácia definitiva, pois que, a inicial foi adiantamento de execução, ou b) era ação executiva, sem adiantamento de execução, porém sem cognição completa ou incompleta inicial, ou c) era ação executiva em que a cognição completa já se supunha (execução de sentença). A estrutura do processo não se afasta da forma típica dos processos provocatórios quando alguém atende a alguma provocatio. Se há reclamação, ou a) os instituidores desistem, suspendendo-se, indefinidamente, o registro; ou b) requerem ao juiz de direito da comarca, ou ao juiz de direito que for competente, ou a qualquer deles, em caso de haver dois, ou mais, competentes, que se registre apesar da reclamação. Nenhuma eficácia constitutiva tem a escritura pública no caso a) porque o negócio jurídico da instituição do bem de família é compósito, e não da classe daqueles negócios em que a escritura pública opera todos os efeitos entre partes. Resta, porém, saber-se a escritura pública tem o efeito obrigacional de se requerer a publicação. Tal efeito depende do negócio subjacente ao da instituição do bem de família. Se foi o testador que deixou em bem de família o prédio, o testamenteiro tem o dever de providenciar. Se foi a mulher que outorgou a escritura, ela, ou o marido, como chefe da família, pode requerer. Se foi outorgada pelo marido a escritura, recusando-se ele a requerer a formalidade integrativa, ou caindo em incapacidade, pode requerê-la a mulher. Se ambos caíram em incapacidade, o tutor de qualquer dos filhos, ou o curador de qualquer dos cônjuges, se o casal não tem filhos. A referência a instituidor, que aparece nos textos legais, é apenas exemplificativa: ser do instituidor o pedido é

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o que corresponde ao quod plerum que fit. 6. Registra a despeito da reclamação. O ‘requerimento” do instituidor para que o juiz ordene o registro, a despeito da reclamação, é postulação, e o juiz exerce função de cognição superficial, incompleta, tanto que, se o defere, tem de ressalvar ao reclamante o uso da ação de nu/idade da instituição do bem da família, segundo os princípios de direito material, em processo de rito comum, e a ação executiva de titulo extrajudicial ou a ação executiva de sentença, ou qualquer outra, executiva lato sensu, que apanhe o bem, desde que o direito material a permita. O juiz tem de fazer a ressalva, explicitamente. Porém, se não o faz, nem por isso ficam fechadas ao reclamante as vias ordinárias para as suas pretensões contra a instituição, direta ou indiretamente. 7. Natureza da decisão do juiz. Pode o juiz desatender ao pedido daquele que pretende o registro. Para isso, hão de militar razões de se não admitir, in casu, a instituição, tais como prova de dívida com título executivo que abranja, sem ser preciso ação declarativa ou de condenação sobre o quanto, mais que os outros bens do instituidor poderiam solver, ilegitimação do instituidor, ou falta de qualquer outro pressuposto da instituição que se possa provar com documento de valor probatório suficiente. A ressalva está sempre subentendida; a decisão é dessas a que se dá o nome de sentença de cognição incompletada. Nem depende do juiz completá-la. A reserva é implícita. A resolução do juiz, que manda registrar-se, é, pois, mandamental, integrativa, com reserva de melhor cognição. 8. Registro contendo o despacho. O registro, quando se tenha dado o caso de resolução judicial, tem de conter o despacho do juiz; de modo que a falta da inserção importa nulidade do registro. 9.Cancelamento do registro. Há o possível cancelamento do registro. Ponto digno de nota é o da audiência dos interessados, filhos do casal. Claro que, ainda instituído bem de um só dos cônjuges, o laço obrigacional fica entre eles, e o consentimento do outro é essencial, embora judicialmente , segundo os princípios. Quanto aos filhos, entendeu o Conselho de Justiça da Corte de Apelação do Distrito Federal, a 2 de novembro de 1937 (AJ 45/104), que basta ser ouvido o orgão do Ministério Público. Não há solução a priori. Se os menores estão sob pátrio poder, há colisão de interesses. Se estão sob tutela ou curatela, tem de ser ouvido o tutor ou curador. Se relativamente incapazes, não se explica não serem ouvidos. A lei não concebeu o bem de família como de livre cancelamento. Sempre que se pede cancelamento, a ação é dirigida, não só à desconstituição do negócio jurídico da instituição do bem de família, mas sim, e principalmente, à desconstituição do registro. A lei concebeu o bem de família como de livre instituição; não o cancelamento, de modo que a ação é constitutiva negativa. 10.Instituição embutida em regra jurídica de transmissão. O art. 265 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, diz: “Quando o bem de familia for instituido juntamente com a transmissão de propriedade (Decreto-Lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, art. 8ª, § 5ª), a inscrição far-se-á imediatamente após o registro da transmissão ou, se for o caso, com a matrícula”. O art. 8ª, § 5ª, do Decreto-Lei nº 3.200 diz que “será feita a transcrição do titulo de transferência da propriedade, em nome do mutuário, com a averbação de bem de familia, e com as cláusulas de inalienabiliedade e de impenhorabilidade a não ser pelo crédito da instituição mutante”. O art. 8ª, § 5ª, está no Capítulo V do Decreto-Lei nº 3.200, que trata dos mútuos parar casamento. Portanto, não havemos de pensar em tal espécie somente como exemplo. O que se colima no art. 265 é afastar-se qualquer exigência do procedimento dos arts. 260-164. No negócio jurídico de que resulta a transmissão já se inseria a cláusula de destino a domicílio da família. Por isso, não mais se precisa de formalidades. Dir-se-á que pode acontecer que o alienante tenha dividas: mas a cláusula não é sem beneficio e sim em benefício do adquirente. Nada obsta a que, feito imediatamente o registro, advenham as ações previstas no art. 264, § 2ª, pois que houve a ressalva.

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Capítulo IV

Ação de nulidade de patente de invenção e de modelo industrial, e de registro de desenho industrial e de marca

§ 182. Patente de invenção 1.Privilégio de patente de invenção. O ato administrativo que concede o privilégio de patente de invenção é ato jurídico de direito material. Ao direito processual o que interessa é a pretensão a desconstituir a concessão, cuja natureza se tem confundido com a pretensão de direito material a obtê-la. A ação é mais constitutiva (negativa) do que declarativa. Assemelha-se a de nulidade de casamento, pela eficácia ex tune da sentença. Mas, em rigorosa técnica juridica, é ação com eficácia de mandamento, com força de constitutividade. A discussão científica seria entre ser a ação constitutiva negativa ou ser mandamental; mas o registro atende ao que se pediu, no plano de autoridades que não são judiciárias, autoridades administrativas, outros órgãos do Estado. O mandado muito importa; antes do cumprimento dele (o que depende da obediência do outro orgão), não se exaure a força da sentença. A situação não é semelhante à de casamento de que se decreta a nulidade e se aguarda a formalidade registrária, sem existir já o casamento, pela força constitutiva negativa da sentença; é a de sentença “que manda”, sentença cuja eficácia imediata é esse mandamento, razão por que não há eficácia erga omnes senão a que resulta do cancelamento da patente pelo Estado. A patente existe, atingida pela sentença, e vai desaparecer com o cumprimento do mandado. Alguns juristas falam da ação de nulidade de patente já extinta; e discutem (a) se é ação declarativa ou constitutiva. Conhecem-se ações declarativas de relações extintos, ou de relações futuras (existencialidade no tempo); o caso seria de constitutividade negativa da “existência nula, no passado”. O problema complica-seriamente se imaginamos (b) outro caso, o da extinção da patente antes da apelação e depois da sentença que decretou a nulidade ou a validade, e perguntamos se pode haver apelação. Às questões (a) Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 473, nota 61) respondeu que sim, pois a apelação vai contra a eficácia declarativa da sentença (naturalmente junta à eficácia constitutiva, cf. notas 82 s. de Konrad Hellwig). Para nós, o que importa é que lá está o registro, a despeito da extinção. Enquanto registro há, — ou há mandado do juiz que decretou a invalidade, ou a ação mandamental pode ser exercida. Por exemplo: foi decretada a nulidade de um casamento pelo fundamento a, e a lei de registro, posterior à sentença, omitiu, na escrita dos livros, a ação de nulidade com o fundamento a — o cônjuge ou interessado tem ação mandamental para que se “mande” registrar; é outra ação, não a de nulidade do casamento, constitutiva negativa. Nas ações de nulidade de patente de invenção, a decretação de nulidade é fim próximo, o fim e eficácia plenos estão no mandamento. Não podemos pleitear a nulidade de casamento extinto (aliter: a declaração de existência ou inexistência; a nulidade do casamento dissolvido, isto é, depois de passada em julgado a sentença de divórcio). Aliter, a nulidade ou anulação do casamento dos separados judicialmente. 2.Nulidade. (a) E de enorme importância no sistema jurídico, exame pormenor, detido e aprofundado, de cada uma das causas de nulidade. São nulas, por exemplo, as atribuições de patente de invenção e de modelo de utilidade, se ficar provado que o seu objeto não satisfez os requisitos exigidos pela lei ou se houverem sido concedidas com preterição de direitos de terceiros, ou se o título do invento for, com fim fraudulento, diverso do seu verdadeiro objetivo; ou se o autor, no relatório descritivo do invento, desatendeu às exigências legais. (b) Não há ação de nulidade por infração de regra jurídica do processo administrativo, posto que possa haver

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ação declarativa da inexistência do registro, ou de ato de decisão administrativa (o registro foi feito e expedida a patente sem que tivesse havido decisão que o estabelecesse). Se não houve representação do inventor, ou se quem requereu não a tinha, como dizia, do sucessor do inventor, não há pensar-se em nulidade da patente. Outrossim, se houve infração de regra jurídica que exige só se referir o pedido a uma invenção (Eduard Reimer, Patentgesetz und Gesetz betreffend den Schutz von Gebrauchsmurtern, 1, 571). Nem é causa de nulidade a falta de publicação do pedido, ou dos pontos característicos da invenção, ou do novo exame, ou a diferença entre o que se patenteou e o que se pedira para ser patenteado. Tampouco e causa de nulidade considerar-se patente dependente a que não o devia ser. (c) De regra, a lei enumera os casos de impatenteabilidade sem ser por falta de novidade, ou ofensa a direito de terceiros. Também soem aludir à impatenteabilidade da invenção não suscetível de utilização industrial. O que não é invenção não pode ser novo. Mais: se não há invenção, não pode ser descrita clara e precisamente. Dá-se o mesmo a respeito da utilizabilidade industrial: se foi descrita, clara e precisamente, a utilização industrial, de que é suscetivel o invento, não há por onde pensar-se em nulidade; se tal utilizabilidade não ocorre, não podia ser descrita clara e precisamente. Por onde havemos de concluir que, se não há invenção, ou se não há utilizabilidade, há caso de nulidade por falta de descrição, clara e precisa, da invenção, seu fim e modo de usá-la. Se alguma invenção é dita, por lei, impatenteável, a despeito de se tratar de invenção e ser utílizável industrialmente, nula é a patente. A favor de tal solução está a regra jurídica onde se diga que pode propor a ação de nulidade da patente o Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, quando o privilégio for concedido, sem que a invenção possa constituir objeto de patente. a) Há a causa consistente na falta de novidade. A invenção tem de ser nova. A novidade aprecia-se ao tempo em que se depositou o pedido de patente, e não depois, ao tempo em que se propõe a ação de nulidade. Para se demandar por nulidade de patente, não se precisa alegar a culpa do patenteado, nem o dano sofrido pelo autor. b) A ofensa a direitos de terceiros é causa de nulidade. Direitos de terceiros, disse-se em lei, O intérprete tem apenas de verificar quais os direitos de outrem que se ofenderam, ou que se podem ofender com o ato estatal da patenteação. O inventor tem pretensão contra o requerente da patente, pela ofensa ao direito formativo gerador, pois o inventor era quem o tinha e o requerente disse ter. Tem a ação de nulidade e pode suscitar o cancelamento de oficio. Tem, outrossim, a ação declarativa, com que se porá no lugar de requerente para caso de decretação de nulidade ou de cancelamento, se não acha prudente aguardar o momento posterior em que o requeira. Tem mais a ação de abstenção ou a de preceito cominatório, uma vez que o que está a usar invenção obra ilegitimamente, inclusive se vai requerer a patente. E a ação de imissão. A invenção não dá contra terceiros as ações específicas das patentes, mas tem o inventor as ações de concorrência desleal. c) O relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução. A falta dos requisitos que particularizem o pedido e definam, clara e precisamente, a matéria objeto da proteção, (e. g., não-designação da invenção, designação imprecisa ou equivoca, denominação de fantasia), não é causa de nulidade se o requerente não obteve o titulo com intuito de fraude (= intuito de contrariedade a direito), nem pôs título que oculta a natureza ou os fins da invenção, em vez de mostrá-la. Nesses casos o que causa a nulidade é a intenção má. O título pode ter sido sem defeitos, mas a argúcia do requerente o escolheu para algum ardil ou alguns ardis. d) A infração à regra jurídica em que se exija a descrição, de maneira precisa e clara, da invenção, seu fim e modo de usá-la, é causa de nulidade. Não importa se houve, ou não, culpa do declarante. Se não descreveu a invenção, precisa e claramente, não se pode ter patenteado, validamente, o que se patenteou —a patente teria sido de algo que se não inventou, a julgar-se pelo descrito. O pressuposto é assaz relevante.

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Se a patente é sobre invenção que em nada adianta o progresso técnico, não é nova: não pode ser novo o que não é invenção. A novidade é da invenção; se não há invenção, novidade não há. Tampouco se poderia descrever precisa e claramente. Todos esses pontos servem à revelação do sistema da lei. Se não se fez descrição da invenção, clara e precisa, nem se lhe apontou o fim, ou modo de usar, a patente é nula. 3.Natureza do invalidade. Poder-se-ia discutir se a ação constitutivo negativo, contra a patente de invenção, é ação de nulidade, ou ação de anulação. Contra aquela, há o argumento de se atribuirem efeitos à patente até que se desconstitua, posto que ex tunc a eficácia da sentença constitutiva negativa; mais: o de se precisar de propositura de demanda de curso ordinário. Portanto para a segunda, há o argumento da produção de efeitos até que se desconstitua a patente; mais: o de se precisar da propositura de demanda de curso ordinário. De lege lato, um tanto à semelhança do que se passa com as nulidades de casamento, o direito concebe as espécies como de nulidade, mas atribui eficácia à patente nula até que seja desconstituída e exige, para a decretação de nulidade, observar-se o curso ordinário. A ação é ação de nulidade. 4. Nulidade parcial. A nulidade pode ser restrita a um ou a alguns pontos caracteristicos da invenção; então, a eficácia da sentença que decrete a nulidade somente atinge o ponto ou pontos que foram tidos por ofensivos aos direitos de terceiros, ou sem novidade. A regra jurídica sobre nulidade pode incidir sobre todos os pontos característicos da invenção ou sobre qualquer deles. Posto que a ação de nulidade possa atingir somente um ponto ou alguns pontos que se não hajam de ter como novidade, a maior aplicação da regra juridica sobre par-cialidade da invalidade é a propósito da ação de nulidade por ofensa a direitos de terceiros ou por infração de regra jurídica sobre relatório descritivo do invento. 5.Causas de nulidade. (a) Diz-se “não-patenteável” a invenção (= é sem efeito a patente) se tem finalidade exclusivamente contrária à lei, à moral, aos bons costumes, à ordem, à saúde ou à segurança pública. Lei, aí, é a lei penal ou outra lei protectiva, de natureza cogente, que contenha, ou não, proibição de patente. O fim é que pode ser contrário à lei e causar a nulidade. Se se trata de lei penal e a patenteação se refere a ato ilícito criminal como fim, está caracterizada a invalidade da patente; basta que o fim o seja. A arma de fogo ou outra não está pré-excluida se a finalidade não é o crime. Os povos não consideram crimes as suas guerras. As leis sobre alimentos e bebidas podem conter (e de ordinário contêm) regras juridicas proibitivas, que podem reper-cutir na validade das patentes. Bem assim, as leis sobre jogo e aposta, se vedada a fabricação do aparelho ou do objeto. Note-se que se trata de pressupostos da patenteabilidade; de modo que, havendo mudança de lei entre invenção e o exercício do direito formativo gerador, a lei vedativa apanha a espécie, bem assim a lei que se edictou entre o requerimento e a decisão da autoridade administrativa (Eduard Reimer, Potentqesetz und Gesetz betrefJend den Schutz uon Gebrouchsmustern, 1, 103). As proibições temporárias somente atingem as invenções a serem patenteadas durante o tempo da incidência delas. (b) É nula a patente conferida se contrária à moral (= aos bons costumes) a sua finalidade. A contrariedade à moral não há de ser qualquer; mas sim a que resulte da patenteação. Os preservativos e meios anticoncepcionais podem ser patenteados, porque a finalidade deles não é “exclusivamente “contrária à moral. Imoral seriam algumas das razões do uso (cf. E. Pietzker, Dos Potentqesetz, § 1, nota 129; Krausse-Katluhn-Lindenmaier, Kommentor zum Potentrecht, 3ª ed., § 1, nota 46). A contrariedade à moral pode ser temporária; e. g., durante guerra (Eduard Reimer, Patentgesetz und Gesetz betrefjend den Schutz von Gebrouchsmustern, 1, 104). (c) A contrariedade à saúde pública se subsume, a rigor, na contrariedade à lei. É nula a patente ainda que não esteja prevista em lei a espécie, se, em verdade, a finalidade é exclusivamente contra a saúde pública (= ofensiva à saúde pública). A quaes tio facti passa à frente. No que concerne à contrariedade à saúde pública, também aqui há mais casos de nulidade do que existiriam se só se houvesse cogitado de nulidade por ser a patenteação ‘contrária às leis”. A lei pode não ter previsto a finalidade de ofensa à segurança pública.

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(d) Não podem ser patenteadas as invenções que tiverem por objeto substâncias ou produtos alimenticios. Advirtamos, de inicio, que se não pré-exclui o nascimento do direito autoral de personalidade, nem o direito autoral de nominação; tal como se passa com a descoberta científica. O que hão se deixa nascer é a exclusividade, que a patente daria. Em verdade, quer no tocante a alimentos, quer no tocante a medicamentos, fazem-se res communes omnium as invenções que tenham por objeto substâncias ou produtos alimentícios e medicamentos de qualquer espécie. Tudo se passa no plano da patrimonialidade, para se pré-excluir o direito formativo gerador. O direito que há é o de todas as pessoas a respeito de res communes omnium. A lei veda a atribuição de direito exclusivo à invenção de substâncias e produtos alimentícios, ou meios de alimentação. A opinião dominante não inclui em tais meios os que se referem à alimentação de animais ou de plantas. Todavia, os processos destinados à fabricação de substâncias ou produtos alimentícios são patenteáveis. Mistura de processos não é patenteável (Eduard Reimer, Potentgesetz und Gesetz betreJfend den Schutz uon Cebrouchsmustern, 1, 104), salvo se algo de quimicamente novo, como resultado, advém (Emil Muíler, Chemie und Pcitentrecht, 2ª ed,, 91), O que se disse quanto aos alimentos (direito autoral de personalidade, direito autoral de nominação, processos) também incide quanto aos medicamentos. (e) São impatenteáveis os produtos químicos, drogas ou preparações, que sirvam à cura, melhora ou aplacamento de moléstias ou doenças, — quer para homens, quer para animais, ou para plantas. Incluem-se os meios de imunização, os antissépticos e os meios de preservação. A prenhez não é doença, de jeito que os meios para facilitação são patenteáveis; bem assim, os meios para o parto sem dor. Os preparados e processos para extinção de microorganismos são impatenteáveis. Não assim, pastas de dente, pôs-dentifricios, cosméticos sem medicamento e produtos semelhantes. (f) As substâncias, que por meios ou processos químicos se obtêm, podem ser objeto de patente; bem assim, o processo novo para a fabricação de substâncias “químicas” pode ser patenteado. Aliter, as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer natureza, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico. Pareceu a Emil Moiler (Chemie and Patentrecht, 2ª ed,, 14) obscura a regra jurídica proibitiva da patenteabilidade das substâncias quimicas, e tal fora a do direito brasileiro. Retirou-se a impatenteabilidade tanto mais quanto outros países admitem a patenteação das substâncias “químicas” (e. g., Estados Unidos da América). Não se pré-excluem as substâncias, nem as ligas metálicas e as misturas com qualidades intrínsecas específicas, que se caracterizem por sua composição. Ligas metálicas são espécies metálicas obtidas por mesclas, como as que conseguem polimento, transparecência ou opacidade, utilidade em fogo ou eletricidade. O que se diz sobre meios entende-se sobre processos. Simples mistura não é patenteávei. Se o processo de mistura obtém resultado químico que antes não se obtinha, surge a patenteabilidade (Emíl Muíler, Chemie and Patentrecht, 2ª ed., 91). (g) Se a patente foi dada a concepção puramente teórica, é nula. E possível que a concepção seja nova e verdadeira, dela emanando direito autoral de personalidade e direito autoral de nominação. Porém não é invenção, segundo o conceito que se fixou. A entrada no mundo jurídico, pela publicidade, é marcada pela comunicação da utilidade e da exploração. Os divulgadores são os mais visíveis titulares do direito sobre a res communis omnzum, no utilizarem-se dela e no explorarem-na. Mas titulares são todas as pessoas. As descobertas não são patenteáveis; são patenteáveis as invenções. Não basta ser novo o enunciado, não basta se ter aumentado o conhecimento humano; é preciso que algo se faça de novo, industrialmente utilizável. A descoberta de produto da natureza não é invenção. O todo ou parte dos seres vivos não é patenteável, salvo quanto aos microorganismos transgênicos que, não sendo mera descoberta, mas expressão — mediante intervenção humana imediata em sua composição genética — de característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais, atendam aos requisitos da novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Não é inventor quem descobre lei científica. Nem é invenção a descoberta de função (Funktion-sentdeckung), salvo serve a ato técnico, de utilidade industrial; mas, então, é o processo que se patenteia.

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À ação de nulidade com fundamento na regra jurídica que faz imprivilegiável a concepção puramente técnica pode o demandado objetar que não se trata apenas de descoberta, e que houve descoberta e indicação de como se pode alcançar resultado, útil industrialmente, como o emprego dela segundo a descrição, que se fez, do invento. (h) As espécies de simples justaposição de órgãos, peças ou partes conhecidas, mudança de forma, proporções, dimensões ou mudança de materiais não são invenções, em sentido próprio. Quem só justapõe o que era conhecido ao que era conhecido não inventa. Nem inventa quem a algo de conhecido apenas muda de forma. Nem o que faz maior ou menor o que antes se inventara, ou talvez nem invenção fosse. Nem o que apenas substitui materiais, o ou b, em abc, por d ou e. Se tal regra jurídica não estivesse na lei, entender-se-ia o mesmo. A sanção, em se tratando de patente com tal infração, é a nulidade. Nenhum outro direito, após o julgado, que a decrete, talvez reste a quem a obtivera: talvez possa requerer a patente de modelo de utilidade, ou de desenho ou modelo industrial. (i) Novo é o que, com os meios técnicos de que se dispõe no Brasil, ainda não seria feito por qualquer técnico da especialidade. A novidade aprecia-se. comparando-se o requerimento, com os seus dados, e o estado da técnica no momento. Se há requerimento anterior, ao tempo dele é que se examina o novum. A apreciação é objetiva e independe de estar o inventor, ou não, a par da técnica vigente. A sentença com sanção de nulidade desconstitui a patente, ex tunc; salvo, se, ao ser proferida a sentença, já se dera o cancelamento pela autoridade administrativa, porque, então, ignorando o juízo o que ocorrera e lhe deveria ter sido comunicado, lança decisão que já encontra desfeito o que decretara se desfizesse. O) A relatividade da eficácia da patente resulta da decisão administrativa que defere o requerimento de patenteação. Portanto, a patente, no que ela atinge direitos de terceiros, que a pré-excluiriam, é ineficaz. (k) O não-inventor, que não sucedeu a inventor, não faz sua a patente, nem a invenção. Invenção não é res nullius, de que o primeiro a requerer a patente se aproprie. A invenção está no patrimônio de alguém, a que corresponde direito à patente (direito formativo gerador), ou se fez res communis omnium. Não há ocupação, nem usucapião de invenções. A atribuição da patente a quem não era o legitimado a ela ou fere direito de alguém, ou direitos de alguns, ou fere direitos de todos. A lei ressalva tais direitos. Se alguém, antes do requerimento da patente, aliena o direito formativo gerador que pertence a outrem (= o não-inventor transfere o direito do inventor à patente), ofende a esfera jurídica do legitimado à patenteação como ofenderia a E quem cedesse a C o crédito ou outro direito que tocasse a E. Tal ofendido tem as pretensões de direito comum. O direito falharia aos seus propósitos de regrar, com acerto intrínseco, as relações da vida, se fizesse da patenteação o resultado de occupatio pelo primeiro que chegasse ao lugar do registro, requerendo a patente. No sistema jurídico brasileiro, não se chama à ação do inventor ou seu sucessor, antes do requerimento, vindicação (cf. KlaueuMóhring, Patentqesetz, 149), para o direito alemão, que a tem. Tem-na, porém, após o requerimento, em oposição, e após a patente, como ação de imissão, porque o direito real vai nascer ou nasceu, respectivamente. Donde o dilema: ou a) o inventor ou seu sucessor propõe apenas a ação de nulidade e aguarda a decisão para pedir a patente, o que nem sempre é prudente; ou b) propõe a ação de ineficácia relativa e a imissâo, uma vez que a patente seria nula como patente conferida ao falso inventor ou sucessor do falso inventor, mas pós-eficacizável pela inserção do verdadeiro inventor ou seu sucessor como titular. Essa conversão quanto ao sujeito é devida a ter sido usado pelo não-titular o direito de requerer a patente, criando o direito real. (1) Se a pessoa lesada com a patenteação não se opôs, ou se opôs sem ser atendida, como se alegou que o requerente não fora o inventor, ou não tem direito como sucessor ou direito fundado na regra jurídica sobre invenção do empregado na vigencia do contrato, com os meios do emprego, cabe-lhe ação de nulidade da patente, com base em ter sido concedida com pretenção de direitos de terceiros. Isto é, a patente foi dada a quem não fora o inventor, nem era sucessor do inventor, nem titular por força da regra jurídica sobre invenção

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do empregado. Se o terceiro, inventor ou sucessor de inventor, ganha a questão e não houve posterior obstáculo à patenteação, pode ele requerê-la. (m) Se o inventor ou seu sucessor, ou, mais largamente, o titular do direito formativo gerador não pede a decretação da nulidade quanto ao que obtivera a patente, mas, querendo imitir-se na propriedade e posse da patente, pede retificação e imissão, procede como o dono da propriedade imobiliária que encontra como titular do domínio, no registro de imóveis, quem o não é: pede a decretação da retificação do registro e o registro em seu nome, quiçá a própria posse (rei vindicatio). Na lei alemã (Lei alemã de 8 de maio de 1936, § 5), empregam-se expressões que não devemos imitar (“Hat die Anmeldung bereits zum Patent gefohrt, so kann er vom Patentinhaber die (ifbertragung des Patents verlangen”. Tendo o requerimento já levado à patente, pode ele exigir do portador da patente a transferência da patente). A ação que seria a de nulidade passa a ser a declarativa de ineficácia parcial, e a imissão é devida a ter-se conferido a outrem que ao dono a patente. O ato de que se declara a ineficácia é o ato da autoridade administrativa que patenteou para o requerente. Salva-se, com a imissão, a patente. O elemento mandamental da sentença é, então, restrito à retificação do nome: retira-se o de quem figurava como titular e põe-se o do inventor ou seu sucessor. A sentença decreta a ineficácia relativa da patente dada ao réu; portanto, somente no que a ele concerne (ineficácia parcial, como ocorre quando se pede a retificação do registro do imóvel). Tal construção, no sistema juridico brasileiro, é a melhor, porque a patente se expede com ressalva dos direitos de terceiros, e, em virtude de regra jurídica explícita, são nulas as patentes que se conferem com preterição de direitos de terceiros. No sistema juridico alemão, condena-se o demandado a declaração de vontade, invocando-se o § 894 da Ordenação Processual Civil (cf. Eduard Reimer, Patentqesetz und Gesetz betreffend den .Schutz von Gebrauchsmustern, 1, 194), correspondente à regra jurídica processual brasileira sobre ação executiva para declaração de vontade. Mas, lá, há o § 5 da Lei alemã de 8 de maio de 1936, onde se dá ao autor a pretensão a transferência pelo réu. No direito brasileiro, a ação é de imissão, sem o intermezzo da pretensão à declaração de vontade pelo demandado, o que é mais rente ao principio de economia. A construção alemã é um tanto artificial: o demandado obteve a patente a que não tinha direito, porque outrem era o titular do direito formativo gerador; o demandante vindica-a, mediante exercício de pretensão a que o demandado lhe transfira a patente. A construção brasileira parte de que se ressalvaram, na decisão administrativa, os direitos de terceiros e de que a patente fizera direito real o direito do autor, que o requerente da patente usurpara: a sentença declara a ineficácia relativa e insere na relação jurídica de propriedade industrial o inventor, ou seu sucessor, imissoriamente, sem necessidade de se condenar o ofensor a qualquer declaração de vontade. Quando se defere pedido de reivindicação de imóveis não se condena o usurpador a declarar vontade no registro de imóveis; nem tal declaração de vontade se faz mister quando se julga procedente a reivindicação de bem móvel, corpóreo, que haja de constar de registro. Por outro lado, é preciso atender-se a que, diferente do direito alemão, não se distinguem a imissão contra o terceiro adquirente da patente ao não-dono, que estava de boa-fé, e a imissão contra o terceiro adquirente, que estava de má-fé. A patente não é título ao portador, que só se reivindique nas espécies em que se pode dar a vindicação da posse, nem, a fortiori; título cambiário ou cambiariforme. (n)São terceiros que podem ir contra a patente de invenção, argúindo-lhe a nulidade: a) Os que alegam não ter havido invenção, porque, quando se deu a patente, se ressalvaram os direitos de terceiros e esses direitos são feridos pela patenteação do que não foi inventado (cogita-se de não-novidade, e há não-novidade se o que se afirmou a respeito de invenção já alguma vez ou algumas vezes ocorrera). b) Os que alegam ter havido invenção anterior, feita pelo arguente, de que não foi depositado pedido, sem que o inventor houvesse renunciado ao direito formativo gerador, ou à pretensão contra o requerente, ou o houvesse alienado, ou a pretensão contra o requerente. Não ser invenção é não haver, no que se descreveu, algo que antes não existia no mundo industrial. O que só é patenteável como modelo de utilidade, ou registrado como desenho industrial ou marca, não é invenção; a fortioti, o que não tem a natureza de criação industrial. c) Os que alegam ter havido invenção, porém ter-se o requerente apoderado, por si ou por outrem, dos elementos para se apresentar como inventor sem no ter sido (espécie que de modo nenhum se confunde com a anterior, b) do que inventou antes de outro inventor).

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A falta de novidade da invenção pode ofender direitos de terceiros, mas a lei preferiu considerá-la espécie à parte. Por isso mesmo que o direito formativo gerador é patrimonial, porém não real, exerce-se para a aquisição do direito real, sem se confundir com o direito depois formado. Quem antes usava a invenção, sem ter direito formativo gerador, usava-a como res communis omnium: por isso mesmo, há a posse de tal bem incorpóreo, a posse que se tem como a dos bens de uso público. Quem a usava, secretamente, tendo direito formativo gerador, não tinha posse do direito formativo gerador; e a chamada posse da invenção, ErJindungsbesitz, apenas consiste na prática de atos que entravam no suporte fático do ato-fato da invenção, portanto na situação fática de quem ainda não tem o direito de propriedade industrial. Não há óbices a tal concepção, como não os há acerca de posse do bem imóvel ou móvel ainda não usucapido, ou adquirido com reserva de domínio. Porém não só o inventor pode ter essa posse da invenção, pode tê-la quem nega a novidade da invenção (= quem a utiliza como res communis omnium), quem sucedeu ao inventor, ou quem poderia invocar a regra jurídica sobre invenção de empregado. Se alguém fez comunicação à sociedade cientifica, associação técnica profissional, legalmente constituída, ou tese de concurso, ou divulgou em exposição ou feira, oficial ou oficialmente reconhecida, alguma invenção, a data em que se deu a divulgação é equivalente à data da invenção. Qualquer interessado, que alegue ter inventado antes, tem o ônus da prova. Se a pessoa que fez a comunicação requerer a garantia de prioridade, o interessado tem de provar que a invenção não foi feita pelo requerente, com o que vai contra o pedido e a alegação de autoria do que foi comunicado. O que tem direito à exploração, por ser um dos que podem usar da invenção, dentre todos os sujeitos ativos do direito à exploração da res comniunis omnium, não é legitimado à imissão. Somente se imite a quem teria ou tem o direito exclusivo de exploração, o legitimado, materialmente, à patente. Se o inventor alienou o direito, ou houve sucessão a causa de morte, ou por execução forçada, legitimado é o sucessor. À imissão só é legitimado o titular do direito formativo gerador, ou seu sucessor. Não importa, portanto, que o requerente, sem direito formativo gerador, tenha requerido a patente antes do inventor, ou que somente aquele a tenha requerido (Eduard Reimer, Patentgesetz und Cesetz betrefJend den Schutz uon Gebrauchsmustern, 1,196). Cumpre prestar-se atenção ao que se passa: a invenção, ex hypothesi, já foi patenteada, embora ilegitimado à patente quem a requereu; o direito formativo gerador foi exercido por outrem e o titular, diante da situação que se estabeleceu (a da eficácia real da patenteação), prefere à ação de nulidade a ação de imissão, que lhe dê a titularidade que lhe competia. Demandados hão de ser o que pediu a patente ainda não conferida, ou o que a obteve com preterição de direito de terceiro, e o titular da licença voluntária ou obrigatória, simples ou exclusiva. No sistema jurídico brasileiro, não se distinguem os terceiros de boa-fé e os de má-fé. (o) O relatório há de designar, clara mas precisamente, a natureza e o fim da invenção. Com isso, torna-se mais fácil a classificação das patentes e a notícia do invento por parte de terceiros, que tenham interesse na classe da invenção. Pode dar-se que o requerente dê ao invento titulo que lhe não corresponda, ocultando a natureza da invenção e os seus fins. Se é o que ocorre, para que se dê a nulidade será preciso que o titulo seja inexato (= não corresponde à realidade, isto é, à natureza e aos fins da invenção). Não basta que seja demasiado sumário, nem, tampouco, que seja impreciso. Fala-se de título que não corresponde ao objetivo (= título que caberia na classe E e foi escolhido como título que entra na classe A das invenções). (p) São nulas as patentes se o autor, no relatório descritivo do invento, desatendeu às exigências legais. Autor, aí, é o requerente da patente; na ação de nulidade, o demandado. A exclusividade só se pode assegurar, com eficiência e sem ofensa a direitos de outrem, se atenderem no relatório as exigências legais: ter-se descrito, de maneira precisa e clara a invenção, seu fim e modo de usá-la. Note-se a diferença entre a nulidade por faltar a correspondência com o verdadeiro objetivo do invento, e a nulidade decorrente de não ser clara e precisa a maneira de descrição. A ação é desconstitutiva, ex tunc. Não pode o juiz determinar que a descrição exata seja feita, ou deferir o requerimento em que o demandado a proponha, feitas as retificações; teria de ser pedida a patente, sem se

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salvar o processo administrativo. Enquanto a decretação da nulidade por falta de novidade do invento implicitamente declara que, se invenção houve, caíra em domínio comum, e o mesmo ocorre se a nulidade foi decretada com fundamento em haver ofensa a direito de todos, e a descrição do invento pode ter sido clara e precisa, tendo-se a invenção tornado res communis omnium — não há comunização se a infração foi quanto à descrição e exposição sobre o invento: se a patente foi tida por nula, pelo juiz, por ter faltado tal requisito, não foi suficiente a descrição e não se deu a publicação que baste à realização do invento. Ainda pode ser requerida a patente, a despeito da sentença trânsita em julgado. Quem descobre, durante a garantia de prioridade de outrem, só por si, a mesma invenção não tem pretensão à patente, porque a prioridade impediu o nascimento do direito formativo gerador. Tampouco, durante esse periodo. têm de ser ressalvados os interesses de terceiros, que usem a invenção. É preciso que não se negue a eficácia da garantia de prioridade; mas, igualmente, que não se lhe atribua outra eficácia que a sua própria, que é ex nunc. Tudo que se passe após a garantia de prioridade é sem relevância para a limitar. Porém, a garantia de prioridade não cria situação especial ao depositante do pedido em relação ao pretérito. Quando, por exemplo, a Conferência de Londres (1934), após as discussões que encheram o tempo de 1380 a 1934, suprimiu o art. 4ª da Convenção de Paris, na letra A da alinea lª as palavras “sous réserve des droits de tiers”, e acrescentou, na letra B, a frase “e esses fatos não poderão fazer nascer qualquer direito de terceiro, nem qualquer posse pessoal”, só se referiu a fatos que se produziram durante o período de prioridade. Os fatos que, ocorridos antes do início do período da garantia de prioridade, têm de ser atendidos, segundo a lei interna de cada Estado, são invocáveis na ordem interestatal. 6. Legitimação ativa á ação de nulidade. As regras jurídicas sobre legitimação ativa, em se tratando da ação de nulidade são incisivas. Legitimados ativos são apenas a) as pessoas com legitimo interesse, por serem lesadas pela patenteação; b) o Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI. Consideram-se interessados quaisquer pessoas prejudicadas pela concessão do privilégio. O interesse é o de titular do direito sobre a res communis omnium, ou do direito formativo gerador, ou de sucessor na relação jurídica do direito formativo gerador, ou como titular de patente anterior, ou como terceiro prejudicado pela exploração da patente nula (já dizíamos na V ed. dos Comentários ao Código de Processo Ciuti de 1939, III, 204: “Todos a quem aproveita, ou poderia aproveitar, a nulidade da patente, de modo que foram abrangidos os concorrentes e os consumidores. A pretensão processual é própria, e nada tem de colaboração com os órgãos da administração pública. A pretensão de direito material é tipicamente de qualquer direito, e cumpre não se confundir com aquela”). O INPI tem legitimação para a ação de nulidade se há o interesse geral em que se descreva e se torne, algum dia, res communis omnium (o titular exploraria, enquanto não sobreviessentença, e findo o prazo outrem não poderia realizar a invenção), ou se há outra causa de nulidade. 7.Audiência do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, Quando o INPI não for autor da ação de nulidade, intervirá no feito. Será ouvido sobre todos os termos do processo e, especialmente, sobre qualquer acordo que ponha fim à ação movida por particular, competindo-lhe continuá-la, se a conveniência pública o exigir. Desde a Lei n2 5.569, de 18 de novembro de 1928, que criou o cargo de representante do Ministério Público junto à Diretoria-Geral da Propriedade Industrial, teve ele a função de assistente, no primeiro grau de jurisdição, nas ações de nulidade de patentes. O Decreto nº 19.691, de 11 de fevereiro de 1931, art. 2ª, 4ª, pareceu ter suprimido a função, que em verdade passaria aos Procuradores da República. O Decreto nº 22.986, de 26 de julho de 1933, art. 5º, VI, deu ao Procurador da Propriedade Industrial a atribuição de funcionar, no primeiro grau de jurisdição, “como representante da União, nas ações em que essa for autora ou assistente e que se referirem à nulidade e caducidade de patentes de invenção, modelos de utilidade, desenhos e modelos industriais e marcas de indústria e de comércio” (cf. Decreto-Lei nº 968, de 27 de dezembro de 1938, art. 10, 1). Essa atribuição volveu aos Procuradores da República, com o Decreto-Lei nº 9.608, de 19 de agosto de 1946, art. 11, XIV: “representar a União nas ações que se referirem à nulidade e caducidade de patentes de invenção, modelos de utilidade, desenhos e modelos industriais e marcas de indústria e de comércio

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Na atual sistemática, incumbe ao INPI essa função, na medida que tem de intervir no feito se, ele próprio, não o inicia na condição de autor da acho nullitatis (Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, arís. 56-57). Era preciso não confundir-se a função do Procurador da República quando legitimado à ação de nulidade, ou porque a patente ferisse direitos de todos, ou porque a patente não devesser conferida apesar de contrariedade a direito, com a consequência da impatenteabilidade, ou outra causa de invalidade, e a função de orgão da União, ou por ser a União parte ou por ser a União assistente, Idem, quanto ao INPI. 8. Competência e rito. No regime do Decreto-Lei nº 7.903, de 7 de agosto de 1945, art. 87. pelo simples fato de se tratar de patente conferida por autoridade administrativa federal, tinha-se de considerar da competência da justiça que conhece das ações em que a União é ré a ação de nulidade de patente. Se a União fosse autora, ou ré, assistente ou oponente, incidiam as regras jurídicas constitucionais. As causas em que a União fosse autora eram aforadas na Capital do Estado ou de Território em que tivesse domicilio a outra parte. As intentadas contra a União podiam ser aforadas na capital do Estado ou Território em que fosse domiciliado o autor; na Capital do Estado em que se verificara o ato ou fato que deu origem á demanda ou situada a coisa; ou, ainda, no Distrito Federal. As causas propostas perante outros juizes, se a União nelas interviesse como assistente, ou como oponente, passavam a ser da competência de Juízo federal. A lei podia permitir que a ação fosse proposta noutro foro, cometendo ao Ministério Público estadual a representação judicial da União. As ações de nulidade de patente eram processadas e julgadas segundo o domicílio do réu, no Distrito Federal, nos Territórios federais e nas Capitais dos Estados, pelo juiz competente para conhecer dos feitos da Fazenda Pública, em que fosse interessada a União federal, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos. Atualmente, a regra jurídica é explícita: a ação de nulidade de patente de invenção será ajuizada no foro da Justiça Federal (Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, art. 57), figure o INPI como parte ou terceiro interveniente, porquanto aos juizes f ederais é que compete o processamento e julgamento das causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes (Constituição de 1988, art. 109, 1). Sobre o suporte fático não incidem as regras jurídicas relativas a competência de foro insertas no art. 109, §§ 1ª e 2ª, da Constituição de 1988, ou no art. 99, 1, do Código de 1973, porquanto pertinentes exclusivamente à União As ações de nulidade de patente têm o curso ordinário, com o prazo de sessenta dias para a resposta do legitimado passivo titular, e qualquer delas pode ser cumulada com a de indenização. Havemos de entender que a regra jurídica se refere a qualquer patente, (de invenção ou de modelo de utilidade, ou a qualquer registro, de desenho industrial ou de marca). O juiz, motivando o seu ato, pode preventiva ou incidentalmente determinar a suspensão, até decisão final, dos efeitos da concessão da patente de invenção e de modelo de utilidade, ou do registro de desenho industrial ou de marca, e os respectivos usos, quando contrários às leis, à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas. Se a pretensão for julgada improcedente, subsistindo o privilégio, seu prazo será acrescido na proporção do tempo da suspensão. 9. “Exceptio pacti”. Se, por exemplo, o autor obtiver a licença facultativa ou obrigatória da patente, pode o réu opor a exceptio pacti. Salvo se houve ressalva. 10. Sentença e coisa julgada. A sentença que decreta a nulidade tem eficácia contra todos a partir da publicação da anotação feita pelo INPI. Trata-se de sentença constitutiva negativa. A sentença que julga improcedente a ação de nulidade é declarativa e só tem eficácia entre as partes, a propósito do ponto de fundamento que foi objeto do pedido. O mesmo autor pode atacar a patente por outra causa de nulidade que aquela sobre que se proferiu a sentença desfavorável. Outra pessoa pode propor a ação de nulidade com o mesmo fundamento. Tem-se como mesmo autor o homem-de-palha (Eduard Reimer, Patentgesetz iind Gesetz betreffend den Schutz von Gebrauchsmustern, 1, 582) que propõe a ação com a mesma causa; mas tem o réu o ônus de alegar e

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provar que se trata de pessoa que faz as vezes do autor que perdeu a primeira ação. Há diferentes causas de nulidade; dai surgir o problema de se saber se a falta de novidade é um só fundamento, o que faz nascer a exceção de coisa julgada material se o autor perdente, que alegou não ser nova por existir outra invenção anterior, volve a litigar. Porém não há identidade entre todas as ações em que se articula a falta de novidade. Se o titular da patente a transferiu, ou se alguém a ele sucedeu por morte, o novo titular pode opor a exceção de coisa julgada material. § 183. Desenhos industriais e marcas 1. Natureza da ação de nulidade. A natureza da ação de nulidade de desenhos industriais e marcas, e quanto à pretensão, é a de ação desconstitutiva, com forte dose de mandamentalidade. O fito é cancelar o registro, qualquer que seja o caráter que se atribua à operação administrativa, pela qual se atendeu à pretensão formativa geradora (begrúndender Gestaltungscinspruch) de direito público (administrativo). A pretensão do autor é de força (5) constitutiva canceladora (aufhebender Cesta Itungsanspruch) com eficácia mandamental imediata (4) da sentença. 2. Nulidade do registro. O registro que foi feito sem ser no orgão federal concernente á Propriedade Industrial é nenhum (= não existe). Os que foram feitos no órgão federal competente para isso e contrariam regra jurídica vedativa são nulos. Há nulidade do registro da marca e nulidade do depósito, e. g., se falhou o clichê tipográfico. Tratando-se de nulidade só do depósito, antes da decisão definitiva de registro, tem o depositante de atender à sanção e satisfazer a exigência legal. (a) A nulidade do registro das marcas pode resultar da irregistrabilidade (= da impropriedade do objeto que se teve como marca). Tanto a “marca” pode ser irregistrável por não ser marca, e sim bem incorpóreo só patenteável, quanto por ser bem incorpóreo que poderia servir de outro sinal distintivo, porém não de marca. Portanto, por não ser sinal distintivo, ou, embora sinal distintivo, ser irregistrável como marca. a) O que se pode registrar como marca há de marcar, e não só poder distinguir. O que não distingue não se pode considerar marcaz porém não é marca tudo que distingue. Há de ser a marca, antes de tudo, sinal distintivo visualmente perceptível. Há de ter o cunho próprio. Além de distinguir, há de ser nova, isto é, ainda não ser usada como marca, nem ter caído em domínio comum. Há de referir-se a determinados produtos, para que se não confunda com qualquer outra que distinguia produtos idênticos ou semelhantes, sem que se pré-exclua a irregistrabilidade da marca que pode criar confusão (produtos não-idênticos, mas similares; produtos derivados; produtos afins). Não só se tem como irregistrável a reprodução, no todo ou em parte, de marca alheia, anteriormente registrada para distinguir os mesmos produtos ou artigos semelhantes, ou pertencentes a gênero de comércio ou de indústria “idêntico ou afim”, como a própria imitação. b) As marcas constituídas de elementos suscetíveis de proteção como desenho industrial também são irregistráveis. Não assim aquelas em que os elementos ou algum ou alguns deles são nomes comerciais, títulos de estabelecimento, ou expressões ou sinais de propaganda. c) Se a lei pré-exclui a registrabilidade. o registro que infringe a lei é nulo. E o que acontece, por exemplo, com as marcas que empregam brasões, armas, medalhas, bandeiras, emb)emas, distintivos e monumentos oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais, bem como as respectivas designações, figuras ou imitações.

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d) É nulo o registro de certos sinais se não houve o consentimento necessário do titular do direito ao emprego deles. e) A marca ou imitação de marca já usada por outrem, embora não registrada, é irregistrável. Vedam-se a reprodução e a imitação. Tem-se de comprovar o uso e de requerer o registro. Se ao titular do direito de propriedade industrial sobre o sinal distintivo faltava direito formativo gerador, sem ser pelo fato de pré-uso por outrem, o registro é nulo, porque o direito do terceiro titular não podia ser afastado por simples processo administrativo, nem precluiu. f) É causa de nulidade violar-se regra jurídica de competência. g) Se houve preterição de regra jurídica sobre forma, isto é, sobre o processo do registro, como a publicação do pedido de registro, a inobservância dos prazos para oposição e recurso, o não ter precluido a decisão administrativa de deferimento, há nulidade. São nulos os registros de marcas que foram feitos contra as regras jurídicas cogentes. (b) Trata-se de nulidade, e não de anulabilidade. Mas como a respeito da nulidade de patente de criação industrial, a sentença que a decrete somente pode ser em processo com rito ordinário. O juiz não pode suprir a nulidade, mesmo a requerimento das partes. Tampouco a pode decretar fora de processo ordinário: se a alegação foi fora do processo ordinário, a regra jurídica sobre a decretabilidade de ofício não é invocável se a lei exige, como é o caso das nulidades de patentes de criações industriais e de registros de sinais distintivos, que a decretação só se pronuncie em processo de rito ordinário. Seria contradição gritante (sem razão, João da Gama Cerqueira, Tratado da Propriedade Industrial, 11, II. 228). (c) A nulidade pode ser somente de parte do registro da marca. Então, em vez de se cancelar o registro, em sua inteireza, apenas se cancela em parte, por anotações do que foi considerado nulo pela sentença trânsita em julgado (Supremo Tribunal Federal, 16 de junho de 1941, AJ 60/133). (d) O curso da ação é o ordinário, imposto por lei, portanto, tem de ser observado o que a lei processual considera procedimento ordinário. (e) Se o réu entende o registro da marca que o autor argúi de reprodutiva ou imitante é válido, porque nulo foi o registro anterior da marca que teria sido reproduzida ou imitada, pode objetar ao autor, em reconvenção (ação de nulidade da marca anterior); mas o autor, se antes já usava a marca, ou se tem ação fundada na irregistrabilidade, pode vir com a reconvenção à reconvenção. 3. Convalescença. As nulidades do registro, quaisquer que sejam, são nulidades, em sentido exato, a despeito do prazo preclusivo que a lei estabelece. Há algo de semelhante no direito civil comum (Tratado de Direito Privado, Tomo VII, § 811, 1). O que se passa é que há o efeito de convalescença. São nulos os registros de marcas que foram feitos contra a lei. Se a lei somente fala de nulidades e de registros nulos convalescíveis, surgem questões que se hão de levantar: a) Convalesce o registro nulo por ser imoral, ou contra os bons costumes? b) Convalesce o registro nulo que recaiu em sinal já no domínio comum? O uso da marca imoral ou contra os bons costumes pode ser vedado ainda antes de se decretar a nulidade do registro; de modo que a convalescença do registro não teria grandes inconvenientes. Quanto à marca que foi ofensiva do domínio comum, não há obstáculo principal à convalescença, pois qualquer interessado poderia pedir a decretação da nulidade e não na pediu. Melhor teria sido, dir-se-á. que não se houvesse, para a marca imoral ou contra os bons costumes, estabelecido prazo preclusivo, pois implica convalescença; mas, se a lex lata lá está, não se pode deixar de considerar qualquer das espécies. O problema tem de ser tratado em profundidade, no plano da extracomercialidade. Há a regra jurídica que pré-exclui a própria entrada do bem imoral ou contra os bons costumes no mundo

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jurídico (Tratado de Direito Privado, Tomo XVI, § 1.845, 1). A marca imoral ou contra os bons costumes, e. g., a marca obscena, é res extra commercium. Se foi registrada, passa-se o mesmo que ocorreria se tivesse sido registrado o desenho ainda não feito, ou a frase que ainda não se compôs. Não é nulo o registro: é oco, ineficaz. A ação para se dizer isso, em sentença, é ação declarativa, e não constitutiva negativa. O registro tem de ser cancelado porque se pedem a declaração e o cancelamento (cf. Tratado de Direito Privado, Tomo XVI, § 1.845, 2). Há mesmo a ação executiva para a destruição da marca como objeto corpóreo e como concreção do objeto incorpóreo, extra commercium. Quem somente propõe a ação de nulidade do registro da marca, por ser reprodução, no todo ou em parte, de marca alheia, anteriormente registrada, ou imitação da marca, não propõe a ação de vindicação (vindicação do bem incorpóreo). A eficácia preponderante da ação de nulidade é a desconstituição da marca: o registro, nulo, passa a não existir, mediante o mandado, ex tunc, com retroeficácia à data do depósito do pedido. Daí a conveniência da explicitação se a espécie do pedido não implica a cumulação. A ação de reivindicação tem por fito pôr no lugar do usurpador a pessoa que tem direito à marca, isto é, retirar-lhe qualquer posse. Se quem obteve a marca não o fez com infração da regra jurídica que proibe a reprodução, no todo ou em parte, ou a imitação, mas sim dizendo-se titular do direito formativo gerador, em vez de outorgado do titular, o registro é ineficaz, e o titular do direito formativo gerador pode propor a ação de imissão para que se lhe transfira a propriedade da marca. Tudo se passa a semelhança do que dissemos a propósito das patentes de invenção. O que tinha direito formativo gerador, quanto à marca de que outrem obteve registro como sua, e ainda é titular desse direito, tem ação de imissão na propriedade, à semelhança da vindicatória da propriedade. Não se precisa pensar em ação para se conseguir, executivamente, a cessão da propriedade. No direito brasileiro, a melhor construção é aquela de que falamos no Tratado de Direito Privado, Tomo XVI, § 1.962. A sentença declara a ineficácia relativa do registro a favor do réu; portanto, somente no que subjetivamente a ele concerne. O elemento mandamental da sentença é, então, restrito à retificação do nome: no lugar do nome daquele que obtivera o registro passa a figurar o daquele que juridicamente deveria ter figurado, ou seu sucessor. Assim, prescinde-se daquele intermezzo de pretensão à declaração de vontade pelo declarante, que aparece no direito alemão. 4.Legitimação subjetiva para as ações de nulidade. (a) As ações de nulidade podem ser propostas pela pessoa legitimamente interessada na decretação e pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI. No direito anterior, em que a legitimação ativa era da União, por meio de Procurador da República (Decreto-Lei nº 7.903, de 27 de agosto de 1945, art. 84,1), nalgumas espécies, o Ministério Público era órgão da entidade estatal interessada. A referência que se fez (e. g., João da Gama Cerqueira, Tratado de Propriedade, II, II, 229) a ser a função do Procurador da República, nas espécies de nulidade por ofensa à moral ou aos bons costumes e outras semelhantes, a de orgão da União, não era de acolher-se. Quando o Ministério Público oficiava para qualquer desconstituição do negócio jurídico, ou de ato juridico stricto sensu, por ofensa à moral ou aos bons costumes, era como órgão da sociedade que atuava, e não como orgão da União, ou de qualquer outra entidade estatal. Diga-se o mesmo quanto à função nas espécies de nome ou denominações necessárias, usuais ou vulgares, ou sinais, números, figuras ou simbolos de uso comum. Idem, quanto às espécies de brasões, armas, medalhas e distintivos públicos (não oficiais), porque a lei lhe atribuiu tão larga legitimação que de modo nenhum se limitava àqueles casos em que a União era interessada. Se a lei, ao cogitar da legitimação ativa para a ação de nulidade, aludisse à legitimação processual para recorrer, tal referência a titular da pretensão recursal administrativa viera de 1923 e foi reproduzida no art. 334 do Código de Processo Civil de 1939. Exprobou-se à lei tal alusão. O problema técnico de determinar os legitimados ativos ao recurso e à ação de nulidade é o mesmo; e qualquer diferença seria desaconselhável, tanto mais quanto não preclui, com a preclusão processual, a pretensão à decretação da nulidade. Quem poderia recorrer e não recorreu sofre a eficácia da coisa julgada, no tocante à decisão que defere o registro, mas nasce-lhe a pretensão à decretação da nulidade, a despeito da preclusão processual. O argumento maior, que se aduziu, quanto à remissão às regras jurídicas sobre legitimação dos recursos, foi de poder ocorrer, como ocorreu, alteração nos dizeres com que se tem determinado a legitimação ativa recursal (cp. Decreto nº 16.264, de 19 de dezembro de 1923, art. 92, § 2ª verbis “quem quer que se julgue prejudicado ou ofendido”; Decreto-

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Lei nº 1.603, de 14 de setembro de 1939, art. 8ª, verbis “pelos prejudicados diretos ou por pessoa que prove legítimo interesse”; Decreto-Lei nº 7.903, de 27 de agosto de 1945. art. 132, verbis “será facultado recurso ao requerente ou terceiro com legitimo interesse”; Código de 1939, art. 334, verbis: ‘são competentes para promover a ação de nulidade de marca de indústria ou de comércio aqueles a quem a lei atribui direito a recurso administrativo”). Se a lei retira a alusão, o que importa é falar-se em interesse. No fundo, pode propor a ação de nulidade, como pode recorrer, quem tenha legítimo interesse. O que mais importa é ter-se abstraído do elemento prejuízo ou dano, que limitaria demasiadamente a legitimação. Tampouco se há de dizer que o enquadramento numa das espécies de nulidade é que configura a legitimação. Essa redução da legitimação aos pressupostos subjetivos nem sempre leva a bons resultados, nem é de admitir-se nas espécies. A nulidade do registro, por se não ter, in casu, marca, ou por ser sem novidade, pode ser pleiteada por pessoas que não eram, sequer, patentes da marca. A regra juridica sobre impugnação não há de ser interpretada como se somente permitisse a propositura de ação de nulidade pelo patente. Além da ação de nulidade da marca xapumd., A ação de impugnação de marca já em uso por outrem, há a ação fundada na indistintividade do sinal e a ação fundada em se tratar de sinal res comunis omnium. As ações do pré-patente independem de já haver registro de marca (sem razão, por exemplo, a 2ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública do Distrito Federal, a 19 de setembro de 1938, RIR] 202). Mais: se outrem era o titular do direito formativo gerador, sem ser o pré-patente, ou se não houve pré-uso, tal titular, que poderia apresentar oposição e talvez haja apresentado oposição, sem vencer, é legitimado à ação de nulidade, porque a marca era sua e somente ele poderia, exercendo o direito formativo gerador, pedir o registro. Pode demandar, pela nulidade, o que nada ou pouco lhe aproveitaria, se tal registro não é o único obstáculo a que se lhe defira o registro da sua marca, ou propor a ação de imissão, segundo os princípios, considerando-se o requerente do registro, obtente do direito real, gestor de negócios alheios. São pontos, esses, da maior importância, Se, sob o direito anterior, o Procurador da República ou quem lhe fizesse as vezes funcionava, como órgão da União, ou em defesa de interesse da comunidade, como litisconsorte ou assistente, em ação de nulidade de registro de marcas de indústria e de comércio ou do registro de qualquer sinal distintivo e sobrevinha acordo extintivo, ou não, ou renúncia, ou desistência, podia continuar, se houvesse conveniência pública (cf. Supremo Tribunal Federal, 12 de novembro de 1932, AJ 27/235; 19 de junho de 1938, RT 120/267). Idem, hoje, quanto ao INPI, nas ações de nulidade em que não figure como autor, mas terceiro interveniente (Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, art. 175). (b) Quanto à legitimação passiva, réu é a pessoa em cujo nome se acha, no momento, registrada a marca de indústria e de comércio. Mas é preciso ter-se em vista que a licença exclusiva também legitima passivamente o seu titular; e o titular da licença simples é assistente. Usufrutuário e usuário são partes, necessariamente. 5. Competência e recursos. No regime do Decreto-Lei nº 7.903, de 27 de agosto de 1945, art. 157, as ações de nulidade de registro eram processadas e julgadas segundo o domicílio do réu, no Distrito Federal, nos Territórios Federais e nas Capitais dos Estados, pelo juiz competente para conhecer dos feitos da Fazenda Pública, em que fosse interessada a União Federal. O recurso, que era de inicio para o Supremo Tribunal Federal, passou a ser para o Tribunal Federal de Recursos. O processo tinha rito ordinário, podendo qualquer delas ser cumulada com a de indenização. Na atual sistemática, a ação de nulidade do registro será ajuizada no foro da Justiça Federal, observando-se as regras jurídicas de competência de foro traçadas no Código de 1973 (arts. 94 s.). Não incidem as regras jurídicas do art. 109, §§ lº e da Constituição de 1988, nem sequer, as do art. 99, 1, do Código de Processo Civil, na medida que não se dá a inserção da União na relação jurídica processual como autora, ré ou interveniente. Se o réu não tem domicilio no Brasil, competente é o foro do domicílio do autor. A petição deve ser instruída com a cópia fotostática, autenticada, do registro de que se quer a decretação de nulidade. Peças extraídas do procedimento podem ser úteis. 6. Eficácia da sentença de nulidade. Na doutrina francesa, discute-se, tendo sido proferida sentença em ação de nulidade do registro, a eficácia da decisão é somente entre partes, ou erga omnes. Parte-se da afirmação errônea de que a autoridade da coisa julgada é só entre as partes, como se a força sentencial das decisões, nas ações de nulidade, fosse declarativa. As sentenças favoráveis, nas ações de nulidade, são constitutivas negativas. Alguns juristas franceses exigem, para a sentença tivesse eficácia erga omnes, a intervenção do Ministério Público.

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Tudo isso é de repelir-se. Primeiro, a ação de nulidade é constitutiva negativa, e não — em que pese à deficiência da técnica legislativa (Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, art. 167, verbis: “a declaração de nulidade produzirá efeito...”) — declarativa, de modo que o procedimento edital e a intervenção do Ministério Público, se, na espécie, lhe caberia representar todos os interessados, estariam dispensados. Segundo. o julgado posterior, que viesse afirmar a existência da marca, cairia no vácuo, porque encontraria, indo contra, a coisa julgada anterior, e “declararia” válido registro já desconstituído. Razão teve, portanto, o Acordo de Madrid de 1891 em permitir que a administração do pais de origem (da marca) notifique à Repartição Internacional as anulações, radiações, renúncias e outras mudanças feitas ao registro da marca”. O mais curioso é que a jurisprudência francesa chegou ao absurdo de entender que os tribunais podem mandar transmitir as suas decisões ao Instituto Nacional, porém não mandar que o Instituto Nacional radie (= cancele) os registros feitos. É ignorar-se a eficácia mandamental que está na carga de eficácia das sentenças de nulidade de quaisquer registros. A jurisprudência referida é a da Corte de Besançon, a 17 de maio de 1950, a da Corte de Chambéry, a 25 de abril de 1945, e a da Corte de Paris, a 14 de março de 1953. A sentença é preponderantemente constitutiva negativa, com forte carga de mandamentalidade. O efeito mandamental é imediato (4), de modo que não precisa o autor requerer, com certidão da sentença, ao INPI, o cancelamento do registro, nem, tampouco, pedir ao juiz que se expeça o mandado. Tudo isso seria supérfluo. Na sentença já se há de ordenar a expedição do mandado contra a administração. Os que sustentaram o contrário (isto é, a necessidade de requerimento) não conheciam a diferença entre as sentenças constitutivas negativas com o peso 4 de mandamentalidade e as sentenças constitutivas negativas somente com o peso 3 de mandamentalidade. Com essa perspicácia notável que a praxe brasileira a cada momento revela, a Junta Comercial de São Paulo desde muito frisava que o mandado resultava da sentença trânsita em julgado, imediatamente (cf. J. L. de Almeida Nogueira e Guilherme Fischer Júnior, Tratado teórico e prático de Marcas industriais e Nome comercial, 1, 426; ci. J. X.Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito comercial, V, Parte 1, 3.494). Destarte, tanto faz apresentar a certidão quanto intimar-se a Repartição ou expedir-se, de oficio, o mandado, sendo mais curial, e de dever, que o juiz, ao sentenciar, ordene expedir-se, imediatamente, o mandado, posto que nada impeça que substitua a expedição do mandado pela intimação da sentença, que o contêm (é sentença constitutiva-mandamental), A 2ª Câmara da Corte de Apelação do Distrito Federal, a 3 de outubro de 1916 (RD 42/197 5.; RJ VI, 534) e a 8 de agosto do mesmo ano (RD 43/171 5.; Ri V, 349 s.), foi responsável pelos primeiros deslizes: cindiu a decisão, de jeito que exigiu requerer-se, sempre, o mandado e admitiu agravo do despacho do juiz que ordenava a expedição. Os comentadores que falam de requerer-se o cancelamento ao INPI ou ao juiz a expedição do mandado não atentaram na erronia da 2ª Câmara. O INPI, como autor ou como interveniente, foi intimado; tem ele de cumprir a sentença, que, por sua carga de eficácia, já contém mandamento a ele; e o requerimento seria simples formalidade supérflua, ou reclamatória. Se não tivesse havido a intimação, o requerimento seria simples apresentação de certidão de sentença. Se o autor, diante da falta de intimação da sentença, ou da expedição do mandado, tivesse que requerer ao juiz que se intimasse o INPJ ou se expedisse o mandado, haveria reclamação, e não requerimento ou pedido. Nada mais relevante, em tais assuntos, do que verificar-se a carga de mandamentalidade da sentença; se a carga é 4, ou, a fortiori, 5 (sentença preponderantemente mandamental), não se precisa de requerer mandado, porque o prolator da decisão tem o dever de mandar e, pois, fazer cumprir-se o mandado; se, em vez disso, a carga de mandamento é somente 3, há outra relação jurídica processual, por se estabelecer, derivada do requerimento ou pedido de mandado. E o caso, por exemplo, da ação de nunciação de obra nova demolitória; aliter, o da ação de obra nova só embargante, das ações de eleição e de nomeação de cabecel, da ação de demarcação de terras em sua segunda fase, das ações integrativas de testamento, da ação de habilitação de herdeiros, da ação de nulidade de estatutos das fundações, da ação de dissolução e liquidação de sociedade, a que somente correspondem sentenças favoráveis com a carga 3 de manda-mentalidade. Como a sentença na ação de nulidade de patente ou de registro são as sentenças nas ações de consignação de pagamento, de desapossamento contra terceiro, do pré-contraente vendedor para a eficácia da entrega do lote, de vindicação da posse, de imissão de posse, da ação declarativa de obra nunciável, de substituição do devedor, de excussão da primeira hipoteca ou da hipoteca do prédio adquirido, de usucapião, de registração Torrens, de investidura da inventariança, de extinção de usufruto ou fideicomisso, de arrecadação de bens vagos e entrega ao ausente, de extinção de fundação por ilicitude ou impossibilidade e fim, de dissolução ipso fure de sociedade ou de dissolução ex sententia, inclusive a acho popularis para dissolução de sociedade personificada que promove atividade ilícita ou imoral (aliter, as de dissolução e liquidação pedidas pelos interessados). 7.Cumulação das ações de nulidade e de indenização. Tem-se censurado a cumulação da ação de indenização

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com a ação de nulidade do registro. Sem razão; porque, se há indenizabilidade e a causa está no indevido registro da marca, nenhum inconveniente há em que se acumulem as ações. O argumento de que, tendo havido registro, embora depois julgado nulo, se tem de considerar regular o exercício do direito durante o tempo em que foi eficaz, foge aos princípios jurídicos. O ato do réu foi ilícito, se a nulidade se decreta. Por outro lado, a cumulação seria de admitir-se ainda que não existisse, no sistema jurídico, a regra jurídica que explicitamente a prevê, devido exatamente àquela, que a permite em quaisquer casos em que os pedidos sejam conexos ou consequentes (sem razão, o Juízo dos Feitos da Fazenda Pública do Distrito Federal, a 31 de outubro de 1939, RF 81/462). § 184. Legitimação ativa 1.Especialidade do processo. A especialidade do processo de nulidade quanto a patentes de invenção e de modelo de utilidade, bem como o registro de desenho industrial e de marca, está mais no objeto do que no rito, de modo que lhe falta justificação para se inserir como processo “especial”; salvo se o elemento especial lhe vem de regra jurídica de suspensão dos efeitos do privilégio, aí relativa a processo acessório. Outra regra jurídica aparece em que se alude às patentes de invenção e de modelo de utilidade, além do registro de desenho industrial e de marca, é a referente à competência de juízo. 2. Legitimação ativa. São legitimados para propor ação de nulidade de patente de invenção: (a) todos os que têm a pretensão de usar da patente de invenção e podem exigir, com esse legítimo interesse, que se respeitem as regras que disciplinam a concessão de patente; (b) o INPI; portanto, qualquer interessado. A legitimação subjetiva é ampla, porque cabe em qualquer dos casos de nulidade. E curioso observar-se que as leis entendem definir o “interessado”, assunto de direito público material, e não de direito processual, menos ainda de direito privado. A superioridade de uns povos sobre outros, em vez de só se fundar na maior parcela de liberdade de democracia de que desfrutavam, atraindo os inventores e os grandes empreendedores do começo do século XIX, em larga escala se arrima a patentes que “não podiam” ou “já não podiam ser concedidas” e em invenções que se compram para não serem usadas. Dai terem sugerido que a pretensão à tutela jurídica fosse “cerceada”. 3.Objeto da patente, pré-exclusões. Sempre que não possa ser objeto de patente, há nulidade. No estado atual do direito brasileiro, os casos são taxativos: quando não caiba, na enumeração, o privilégio, ou quando caiba em alguns dos casos de irregistrabilidade (nula e ineficaz). Note-se que se faz causa de nulidade, e não de inexistência, tratar-se de objeto inadequado. 4. Interesse e prejuízo. Todos a quem aproveita, ou poderia aproveitar, a nulidade da patente, são interessados; de modo que ficam abrangidos os concorrentes e os consumidores. A pretensão pré-processual é própria, e nada tem de colaboração com os orgãos da administração pública. A pretensão de direito material é tipicamente de direito, qualquer que seja, e cumpre não se confundir com aquela. Aliás, para interpretarmos a regra jurídica sobre interessados, no tocante à pretensão à tutela jurídica e à legitimação resultante, temos de prescindir de qualquer texto anterior, por se tratar de lei processual sobre matéria processual e às vezes judiciária material. A legitimação processual e a legitimação material não precisam coincidir: a oposição administrativa e a pretensão à sentença de nulidade de patente concedida regem-se por princípios diferentes. O que o autor tem de provar é que sofreu, ou pode sofrer prejuízo. Não se trata de ação popular; não se trata, ainda mais, de violação efetiva de direito do autor. Basta que se possa figurar, com base em circunstâncias reais, esse prejuízo eventual. As atitudes relativas à legitimação para pedir a nulidade refletem as que se têm no campo econômico e político, no tocante às próprias concessões de patente. Onde domina o monopólio, ou o oligopólio, nacional ou estrangeiro, máxime em países coloniais ou semicoloniais, dificulta-se a nulidade ou a desapropriação das patentes, porque sobre a concessão e a mantença repousa todo o aparelho de viciamento da livre concorrência, com que não poderiam lutar as gerações de burocratas industriais depois que passou a era magna das grandes invenções práticas (nosso Democracia, Liberdade, Igualdade, os três caminhos, 585 s.).

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5.Capacidade de ser parte e interesse. As leis inserem, de ordinário, regra jurídica atinente à legitimação ativa: e ligam quanto a marcas, a legitimação judiciária à legitimação nos procedimentos da administração para a concessão da patente. Questão delicada é a de se saber se o “interesse” sempre se prende a conceito com que se constrói o pressuposto subjetivo de ser parte, ou o pressuposto subjetivo processual (capacidade de estar em juízo), ou se há simples conceito para se verificar a existência da pretensão de direito material. Trata-se de capacidade de ser parte, porque qualquer pessoa só a tem no tocante à pretensão de nulidade de patente se há o “interesse”. Quanto a ser conceito de direito privado material, é de repelir-se essa afirmação: o interesse, no caso de o legitimado ser o interessado, por ter sido prejudicado com o privilégio, é apenas estado de fato, sem se apurar o prejuízo efetivo (basta o não poder usar do invento e estar em condição material de poder usá-lo); prendese à pretensão à tutela juridica, e não à pretensão de direito material, e o Estado, em vez de deixar a legitimação para se regrar segundo os princípios — dando ensejo à actio popularis, restringe-a. Por isso mesmo, é irrenunciável o direito: diz respeito a poder ser sujeito de relação jurídica processual. E matéria de capacidade de ser parte, e não de ser sujeito de relação de direito material. As reclamações administrativas referentes à prioridade, essas, sim, são dependentes de prejuizo efetivo que resulte da concessão da patente. Se a sentença repele a capacidade de ser parte, por faltar o interesse, nenhuma relação jurídica processual houve: nada feito quanto à entrega da prestação judicial. Pode ter esse interesse e propor ação a sociedade comercial irregular, enquanto duram os seus negócios. Pode tê-lo e não poder propor a ação a “comissão de segurança nacional” não personificada. Pode alguém ser comerciante de sapatos e não ter o interesse efetivo em invenção quanto a sola, se não mostra que tenciona explorar o invento, ou que o privilégio lhe diminuiu os lucros, ou pode vir a diminuí-los, ou lhe veda progredir, ou expandir os negócios. (Não se confunda o conceito de “interesse”, de que aqui se trata, conteúdo do conceito de “interessado”, pré-processual, com o conceito de “interesse”, conceito já relativo ao exercício da pretensão à tutela jurídica. Pode faltar “interesse”, no segundo sentido, ao que, no entanto, é”interessado”, no primeiro sentido, tal como algum comerciante de sapatos, a que nos referimos: e ter “interesse”, no sentido de direito processual, o que não é“interessado”, e. g., o que apostou quanto à invenção.) 6.União, litisconsorte. Nos casos em que poderia propor ação, a União era litisconsorte, e não assistente. Litisconsorte necessário, a que se aplicavam as regras juridicas especiais. O litisconsórcio resultava de ter podido a Procuradoria da República, como orgão da União, intentar a ação de nulidade. Portanto, da sua pretensão à sentença constitutiva negativa e, preponderantemente, mandarnentol. Não lhe cabia defender patentes. Quando muito, defender o ato administrativo como forma. Nunca o fundo. Em nenhum texto de lei se cometeu o erro de fazer dos Procuradores da República advogados graduados dos patenteados. Já é muito que se conserve esse instrumento internacional, tardio, das patentes, cujo fim é mais saber-se o que se descobre nos países fracos e se vedar o aproveitamento por eles das descobertas da ciência e da técnica. A legislação processual corta cerce a questão da competência e do litisconsórcio. Litisconsórcio passivo somente poderia existir se fosse dado à União pleitear a rescisão da sentença de nulidade, ou contra ela pudesser proposta a ação de nulidade. Não estava na lei. Uma vez que se conferiu propor ação de nulidade, sempre que essa ação tivesse de ser intentada, a União era Iitisconsorte necessário, pelo interesse de ordem pública que estava envolvido no julgamento. Luis Machado Guimaraes (Comentários, IV, 393) entendeu que não existia “qualquer disposição que atribua à União a posição de parte necessária, ativa ou passiva”, nas ações de nulidade. Sem razão, porque o litisconsórcio necessário resultava da situação de multiplicidade subjetiva da mesma demanda se a pretensão de direito material era tal que a coisa julgada material estabeleceria provável contradição fundamental entre dois julgados, um, pedido pelo prejudicado particular, e outro, pelo prejudicado estatal. A concepção do interesse privado nas patentes como interesse primacial em relação ao do país ressente-se do mais típico individualismo jurídico, e justificou-se, por alguns decênios, depois de James Watt e dos grandes descobridores e inventores do começo do século passado. Já se não justifica, hoje em dia, quando não mais se conseguem grandes descobertas ou invenções. Todas são aplicações, e só aplicações que perderam, por outro lado, toda a procedência individual. Vêm dos trustes, dos cartéis, exatamente auxiliados pela publicidade que se dá, ou pela informação que resulta da incauta apresentação de alguma combinação, mais engenhosa, de origem individual. Nem se traga a fiux jurisprudência de certos povos nos últimos decênios. Eram momentos de falso nacionalismo, que obedecia às ordens dos patrões internacionais, não convindo ao Estado ser “parte” nas

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questões de patente de invenção e ter de pôr à prova a sinceridade do seu anticapitalismo. 7.Litisconsórcío e assistência. A inserção das regras jurídicas sobre patentes de invenção, à maneira de enxerto, em lei, deu ensejo a supérflua referência às figuras subjetivas do litisconsórcio e da assistência, já tratadas pela lei. Apenas ficou, de útil, a parte, em que se exigiu a audiência em todos os termos do processo e sobre qualquer acordo que pusesse fim à demanda. “Todos os termos” (Decreto-Lei nº 7.903, de 27 de agosto de 1945, art. 84, § 2ª) significava todos os termos em que qualquer das partes, autor ou réu, tivesse de falar. 8. Acordo. “Acordo”; entenda-se, porém, que os Procuradores da República tinham, sob o Decreto-Lei nº

7.903, de 27 de agosto de 1945, art. 84, § 2ª, de ser ouvidos em qualquer transação, desistência, renúncia, confissão, ou requerimento de extinção do processo sem julgamento do mérito. Para desistir, o próprio Procurador precisava da autorização do Procurador-Geral da República. 9.Assistência pelos Procuradores da República. Nos casos em que o Procurador da República não poderia propor a ação, era-lhe permitido assistir, de acordo com as regras jurídicas do direito anterior, que, aludindo à assistência, punham em evidência que, além do litisconsórcio, havia a situação de assistente. Essa assistência, vinda do Decreto nº 8.820, de 30 de dezembro de 1882, art. 55, correspondia à pretensão à vigilância que ficou do sistema da Lei nº 3.129, de 14 de outubro de 1882, art. 5º, inciso 3º, depois de se lhe haver podado, pelo Decreto nº 8.820, a pretensão à sentença constitutiva de nulidade ou de cancelação que aos Procuradores do país se conferia em todos os casos. Aqueles que restaram foram os do Código de Processo Civil de 1939, art. 332, li; os podados conservaram a pretensão à ajuda na demanda, que supunha a influência possível da sentença na relação jurídica entre a União e os patenteados (cp. arts. 93 e 147). Essa foi a construção do art. 332, § 2ª. Uma das consequências foi a subida dos recursos ao Tribunal Federal de Recursos, em todos e quaisquer casos. Na vigência do Código de 1939, o Procurador da República tinha ampla legitimação, como órgão da União, ou por ter de defender o interesse público. Hoje, tem-na o Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Resta saber-se a quem o Procurador assistia. A assistência no direito material das patentes de invenção decorreu do podamento, não eliminação, que sofrera a Lei nº 3.129, com o art. 55 do Decreto nº 8.820. Tinha, pois, a mesma situação subjetiva de outrora. Nunca se conferiu à União ser ré em ações de nulidade de patentes. Conferiu-se a pretensão à tutela jurídica para pleitear nulidades. Não seria estranho à técnica legislativa que ele assistisse ao réu; mas, de lege lata, nunca se lhe reconheceu tal função, nem lha atribui a legislação posterior. Certos, 1 X. Carvalho de Mendonça (Tratado, V, V Parte, 190 e 392, nota 3) e João da Gama Cerqueira (Privilégios de Invenção, 1, nº 295); sem razão, Carlos da Silva Costa (Jornal do Comércio, 9 de junho de 1938). § 185. Suspensão da eficácia da patente e do registro 1.Suspensão dos efeitos do concessão. O pressuposto objetivo para a suspensão dos efeitos da concessão pode consistir em ser contrária à lei, ou à moral, ou aos bons costumes, ou à segurança, à ordem, ou à saúde públicas, a concessão mesma ou o uso dela. Lei, aí, não é aquela a que se refere qualquer das causas de nulidade, pois seria atribuir-se tautologia ao legislador e ao mesmo tempo permitir-se a suspensão em qualquer caso; é outra lei que a de patentes de invenção. A concessão mesma pode ser imoral, ou só imoral o uso: contrário à saúde pública o produto, contrária à saúde pública (e. g., provocadora de pânico com repercussão na saúde) a própria concessão. Passa-se o mesmo quanto ao conceito de segurança pública. (Observe-se que o legislador de 1939 fizera a regra ser regra jurídica de arbítrio, posto que não puro, em vez de regra jurídica cogente, como fora sob a Lei nº 3.129, art. 5ª, § 3º, verbis “ficarão suspensos”). Não basta a falta de pressuposto material ou formal da patente de invenção para que o juiz possa suspender os efeitos do ato que deferiu o pedido de patente de invenção, ou o seu uso. Há de ter sido infringida alguma lei pela concessão ou pelo uso, e. g., pelo emprego de substância que seja proibida no local, ou em geral. No sentido do que escrevemos na 2ª ed. dos Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, a fl Vara da Fazenda Pública, a 17 de dezembro de 1958 (EU de 20 de dezembro).

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2.Defeito da lei, correção “de iure condito”. No direito anterior, tinha de preceder requerimento. Ainda que contra a segurança pública, tirara-se ao juiz o determinar de oficio a suspensão! Privatistica, e ao excesso, a conduta do legislador, era mais dominada pelo princípio dispositivo do que fora de esperar-se no sistema jurídico. Somente se podia requerer, durante o processo e até a decisão final. Não era ligada à litispendência, menos ainda ao contraditório, a suspensão; de modo que o requerimento podia constar da própria petição inicial. Nenhum prejulgamento envolvia. Conferia-se ao juiz, mediante exame e fundamentação, ordenar a suspensão. Portanto, era caso de cognição superficial, como ocorria em certos processos executivos de que falamos, e de regra nas medidas preventivas impugnáveis ou transitórias. O direito atual corrigiu o défice. O juiz poderá, preventiva ou incidentalmente, determinar a suspensão dos efeitos da concessão da patente de invenção e de modelo de utilidade, assim como do registro de desenho industrial, atendidos os requisitos processuais próprios. Do mesmo modo, poderá nos autos da ação de nulidade da marca, determinar liminarmente a suspensão da eficácia do registro e de seu uso. § 186. Ação de nulidade de marcas 1. Ações de nulidade. A respeito das marcas, liga-se a pretensão à tutela jurídica à legitimação de direito material. Todos os casos de recurso administrativo de particulares são recursos de prejudicado em relações de direito material, não sendo de estranhar-se que lá se ache o “direito” às armas e brasões, mas sendo de espantar haja quem interprete o texto como protectivo de armas dos brasões de família: são apenas armas e brasões “públicos”. A referência à legitimação de direito material para o ingresso em juízo está de acordo com a diferença entre o instituto das marcas e o instituto da patente de invenção. Seria perigoso confundi-los, e daí resultam enganos lamentáveis. A nulidade recai sobre o registro da marca que contiver um dos defeitos apontados pela regra jurídica sobre irregistrabilidade. 2. Função do Ministério Público. No direito anterior, indagava-se, em todos os casos em que o orgão da União não podia propor ação, a figura processual que assumia, intervindo, era a de assistente, equiparado a litisconsorte, pela influência que o julgado tinha na relação jurídica entre o Estado e a parte ré? Aqui, não era possível dizer-se a priori se assistia ao autor, ou se assistia ao réu, porque era demasiado privado o interesse do que obteve o registro para se supor interesse público do Estado. A expressão “fiscal da lei” apenas evitava o trabalho mental de se precisar qual a figura, e devemos riscá-la de toda exposição científica. Nem resolve a questão falar-se de “parte pública” (9, como Otto Mever (Deutsches Verwaltungsrecht, 1, 152 s.); ou de “partie jointe”. à maneira dos juristas franceses; ou de “representante de público interesse”, como James Coldschmidt (Das i/erwaltungsstrafrecht, 537), pois o juiz às vezes o é e, não raro, a parte; ou de pessoa que dá parecer no processo sem ser parte (unparteiischer t3utach ter); ou de ônus, ao lado ou diferente do interesse (cp. Konrad Hellwig, System, § 139, IV). O Procurador da República presentava, ai, o Estado fora da demanda, acima do interesse das partes, fora, portanto, de qualquer posição definida, ora do lado do réu, ora do lado do autor, ora contra ambos, e o seu interesse era apenas ligado ao fato de ter o Estado prometido “julgar” (entregar prestação jurisdicional) e a gravidade da espécie tê-lo posto do lado e quase à semelhança do juiz, auxiliando-o a dar decisão “justa”. Essa função, de ajuda ao juiz mais do que às partes, se vê bem diferenciada entre o orgão do Ministério Público nas ações de nulidade de casamento e o defensor matrimonii, que é parte. Em tais casos, o órgão do Ministério Público nem faz afirmações (não postula), nem produz prova — tem o dever de imparcialidade desde o início até a coisa julgada, relembrando ainda os temores de defeitos do processo de inquisição (A. Lôffler, Organisation der Justiz, 35). Não raro, escorrega para o passado de onde veio, e dá-nos a miniatura contemporânea do ‘promotor inquisitionis”, depravação da missão do Estado. Nos casos dessa nota, o órgão do Estado auxilia o juiz a proferir sentença justa.

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§ 187. Procedimento 1. Rito processual ordinário. As ações de nulidade de patente de invenção e de modelo de utilidade, assim como de nulidade de desenho industrial e de marca foram ‘especiais”, no direito brasileiro, por serem sumárias. Perderam essa especialidade; e no entanto, continuaram a figurar na mesma categoria. As leis aludiram, superfluamente, à ordinariedade de rito. As ações de nulidade de concessão de patentes e de registro de desenho industrial podem ser propostas a qualquer tempo da vigência do privilégio no foro da Justiça Federal, diversamente da ação para decretação de nulidade do registro de marcas, cuja pretensão preclui em cinco anos contados da data de sua concessão. O legitimado passivo tem o prazo de sessenta dias para a resposta. Pode dar-se a extinção do processo sem julgamento do mérito, ainda contra o INPI quando em função de autor; a fortiori, interveniente. Procedente a pretensão constitutiva negativa e trânsita em julgado a decisão, o decisum opera retroeficácia à data do depósito do pedido, incumbindo ao INPI publicar anotação para a eficácia erga omnes. O preceito cominatório é meio idôneo para impedir que alguém use marca registrada por outra pessoa (Supremo Tribunal Federal, 18 de julho de 1903; idem, Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de setembro de 1918, RT 27/407). A ação de nulidade tem de atacar a concessão e o registro, para desconstituir o privilégio, de que deriva o uso, e a ação é constitutiva-manda-mental. 2. Competência, no caso de cumulação. Questão delicada é a da cumulação com a ação de indenização e o aforamento da causa. A conexão é evidente. Pergunta-se: a competência ratione materiae das ações de nulidade atrai, ou pode ser excluída pela conexão como causa determinante ou pela conexão como causa modificadora (prorrogação) da competência? A regra jurídica que firma competência ratione materiae, não pode ser atingida pela que regula a prorrogação, que não concerne a competência ratione materiae. Resta saber se a competência pela conexão, pré-exclui a incidência da regra jurídica ratione materiae, ou as outras regras de direito sobre competência. Ora, a conexão “determina”. De modo nenhum é obstáculo a essa determinação a regra jurídica de competência, porque o privilégio da União é de outra natureza que de simples “matéria”, e por isso, e não pela distribuição das competências, é que resiste à deslocação. A conexão pode determinar a competência, sem se lhe aplicar regra jurídica que só se refere à prorrogação. O óbice à perda da competência por parte dos juizes é de ordem política, não de ordem processual. Esse óbice não existe quanto a irem a eles as causas conexas da justiça comum, pois toda justiça especial por causa do interesse do sujeito, que é parte, contêm a competência geral como base. As ações de indenização podem ser cumuladas com as de nulidade de patentes de invenção e de modelo industrial, e de registros de desenho industrial e de marcas no Juízo Federal. Não se trata, portanto, de prorrogação. De modo nenhum a conexão afasta o Juízo Federal; o que se passa é que esse atrai as causas conexas com a de nulidade de patente ou de registro.

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Capítulo V

Ação de denúncia § 188. Conceito de denúncia 1. Precauções de método. A análise dos atos jurídicos receptícios que se destinam à transformação ou extinção das dividas e obrigações pôde mostrar que há a interpelação, a renúncia e a denúncia, mas, ao recebermos a contribuição da ciência estrangeira, não devemos encampar-lhe erros e exageros. A interpela ção não denuncia; não denuncia a notificação. A interpelação é ato jurídico stricto sensu. A notificação também o é. A denúncia é negócio jurídico. Com a palavra “Kúndigung’, os juristas alemães referem a denúncia propriamente dita e a manifestação de vontade que determina o vencimento do crédito. A denúncia pode ser extintiva, ou modificativa, conforme, com ela, se produz a extinção da relação jurídica, ou apenas a sua modificação. Mas a interpelação, com que se faz vencer a divida sem prazo, não é denúncia. Temos de evitar sentido que seria ambíguo. A interpelação é Mahnug. Na denúncia não há interpelação, nem renúncia. Quem denuncia nuncia que faz, ou que algo se faz, com as consequências próprias. Os sentidos, nas fontes romanas, são muitos, porém não incluem o de renúncia. A renúncia é tipicamente ato de disposição unilateral. Para quem se tornou sócio, algo dos outros se lhe atribuiu, pela natureza mesma do contrato. A isso se renuncia; e à renúncia as leis ou as cláusulas dos contratos de sociedade ligam o efeito extintivo da relação jurídica. Nas leis costuma-se falar de aviso, de aviso prévio, ou de notificação, quando o assunto é o de denúncia. Ou se trate de denúncia cheia, ou de denúncia vazia. O aviso, o aviso prévio, ou a notificação não é ato de denunciação. Aviso é ato jurídico stricto sensu; inconfundível, pois, com a denúncia, que é negócio jurídico. Nem se pense em ser notificação, que também é simples ato jurídico stricto sensu (cf. Tratado de Direito Privado, Tomo II, §§ 235, 13, e 237, 2). Na denúncia há manifestação de vontade, de que se avisa. 2.“Condictio” “dies” e denúncia. A condição e o termo são determinações que se inserem no efeito do negócio jurídico ou do ato jurídico stricto sensu. O nexo é interno; há inexação, e não anexação. O que havia de nascer desde já somente nasce quando se alcançar o dia, ou se der a condição. O que haveria de extinguir-se ao nascer, por sua instantaneidade, extingue-se ao advento do termo ou ao implemento da condição. Quando não há termo extintivo, nem condição extintiva, o efeito somente se extingue em virtude de algum ato, como a denúncia, ou a interpelação, que, de ordinário, leva consigo prazo (termo). O que mais acontece é que os direitos, pretensões, ações e exceções nasçam sem termo para a sua extinção, ou sem condição extintiva. Quando se estabelece termo ou condição, tal determinação temporal é mexa ao direito, à pretensão, à ação ou à exceção. O direito, a pretensão, a ação ou a exceção somente existe enquanto não se atinge o termo ou não se dá a condição. No conceito de negócio juridico unilateral, não se alude à eficácia; alude-se ã composição. A eficácia interessa quando já se está diante da classe dos negócios jurídicos bilaterais, isto é, quando se tem de separar a subclasse dos contratos bilaterais. Quanto à eficácia, os negócios juridicos unilaterais podem ser sem qualquer repercussão na esfera juridica de outrem, como a derrelicção e a renúncia. Chamou-os James Breit (Zur Lehre vom Rechtsgeschãft, Sàchsisches Archiv, 13, 297) negócios jurídicos unilaterais absolutos. Os outros repercutem, como o reconhecimento, a denúncia, a revogação da manifestação de vontade, que também é

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negócio jurídico unilateral (D. G. Croissant Uhde, Das einseitige Rechtsgeschàft, 45, nota 2). A denúncia tem no suporte fático declaração ou manifestação de vontade de um só lado (unilateral), que enseja negócio juridico; recepticia, feita pelo que não tem poder de representação, pode ser ratificada; denegada a ratificação, responde o que se fez representante; idem, se feita a representante sem poderes. O núcleo, os elementos completantes e os elementos complementares são fixados pelo direito material; a forma processual tem de obedecer às regras do direito processual, desde que foi permitida pelo direito material. O principio, a propósito de forma, é o do primado permissivo: a forma tem de ser a que se exige, ou uma das que se admitem em direito processual, salvo se o próprio direito material estatuiu diferentemente. O fiador, em principio, não pode denunciar o contrato de fiança, mas a denunciabilidade pode resultar de cláusula ou de pacto adjecto entre credor e fiador. Se a fiança foi para créditos futuros, tem-se de apreciar o caso para se saber qual o tempo em que se poderia exigir a garantia fidejussória. Na doutrina alemã, considera-se isso denúncia (e. g., L. Enneccerus-H. Lehmann, Lehrbuch, II, 619); mas a espécie parece-nos a de prazo razoável implícito, e não a de denunciabilidade. Se a situação do futuro devedor se tornou de difícil adimplemento para o crédito que ainda não foi outorgado, tem-se de admitir a denúncia (não a revogação, como se tem dito, e. g., L.Enneccerus - 1-1. Lehmann, Lehrbuch, II, 619), por terem empiorado as possibilidades patrimoniais do futuro devedor principal. Assim, acertadamente, Otto von Gierke (Deutsches Privatrecht, 111, 789, que empregou a expressão própria: “direito de denúncia”, Kúndigungsrecht). O mandante de crédito pode denunciar o contrato. (A referência a “revogação” é reminiscência da ligação ao mandato.) Se tal denunciabilidade — dita revogabilidade — foi afastada, não se desnatura o contrato de mandato de crédito. A denúncia pelo mandante de crédito depois de concluído o negócio jurídico de crédito, inclusive se é pré-contrato, que o mandato de crédito não afastou, cai no vácuo. Já era indenunciável o contrato. Se foi fixado prazo para a denunciabilidade pelo mandante de crédito, é sem qualquer eficácia a denúncia posterior à expiração do prazo. (No direito italiano, admite-se a denúncia — uns juristas dizem “revoca”, outros “recesso” — quando já se prestou algo em virtude de crédito de limite máximo, cf. Michele Fragali, Fidelussione, Mandato di credito, 573; mas a conclusão já se operou e não há qualquer razão para se entender ainda denunciável o mandato de crédito.) Se o mandante de crédito denuncia, tem de ressarcir danos, sem se apurar se tinha justa causa ou se não tinha. Apura-se podia, legitimamente, denunciar. As perdas e danos, que hão de ser indenizados, não são só os que correspondem ao interesse negativo. Por exemplo: pode consistir em ter o mandatário de crédito vendido ações de empresa para emprestar o dinheiro ao terceiro; pode consistir em ter o mandatário de crédito pedido emprestado dinheiro para emprestar ao terceiro. O segurado tem o dever de comunicar ao segurador qualquer fato que possa agravar o risco (aumentá-lo ou criar outro risco). Se não o faz, a infração dá ensejo à denunciabilidade do contrato. A regra jurídica é ius dispositiuum. Só há o dever de comunicação se o interessado conhece o que ocorreu. Ninguém tem dever de comunicação de fato se não conhece o fato: comunicação do fato é comunicaçâo de conhecimento do fato (cf. Tratado de Direito Privado, Tomo li, §§ 233, 7; 237, 2, 3; 238 e 239). O caso é de denúncia e não de resilição. Se o risco seria segurável a maior prêmio, a denúncia pode ser para que se pague mais do que se pagava. Não assim se o risco é tal que se não compreenderia, de qualquer modo, a assegurabilidade. Se o interessado comunica a agravação do risco, a denúncia tem de ser imediata. Pode ocorrer que, por inadimplemento por parte de um dos sócios, se haja de resilir a sociedade por conta de participação. A eficácia é ex nunc, razão por que dizemos “resilição” e não “resolução” estrito senso (cf. P. de Pelsmaeker, Des Associations en participation et des Spndicats financiers. & 110).

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Se não há prazo de duração, pode qualquer sócio participante denunciar a sociedade. Se há prazo determinado, a denúncia cheia ou a resilição é a que se permite. Se não foram previstas no contrato as causas da denúncia, ou de resilição, tem se como bastante, e. g., a inimizade, o dolo, ou culpa, o desrespeito ao contrato, sem ser por inadimplemento, ou a infração de dever. A denúncia tem de ser momento oportuno, isto é. no momento em que não cause prejuízos comuns, ou com tempo para que esses prejuízos comuns não ocorram. Não vale a cláusula que exclua a resilibilidade por transgressão dolosa ou culposa de dever social. Se o negócio jurídico bancário é a tempo indeterminado,qualquer dos figurantes pode denunciar o negócio jurídico, com o pré-aviso conforme os usos, ou no prazo legal, se uso não há. A denunciabilidade resulta, ai, de ser indeterminada a duração. Cumpre todavia, advertir-se que pode constar do contrato, ou mesmo dos estatutos do banco, que seja cheia a denúncia, isto é, que se dêem as razões e essas sejam cabíveis. O cliente há de conhecer. A denúncia é declaração unilateral de vontade, receptícia. Não há exigência de forma especial, salvo se foi convencionado que a observasse, caso em que a denúncia sem observância da forma especial seria nula. 3.Denúncia e exigibilidade. Pode ser que o tempo da prestação se tenha de fixar por meio de denúncia — declaração de vontade, receptícia, de que começa a tal momento a pretensão, isto é, de que desde já, ou em momento posterior, se vence a prestação. A denúncia atemporal, ou sem prazo, é para a fixação imediata; a temporal, ou com prazo, é para a fixação mediata (e. g., daqui a vinte dias, no dia tal, ou dia tal às tantas horas). Tal denúncia é só espécie, pois há outras espécies de denúncia, como a que se faz para que termine a relação jurídica, ou para outra consequência. Toda denúncia é exercício de direito formativo — gerador, modificativo ou extintivo. Ou resulta de lei, ou de determinação negocial. Pode ser cheia (ter de satisfazer pressupostos fáticos, ou causas de denunciar, apontadas em lei), ou vazia. Pode ter de ser todos os figurantes, ou só de um deles, ou de alguns. Pode ser exercivel desde logo o direito de denunciar, ou só se exercer depois de certo tempo, ou depois que algum acontecimento se der. No que concerne ao tempo do pagamento, a denúncia ou é sem prazo, ou com prazo. Nâo se confunde com a interpelação, que já supõe pretensão e obrigação, e apenas tem por efeito a constituição em mora. O que denunciou marca prazo, não constitui em mora. De modo que, ao se dizer que, em alguma lei, não havendo prazo assinado, começa (a mora) desde a interpelação, notificação, ou protesto, a denúncia não está incluída. Se a denúncia foi sem prazo, marcado o dia está, que é o de denúncia: se foi com prazo e a obrigação é positiva e líquida, também. Tanto ali quanto aqui, Dies interpellat pro homine. Se não se vence imediatamente à denúncia, nem há prazo, cabe a regra jurídica sobre a eficácia à data da denúncia, posto que seja raríssima a denúncia temporal sem fixação do prazo. E de toda conveniência teórica e prática não se confundir a denúncia com a interpelação. § 189. Pressupostos 1.Aformabilidade da denúncia. A denúncia, salvo regra jurídica especial é aformal. Fatos concludentes podem compá-la, como a remessa dos carros para que apanhem as coisas compradas se pode ser atemporal a denúncia (se a entrega tinha de ser imediata, a remessa deles é interpelação extrajudicial), ou o aviso da companhia de transportes de que o comprador mandou apanhar no dia tal as coisas compradas. 2. Interesse dos figurantes. Quando o interesse é de dois ou mais figurantes, a regra é que a denúncia tem de ser por todos ou contra todos. Se, porém, os credores ou devedores só o são de parte, pode denunciar qualquer deles, quanto à sua parte; se a obrigação é solidária, qualquer dos credores ou devedores solidários tem o direito de denúncia, sem que tal denúncia tenha eficácia para os outros credores ou devedores. Mais uma vez se caracteriza a diferença entre a denúncia, a interpelação e a cobrança: cada um dos credores pode exigir a dívida, ou seja passiva, ou seja ativa a solidariedade; pode interpelar e a mora do credor solidário, ou do devedor

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solidário, aproveita aos outros devedores, ou credores; mas a denúncia é de eficácia somente para o que foi alvo da denúncia. O credor que não é obrigado a receber pagamentos parciais também não é exposto a denúncia de parte da divida. O credor que pode denunciar, pode denunciar a totalidade da divida ou a parte (Thiele, Die Kúndigung, Archiv fur die cluilistiche Praxis, 89, 152). O argumento de que, assim, se só o credor pode denunciar, há injustiça (de Iege ferenda) para o devedor, de modo que não pode ser o que estava na intenção dos figurantes (L. Enneccerus, Lehrbuch, II, 31ª-35ª eds., 88), é improcedente: o que se teria, no plano da elaboração legislativa, de fazer seria conceder-se ao devedor o direito de denúncia, ex lege, da totalidade (tal como a Lei prussiana de 8 de fevereiro de 1811), mas tal direito não pode ser criado pelo intérprete, nem se pode privar de denunciar parte quem pode exigir parte. § 190. Mora e denúncia 1.Denúncia e prazo para prestar. E possível que a pretensão somente surja com a denúncia, ou depois de transcorrido o prazo, que se há de contar após ela. Então, o denunciante é que determina o dies, imediata ou mediatamente. Não se havia fixado o tempo, fixa-o o denunciante. Se o denunciante o fixa de tal modo que, se feita no negócio jurídico a fixação, seria preciso interpelar, tem de ser feita interpelação após tal denúncia. Se não se precisaria de interpelar (= os pressupostos necessários foram satisfeitos), a denúncia, de si só, estabelece o suporte fático futuro para a incidência da regra jurídica sobre mora. 2. Dois ou mais créditos. A denúncia para dois ou mais créditos pode dispensar a interpelação para um, ou alguns, e para outro ou outros não. As regras jurídicas sobre início da mora incidem conforme os seus suportes fáticos. A denúncia só diz respeito ao futuro e não cancela existência: esvazia de eficácia, impedindo pois, que continue; então, no futuro, o negócio jurídico não é mais, posto que tenha sido. Alguns negócios jurídicos, por forçada estruturação, de origem histórica, ainda quando tenham prazo determinado, permitem a denúncia. Se descemos ao fundo do que se passa, facilmente percebemos que não se quis toda autonomia da vontade, todo o auto-regramento da vontade, na determinação do prazo: em vez de se pôr o dilema “ou prazo determinado ou prazo indeterminado”, admitiu-se prazo “vulnerável”, e empregou-se o expediente da denúncia para se estabelecer (ou melhor, se manter) essa vulnerabilidade. Os outros institutos jurídicos, para a técnica legislativa, não seriam tão prestantes. § 191. Espécies de denúncia1.Duas espécies. As denúncias ou são vazias (= não precisam ser fundamentadas), ou são cheias (= só se pode denunciar se adveio razão, segundo a lei ou o negócio jurídico, para se denunciar). A denúncia vazia parece-se com a renúncia; mas a renúncia só tem por objetivo direito, pretensão, ação ou exceção, e a denúncia apanha toda a relação jurídica, com os seus efeitos ativos e passivos. Quem denuncia põe ponto final à relação jurídica. Não desconstitui o que constituído estava e havia de continuar. A denúncia pré-exclui a continuação, porque essa não estava preestabelecida. Daí ser inconfundível com a resilição, ainda quando se trate de denúncia cheia. 2.Conceitos. Nas relações jurídicas duradouras, é preciso que possa ter ponto final o que se concebeu em reticência. Porque relação juridica duradoura a que não se pudesse pôr termo seria contrária às necessidades da livre atividade dos homens. Não bastaria subordiná-la a eventual resolução por inadimplemento ou ao distrato. Daí a figura da denúncia, com que se denuncia, pois resulta de se haver atribuido a algum dos figurantes o direito formativo extintivo, que é o de denunciar. De ordinário, os figurantes previam e prevêem esse direito formativo extintivo, por parte de um deles, de algum, ou de todos, igual ou diferentemente. Todavia, a lei atendeu a que há muitas espécies em que se impunha a regra jurídica — cogente, dispositiva ou interpretativa — sobre o direito formativo extintivo e estatuiu sobre os pressupostos desse direito.

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Na locação, há a denúncia vazia, isto é, denúncia que somente depende da vontade do denunciante, e as denúncias cheias, que são aquelas que consistem em direito formativo extintívo que nasce ao se compor certo suporte fático, em que há o plus de alguma circunstância nova, ou mudança de circunstância, objetiva ou subjetivamente. As leis emergenciais têm algumas espécies. Dá-se o mesmo nos contratos de locação de serviços e de trabalho. Na técnica legislativa, sói-se limitar o direito de denúncia, exigindo-se o “enchimento” do suporte fático. Com isso, pensa-se proteger o figurante mais fraco. Algumas vezes, cria-se, em vez da denúncia, resolução automática ou resilição automática. A denúncia extingue a relação jurídica duradoura. Dai poderem subsistir deveres e obrigações, que a denúncia não atingiu, tais como dívida de aluguéis atrasados ou pendentes inclusive correspondentes aos prazos de que cogitam regras jurídicas especiais e dívida de indenização por violação do contrato. Daí ser errôneo dizer-se que a eficácia da denúncia é igual à do adimplemento (com razão, contra Oito von Cierke e Franz Gschnitzer, Gúnther Beitzke, Nichtigkeit, Auflôsung und Umgestaltung von Dauerrechtsverhàltnissefl, 19). Com o adim-plemento total do que restava de deveres, extinguem-se todas as relações jurídicas e, no tempo, desaparece o negócio jurídico. Enquanto isso não se dá, há efeitos irradiados e, por vezes, irradiação de efeitos, de modo que ainda não se pode ter por extinto, no tempo, o negócio jurídico. Os contratos de fornecimento de água, luz, força e gás são como contratos com obrigações duradouras. A particularidade está em que se há de medir o que foi gasto durante determinado tempo. Há reiteração, em vez da simples duração continua. A construção como se houvesse tantos contratos quantas as prestações é de repelir-se. O que se fraciona é a prestação, não a obrigação. A denúncia tem de se dirigir a todos os devedores solidários, pois que atinge a todos, e — tratando-se de denúncia cheia, em cujo suporte fático haja elemento pessoal — há de o elemento existir a respeito de todos. Quando o crédito só se vence se o credor, ou o devedor, comunica a sua vontade de que se vença, o ato do credor ou do devedor não pode ser considerado denúncia. A respeito, a erronia da terminologia alemã, ainda hoje, é de evitar-se (e. g., como obra recente, Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, 1, 3ª ed., 168). Pode-se tratar só de notificação, ou de notificação e interpelação; de regra, de notificação e interpelação. O figurante do negócio jurídico unilateral ou os figurantes do negócio jurídico bilateral podem separar a notificação e a interpelação. § 192. Denúncia e renúncia1. Denúncia e disposição. A denúncia, de que falamos, é direito de extinção. A renúncia é ato de disposição. O sócio, que se retira, renuncia. Se a sua renúncia extingue a sociedade, trata-se de eficácia anexa do seu ato de disposição, eficácia dependente de lei ou de regra estatutaria. Quem denuncia extingue relação jurídica negocial desde aquele momento, ou no futuro. Vão-se direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e exceções. Não se renuncia a dívidas, a obrigações, a situações passivas nas ações e exceções. A sociedade de pessoas guardou muito do elemento pessoal entre os figurantes e isso marcou e marca a terminologia jurídica. As leis soem frisar a existência do elemento pessoal, para que não haja quebra de confiança reciproca, que se supõe: a renúncia de um dos sócios, diz-se, só dissolve a sociedade, quando feita de boa-fé, em tempo oportuno, e comunicada aos sócios com a antecipação que a lei estabelece. A renúncia é de má-fé quando o sócio renunciante pretende apropriar-se exclusivamente dos benefícios que os sócios tinham em mente colher em comum; e tem-se por inoportuna se as coisas não estiverem no seu estado integral, ou se a sociedade puder ser prejudicada com a dissolução no momento em que deseja a eficácia. Em caso de má-fé, os demais sôcios têm o direito de excluir desde logo o sócio de má-fé, salvas as suas quotas na vantagem esperada. Se inoportuna, a sociedade pode continuar, apesar da oposição do renunciante, até à época do primeiro balanço ordinário, ou até a conclusão do negócio pendente.

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2. Problema terminolôgico. A sociedade extinguia-se, em direito romano (Gaio, III, 151 s.): a) por morte (reminiscência da antiga comunidade hereditária, pois o pacto de admissão do herdeiro do sócio era nulo, L. 59, pr., D., pra sacio, 17, 2, e L. 35, e não se podia pactar a continuação da sociedade com os sócios sobreviventes, L. 65, § 9; b) pela capitis deminutio; c) com o concurso de credores; d) pela renuntiatio, que consistia na deixação da qualidade de sócio, sem que, com isso, se liberasse das dividas e pudesse prejudicar os outros sócios; e) pelo contrarius consensus. É de Paulo (L. 65, § 3, D., prosacio, 17, 2): Dissemos que a sociedade se dissolve por dissenso, isto é, se todos dissentem. Porém jque acontece se um só renuncia? Escreveu Cássio que aquele que houver renunciado à sociedade livra de si os seus sócios, porém não se livra deles (Diximus dissensu solvi sacietatem: hoc ita est si omnes dissetiunt, quid ergo, si unus renuntiet? Cassius scripsit eum qui renuntiaverit societati a se quidem liberare socios suas, se autem ab jílis non liberare.). Caio (III, 151) é explícito: A sociedade mantém-se enquanto os sócios perseveram no mesmo acordo de vontade, mas, desde que um deles renuncia à sociedade, a sociedade se dissolve (Manet autem societas eo usque, donec in eodem consensu perseverant. At cum aliquis renuntiaverit societati, societas solvitur.). Donde, hoje, o problema de terminologia: há de se falar de denúncia, se o sócio quer retirar-se, ou não se justifica a retificação do termo que nos vem do direito romano? No direito austriaco, há a denúncia vazia se não há prazo para a sociedade, ou não se pode, devido à natureza do negócio, fixar, salvo se feita com dolo ou inoportunidade (Código Civil austriaco, § 1.212), e há a retirada (§§ 834 e 1.189), com pretensão a medidas para conservação ou melhor utilização ou aumento de capital. No Código suiço das Obrigações, arts. 545, inciso 6, e 547, fala-se de denúncia. No Código Civil alemão, §§ 723-725 e 729, tem-se regramento da denúncia a respeito de sociedade. Se a sociedade não é por tempo determinado, qualquer sócio pode denunciar, a qualquer tempo (kann jeder Gesellschafter sie jederzeit kúndigen). Se é por tempo determinado, é preciso que haja fundamento sério (em wichtiger Grund) para que possa ocorrer a denúncia. Tal fundamento existe quando algum outro associado gravemente violou dever social, por dolo ou negligência grave, ou se a obrigação que lhe incumbia se tornou impossível. Aliás, tal denúncia cheia cabe ainda se a sociedade é por tempo determinado. O § 724 faz incidir a regra da denunciabilidade em matéria de sociedade. Em qualquer dos casos dos §§ 723 e 724, o poder de gestão que tem algum dos sócios continua até que ele conheça ou deva conhecer a dissolução. No direito brasileiro há regras jurídicas, que, a respeito da dissolução das sociedades, se referem à renúncia. A questão está em se saber se mais convinha chamar-se denúncia a esse afastamento do sócio com efeito extintivo. Seria denúncia vazia. Não se discutem as outras espécies de dissolução, ou dos contratos com prazo determinado, porque ai evidentemente se trata de outras figuras. Tudo se resume nos precisos casos da manifestação de vontade do sócio. As espécies concernentes a vencimento do prazo, implemento de condição, extinção do capital social, ou desfalque, ou consecução do fim social, ou impossibilidade, são casos de denúncia cheia ou de resilição. Não há qualquer vantagem em se ter por denúncia o ato do sócio, nas espécies que discutimos (prazo indeterminado). A sociedade é contrato em que entra por muito o elemento pessoal, em que os convidantes como que prestam homenagem, ou dão prova de afeto, ou confiança, ao convidado, ao mesmo tempo que implicitamente se reputam dignos da colaboração, do afeto, ou da confiança. O direito de sócio é a base de quaisquer direitos que nasçam do vinculo social. Por isso, o direito romano frisou que o sócio que dispõe do seu direito, diretamente, e não há pensar-se, aqui, em transferência a terceiro, como se dá com as ações de sociedades, renuncia. Nem sempre se pode falar de denúncia onde os textos romanos aludiam a renunciatia, ou a repudium. E há denúncias, hoje, em que não poderiam anuir os juristas romanos. Por outro lado, a interpelação não é denúncia. Quem faz intimar o devedor para que, não adimplindo, caia em mora, não denuncia; interpela. Ainda quando se

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trata de interpelação que há de ser seguida do prazo legal para o cumprimento das obrigações mercantis. Quanto ao mandato, cessa pela revogação, ou pela chamada “renúncia”. Também aqui há influência da terminologia romana. O mandato extinguia-se em direito romano, por vontade de qualquer dos figurantes (outorgante, outorgado). a) É Gaio (III, 159): “Sed recte quoque consummatum mandatum si, dum adhuc integra res sit, revocatum fuerit, evanescit”. Extingue-se, evanesce o mandato outorgado enquanto íntegro o objeto, a res, isto é, enquanto não se havia iniciado a execução, pois havia de subsistir, se tardio, o que fora feito (L. 15, D., manda ti vel contra, 17, 1). b) Do lado do mandatário, falavam os textos de renuntiatum sit). Na L. 22, § 11, D., mandativel contra, 17, 1, Paulo diz que, assim como há liberdade para não se aceitar mandato, assim deve ser executado o mandato que se aceitou, se não se houver renunciado (Sicut autem liberum est mandatum non suscipere, ita susceptum consummari oportet, nisi renuntiatum siti. A renúncia podia ser, ficando ao mandante íntegro o direito de praticar os atos que confiara ao mandatário, ou por si ou por outrem, e ainda que tivesse sofrido prejuízos o mandatário. Esse respondia pelo que houvesse infringido o contrato até o momento da renúncia, ou até ter tido ciência da renúncia, a tempo, o mandante. Poder-se-á dizer que há, para o caso da atitude do mandatário como para a do sócio, razão para se falar de renúncia, e não de denúncia. Sem razão. Se é certo que há no mandato como na sociedade o elemento confiança, não se tem a esse elemento como essencial à vincularidade, nem sequer, em grau tão alto como aquele que se encontra nos vínculos sociais. Daí a correção que se há de fazer à terminologia romana: o man-datário, que “renuncia”, em verdade denuncia. Ai teve razão o Código Civil alemão, § 671, alinea 2ª. Já no Tratado de Direita Privado, Tomo III, § 321, 1, havíamos preferido dizer, quanto à extinção de mandato, “denúncia”, em vez de “renúncia”. § 193. Denúncia, resolução e resilição 1.Desconstituiçâo e eficácia. A denúncia obtém resultados desconstitutivos semelhantes aos da resilição, que são o de extinção ex nunc: mas a denúncia põe termo à relação juridica, não a desfaz, nem é como se desfizesse o negócio jurídico. A denúncia diz: “aqui acaba a relação jurídica”; a resolução enuncia, implicitamente: o que ia continuar, ou o que era, é como se não pudesser (resilição), ou como se não tivesse sido (resolução). Quem resile faz cessar; quem resolve, faz o que era, no mundo jurídico, deixar de ter sido. Quem denuncia, apenas faz não continuar. Resolução apaga presente e passado; portanto, não há futuro; denúncia põe ponto final, no que é no presente; resilição raspa a reticência, que seria o futuro. O que iria continuar, e deixa de continuar, porque houve a resilição, foi atingido pelo corte que se fez. É como se a frase estivesse feita e estivessendo lida, mas se interrompeu a leitura, para sempre. Não é o que se passa com a denúncia. A frase que se estava lendo foi lida. O que se quer, de agora em diante, é que não mais se escreva o que se ia escrevendo e escrito não fora. 2. Eficácia. Não se pode fazer consistir na diferença entre eficácia ex tunc e eficácia ex nunc a distinção entre denúncia e resolução, pois o sistema jurídico conhece a resilição (cp. Ismar Littmann, Das gesetzliche Rúcktrittsrecht vam Vertrage nach den’i BGB., 16; Erich Schúler, Das Rúcktrittsrecht wegen mora solvendi, 57; Heinrich Anton, Geben positive Vertragsverletzunqen des Gegners em Rocktrittsrecht?, 7). Daí a importância que tem, na teoria e na prática, a distinção entre denúncia e resilição. Quem resile não só denuncia; a denúncia não tem a profundidade que tem a resilição. Porque, se denunciar é impedir que continue, resilir é desconstituir.

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A resilição supõe que o contrato tenha prazo determinado, para que algo se possa desconstituir, ou que, não o tendo, o direito especial — como as leis emergenciais sobre locação — tenha tirado ao figurante a denúncia vazia. Daí a figura extremamente complexa que as leis emergenciais sobre locação criaram para os contratos de locação com prazo indeterminado. 3. Precisões conceptuais. Em sistemas juridicos que só definem a resolução como extintiva ex tunc, há propensão para se não distinguir da denúncia a resilição, por serem ambas ex nunc. Mas resilir não é denunciar. Quando o locador de serviços por tempo indeterminado se afasta do contrato não é por ato de resilição, mas sim por ato de denúncia: não havia vínculo para o futuro. Dá-se o mesmo se o locador de prédio, por tempo indeterminado, não subordinado a leis emergenciais, não quer mais alugar: denuncia, não resile. A notificação de que se costuma falar a respeito de locatário, que recebeu denúncia e não entregou o bem como devia conforme a lei, é ato de denúncia. Não se confunde com a provocação pelo que pode denunciar o contrato (Tratado de Direito Privado, Tomo II, § 235). Se a locação é por prazo determinado e foi inserta cláusula de resilição (resolução ex nunc) se algo acontece, ou se algo acontece até x meses da assinatura do contrato e entrega das chaves, ou passados x anos, não há denúncia, há resilição. Se a locação é por prazo determinado, sem pacto comissório, e o locatário deixa de pagar aluguel, há resilição. e não denúncia. Na ação de despejo, há cumulação de ações — há a ação executiva e a de resilição legal do contrato, por inadimplemento. A denúncia cheia supõe que não haja prazo determinado, ou que a lei tenha abstraído desse prazo para tratar a relação jurídica como se fora por tempo indeterminado. 4.Relação jurídica e denúncia. Enquanto a revogação vai ao suporte fático do negócio jurídico e subtrai a vax, a resolução é como se desfizesse o negócio jurídico, e a rescisão o cinde e o desfaz, — a denúncia impede que o momento b e os que se lhe seguirem tenham a eficácia que, sem a denúncia, teriam. Quem denuncia não desfaz; evita que se faça o que se poderia fazer. A resilição desfaz eficácia. 5.Eficácia “ex nunc” da denúncia. A denúncia, como a renúncia, só opera desde a nunciação, desde o anúncio. Ambas são receptícias. Não há renúncias ex tunc, nem denúncias ex tunc. Ambas fazem o tempo desde agora ser diferente do tempo que até agora foi e estabelecem o que, sem elas, não ficaria estabelecido. Mas, enquanto a denúncia só afasta que efeitos futuros se produzam, sem dispor, a renúncia é ato dispositivo. Quem denuncia não dispõe, dispõe quem renuncia. 6.Começo da eficácia. O negócio jurídico ou a lei pode estabelecer que a eficácia da denúncia só se inicie com a ocorrência de algum fato, ou a partir de algum dia. Então, há a manifestaçao da vontade e a eficácia em tempos diferentes. Exemplos de denúncia com eficácia protraída, por força de lei, tem-se no caso de não convir ao locatário, se a prazo indeterminado a locação, a continuação no imóvel, e nas leis emergenciais sobre locação que estabelecem prazo. A denúncia ocorreu, irrevogavelmente; o efeito de ter o locatário de sair do prédio só se dá nos prazos legais. Idem, se o locatário, na locação por tempo indeterminado, não quer permanecer. § 194. Ação e procedimento 1. Ação de denúncia. A ação de denúncia é correspondente ao direito de denunciar e à pretensão à denúncia. Há a ação, no sentido do direito material, e a “ação”, no sentido do direito processual. O direito material é que regula os pressupostos e os efeitos do negócio jurídico da denúncia. Os pressupostos e os

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efeitos processuais dependem do direito processual. O direito processual não pode tornar atos só processuais o que o direito material considera negócio jurídico de denúncia. O direito material pode só permitir o exercício da pretensão e da ação de denúncia em processo judicial, ou deixar ao titular a escolha da via para o exercício. 2. Negócios jurídicos pendente a lide. Há negócios jurídicos que se perfazem durante relação jurídica processual. Discutiu-se, por serem em forma que as regras processuais regulam, a) teriam de seguir a sorte dos atos processuais, ou b) se conservariam o seu caráter de negócios jurídicos de direito material. Segundo a primeira opinião, a tais negócios jurídicos seriam revogáveis as manifestações de vontade, de regra declarações de vontade, contidas no suporte fático e, no caso de não terminar com sentença sobre eles o processo, não teriam qualquer significação (Josef Kóhler, Kompensation und Prozess, Zeitschrift ftJr deutschen Zivilprozess, 22, 15 S.; Die Aufrechnung nach dem 8GB., Zeitschrift, 24, 17 s., Prozesshandlung mit Zivilrechtswirkung, Zeitschrift, 29, 1 s.; Adolf Wach, Prozessuolimacht und Einrede der Aufrechnung, Zeitschrift, 27, 1 S.: Paul Langheineln, Anspruch und Em rede, 128), por serem negócios jurídicos que se fizeram processuais. na forma e nos pressupostos. A isso contrapôs-se a segunda opinião, que sustentou não perderem tais negócios jurídicos, por ocorrerem no processo, a sua natureza de negócios jurídicos regulados alhures (e. g., no direito civil) — devendo, em seus pressupostos e eficácia, ser incólumes ao direito processual (G. Planck, Kommentar, 1, 4ª ed., 225; Andreas von Tuhr, Der Aligerneine Teu, II, 158) — terem eficácia imediata, serem irrevogáveis e independentes do êxito do processo as declarações de vontade negociais ou em exercicio de direito. Tentou síntese lKonrad Hellwig (Prozesshandlung und Rechtsqeschàft, 24 s., destoando de Lehrbuch, 1, 241 s., e II, 386 si. Nos Comentários ao Código de Processo Civil (1, 88) escrevemos: “Alguns negócios jurídicos privados são conteúdo de ato processual (a transação judicial, a compensação etc.). Vistos pelo lado do direito processual, são atos processuais. Vistos pelo lado do direito material, são negócios jurídicos privados. Os dois ramos do direito enlaçam o mesmo ato, submetendo-o aos seus preceitos. Os efeitos de direito material independem da eficácia ou subsistência da eficácia como ato processual, salvo regra do direito material. 3. Atos processuais. O demandado na ação de denúncia não precisa contestar, porque, no tocante ao negócio jurídico com que o demandante denuncia, não é de mister que haja concordância, ou dever de manifestação de vontade pelo que recebe a denúncia. Á diferença do recebedor da oferto, em se tratando do negócio jurídico bilateral ou plurilateral, o recebedor da denúncia fica em situação puramente passiva. Se há desistência da ação, ou renúncia do direito à denúncia, o efeito desconstitutivo (revocatório) somente ocorre se o efeito do exercício da denúncia ainda não se produziu.

Capítulo VI

Ação de redibição e ação “quanti minoris” § 195. Conceito e natureza dos vícios redibitórios 1. Vícios redibitórios. No direito brasileiro, os vícios redibitórios foram tratados como vícios ou defeitos do bem recebido em virtude de contrato comutativo. A regra jurídica incide estando em causa doação com encargo. O que se recebe em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitado por vícios ou defeitos ocultos, que o tornem impróprio ao uso a que é destinado, ou que lhe diminuam o valor. Uso a que é destinada a coisa. Entenda-se o uso habitual, o uso que em geral se lhe dá, ou aquele que se pressupõe no contrato. Vício é qualquer discordância entre a coisa, tal como está, e sua normal utilizabilidade, ou entre a coisa e a utilizabilidade prevista no contrato.

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O alienante — da propriedade, ou da posse, ou do uso —tem de restituir o valor recebido, mais as perdas e danos, se conhecia o vício; ou o que recebeu, mais as despesas do contrato, se ignorava o vicio. As regras jurídicas sobre redibição não são invocáveis onde foi atribuida à coisa utilizabilidade que não é a normal, a que todos ou os entendidos lhe conhecem. Porque, então, se fez preciso acordo sobre o uso a que se destina. Se a coisa não é idônea ao uso ou fim que se previu no contrato comutativo, as regras jurídicas incidem, ainda que o figurante que entregou a coisa o ignorasse. O prazo preclusivo é curto; mas, se, no contrato ou em pacto acessório, foi dado tempo para a verificação, entende-se que se há de respeitar a cláusula contratual ou o pacto, e não o prazo preclusivo legal; e então o prazo, que se fixou, é prazo convencional preclusivo. É preciso, para que se dê a inidoneidade da coisa ao fim previsto, que esse fim seja o fim normal, ou que o figurante que entrega a coisa haja afirmado, expressa, ou, pelo menos, tacitamente, que a coisa é apta à utilização de que cogita o outorgado; portanto, que tenha havido acordo entre eles. E indispensável que o fim seja o fim próprio da coisa, ou um dos seus fins próprios, ou que conste do contrato ou de pacto acessório (He-inrich Siber, Grundriss des deutschen búrgerlichen Rechts, li, 235). Sem que o fim se insira, pela destinação mesma da coisa, ou por destinação convencional, não há redibição. O Tribunal Supremo do Reich em 1919 julgou caso em que alguém tinha alugado posto de gasolina, que não pôde expIorar por superveniência da guerra. Baseou-se o julgado em que viera a faltar, em absoluto, a finalidade. Invocou os §§ 323 e 537 do Código Civil alemão. Aquele, concernente à impossibilidade da prestação; esse, á locação e superveniência da inusabilidade da coisa locada. Tratando-se de prestação permanente de uso, tem de entender-se que há no sistema jurídico brasileiro regra jurídica semelhante à do § 537 do Código Civil alemão. O locador presta uso permanente, razão por que o tem de manter. Se as circunstâncias tornam a coisa imprópria ao uso a que se destinava, é de reputar-se resilível o contrato, ou suscetível de diminuição o aluguel. Se o credor consente, pode ser feita, em vez da prestação devida, outra. E a datio in solutum, dação em solução da dívida, que extingue, ipso iure, a dívida, como a extinguiria o pagamento, em sentido estrito. Na dação em soluto há negócio jurídico bilateral de alienação, pois que se dá o objeto da prestação para se satisfazer a pretensão do credor, e há p/us, que é o solver a divida. Por isso mesmo, no que concerne à responsabilidade pelos vícios da coisa ou pela evicção, conforme as regras jurídicas, que se referem aos contratos comutativos, aos vicios redibitórios e à evicção. Para tal, não se precisaria, no direito brasileiro, de analogia com a venda e compra, uma vez que se alude a classes, em que se incluem, respectivamente, todos os contratos comutativos e todos os contratos onerosos. Segundo ficou assente, determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relaçôes jurídicas entre os figurantes regulam-se pelas regras jurídicas do contrato de venda e compra. Noutros sistemas jurídicos, de tal regra jurídica é que se tira a responsabilidade pelos vicios redibitórios e pela evícção (e. g., Código Civil alemão, § 365). No sistema jurídico brasileiro, não devido à generalidade do que nele se estabelece. Se a dação é rem prore, á troca, e não a venda e compra, é que se remete. 2.Antes da entrega e depois da entrego. Há os vicios do objeto antes da entrega, isto é, os vícios do objeto antes do credor receber a prestação, e os vícios do objeto depois de o credor ter recebido a prestação. Não há mais falar-se de recusabílidade, nem de adimplemento. O que há de comum aos vícios de direito e aos vícios do objeto é o serem determinadores de responsabilidade de quem adimpliu, e não só de quem prometeu. Só se tem de adimplir o que se prometeu, mas há de ser adimplido de modo que não haja vícios. Quem prometeu a e prestou a, mas a era de outrem, ou a estava com doença ou quebrado em peça interior, responde por ter prestado com vicio. E por isso que a existência do vício há de ser no momento da prestação, e não no momento da promessa. Se adimplemento houve, liberado está o outorgante. Para bem compreendermos a função das regras jurídicas sobre redibição e minoração da contraprestação, temos de atender ao elemento comum a todas elas: já se ter adimplido a dívida e ser sobre a prestação feita que recai a argUição de possível evicção, ou de vício redibitório, de minorabilidade, ou de álea.

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3.Direito romano e direito grego. A princípio, não se havia pensado nos vícios do objeto antes da entrega, porque a recusa afastava qualquer problema de sistemática. Depois, atentou-se em que os vícios do objeto podiam estar ocultos. Remontando-se no tempo, encontra-se o caso do alienante de prédio que indicara como superfície desse, à celebração da moncipatio, extensão que não era a do prédio, e fora obrigado ao dobro do valor da superfície que faltava (octio de modo agh). Cf. Paulo, Sententioe, II. 17, 4: “Distracto fundo si quis de modo mentiatur, in duplum eius, quod mentitus est, officio iudicis aestimatione facta convenitur. No direito justinianeu, não se empregou a ação. No período final da República e começo da época clássica, a actio ernpti, pela qual se exigia a responsabilidade do vendedor pelos vícios da coisa, era assaz limitada: na venda e compra por mancipatio, o vendedor respondia, pelo que prometeu (dicta in mancipio) e pelos vícios do objeto, se os conhecia e os ocultara, e pelas afirmações de ter a coisa determinadas qualidades, para aproximar o comprador (Wolfgang Kunkel, Dilígentia, Zeitschrijt der Sauigny-Stíftung, 46, 436 s.) (No texto das Sententioe de Paulo, II, 17, 4, o “si quis” é surpreendente, porque o vendedor é que teria de ser condenado ao duplo, e não quem quer que seja. Não o são menos o convenitur in duplo”, em vez de “condemnatur in duplum”. Cf Raymond Monier, La Garcintie contre les Vices cachés dons la uente romaine, 3 s.; La Notion d’eviction et la notion de vices juridiques dans la mancipation, lura, V, 169-17 1). Ou o credor exigia o ressarcimento do dano, pelo fato de ter concluído o negócio jurídico fundado em falsas indicações do vendedor (interesse negativo); ou, se houve contraprestação excessiva, a diminuição do preço, ou a redibição (Paulo, Sententiae, II, 17, 6: “Si, ut servum quis pluris venderet, de artificio eius, vel de peculio mentitus est, actione ex empto conventus, quanto minoris valuisset emptori praestare compellitur, nisi paratus sit eum redhibere, em que se percebe não ser a forma de Paulo, algo de recomposição pós-clássica, cf. Fritz Schulz, Einfúhrung in das Studiurn der Digesten, 118). No direito justinianeu já esponta o princípio do interesse positivo (interesse no adimplemento, pela prestação do bem sem vícios do objeto; mas isso foi obra dos compiladores (e. g., L. 13, pr., D., de actionibus ernpti venditi, 19, 1), talvez interpolação justianíanéia (Pranz Haymann, Anfechtung, Sachrnàngelgewàhr und Vertragserfúllung, 61 s.), talvez refundimento pré-justinianeu (Paul Jôrs-Wolfgang Kunkel, Rórn isches Priva-trecht, 3ª ed., 233). Na L. 13, pr., Ulpiano informa que Juliano distinguia a condenação em ação de compra entre o que vendeu ciente, ou ignorante, com vicio do objeto. Quem vendeu gado enfermo, ou madeira defeituosa, se em verdade o ignorava, somente havia de ser condenado pela diferença entre o preço e aquilo que se lhe haveria pago se o comprador ignorasse que estava assim. Se o sabia e calou, e enganou o comprador, res-ponderia por todos os prejuízos que o comprador teve com a compra. Se a casa ruiu por vício da madeira, teria de pagar o valor da casa. Se outras cabeças de gado perecerem por contágio do gado enfermo teria de pagar o que resultaria da venda se estivessem sãs, Tudo leva a crer-se em que a actio quanti minoris surgiu, em evolução normal, na época clássica, não na idade republicana, da actio redhibitoria. Inovação pretoriana, supôs a acho redhibitoria em seu desenvolvimento para as variações da prestação (cf. E. Pringsheim. Das Alter der aedilizischen actio quanti minoris, Zeitschrijt der Savigny-Stiftung, 69, 234-301). O vendedor podia assegurar, pela stipulatio, a inexistência de vícios do objeto. Assim, ampliava-se, pela manifestação expressa de vontade, a responsabilidade do vendedor. A prática de tais assegurações expressas nas vendas de escravos e de animais levou ao princípio geral da responsabilidade por vícios do objeto, mediante regras honorárias de edil curul com jurisdição nos mercados (A. F. 3. Thibaut, Vertheidigung der Praxis gegenmanche neue Theorie, Archiu Júr die civilistische Proxis, V, 350 5.; August Bechmann, Der Kouf nach gemeinem Recht, 1, 395 s.; Franz Haymann, Anfechtung, Sachrnàgelgewdrhr und Vertragserftillung, 1. 19 s). No direito edilicio, era indiferente se o devedor conhecia, ou não, o vicio do direito (L. 1, § 2, D., de aedilicio edicto et redbibitione et quanti minoris, 21, 1). No direito justiníaneu não era necessária a estipulação para se responsabilizar o vendedor, sempre que as assegurações aformais (dicta et prorn isso) eram suficientes para gerar a actio empti.

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No direito grego, basta abrir-se o Tratado das Leis de Platão (XI, 2, 916) para se terem pormenores sobre a ação por vícios do objeto. Se o comprador conhecia o vício, não tinha ação. Conhece-se o vício quando o vendedor ou outrem comunica sobre a sua existência, ou se aparece para quem quer que seja, ou se, por sua aptidão ou experiência, o comprador tinha de notá-lo, casos em que se há de presumir ter conhecido o vício do objeto. A condenação era ao dobro se o vendedor conhecia o vício oculto. Esse ponto, que está em Platão, corresponde ao direito positivo. Havia a ação redíbitária, a avyaywyq, não a quanti niinoris ou a aestirnatoria, exatamente como se passou no antigo direito germânico (E. Bíicheler-Ernst Zitelmann, Das Recht von Gortyn, 168, nota 14). Sem razão, P. Guiraud (La Propriétê Jonclêre en Grêce jusqu’â la conquête romoine, 275). Quanto a ação ser pertinente à venda de qualquer objeto, e não só a de escravos, quem somente visse a lei, como ressalta do pleito de Hiperides (3. H. Lipsius. Von der Bedeutung das griechischen Rechts, 20), teria de entender que era o caso único; mas em verdade a jurisprudência foi além (cf. E. Platner, Der Prozess und die Klagen bei den Attikern, II, 342; B. Búchsenschútz, Der Besitz und Erwerb im griechischen Altertume, 528). Cumpre observar-se que se tratava de principio excepcional, porque, no direito ático, não havia a inualidade por dolo, nem, sequer, por erro sobre a qualidade das coisas vendidas. 4. Momento em que se aprecia o vício do objeto. Sempre se teve como decisivo o momento da conclusão do contrato. Recentemente, E. Pringsheim (The Decisive Moment for Aedilician Liability, Arch lues d’Histoire d,i Droit oriental, Revue internationale das Droits de l’Antiquité, 1, 545-556) mostrou que os textos não permitem tal conclusão, que se arraigara, sem controvérsia, O momento decisivo é o da traditio, salvo se a relação jurídica é de consumo (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, art, 26, § 39. Mostrou ele não serem exatas as fórmulas da actio redhibitoria e da actio quanti minoris conforme Otto Lenel. Quanto àquela (546-555), o edicto que se tem na L. 1, § 1, D., de aedilicio edicto et redhibitione et quanti minoris, 21, 1, prova que o “cum veniret só se refere aos dicta et promissa, e não aos vícios ocultos, e somente no tocante àqueles é que importa o momento da assunção da garantia, e não o da subsistência dos vícios. Trouxe a exame a L. 43, D., de contrahenda emptione et de pactis inter ernptorern et venditorem campositis et quae res venire non possunt, 18, 1, a L. 56, pr., e a L. 52, D., de aedilicio edicto et redhibitione et quanti minoris, 21, 1. Reputou alteradas a L. 20 e a L. 19, § 6, D., 21, 1, e a L. 3, C., de aedilici is actionibus, 4, 58. O edicto concernente à venda de bestiais não alude aos dita prornissave e contém o “cum veniret”, no que se afastou do edicto referente à venda de escravos. Mais: a stipulatio ab aedilibus proposita fez decisivo o momento da tradição. No que tange à actio quanti rninoris, que lhe parece clássica, a referência à venditio, foi entre Célio Sabino e Sálvio Juliano (L. 25, § 1, D., de exceptione rei iudicatae, 44, 2), mas há correlações com a actio redhibitoria. 5. “Contratos comutativos” e responsabilidade por vícios do objeto. No correr da exposição evitaremos falar do preço, porque o direito privado brasileiro se libertou da subordinação da pretensão à responsabilidade por vícios do objeto ao negócio jurídico bilateral da venda e compra. O direito privado refere-se, amplamente, a “contrato comutativo Na L. 8, § 24, D., de transactionibus, 2. 15, Ulpiano refere-se a “cumutar” no sentido de prestar vinho por óleo, ou óleo por vinho, ou algo por outra coisa (vel si vinum pro eleo vel oleum pro vino vel quid aliud commutativ), inclusive se algo que está num lugar por algo que se acha noutro (ut quae erant ei Romae alimenta relicta, in municipio vel in provincia acciperet ‘‘el contra). Na L. 23, D., de usu et habitatione, 7, 8, é de Nerácio que o proprietário não pode comutar a espécie da coisa usuária (Usuraie rei speciem is cuius proprietas est nuilo modo commutare potest) e de Paulo que a razão está em que não pode empiorar a situação do usuário (deteriorem enim causam usuarii facere non potest), e mesmo comutar pelo melhor é empiorar (facit autem deteriorem etiam in meliorem statum commutat). Contrato comutativo é todo negócio juridico bilateral em que há prestação ou contraprestação. Em vez de diminuição do preço, redução do preço ou minoração do preço, havemos de falar de diminuição da contraprestação ou minoração da contra-prestação. Pode tratar-se de preço, no sentido de prestação em

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dinheiro, e pode não se tratar de preço. Quem recebe o bem, objeto de negócio jurídico comutativo, recebe o bem com as suas qualidades e o seu tamanho. Não se pode dizer que a vontade negocial só se dirigiu à coisa tal qual é, com abstração das suas qualidades; nem que se precise de cláusula para se tornar exigida a qualidade, pois que não é mais do que motivo. Ninguém quer a coisa em si, sem atenção às suas qualidades (com razão, Werner Rume, Eigenschaftsirrtum und Kauf, 11 s., 23 s.,). De jeito que a explicitude ou a interpretação tem de mostrar quais as qualidades, inclusive certas quantidades e extensões que qualificam (o corte de fazenda não dá para vestido), porque se quer a coisa tal como seria de esperar-se conforme o tráfico, ou conforme os anúncios, ou conforme o que se buscou. Os catálogos, os prospectos, os anúncios, os cartazes e menções em vitrina, mostruários e classificações por lugares, números, letras ou outras indicações exprimem afirmações de existirem as qualidades a que se alude, explícita ou implicitamente. Porém há qualidades que se supõe existirem sem se precisar de qualquer referência. Nas lojas, nos armazéns e na generalidade das casas de comércio não se vendem objetos usados. Objetos usados só se entende que se acham nas casas de objetos usados, ou se há informação escrita ou oral de que se trata de objetos usados. As qualidades, inclusive as extensões e quantidades que qualificam, que não são exigidas pelo uso do tráfico, ou não foram apontadas, explicita ou implicitamente, pelo figurante outorgante, ou pelo figurante outorgado, precisam de cláusula. O relógio de ouro não precisa ser da melhor composição metálica. Porque tais qualidades são motivos; e os motivos somente passam a ser elementos do suporte fático se trazidos pela vontade ao conteúdo do negócio jurídico. Daí a importância, no trato comercial, de se distinguirem das qualidades negociais as qualidades extranegociais, que podem vir a ser “negocializadas’, isto é, tidas como inerentes ao bem tal qual se promete ou se entrega. Outro ponto que merece atenção é o relativo à natureza da responsabilidade por vicio do objeto. Trata-se de responsabilidade contratual, e não de responsabilidade anexa ao contrato. A responsabilidade pelos vícios do objeto tanto se refere aos vícios do objeto corpóreo como aos vícios do objeto incorpóreo, como patente de invenção, obra literária, científica ou artística, e o próprio fundo de comércio ou empresa. A venda e compra de maquinismos é sempre com a garantia de bom funcionamento, de modo que há prazo — explícito ou implícito — para dentro dele se reclamar (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 17 de junho de 1952, RE 156/258, com fundamento errado, in casu, de se tratar de venda e compra a contento: Q Câmara Civil, a 3 de setembro de 1953, RT 218/205; Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Alçada de São Paulo, 1ª de dezembro de 1954, 233, 366; 4ª Câmara Civil do Tribunal de Alçada, 18 de dezembro de 1956, 263/503; 3ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 15 de julho de 1953, Ai 108/370). Nas compras-e-vendas de objetos que têm de ser montados para que se verifique se não têm vícios ocultos, o prazo somente corre do início do funcionamento (6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 24 de outubro de 1950, RT 189/819). A inércia ou a anuência explícita do vendedor importa confissão da rescindibilidade. Não se pode dizer que, com isso, esteja rescindido o contrato: ou há distrato, que tem de ser na mesma forma do contrato, ou há apenas confissão de rescindibilidade que estabelece situação de fato. Tem-se como se rescindido estivesse (como se estivesse havido eficácia sentencial) o que apenas é rescindível, mas tão inequivocamente o é que justifica a atitude dos contraentes. 6.Conhecimento pelo adquirente do bem. Se a lei atribui ao conhecimento de certo fato alguma eficácia, é que esse conhecimento entrou como elemento no suporte fático de algum fato jurídico. A eficácia é desse. Se o conhecimento só existe se a pessoa sabe qual a importância jurídica, ou material, do fato conhecido, depende da regra jurídica. Pode bem ser que ela entenda incluída no simples fato do conhecimento essa captaçâo do papel do fato. No conhecimento que a regra juridica sobre vício redibitório impõe, para não poder ser enjeitada a coisa ou não se poder pedir a diminuição do preço, há de estar compreendido o vício; não basta o conhecimento externo da coisa: é preciso que se saiba haver o vício, pois só assim deixa de ser oculto.

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Distinguem-se bem a comunicaçâo de conhecimento e o conhecimento em si mesmo quando se presta atenção às espécies em que basta ter-se conhecido e, pois, não é preciso comunicação: ou há declaração ou manifestação de ciência; ou, ainda que essa declaração (ou manifestação) não se dê, pode ser provado o ter conhecido do fato a pessoa. Assim, A comprou a B carregamento de gêneros alimentícios e B comunicara a A, por uma carta e por telegrama. respectivamente, que os gêneros a tinham os vícios a’; e os gêneros b) tinham os vícios c); porém A não leu a carta que recebera, por ter falecido, no dia, sua mulher, e o telegrama lhe não chegara, por interrupção das linhas telegráficas. Num e noutro caso, A não teve conhecimento do que E lhe comunicara e pode enjeitar os gêneros a, restituindo o alienante o que recebeu, com perdas e danos, ou pedir abatimento do preço. Mas cabe a A o ônus de provar que, a despeito da comunicação que E fizera, não lera a carta (Konrad Hellwig, Wesen und subjektive Begrensunq der Rechtskrajt, 392), por algum motivo admissível (acrescentemos), porque o fato de se abster de ler as cartas, que chegaram ao destino, não pode, de regra, ser a prejuízo do que fez a comunicação (Andreas von Tuhr, Der Aliqemeine Teu, II, 130. Aliás, se há motivos fortes para que A, tendo lido a carta, ou o telegrama, duvide do conteúdo, não se lhe pode imputar conhecimento. Quanto ao telegrama, ou carta, que não chegou, nenhuma eficácia tem a comunicação de conhecimento: frustrou-se. Quando a comunicação de conhecimento é bastante em si, o que se substitui no ato jurídico stricto sensu é a recepticiedade pessoal pela recepticiedade edital (= total), ou pela recepticiedade indireta (aviso a B de que constituiu mandatário). 7. Prazo preclusivo. O direito privado estabelece prazo preclusivo para o exercício da ação redibitória. Não há suspensibilidade, nem interruptibilidade (cf. 1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 16 de novembro de 1944, RT 143/202); aliter, quanto às regras jurídicas publicísticas da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 26, § 2ª, acerca da proteção e defesa do consumidor, editadas nos termos da Constituição de 1988, arts. 59, XXXII, 170, V, e 48 de suas Disposições Transitórias. Se, pelo contrato, explícita ou implicitamente, a aquisição é condicionada à experimentação, o prazo preclusivo não ocorre, antes que essa se dê ou tenha de dar-se (certa, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 19 de outubro de 1942, RF 101/301, e 3 de maio de 1943, RT 158/325; sem razão, a 2ª Turma, a 16 de dezembro de 1941, e o Supremo Tribunal Federal, a 2 de setembro de 1942, 143/328, e 158/893). Por exemplo: se o defeito do motor não poderia ter sido verificado antes da expiração do prazo preclusivo, a ação é a de adimplemento não satisfatório (cf. 5ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 13 de abril de 1938, RT 116/167, e 120/208). Em geral, as compras-e-vendas de máquinas cujo defeito somente pode ser verificado após a instalação, ou que não poderia ser experimentada imediatamente (e. q., não houve ainda energia elétrica no prédio, ou depende da vinda do engenheiro instalador a demora da instalação além do prazo), não se há de contar o prazo preclusivo (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 6 de maio de 1941, RT 134/548/136/197 e 137/572). No sentido do que acima dissemos, o Supremo Tribunal Federal, a 27 de agosto de 1964, a propósito de automóveis com defeitos só mais tarde revelados (DJ, apenso, 5 de novembro de 1964). Certo, quanto à ação de adimplemento não-satisfatório, a 3ª Câmara do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 2 de agosto de 1945 (RT 158/7 85: “Trata-se de refrigerador que devia ter determinada capacidade de refrigeração prevista no contrato, mas que não produziu o resultado desejado”, a 1ª Câmara, a 24 de setembro de 1945 (161/236: “Em se tratando de compra de máquina, que deva ser entregue montada e em funcionamento o prazo de prescrição (!) começa a fluir da entrega definitiva, ou seja, após a conclusão da montagem e experiência da máquina”); a 3ª Câmara, a 5 de junho de 1946 (164/709); a 2! Câmara, a 4 de fevereiro de 1947 (167/719): “...a verificação da esterilidade do gado vacum não pode ser feita no curto prazo de quinze dias da tradição dos animais”); e a 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 26 de novembro de 1948 (178/851). Se foi dado prazo para a verificação, as regras sobre prazo preclusivo, em caso de vício redibitório, não incidem. Absurdo porém, o acórdão da 3ª{ Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 28 de outubro de 1948 (RT 178/218), que — por ter sido pregada ao solo a máquina adquirida — a considerou parte integrante do imóvel para o efeito de ser aplicada a regra jurídica sobre prazo preclusivo em se tratando de vício de imóvel. Isso não tem qualquer fundamento em direito: se há prazo, só após ele se conta o prazo

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preclusivo; a integração da máquina ao imóvel, ou a sua ligação a ele, como pertença, de modo nenhum tem qualquer influência; é fato posterior à entrega (certa, a 4! Câmara Civil, a 1ª de setembro de 1949, 186/100). Se não há prazo de experimentação, a ação a ser proposta é a de inadimplemento satisfatório (confundiu as duas a sentença publicada na RT 161/236). Não há pensar-se em invocação da regra jurídica sobre prazo preclusivo, se a coisa entregue foi outra que a devida (3H Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 18 de março de 1948, RT 173/763). Com a preclusão nada tem a questão da identidade do objeto. Tampouco é de confundir-se a ação redibitória ou a ação quanti minoris, com a ação de anulação por erro quanto à qualidade essencial da coisa, como se A compra tela, que se diz de autoria de pintor célebre e não no é (4ª Câmara do Tribunal de Apelação de São Paulo, 25 de maio de 1944, RT 152/513), nem com a ação de anulação por dolo, essencial ou acidental. Se, diante da impugnação, o dador substituiu a coisa, o prazo preclusivo conta-se da entrega da segunda coisa (3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 18 de dezembro de 1944, RT 157/208). Aliás, dá-se o mesmo quanto ao prazo prescricional da ação de inadimplemento satisfatório. Cabe o prazo preclusivo da ação redibitória ou da quanti minoris em se tratando de venda com reserva de domínio (3ª Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 11 de dezembro de 1942, RT 145/721); e de troca (Tribunal de Justiça de São Paulo, 28 de outubro de 1932, RT 86/299). A reclamação ou notificação não tem lugar, quando o vendedor exige do comprador que examine os gêneros antes de os receber, nem depois de pago o preço (cf. 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 8 de maio de 1934, RT 90/335). Trata-se de principio geral de direito, invocável no direito civil e no comercial. Se o comprador reenvia a coisa comprada ao vendedor, e este a aceita, ou, sendo-lhe entregue contra sua vontade, a não faz depositar judicialmente por conta de quem pertencer, com intimação do depósito ao comprador, presume-se que consentiu na rescisão da venda. Se depois de pago o preço, se foi após recebimento (= nem antes, nem no ato), presume-se que houve anuência. Tratando-se de venda e compra de refugos ou por preço de refugos, ou retalhos, ou salvados, não cabe a ação redibitória ou quanti minoris (sobre os refugos, 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 28 de abril de 1943, RT 144/206). Se há venda a contento, não cabe invocar-se a preclusão, que só se refere às ações edilícias (Supremo Tribunal Federal, 19 de outubro de 1942, DJ de 23 de março de 1943, 1.550). § 196. Anulabilidade e vícios redibitórios 1.Redibir e anular. Os pressupostos para a redibição não são os mesmos para a anulação por erro. A doutrina tateou a respeito da concorrência ou não-concorrência das pretensões e ações. a) Houve quem excluisse a anulabilidade, se cabe a redibição (e. g.,L. Enneccerus, Lehrbuch, , 30ª-34ª eds., 427; Hugo Rehbein, Das Búrqerlíche Gesetzbuch, 1, 140, nota 3; Fr. Liebmann, Eigenschaft und Sachmàngelhajtung, 102; Franz Haymann, Anfecbtung, Sachmàngelgewàhr u. Vertragserfúllung, 11 s.). b) Outros entenderam que nenhum laço existe entre elas e podem ser intentadas as ações, independentemente (inclusive usada a “impugnação” alemã Paul Oertmann, Recht der Schuldverháltnisse, 3ª-4ª eds., 2, e ao § 450; 2. Simeón, Recht und Rechtsgang, 1, 370; Rudolf Leonhard, Der Allgemeine TeU, 496; Richard Schmidt, Anfechtungsrecht wegen Eigenschaftsirrtums und Wandelungsanspruch, 109; M. Heinecke, Das Verháltnis des Wandelungsanspruchs zur Anfechtung des Kaufs wegen Irrtums, 35). e) Outros apenas excluem a anulabilidade por erro na qualidade se é caso de redibição (Heinrich Dernburg, Das Btirgerliche Recht, II, 3ª ed., 71; H. Staub, Rommentar, II, T ed., 842 e., Siegmund Schlossmann, Der Irrtum, Ober wesentliche Eigenschaften, 57 s.; F. Haussmann, Der

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Irrturn, 45 s.; W. v. Blume, Das Verhãltnis des Anfechtungsrechts zur Wandelung, Das Recht, 11, 351; E. Corves, Das Verhàltnis des Wandelungsanspruchs beirn Kauf zu der Anfechtung wegen Irrturns, 41 5.; P. Stahlschmidt, § 459 BGB. u. § 119 Abs. 2, 65). 2. Crítica e soluçâo. Primeiro observemos que a ação de anulabilidade por erro abrange mais casos que as de vícios redibitórios, ao mesmo tempo que há casos em que pressupostos da redibição ocorrem sem que se dêem todos os de anulabilidade por erro. Certos estavam Rudoli Leonhard (Der Irrtum ais Ursache nichtiger \Iertràge, 2ª art., 172) em mostrar que há concorrência de leis em suportes láticos que de modo nenhum coincidem em todas as posibilidades, e 1(. Wolzendorff (Zur Frage der Konkurrenz von Eigenschaftsirrtum und Mángelgewãhr, Jherings Ja,-hrbOcher, 64, 318 s.), em frisar que a identificação entre a falta de qualidade essencial da coisa e o vicio é impossível (falta de qualidade essencial, segundo o tráfico, não é vicio). Na anu-labilidade, o erro está em se representar falsamente a realidade; na redibição, a representação realiza-se falsamente (Max Wolff, Sachmângel beim Raul, Jherings Jahrbúcher, 56, 40 s.) O que há de comum é a divergência entre representação e realidade: em ambas, o comprador não alcança o que representou e esperava (August Bechmann, Der Raul, 111, 2). No direito comum, houve a tendência a se considerar a redibição como caso de erro (e. g. K. A. v. Vangerow, Lehrbuch, 1, 7ª ed., 119) e a expressão erro nos escritores, a propósito de vícios, revela-a. Mas quem desconheceu o vício oculto, tão oculto que o pode ignorar o alienante, não erra. Não erramos a respeito do que de todo ignorávamos. Não há lacuna em se não tratar, em textos de lei, da relação entre a anulabilidade por erro e a redibição, como pareceu a Siegmund Schlossmann (Der Irrturn úber wesentifche Eigenschaften, 52). Toda consequência da propositura de uma ação, em vez da outra, só diz respeito à atitude do autor, que, perdendo na ação de anulabilidade, pode pedir o menos, que é a redibição, mas, propondo a de anulabilidade, sem lhe ser cumulada a outra, pode dar ensejo a que se pense ter renunciado à de redibição, aliás de prazo preclusivo, bem mais curto que o prazo de prescrição da ação anulatória. Se há ressalva, nada se pode inferir sobre renúncia. § 197. Duas pretensões em alternatividade 1. Direito ao objeto e pretensões por vício do objeto. Depois da entrega, quando o outorgado já tem o que se lhe prestou, o seu direito ao objeto foi ferido pelo vício do objeto. Duas pretensões lhe nascem, a de redibir e a de pedir abatimento do preço. Só as pode exercer alternativamente, ainda pelo sistema da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 18, parágrafo 1ª, posto que possa o consumidor diante de vi cio do produto e do serviço, deduzir uma de três, e não somente duas, pretensões: a) à substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições, b) á restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos, c) ao abatimento proporcional do preço. Os textos do direito brasileiro correspondem á última fase da evolução do direito sobre os vícios do objeto. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor. A regra jurídica é aplicável às doações gravadas de encargo. Em vez de enjeitar a coisa, redibindo o contrato, pode o adquirente reclamar abatimento no preço. Contra o comodante não pode ser invocada regra jurídica sobre redibição. Se o comodante conhecia o vicio e o ocultou, sabendo que os danos podiam advir ou adviriam, houve ato ilícito absoluto; portanto, há responsabilidade extracontratual. Não se há de pensar em culpa in contrahendo, porque, se o comodante veio a saber do perigo depois da conclusão do contrato, também é responsável (extracontratualmente, frise-se). A respeito dos legados o direito brasileiro contém regras jurídicas sobre as despesas e riscos da entrega, sobre as pertenças, o estado, o lugar da prestação e as novas aquisições, porém nada se diz quanto a defeitos e vícios da coisa legada. A matéria depende da natureza do legado e constitui assunto árduo. Logo se aclara quando se

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discriminam as espécies de legados. a) Se a coisa pertence á herança, não responde o onerado, nem pela evicção, nem pelos vicios redibitórios. b) Se a coisa lhe pertence, responde pela evicção e pelos vícios, quando a verba testamentária permitia que se adquirisse outra coisa equivalente ao que o testador legava, porque então é como se fosse genérico, ou, melhor, alternativo, o legado, cabendo a opção ao legatário, porque o testador ignorava os vícios e a alternativa, ai, favorece o legatário, e não o herdeiro. c) Se é legado in faciendo, responde pelos vícios e pela evicção, porque, em geral, a sua responsabilidade é a de um vendedor. d) Se genérico, responde pelos vícios e pela evicção. Salvo se a escolha tem de recair, absolutamente, entre coisas da herança, porque, então, nem pelos vícios jurídicos nem pelos defeitos físicos responde o onerado (E. Herzfelder, Erbrecht, cJ. uon Staudingers Kornmentar, V, 9ª ed., 594). e) No legado alternativo, não responde: a determinação foi do testador, e o onerado apenas decide dentre os objetos por ele determinados. a) Na L. 21, pr., D., de aedilicio edicto et redhibitione et quanti minoris, 21, 1, Ulpiano define “redibir’: fazer o vendedor ter, de novo, o que tivera, o que se consegue com a devolução, daí chamar-se redibição, quase re-dar (redditio). No texto está: “Redhibere est facere, ut rursus habeat venditor quod habuerit, et quia reddendo id fiebat, id circo redhibitio est appel— lata quasi redditio.” Havia resoluçâo do contrato, e não nulidade ou anulação. Sobre isso e a Lei de D. Duarte, de 18 de março de 1435, Tratado de Direito Privado, Tomo IV, § 360, 1. Redhibere é re-habere. Aí, reaver o preço, ou, quando, hoje, se cogita de todos os contratos comutativos e das doações gravadas de encargo, a contraprestação, qualquer que seja. Redditio é re-dição. red-ditio, manifestando-se vontade contrária, como ato de ordem. Ação redibitória ou de enjeitamento, não éde nulidade, nem de anulação, mas apenas de apagamento do ato-fato juridico do pagamento, da contraprestação. Redhibitio é red-hibitio, re+habitio, de re-habeo, reaver. b) A actio quanti minoris, essa, também só referente á solução que não foi boa, tem por fito haver a parte da contra-prestação no que atenda à desvalorização do bem pelo vício do objeto. O outorgante de direito sobre bem individuado — “coisa certa”, como diz a lei — tem de entregar o que prometeu. Não pode entregar outra coisa, salvo se o outorgado consente na dação em soluto, aí a divida de bem especifico. Se o bem está ou é defeituoso, e o outorgado o ignorava ao tempo do negócio jurídico, tem o outorgado a ação para a condenação e, depois, a ação de execução, com o eventual mandado de imissão na posse, ou de busca e apreensão no caso de admitir a entrega, com o vicio do objeto, e indenização, ou para a prestação da indenização por não-adimplemento. Também a prestação de gênero e de quantidade pode ter vício do objeto, assunto que adiante se versa. O outorgante não pode ser condenado a reparar, ou eliminar o vício do objeto. A escolha do outorgado antes da entrega da coisa é para a resolução do negócio jurídico por inadimplemento, ou para que o outorgante, prestando, indenize do prejuízo, uma de cujas espécies é a minoração da contraprestação. Se o outorgado alude à consertabilidade, ou emenda, ou substituição do objeto, dá ensejo a isso; não pode obrigar a isso, em ação de redibição ou quanti minoris. 2.Alternatividade. A alternatividade, na sistemática do Código Civil, arts. 1.101 e 1.105, pode ser pela propositura da ação redibitória, e não da ação de diminuição da contraprestação, ou vice-versa; ou pelo pedido da redibição ou da diminuição da contraprestação. Se o outorgado comunica ao outorgante que o bem recebido tem vicio do objeto, sem escolher entre a redibição e a minoração da contraprestação, pode o outorgante notificá-lo para que escolha, ou para que se pronuncie sobre a redibição. No segundo caso, o silêncio do outorgado significa que não quer a redibição, posto que lhe continue a pretensão à diminuição da contraprestação, se cabe.

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O outorgado não mais tem a escolha se o outorgante admitiu o que o outorgado escolhera (Paul Langheineken, Anspruch und EM rede, 246; Thiele, Die Vollziehung der Wandelung und die Minderung nach dem Búrgerlichen Gesetzbuch, Archiv fúr die civilistische Prax is, 93, 425). Admitir a redibição de modo nenhum ê pôr no lugar do negócio jurídico bilateral atingido outro negócio jurídico bilateral; e. g., nao se pode pedir que se faça outro negócio jurídico de venda e compra do imóvel (Richard Peltason, Bedarf em Vertrag, durch welchen em unter § 313 808, faílender Vertrag aufgehoben wird, der gerichtlichen oder notariellen Form, Deutsche Juristen-Zeitung, IX, 809; Thiele, Die Vollziehung der Wandelung und der Mínderung nach dem 8GB.. Archiu 1ª die civilistische Praxis, 93, 421; sem razão, Max Ernst Eccius, Die Gewãhrleistung wegen Mângel der Sache, Gruchos Beitràge, 43, 328. A respeito da minoração da contraprestação, cumpre dizer-se que, fora da venda e compra e dos outros contratos em que a contraprestação é em dinheiro, a pretensão à diminuição dacontraprestação pode não existir por ser indivísivel a contraprestação. 3. Vícios do objeto sucessivos. A diminuição da contraprestação, por ter-se conhecido algum vicio e ter-se exercido a pretensão, não exclui a pretensão por outro vicio que se descubra, ou se revele no mesmo objeto, quer se trate de pretensão à minoração quer de pretensão à redibição. Isso não significa que não possa ter havido — e é questão de interpretação — renúncia do outorgado á pretensão por outro vicio do objeto, ou às pretensões por outros vícios do objeto (Paul Oertmann, Das Recht der .Schuldverháltnisse, 455; Otto Warneyer, Komentar, 1, 810). Tem-se de levar em conta para a minoração posterior, ou para a posterior redibição, o que antes fora deduzido da contraprestação (Paul Oertmann, Das Recht der Schuldverhàltnisse, 455; sem razão: H. Siber, em C. Planck, Kornmentar, II, 2, 383; CarI Crome, System, II, 471; Heinrich Dernburg, Das Búrgerliche Recht, II, 2, 83, nota 6). § 198. Nascimento e extinção da pretensão à responsabilidade por vício do objeto 1. Nascimento da pretensão. A pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto nasce, para a redibição e para diminuição da contraprestação, quando, após a entrega, o outorgado vem a conhecer o vício do objeto. Tal entrega não foi seguida de comunicação explícita ou implícita, expressa ou tácita, de estar sem vício o adimplemento. 2.Vicio do objeto ou defeito “stricto sensu” e falta de qualidade. Não só o vício do bem é vicio do objeto. Também é vício do objeto a falta de qualidade que o outorgante assegurou. Assim, as qualidades prometidas são base para a responsabilidade por vícios do objeto. O momento em que há de existir o vicio do objeto, ou a causa dele, que em vício do objeto importe, é aquele em que se entrega o bem. O que se há de considerar é o valor do bem ou a sua utilidade para os usos correntes ou previstos no negócio jurídico. São exemplos: adição de açúcar ao vinho, ou de álcool ao vinho ou a outra bebida, além do que a lei permite; grande umidade das paredes do apartamento. Não se leva em conta somente o uso corrente; pode influir o que era a intenção manifestada do outorgado, com o acordo expresso ou tácito do outorgante; o não se poder construir, por faltar dimensão prevista pelas leis como dimensão mínima. A qualidade tida, no tráfico, como essencial, é essencial para o negócio jurídico de que se trata, salvo se esse o pré-excluiu. Porque a essencialidade para o tráfico somente o é para o negócio jurídico, por se supor que se quis o que segundo a concepção do tráfico se quereria. 3.Ignorância do vicio do objeto pelo outorgado. Um dos pressupostos para a responsabilidade do outorgante pelo vicio do objeto é o de desconhecer o outorgado a existência do vicio do objeto ou a sua inevitabilidade, ou a ausência de qualidade assegurada. O momento em que tem de apurar esse conhecimento é aquele em que se conclui o negócio jurídico. Cumpre, porém, que se não confunda a responsabilidade pelo vicio do objeto, que depende de não ser conhecida pelo outorgado, com a responsabilidade oriunda de cláusula negocial, ou de

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negócio jurídico à parte, em que o outorgante prometeu a eliminação do vicio do objeto (Max Ernst Eccius, Die Gewàhrleistung wegen Mângel der Sache nach dem BGB., Gruchots Beitrâge, 43, 310; Paul Oertmann, Schuldrecht, 2ª ed., 427, Recht der Schuldverhàltnisse, nota 4-a ao § 460). A cláusula pode não ser expressa. Exemplos de cláusula tácita estão em quase todos os casos de compra de móvel arranhado, ou mal envernizado, em casa de móveis novos (G. Planck, Nornmentar, II, 365; Otto Warneyer, Kommentar, 1, 790). Sempre que se compra em fábrica, ou estabelecimento comercial de objetos novos, aparelho de que falta peça, ou em que ainda não há qualidade normal, há a pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto (Chone, Zusicherung einer noch nicht vornhandenen Eigenschaft, Gruchots Beitrdge, 61, 199). O conhecimento do vício do objeto pelo representante é o mesmo que o conhecimento pelo representado; e o conhecimento pode ser só pelo representado. Se, no assunto, o representante foi além dos poderes que tinha, como se o representado exigira a demarcação prévia, não pode o conhecimento pelo representante ser oposto ao representado. Mas, aí, supõe-se que o outorgante conheça a restrição aos poderes do representante. 4. Anulação e redibição. A viciosidade pode dar ensejo à anulabilidade e à redibitoriedade ou diminuição da contraprestação. (a) Se o ato ilicito absoluto do devedor não tem suporte fático comum com a violação da relação jurídica relativa, isto é, se o mesmo ato não entra no mundo jurídico como ato ilícito relativo, claro que só incide a regra jurídica sobre ato ilícito absoluto. Não há concorrência de regras jurídicas. (b) Se, em vez disso, o suporte fático de uma das regras jurídicas contém o de outra, de modo que se pode falar de “mesmo” suporte fático, ainda se um é maior do que o outro —ou 1) ambas as regras jurídicas incidem, o que só se dá se a) o devedor dolosamente viola a relação jurídica relativa, ou b) se o ato ilícito absoluto foi contra direito, pretensão, ação, ou exceção irrenunciável, ou 2), se não há a), nem b), a regra jurídica do ato ilícito relativo é que incide (ou, excepcionalmente, a outra). Em verdade, estão-se a enunciar princípios formais. Temos exemplo de (a), mas obrigações do possuidor da herança de devolver o que percebeu e de ressarcir o dano que causou por dolo ou culpa. Há, ai, concorrência cumulativa de ações —não de regras jurídicas. Temos exemplo de (b), 1), a), no que não paga a divida, para que o credor abra falência, ou no que paga a divida com dinheiro suscetível de ser apreendido. Temos exemplo de (b), 1), b), se o devedor deixou de entregar o preço da coisa inalienável, que se tem de sub-rogar, ou se o médico matou o cliente, ou agrava a doença desse, por ato ilícito absoluto (P. Fromherz, Haftet der Arzt auf Shmerzensgeld, Archiv fúr die civilistische Praxis, 108, 435 s., cf. Ernst Rabel, Die Haftpflicht des Arztes, 79), ainda quando chamado pela polícia (H. Joachim e A. Korn, Deutsches Arzterecht, 345), ou sem receber honorários. A gestão de negócios não suprime, ai, a contrariedade a direito, por negligencia, ou imprudência. Nem tinha razão Búrgner (Das Verhãltniss des Ansprucbs aus unerlaubter Handlung zum Vertragsanspruch, 27), excluindo a ação ex delicto do que convidou amigos para refeição em restaurante, se ficaram em venenados, e mantendo-a aos convidados. A relação jurídica relativa não tira, aí, a ação do ato ilícito absoluto, de modo que a distinção é falsa. Em (b), tratou-se daquelas espécies em que uma regra jurídica exclui, por si mesma, a outra; porque, então, é lex specialis (conceito que Konrad Hellwig, Lehrbuch des deutschen Zivilprozessrechts, 1, 266, Anspruch und Klagrecht, 98 s., generalizara em demasia, a ponto de estabelecer confusão entre concorrência e não-concorrência): a regra jurídica especial recortou, no que é seu conteúdo, o conteúdo da regra jurídica geral (derrogando-a, se posterior a essa). Exemplo: nos contratos comutativos, se a coisa foi recebida com vicios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor, pode ser enjeitada, ou ser pedida a diminuição do preço. Tais regras jurídicas são lex specia lis e não se ligam à anulabilidade por erro. A notificação ao alienante de haver vício redibitório há de estar contida no pedido de rescisão, se feita antes ou inclusa. Somente se refere ao vício redibitório, porque a ação não depende de dolo, ou erro. 5. Pré-exclusão do nascimento da pretensão. Se o objeto está para ser vendido “como se acha”, ou “no estado em que se encontra” (Karl Rober, 1 v. Staudíngers Kornmentar, II, 1, 672), não há a pretensão à

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responsabilidade pelo vício do objeto. Aliter, se está dito “como se vê”, porque então só se pré-exclui a pretensão à responsabilidade pelos vícios do objeto se visivel a olhos nus; ou se a casa é de objetos usados, ou de salvados, ou de antiguidades, porque então a responsabilidade pelos vícios do objeto ordinariamente não existe: o comprador tem de examinar o que compra. (Os juristas falam, em tais espécies, de renúncia à pretensão, mas o termo é evidentemente impróprio. Não se renuncia ao que ainda não se tem. Aí, a pretensão nasce, ou não nasce. O outorgante assumiu, ou não assumiu a responsabilidade. De renúncia só se há de falar se a pretensão já nascera). Os contraentes podem acordar em que o dador não seja responsável pelo vicio ou defeito oculto. Podem, também, agravar a responsabilidade do dador (Paul Oertmann, Recht der Schuldverhdltnisse, 455), salvo para pré-excluir a ação pelo dolo. Nas espécies em que a renúncia à pretensão à prestação da garantia é admitida, admite-se também que seja tácita (Paul Oertmann, Recht der Schulduerhâltnisse, 419; Otto Warneyer, Kommentar, 1, 781). Tratando-se de imóveis, para a renúncia é preciso que se observe, quanto à forma, a regra jurídica especial. A cláusula “no estado em que se acha”, “como está à vista’, não pré-exclui a responsabilidade pelos vícios e defeitos ocultos. O acordo de minoração sem agravação da garantia pode ser em cláusula inserta no contrato, ou em pacto anterior ou posterior à conclusão do contrato. A cláusula de pré-exclusão da responsabilidade pelo dolo é nula; bem assim, o acordo anterior ou posterior ao contrato (Karl Rober, 1 ii Staudingers Kommentar, II, 1, 714). A nulidade somente apanha o acordo de pré-exclusão ou exclusão da pretensão à prestação de garantia no tocante ao dolo (Otto Warneyer, Kommentar, 1, 810); de modo que se dá a pré-exclusão ou exclusão, se dolo não houve (= vale como pré-excludente ou excludente da garantia, fora a dolosidade da ocultação). Não há dolo se o dador oculta vício ou defeito que não é aquele de que se Irata, nem dolosamente oculta a esse (Paul Oertmann, Recht der Scbulduerhãltnisse, 456; Otto Warneyer, Kommentar, 1, 810). Se se alega o dolo do dador, têm-se de provar o conhecimento e o dolo, não só o conhecimento. Salvo cláusula expressa no contrato, a ignorância de tais vícios pelo alienante não o exime da responsabilidade (Código Civil, art. 1.102); obter, na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 25. Se o alienante conhecia o vicio, ou o defeito, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato. 6. Renúncia à pretensão à responsabilidade por defeito do objeto. Se, depois de conhecer o vício do objeto, embora já concluido, antes, o negócio jurídico, o outorgado contrapresta, entende-se, em principio, que renunciou à pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto (Otto Warneyer, Kornmentar, 1, 790), posto que a interpretação possa ser diferente. Contudo, pode sempre contraprestar com a reserva de exercer a pretensão. Nem sempre, descoberto o vicio do objeto, se há de considerar renúncia o ato de o outorgado usar ou de continuar de usar o que lhe foi prestado. A alienação posterior ao descobrimento do vício do objeto pode significar renúncia, porém não sempre. A redibição, sim, está excluída, salvo se houve alienação que pode ser desfeita (e. g., em caso de retrovenda). É ônus do outorgante alegar e provar a satisfação do outorgado e o conhecimento que esse teve do vicio do objeto; ao outorgado. o ônus de alegar e provar a reserva que fez (Robert Rómer. Das sog. qualificierte Gestãndnis, Archiv fUr die civilistische Praxis, 62, 174 s.; Leo Rosenberg, Zur Lehre vom sog. qualifizierten Gestãndnís, Archiv fOr die civilistische Praxis, 94, 128; sem razão, Franz Leonhard, Die Beweislast, 381). A renúncia pode ser à redibição sem ser também à diminuição da contraprestação, o que às vezes ocorre quando o outorgado usa ou continua de usar o bem viciado (Paul Oertmann, Schuldrecht, 437; Eugen Ehrlich, Die stillschweigende WiIlenserklãrung, 127; Paul Laband, Zum zweiten Buch des Entwurfes eines BGB., Archiv fOr die civilistische Praxis, 74, 35).

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Se o bem recebido é indispensável, por exemplo, à continuidade da exploração de uma indústria, mas tem vício do objeto, o receptor tem de alegar o que concerne ao vicio do direito, com a reserva da pretensão à redibição, ou à minoração do preço, a despeito da impossibilidade, econômica ou técnica, de repelir o adimplemento ruim. Não serve o que foi entregue, mas sou forçado a recebê-lo, até que me preste outro objeto (isso nada tem com a redibição ou a minoração), ou me devolva a contraprestação (redibição), ou diminua o preço”. O credor que teve de receber, com ressalva, o bem com vicio do objeto, ou escolhe o exercício da pretensão ao bom adimplemento, ou, e aqui é que está a matéria que agora nos interessa, exerce, com alternatividade, ou escolhendo uma, a pretensão à redibição ou a pretensão à minoração da contraprestação. 7. Extinção da pretensão por Jato de silêncio. Se o outorgado recebe o objeto com vício, sem nada opor, apesar de conhecê-lo, tem-se de indagar se o conheceu antes da conclusão do negócio jurídico, ou se o conheceu entre a conclusão do negócio e o recebimento, ou se depois desse. No primeiro caso, de nenhuma pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto se pode falar, porque tal pretensão não nasceu. No segundo e no terceiro, houve perda da pretensão ou renúncia, respectivamente. (Nos livros e até em leis fala-se, e. g., Código Civil alemão, § 464, de “aceitação do pagamento. Pagamento recebe-se, ou não se recebe; ou se recebe com reserva ou ressalva. Deve-se evitar a expressão imprópria.) Se o outorgado vem a saber do vício do objeto entre a conclusão do negócio juridico e a entrega, inclusive no momento imediatamente anterior, ou conhece os defeitos do bem, ou a falta de qualidade assegurada, e a recebe, perde a pretensão. Algumas precisões. Se o outorgado soube do vício do objeto, antes da entrega ou no instante imediatamente anterior a essa, mas depois da conclusão do negócio jurídico, e recebe o bem viciado, não há renúncia, que é negócio juridico unilateral, há perda da pretensão à responsabilidade pelo vício do objeto. A classificação do fato jurídico como renúncia tácita era corrente (ainda, por exemplo, Franz Leonhard, Besonderes Schu)drecht, 75); mas houve as criticas de Hermann Krause (Schweigen im Rechtsverkehr, 163) que disse não se poder pensar em prazo preclusivo, porque a extinção não se liga a prazo (nem o prazo, aí, teria significação), de Palandt (Búrgerliches Gesetzbuch, 14ª ed., 478), que repetiu, aí, o conceito de renúncia, e apenas admitiu o de extinção, e de Rari Larenz (Lehrbuch des Schuldrechts, II, 39) que falou de criar-se, com o silêncio, suporte fático em que o outorgante pode confiar. Afastemos que se trate de manifestação de vontade. Aí, o silêncio apenas funciona como fato extintivo, ocasionando a extinção da pretensão à responsabilidade pelo vício do objeto. Diferente é o que se passa se a descoberta é após a entrega. Ai, ou há renúncia, que é negócio jurídico unilateral, ou há preclusão, por ter expirado o prazo. O recebimento, para que seja óbice ao nascimento da pretensão, ou determinador da perda da pretensão, ou importe renúncia, é preciso que seja interpretável como expressivo de ter-se achado bom o adimplemento, o que pode resultar do recibo, do uso do tráfico ou das circunstâncias. Quem recebe tem de examinar no tempo, fixado pela lei, em que pode exercer a pretensão. Tais regras jurídicas nada têm com os vícios do direito, só se referem a ações por vícios do objeto. Mas, em todos esses casos, se supõe que exista a pretensão. A perda em virtude do silêncio do outorgado entre a conclusão do negócio jurídico e a entrega, inclusive no instante imediatamente anterior, ocorre se houve dolo do outorgante, porque o que permanece é a ação de anulação por dolo, pois a ação de anulação nada tem com a ação de responsabilidade por vicio de objeto. (Devido à remissão do § 464 do Código Civil alemão ao § 463, tem-se querido, e.g., Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, II, 39, que a ação de redibição e a de diminuição da contraprestação continuem, bem como a desconstitutiva do negócio jurídico. Mas essa interpretação é de repelir-se. A remissão não a permite. O § 463 apenas ressalvou a ação de indenização por inadimplemento, ou a de desconstituição por dolo. O dolo do outorgante só se refere à desconstituição do negócio jurídico e a pretensão à responsabilidade por vicio do direito pode ter-se extinguido, por silêncio do outorgado). No caso de transferência do domínio ou de algum direito real limitado, tem-se de indagar se houve a entrega da posse imediata, ou se não houve. Se ainda não houve a entrega da posse imediata, o registro do acordo de

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transmissão da propriedade e da posse é recebimento mesmo se não ocorreu a transmissão da posse imediata (e. g., o transmitente é locatário, em virtude de constituto possessório, ou há locatário que permanece na posse imediata, a despeito da sucessão entre vivos). Em geral, sem entrar em exame completo. Paul Oertmann (Recht der Schuldverhaltnisse, II, 2) e Palandt (Búrgerliches Gesetzbuch, 1Q ed., 478). Se na ocasião da conclusão do contrato o outorgado já conhecia o vicio do objeto, não se irradiou com essa a pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto. Se o conheceu entre a conclusão do negócio jurídico e a entrega, extingue-se com o recebimento sem reserva a pretensão que se irradiara. Frise-se bem: se na ocasião da entrega o outorgado já conhece o vício do objeto, a pretensão à responsabilidade pelo vício do objeto extingue-se. Idem, se já o conhecia ao tempo do registro do acordo de transmissão ou de constituição, salvo se faz constar do registro a sua reserva. Se a escritura pública vai ser levada ao registro pelo outorgante, tem o outorgado de levar ao registro, para ser averbada, a sua comunicação de haver vício. Daí o seu interesse em examinar detidamente o bem imóvel antes disso, e providenciar quanto à reserva. Todavia, se ignorara a existência do vício do objeto, há o surgimento da pretensão e o prazo preclusivo para o exercício. Pode, também, ocorrer renúncia. (Já falamos do recebimento com reserva ou ressalva se o credor teria prejuízo desproporcional se deixasse, no momento, de servir do objeto viciado. Isso pode ocorrer nos próprios casos de prestação de um objeto por outro. Aqui, o credor, que teria a ação de indenização pelo inadimplemento, de certo modo evita que sejam altos, ou mais altos, os valores da prestação indenizatória. Se a correção pode ser feita pelo devedor, a esse incumbe purgar a mora. Se outrem é que o pode fazer, ao credor pode parecer melhor o exercício da pretensão à minoração da contraprestação. Se, a despeito da utilidade provisória, quiçá indispensável no momento, o credor entende que não lhe convém a minoração (nem a eliminação do vício pelo devedor), o caminho que lhe fica é o da ação de redibição, com indenização. Se, na venda e compra ou outro contrato comutativo de um imóvel, se estipula a contraprestação por medida de extensão, ou se determina a respectiva área, e essa não corresponde, em qualquer dos casos, às dimensões dadas, o adquirente tem o direito de exigir o complemento da área; não sendo isso possível, o de reclamar a rescisão do contrato ou o abatimento proporcional da contraprestação. Não lhe cabe, porém, tal direito, se o imóvel foi alienado como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às suas dimensões, Presume-se que a referência às suas dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não excede o percentual que a lei fixou para a extensão total enunciada. A solução brasileira é mais precisa do que a do Código Civil alemão, § 468, onde se fala de diferença a tal ponto importante que o adimplemento do contrato não tenha interesse para o outorgado. 8. Natureza e pressupostos da ‘reserva” ou “ressalva. A reserva ou ressalva é manifestação unilateral recepticia de vontade, ato jurídico stricto sensu, e não negócio jurídico. Faz-se ao outorgante, ou a quem o represente. De regra, o mensageiro, o núncio, o garçom e outros empregados da mesma categoria não são legitimados à reserva; não assim o agente de compras, a governanta ou a cozinheira que vai, de hábito, ao mercado. A reserva há de ser feita no momento de se receber. Pode ser anterior, mas, para isso, é preciso ser mantida (Otto Warneyer, Komentar, 1, 799). Não se precisa de reserva explícita se o outorgante se obrigar a eliminar o vício do objeto prestado ou apenas apresentado (John Ulrich Schróder, Zur Gewàhrleistung Júr Sachmángel, 21). De regra, os juristas falam de não se precisar, aí, de reserva. Se houve o recebimento, houve, necessariamente reserva, embora implícita. A declaração de vontade do devedor quanto à eliminação do vício, ou quanto à substituição do objeto prestado, se genérico, apenas atende à reserva implicita ou explícita que foi feita. Isso ocorre nos próprios casos em que o devedor, ao prestar, se adianta na comunicação da existência do vicio do objeto. 9. Preclusão. A pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto preclui, conforme a respectiva regra jurídica sobre prazo preclusivo. Havia o problema da preclusão se o negócio jurídico mercantil é sobre imóveis, sabendo-se que o conceito de negócio jurídico comercial somente sobre móveis foi superado, tanto mais quanto o que está em causa é o negócio jurídico consensual, regido pelo direito comercial, e não o acordo de transmissão, ou o acordo de constituiçâo, que se submeteu ao direito civil, necessariamente. A solução que se impôs foi a de atender-se a que a espécie não fora prevista, e se há de considerar o direito civil como fonte do

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direito comercial. Se o outorgado conhecer o vício do objeto depois da conclusão do contrato e antes da recepção, a sua pretensão à responsabilidade pelo vício do objeto extingue-se não faz a reserva. A reserva obsta à perda, porque a perda resultaria do silêncio. Se o outorgado só após a entrega vem a conhecer o vício do objeto, a pretensão, que nascera, não sofre com tal conhecimento posterior à entrega. Não tem de comunicar imediatamente ao outorgante o que descobriu: a lei criou prazo preclusivo. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode, por vícios ou defeitos ocultos, ser enjeitada. Em vez de enjeitar, pode o adquirente reclamar abatimento no preço ou, sob a Lei & 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 18, § 1ª, 1, a substituição do bem jurídico por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso. 10. Satisfação da pretensão á responsabilidade pelo vício do objeto. A pretensão à responsabilidade pelo vicio do objeto, quer se trate de redibição, quer de diminuição da contraprestação, está atendida desde o momento em que o outorgante manifesta que reconhece o que ocorreu: então, ou se dá a redibição, ou a diminuição na contraprestação, conforme escolheu o outorgado. Trata-se de atendimento ao exercício da pretensão do outorgado. Dá-se a preclusão dos prazos, mesmo se o outorgado só descobre ou somente poderia descobrir a falta depois de transcorrido o prazo; diversamente, na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, porque tratando-se de vício oculto, o prazo preclusívo inicia-se no momento em que o défice ficar evidenciado (art. 26, § 3ª) Entende-se exercida a pretensão à responsabilidade pelos vícios do objeto se foi proposta a ação, ou se o outorgante recebeu a comunicação, com a escolha entre a redibição e a redução, e acordou naquela ou nessa. Se o outorgante foi condenado a devolver a contraprestação, a ação executiva prescreve conforme a lei. § 199. Dívidas e bens genéricos1. Gênero e espécie. As expressões “gênero e “espécie”, em direito, têm sentidos precisos que não podem ser conspurcados pelo falar vulgar. Correspondem às expressões alemãs “Gattung” e “Art”. Nos povos latinos, a confusão é tal, que Jules Gruber, conselheiro do Tribunal Cantonal de Estrasburgo, na tradução do Código Civil alemão, pôs a mesma palavra no lugar das duas que estão no § 243, alínea 1ª. Diante do texto — “Wer eine nur der Gattung nach bestimmte Sache schuldet, hat eine Sache von mittlerer Art von Gflt zu leisten — o tradutor, em vez de pôr —‘Celui qui doit une chose qui nest déterminée que quant à son genre, doit la fournir despêce et de qualité moyennes’ — escreveu: “Celui qui doit une chose qui nest déterminée que quant à son espéce, doit la fournir despéce et de qualité moyennes No livro de B. Philip Vicat (Vocabulariurn iuris utriusque, 1, 225), lê-se que o gênero se opõe à espécie, e alude-se ao conceito filosófico de espécie, que é o mesmo da ciência do direito, posto que, às vezes, os jurisconsultos chamem espécie àcoisa certa, ao individuo (Genus speciei opponitur... idemque est, quod philosophis species, quemadmodum hanc iurisconsulti pro individuo accipiunt). Na L. 54, D., de verborum obligationibus, 45, 1, refere-se Juliano a estipulações que, às vezes, concernem a espécies e, às vezes, a gênero, e acrescenta que, se estipulamos a propósito de gêneros, divisão entre os donos ou entre os herdeiros, há de ser por número. No livro de E. Philip Vicat (Vocabularium luris utriusque, II, 284), frisa-se que os jurisconsultos chamam “species” aos corpos singulares (apud iurisconsultos singula corpora significat). Mas, em verdade, o que

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importa é que se possa discriminar o que se tem de prestar, ou que se pode exigir, como o vinho que está na adega (veluti si vinum, quod in apothecis est), ou o dinheiro que está na arca (pecunia, quae in arca est). Na L. 8, § 24, D., de transactionibus, 2, 15, Ulpiano fala de gêneros alimentícios e da permissão de se comutarem espécies, quando se deixou, por morte, para alimentos, espécies, alimentícias. Não se feriria a verba testamentária com a operação dentro do gênero. Na L. 80, D., de diversis regu lis iuris antiqul, 50, 17, é de Papiniano: “ln toto iure generi per speciem derogatur et illud potissimum habetur, quod ad speciem derectum est’. Em todo o direito, o gênero é derrogado pela espécie e se tem como mais relevante o que se dirige à espécie. Por quê? Porque a espécie discrimina mais do que o gênero. Se quero certa espécie de café do porto de Santos, não quero qualquer café do porto de Santos, como, se quero qualquer café e posso escolher, apenas não serei constrangido a receber o pior, bem que possa escolher o melhor, e o vendedor não me poderá dar o pior, posto que me pudesse dar o médio ou o melhor. 2. Pretensão ao adimplemento. O outorgado, em negócio jurídico, em que a prestação é em determinada quantidade ou número de bens do mesmo gênero, pode exigir, pela ação de condenação, que lhe sejam entregues bens do gênero apontado, da espécie e qualidade médias. Segundo o texto da lei brasileira a coisa incerta há de ser indicada, pelo menos, pelo gênero e pela quantidade. Quer dizer: pode ser indicada pelo gênero, pela espécie, pela subespécie, e pela quantidade. O que não basta é ser indicada só pelo gênero, ou só pela quantidade, porque, se E diz que compra a A gêneros alimentícios, não se sabe o que foi que ele comprou. O mais que se lhe permite é que compre x sacos de gêneros alimentícios, porque, talvez, e. g., em emergência de calamidade, é o que ele pode carregar no único veículo que tem. Nas coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade, a escolha pertence ao devedor, se o contrário não resulta do titulo da obrigação. Mas não pode dar coisa pior, nem será obrigado a prestar a melhor. Pode haver cláusula que dê a escolha ao credor. O que se estatuí é que se não preste abaixo da espécie média ou, se a relação é de consumo e há vicio do produto ou do serviço, fora da mesma espécie e em perfeitas condições de uso. A indicação da espécie é tão importante que se pré-elimina a invocabilidade da regra jurídica sobre escolha pelo devedor, se foram ditos o gênero e a espécie, salvo se há subespécie, porque então se há de interpretar a regra jurídica de direito privatístico como dispositiva, contída em outra regra jurídica mais larga, também dispositiva: se ficou sem indicação o que se quer dentro do gênero, ou da espécie, ao outorgante é que cabe a escolha. O uso do tráfico ou as leis especiais que classificam bens é que distribuem os bens por gênero, porém não seria possível que se lhes deixasse confundirem gênero com espécie. Se o objeto do negócio jurídico não é bem determinado (isto é, não é coisa certa, na terminologia das leis) — ou só se indicaram o gênero e a quantidade, o que é o mínimo para a menção do objeto, ou se indicaram o gênero, a espécie e a quantidade, ou o gênero, a espécie, a subespécie e a quantidade, ou o gênero, a espécie, a subespécie, a subespécie de segundo grau e a quantidade; e assim por diante. Desde que se não cogitou de bem certo, a regra jurídica da escolha pelo devedor incide. Se o outorgante não presta o que prometeu, ou não o presta conforme o critério que a lei acolheu, há inadimplemento, ou adimplemento ruim, que inadimplemento e. 3. Vicio do objeto nas prestações de bens genéricos ou sub-genéricos. Pode acontecer que se preste do mesmo gênero e da mesma espécie e quantidade, porém haja vício (está podre o arroz, o café está bichado), ou lhe falte alguma qualidade assegurada, e pode o outorgado exercer a pretensão à substituição, ou à redibição, ou à redução. Tratando-se de bem que não é bem certo (“coisa certa”), discute-se pode o outorgado, reclamando contra a entrega de bem com vicio do objeto, exigir que o outorgante preste, em substituição do bem viciado ou defeituoso, outro, que o não seja. Não há, no sistema jurídico brasileiro privatístíco. regra jurídica como a do § 480, alínea 1ª, 1ª parte, do Código Civil alemão, onde se diz que o “comprador de coisa determinada somente

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quanto a seu gênero pode, em lugar da redibição ou da minoração, exigir que se lhe preste, no lugar da coisa viciada, coisa sem vício”. O que o outorgante pode fazer é purgar a mora, prontificando-se a prestar o que deveria ter prestado, mais os prejuízos decorrentes até o dia em que se prontificou a prestar. O que então preste o outorgante tem de ser examinado pelo outorgado, pois não mais há redibição ou redução (Eduardo Bótticher, Die Wandlung ais Gestaitungsakt, 63). Aliás, mesmo no sistema jurídico alemão, a pretensão a que substitua o bem prestado é a mesma pretensão de adimplemento (Kurt Balberstedt. Zur Lehre vom Gattungskauf, Fest-schrift fOr Hans Cari Nipperdev, 278 s.). Aí, se o outorgado repele a substituição ou a redução. Idem, se é o outorgante que a recusa. Se o bem prestado não é do gênero que se mencionou, ou não é da espécie, ou da subespécie, há inadimplemento, e não prestação com vício do objeto. Sempre que o outorgante sabe que o outorgado não ficaria com o bem, o caso é de pretensão ao adimplemento, e não à responsabilidade por vício do objeto (cf. E. von Caemmerer, Falschlieferung, Festschrift fOr Martin Wolff, 3 5.; Philipp Heck, Cru ndriss des .Schuldrechts, 278; Franz Leonhard, Besonderes Schuldrecbt, 82). 4. Indenização de danos. Se o outorgante entregou o bem, viciado, como está, pode o outorgado preferir a indenização dos danos, em se tratando de qualidade assegurada. § 200. Pretensão à redibição 1.Nascimento da pretensão á redibição. A pretensão à redibição, no direito comum, nasce quando o outorgado recebe o bem com vício do objeto. Por isso mesmo, a lei fixou prazo preclusivo, que nada tem com o conhecimento do vício. Assim, a pretensão pode nascer sem que o outorgado soubesse que nasceu, pois também não sabia que havia o vício do objeto. No momento da preclusão, o outorgado, que tem de conhecer a lei, sabe que se vício do objeto havia, a pretensão à responsabilidade por vício do objeto precluiu. Em virtude do exercício da pretensão à redibição, irradiam-se outras pretensões, que são correspondentes às relações jurídicas de liquidação. São pretensões a relações derivadas da redibição, e não pretensão à redibição, ou relações de que essa surge. A admissão da redibição pelo outorgante pode ser expressa ou tácita. Tácita, por exemplo, se o outorgante devolve a contraprestação. A devolução parcial somente significa admitir a redibição se o objeto é divisível e o outorgado apenas se referira a parte dele (Max Ernst Eccius, Die Gewãhrleistung wegen Mángel der Sache, Cruchots Beitrâge, 43, 330; Thiele, Die Vollzierhung der Wandelung und der Minderung nach dem EGE., Archiv fOr die ciuilistische Praxis, 93, 412; diferente, Ernst Eck, \/ortrâge, 1, 458). Não é admissão da redibição reconhecer-se a nulidade ou a anulabilidade (e. g., por erro) do negócio jurídico. Não é de redibição negocial a convenção — cláusula de mudança do objeto — pela qual o outorgante se vincula a substituir o bem entregue ou a ser entregue (Paul Oertmann, Die Umtauschl≤lausel, .SeuJJerts Blàtter, 71, 699). 2. Como se opera a redibição. A redibição não se exerce por declaração unilateral de vontade, nem por simples comunicação de conhecimento do vício do objeto, por parte do outorgado, mas sim por ato de reconhecimento do outorgante, posterior ou anterior, à manifestação do outorgado, ou pelo exercício judicial da pretensão à redibição. Se o outorgado comunica o fato e a) escolhe a redibição, ou b) deixa ao outorgante a escoiba (o que lhe é facultado) entre a redibição e a minoração da contraprestação, ou o outorgante reconhece o fato, ou não o reconhece. No caso a), o reconhecimento tem por feita a redibição, devido ao acordo nela. No caso b) o reconhecimento tem de ser seguido da escolha. Se não houve essa, nem por isso se pode negar o efeito de prova e de reconhecimento do exercicio tempestivo da pretensão. O que perdura é a alternativídade: a escolha volveu ao outorgado.

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Aqui, temos de mencionar duas teorias em matéria de redibição: a teoria contratual da redibição e a teoria da restauração. Na doutrina alemã fala-se de Vertragstheorie. conforme H. Dernburg, E. Goldmann-Lilienthal e E. Endemann, e de Herrstellungstheorie, a que se prendem. de um lado, e.g., Paul Oertmann (Das Recht der Schuldverhdltnisse, 186 e 190), Pranz Leonhard (Besonderes Schuldrecht, 68) e Karl Larenz (Lehrbuch des Schuldrechts, II. 43); e do outro, acertadamente, Max Ernst Eccius (Die Gewàhrleistung wegen Mângel der Sache nach dem BGB., Gruchots Beitrâge, 43, 318 s.), Eranz Haymann (Anfechtung, Sachmãngelgewàhr und Vertragserfúllunq, 46, 509), Paul Langheineken (Anspruch und Finrede, 215 s.), Wilhelm Bíermann (Die Ríage des wandelungsberechtigten Káufers nach dem Rechte des BGB., Archiu for die ciuilistische Praxis, 95, 315, s.), L. Enneccerus - H. Lehmann (Das Búrgerliche Recht, 1, 536 s.), H. Siber (em G. Planck, Kornmentar, § 462, 3) e Palandt (Búrgerliches Gesetzbuch, 14ª ed., 479). No direito brasileiro, a teoria contratual da redibição seria insustentável. Sempre se concebeu a pretensão constitutiva àredibição, para cujo conceito tende, agora, Josef Esser (Lehrbuch des Schuldrechts, 224 e 226), que, por isso mesmo, não vê razão para se falar de prescrição , como ocorre no Código Civil alemão. Na doutrina alemã, a concepção da pretensão à redibição como pretensão a que se conclua contrato de redibição ou de redução, portanto oferta, de modo que, não aceita, se tem por concluído o contrato, é artificial. Se estava nos Protokofle, ter-se-ia ai simples argumento obsoleto. A pretensão à redibição ou à minoração da contraprestação existe antes de qualquer ato do outorgado, ou, talvez, antes de qualquer conhecimento do vício do objeto. Ele a exerce extrajudicialmente, ou judicialmente, pela ação de redibição ou de minoração da contraprestação, ou com a alternativa. O outorgado não faz oferta. Comunica o fato e escolhe, o que é manifestação de vontade. Se o outorgante acolhe o que alega o outorgado, dá-se o que se há de esperar segundo as regras jurídicas de restituição redibitória. Não se precisa de pôr o outorgante. judicialmente, diante do dilema: restituir a contraprestação, ou ser condenado. A sentença é sentença constitutiva; não é declarativa, posto que tenha eficácia ex tune; a condenação já supõe que se deu a redibição. O peso de eficácia da ação de redibição e da ação quanti minoris é o mesmo: 5 de constitutivídade; 4 de declaratívidade; 2 de condenatoriedade; 1 de mandamentalidade; 3 de executividade. 3.Pluralidade de bens e vício do objeto. A redibição por vicio do bem principal estende-se aos bens acessórios. Quanto às pertenças, depende do uso do tráfico. Se o objeto do negócio juridíco consistir em dois ou mais bens, sem se determinar o que seria principal e o que não o seria, sendo global a contraprestação, e um dos bens tem vício do objeto, somente a respeito do bem viciado se pode pedir a redibição. A redução do preço global faz-se, aí, segundo a relação em que estaria, ao tempo do negócio jurídico, com o valor dos bens sem vícios do objeto o valor do bem com vício do objeto. 4.Responsabilização e liquida ção da redibição. Se o outorgado suscita a redibição, tem ele de prestar o que recebera. Se, porém, o bem pereceu, por força maior ou caso fortuito, em mãos do outorgado, não é esse sujeito às regras jurídicas, a contrario sensu, concernentes à resolução por perda sem culpa do devedor, ou melhoramento antes da tradição, ou em caso de escolha pelo adquirente. Não se exclui a pretensão à redibição se o bem com vicio do objeto perece por caso fortuito ou força maior. O outorgado reclama a devolução da contraprestação sem ter de indenizar. Aliter, se, antes do exercício da pretensão à redibição, a deterioração, ou o perecimento, ou outra inoponibilidade de entrega, resultou de culpa do outorgado. Se o vício do objeto foi causado por transformação a que procedeu o outorgado, não há pensar-se em pretensão à redibição, nem à minoração da contraprestação; se a transformação, prevista pelo tráfico ou pelo negócio jurídico, apenas revelou o vício do objeto, há pretensão à redibição. O outorgado tem de restituir proveitos, rendas, dividendos e bonificações que emanaram do bem e pode exigir os gastos necessários que fez, sendo de invocar-se, aqui, as regras jurídicas sobre gestão de negócios alheios.

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O cumprimento de todas as obrigações emanadas da redibição tem de ser toma-lá-dá-cá. O outorgante, se o outorgado não entrega o bem viciado, pode pedir fixação de prazo para que o outorgante cumpra, sob pena de se tornar ineficaz a redibição. 5. Pressupostos das pretensões nascidas da redibição. A redibição dá ensejo a que tudo se restitua como se resolvido por vontade dos figurantes tivesse sido o negócio jurídico. Tudo ocorre ex tunc. As prestações recebidas têm de voltar a cada figurante que as fez. Abre-se a fase da liquidação. Há indenização dos danos causados ao objeto prestado, ou em caso de perda ou outra inoponibilidade de devolução, bem como do que consistiu em serviços ou consumo. As pretensões oriundas da redibição nada têm com a preclusão que a lei fixara para a redibição. É preciso que se não confunda o prazo preclusivo para a pretensão à responsabilidade por vício do objeto com as pretensões que se irradiaram do exercício daquela pretensão (certo, E. Bôtticher, Die Wandlung ais Gestaltungsakt, 28 s.). 6. Pluralidade de outorgados e pluralidade de outorgantes. Se no negócio jurídico figuraram dois ou mais outorgados, todos os outorgados podem pedir a redibição, mas, se há pluralidade de outorgantes, só se exerce a pretensão perante ou contra todos os outorgantes; aliter, sob a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, o art. 25, § 1ª, concebeu solidariedade na responsabilidade pela reparação dos danos causados ao consumidor. Se para um dos outorgados se extingue a pretensão à redibição, extingue-se para todos. § 201. Pretensão à diminuição do quanto contraprestado 1. Pressupostos. O primeiro pressuposto é o de haver vício do objeto. O segundo, o de ter ocasionado diminuição do valor. (Teve F. Pringsheím, Das Alter der aedilizischen acho quanti minoris, ZeitschriJt der Savigny-Stiftung, 69, 234-301, por inadmissível que se deva aos reelaboradores pré-justinianeus de textos postos no Digesto a actia quanti minoris, suposlÇao de Raymond Monier. Para ele, trata-se de evolução necessária da actio redhibitoria, devida à atividade criativa pretória. A prova mais iovte está em que, no edicto rejativo à venda de escravos, não se fala da acho quanti minoris, mas dela se cogita no edicto que se refere à venda de bestiais). Atende-se à diminuição em relação ao valor do bem como foi fixado no preço, ou à diminuição em relação ao valor do bem conforme a avaliação do bem, abstraindo-se do preço? As soluções possíveis seriam a) considerar-se como valor a contraprestação paga, ou a pagar (o bem pode ter sido prestado antes da contraprestação), e reputar-se devido pelo que recebeu a contraprestação, ou excluido ao que teria de pagar o outorgado, aquilo que se reputa desvalorização; b) avaliar-se o bem no momento da conclusão do contrato e avaliar-se após o vício, em númerO percentual, e o mesmo percentual, em relação à contraprestação, ser tirado a esse; c) deixar-se toda a missão aos peritos (ci. Código Civil espanhol, art. 1.486). Nas fontes romanas, supõe-se a coincidência do preço com o valor ao tempo da venda e compra (“quanti minoris res fuerit, L. 38, pr., e § 13, D., de aedilicio edicto et redhibitione et quanti minoris, 21, 1; L. 25, § 1, D., de exceptione rei judicatae, 44, 2; “quanti minoris empturus fuerit”, L. 13, pr., e §1, D., de actionibus empti venditi, 19, 1; L. 32, § 1, D., de evictionibus et duplae stipulatione, 21, 2). A primeira solução seria injusta. Se, e. g., o bem valia mais de dez por cento do que a contraprestação e a diminuição do valor foi de dez por cento da contraprestação, nada teria de ser diminuído. Se o bem valia menos de dez por cento do que a contraprestação e o resultado do vício do objeto foi de vinte por cento, o outorgado recebe mais do que vinte por cento do valor: recebe vinte por cento da contraprestação. A terceira solução confia no arbítrio dos peritos, sem dizer como é que eles teriam de proceder. e surpreendeu

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que a adotasse M. 1. Carvalho de Mendonça (Doutrina e Prática das Obrigações,IIi, 2ª ed., 390). É o que está no Código Civil francês, art. 1.644: “Dans le cas des articles 1641 et 1643, lacheteur a le choix de rendre la chose et de se faire restítuer le prix, ou de garder la chose et de se faíre rendre une partie du prix, telle que elIe sera arbitrée para experts.” O abatimento é na contraprestação, mas o que se lhe retira é o que, em relação ao objeto viciado, foi tirado a seu valor. Se o bem valia 10 e o outorgado o adquiriu por 15, a diminuição de 2 no valor 10 é correspondente à quinta parte de 15; portanto, 3. Se o bem valia 15 e o outorgado o adquiriu por 10, a diminuição de 5 no valor í é correspondente à terça parte de 10; portanto, a 3,33... Essa é a solução justa, porque atende ao verdadeiro valor do objeto e ao que o outorgado entendeu contraprestar. No Código Civil alemão, § 472, estatui-se que, no que concerne à diminuição do preço (lá se diz ‘preço’, porque só se está a falar de venda e compra), tem ele de ser reduzido na proporção que, na época da venda, teria sido entre o preço da coisa, se então estivessem vicio, e seu valor verdadeiro. Tem-se, portanto, em consideração o preço, o valor que teria o bem ao tempo do negócio jurídico, e a proporção entre esse e o valor diminuído há de ser a mesma que entre o preço e o que tem de ser reavido ou deduzido do que se teria de pagar. 2. Exercício da pretensão à diminuição da contraprestação. A redução da contraprestação não se opera automaticamente, nem basta a comunicação de conhecimento do vicio do objeto, envolvida em escolha de uma das pretensões, para que fique reduzida a contraprestação. As pretensões nascem com o fato da viciosidade do que se prestou, mas ou se exerce com a manifestação de vontade, firmada na comunicação do que se descobriu, para que o outorgante reconheça o vício do objeto, ou tem o outorgado de propor a ação, a fim de se declarar que existe o vicio do objeto, e que dá ensejo à invocação de regra jurídica sobre ação de redibição ou ação quanti minoris. Levantou-se a questão de ser excluida a pretensão à diminuição da contraprestação se o bem foi vendido, depois, por mais elevada contraprestação (Gustav Hanausek, Die Haftung des Verkâufers, 1. 132; B. Windscheid, Lehrbuch, II, 9ª ed., 689). O que se calcula é o que foi retirado de valor ao bem. A valorização de todo o bem é independente de avaliação do que se lhe diminuiu. Não se avalia a diminuição ao valor da con-traprestação do dia da avaliação, mas ao valor do dia da operação. Seria sem razão avaliar-se o bem ao tempo da contraprestação e o prejuízo resultante do vício do objeto ao tempo da ação, ou, a fortiori, da execução. 3. Pluralidade de outorgados e pluralidade de outorgantes. Se no negócio jurídico há dois ou mais outorgados, cada um dos outorgados pode exercer, separadamente, a sua pretensão à diminuição da contraprestação contra cada outorgante. Todavia, feita a redução, nenhum dos outorgados pode mais pedir a redibição. 4. Como se opera a minoração da contraprestação. A redução do preço ou de qualquer outra contraprestação não se opera automaticamente. Há a pretensão à diminuição da contraprestação. devido à desvalorização do bem. Se o outorgado a exerce, extrajudicialmente, é possível que o outorgante reconheça o vício do objeto e restitua a parte da contraprestação, ou admita que não a pode exigir. Em verdade, declarando que reconhece, assim o vicio do objeto como a redução que se há de fazer, não mais se precisa de sentença judicial, salvo para condenação a respeitar o que resultou do inadimplemento ruim. Se o outorgante não reconhece o vício do objeto ou não reconhece ser exato o quanto da diminuição do valor, tem o outorgado de ir a juízo, para a ação quanti minores. Também aqui seria de repelir-se a teoria contratual da minoração, a Vertragstheorie. A pretensão à minoração, essa, nasceu com o vicio, mesmo se o não conhecia o outorgado. No sistema do Código Civil, art. 178, § 2ª, o prazo preclusivo inicia-se com a tradição; no Código de Defesa do Consumidor, art. 26, § 39, com a evidência do defeito. § 202. Vendas em hasta pública

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1. Pré-exclusão da ação. Se a coisa foi vendida em hasta pública, não cabe a ação redibítória, nem a de pedir abatimento na contraprestação. Na hasta pública, estão presentes os interessados e sabem que se promete a propriedade ou outra títularidade de direito sem vícios do direito, porém está ao exame dos que desejem lançar o objeto que se vai alienar. Não se compreenderia que se considerasse vicio do objeto causa de redibição, ou de minoração do preço, o vício do objeto que alguns, talvez todos menos um viram, e um não viu. Por outro lado, não se compreenderia que fosse responsável por vícios do objeto quem não é o “vendedor”: o dono do objeto com vício do objeto. Resta saber-se o dono do objeto é responsável se, conhecendo o vício do objeto, dolosamente ou culposamente silenciou, fazendo-se, embora na esfera da hasta pública, em que não é o alienante, causador dos danos. Aqui, há a responsabilidade pelo ato ilícito absoluto. 2. Abrangência. A regra jurídica pré-excludente também incide em caso de leilão extrajudicial ou de outra venda extrajudicial, mas há a responsabilidade pelo dolo ou pela culpa e a anulabilidade por dolo. § 203. Pretensão à responsabilidade por vícios do objeto e outras pretensões 1. Precisões. A responsabilidade por vicio do objeto — em sentido largo, vicio ou qualidade assegurada — não é adimplemento da dívida do outorgante, conforme o negócio jurídico; apenas é prestação do bem tal como é, ao concluir-se o negócio jurídico computativo ou tal como se previu que seja. Trata-se de dever legal, pois, devido a elementos históricos, assim, se concebeu (aliter, no tocante aos vícios do direito). O outorgado que não tem a pretensão de inadimplemento pode ter (e por isso se criou o instituto) a pretensão à responsabilidade por vícios do objeto. Ao outorgado que recebeu ainda lhe fica essa pretensão à prestação de garantia (Eriedrich Schollmeyer, Erfúllungspflicht und Gewãhrleistung for Fehler beim Kauf, Jherings Jahrbúcher, 49, 93 s.). Se o outorgado foi vítima de ato ilícito absoluto, tem a ação de indenização se ocorreram os pressupostos da regra jurídica sobre ato ilicito absoluto; se não ocorreram, pode ter a pretensão à redibição ou redução da contraprestação. Por outro lado, pode não ter o outorgado a exceção non adimpleti controctus, inclusive a exceção non rUe adimpleti contractus, porque, por exemplo, a impossibilidade do cumprimento bom ocorreu sem sua culpa, e ter a pretensão à redibição ou à redução da contraprestação. Se o bem foi vendido em hasta pública, não cabe ação redibitória, nem a de abatimento no preço (ação quanti minoris). A regra jurídica incide em se tratando de leilão público; aliter, nas vendas por meio de propostas. 2. Pretensão de indenização por inadimplemento e pretensão á responsobilidade por vícios do objeto. A pretensão à redibição ou à redução da contraprestação pode existir ao mesmo tempo que a ação de indenização por inadimplemento ou por adimplemento ruim, que inadimplemento é, pois os objetos são diferentes, ou podem ser diferentes. De modo nenhum se pode invocar para as pretensões por inadimplemento, inclusive por adimplemento ruim, o prazo preclusivo. Na doutrina alemã, ainda há discussões. Uns entendem que onde cabe a pretensão à responsabilidade por vícios do objeto não há dever de outorgante, de modo que não se pode falar de inadimplemento, e. g., Friedrich Schollmeyer (Erfúllungspflicht und GewàhrLeistung Rir Fehler beim Kauf, iherings Jcihrbúcher, 49, 93), Th. Súss (Wesen und Rechtsgrund der Gewàhrleistung fúr Sachmàngel, 225), Franz Leonhard (Besonderes Schuldrecht, 80) e Werner Rume (Eigenschoftsírrtum und Raul, 35 a). Outros têm a pretensão à Liberação de

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vicias do objeto como insita na pretensão ao adimplemento bom (KarI Adier, Beitráge zum Recht der Cewãhrleistung, Zeitschrift fOr das qesom te I-Iandelsrecht, 75, 452 s.; Werner Korintenberg, Abschied von der Gewàhrleistung, Justizblatt for den Oberlandesgerichtsbezirk KãIn, II, 70 s.; Leo Raape, SachmãngeLhaftung und lrrtum beim Kauf, Archiu fOr die civilistische Praxis, 150, 482). E de repelir-se a afirmação de Werner Korintenberg de ter o outorgado de exigir a eliminação do vicio removivel e considerar cumprido o negócio juridico após a remoção. A remoção depende de entendimento dos figurantes. Ou se redibe ou se reduz. A remoção não está na alternativa legal: depende de vontade do outorgante e do outorgado. Nem o outorgante pode tomar a si, unilateral-mente, o ato; nem o pode exigir o outorgado, menos ainda tem O dever de exigir. O vício do objeto pode estar no que se considera intrínseco ao cumprimento, à divida do objeto, e pode estar fora. Nem por isso a lei deixa de incidir. Somente quanto às qualidades asseguradas é que há a coincidência necessária: a cláusula de segurança ou de garantia de qualidade é cláusula do negócio jurídico. 3.Exercício da pretensão por vício do objeto antes da tradição. Se há vício do objeto, o outorgado pode exigir, sempre, a redibição, ou a redução, haja ou não culpa do outorgante. Se o alienante conhecia o vicio, ou o defeito, restitui o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restitui o valor recebido, mais as despesas do contrato. No direito comum, salvo cláusula expressa contratual, a ignorância de tais vícios pelo alienante não o exime da responsabilidade. A pretensão à redibição ou à redução nasce com a conclusão do negócio jurídico, tendo-se de atender ao estado ao tempo da tradição, porque, e somente porque, a esse tempo, se o vicio desapareceu completamente, seria injusto que se pudesse ir contra o outorgante. A infração do negócio jurídico é outro problema. Se o vicio do objeto foi causado pelo próprio outorgado, antes ou depois da prestação, não há pensar-se em pretensão à redibição ou à redução a favor dele. A existência do vicio do direito não determina, só por si, o nascimento da pretensão — aí, a exceção — de inadimplemento, por ter ocorrido adimplemento ruim. A pretensão e a exceção non rue adimpleti contractus têm outro suporte fático. A coincidência entre eles seria eventual. Quanto à recusa da prestação, quem tem pretensão à redibição ou redução — que pode ter nascido à conclusão do negócio jurídico — pode recusar a prestação, invocando a ratio legis das regras jurídicas sobre redibição. Quem poderá pedir, após a tradição, a redibição ou a redução, pode pedi-las desde já. Foi Otto von Gierke (Sachmngelhaftung und lrrtum beim Kauf, Zeitschrift for das gesamte Handelsrecht, 114) quem o precisou. No mesmo sentido, Werner Flume (Eigenschaftsirrtum und Kauf, 38). 4. Pretensão à anulação por erro e pretensão à redibição ou redução. Se o bem tem vício ou defeito, que o outorgado desconhecia, ou se lhe falta qualidade que fora assegurada, mas o outorgado achou que estava perfeita, ou com a qualidade assegurada, há erro de qualidade, que se tem de apreciar segundo as regras jurídicas pertinentes ao erro. Certamente, os resultados da anulação por erro assemelham-se aos da redibição, mas, se o outorgante conhecia o vicio ou o defeito, o outorgado tem mais interesse na redibição, para obter as perdas e danos a que se refere a lei. Todavia, o prazo preclusivo pode ter expirado e só haver a pretensão à anulação. O exercício da pretensão à responsabilidade por vício do objeto não pré-exclui a proposítura da ação de anulação por erro, salvo se é o mesmo o ponto sobre o qual resultou coisa julgada material, ou os mesmos os pontos sobre os quais resultou coisa julgada material. O exercício da ação de anulação por erro pode ser proposto depois de acabado o prazo preclusivo sobre a redibição ou redução. A coisa julgada material, na ação de redibição ou redução, somente pode ser oposta na ação de anulação por

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erro, se foi decidido sobre quaestio facti comum à sentença e ao pedido de anulação, ou se ficou julgado que o outorgado conhecia o vicio. É de rechaçar-se a opinião dos que entendem que se exclui a anulabilidade por erro na qualidade se houve transmissão do risco (e. g., L. Enneccerus - H. Lehmann, Lehrbuch, li, 35ª ed., 445; Palandt, Búrgerliches Gesetzbuch, 1ªA ed., 468). Certo, Werner Rume (Eigenschaftsirrturn und Kauf 134). O erro provém do enunciado falso de que a pretensão de anulação por erro nasça no momento de tradição, agravado pelo outro enunciado, segundo o qual a redibição e a redução se prendam a isso. A alusão à tradição somente serve ao início do prazo preclusivo. O enfiteuta tem ação de evicção contra o senhorio. Réu em ação sobre o direito enfitêutico, tem de denunciar a lide ao senhorio. O contrato bilateral que está à base da constituição da enfiteuse pode dar ensejo às ações por vícios redibitórios (ação redibitória e quanti minoris). 5. Pretensão à anulação por dolo e pretensão à redibição ou redução. Em caso de dolo do outorgante, surge a pretensão do outorgado à anulação do negócio jurídico. Outorgante e outorgado podem ter essa pretensão. Aquele não tem ação por ignorar vícios do objeto, se o outorgado propôs, ou não, a ação por vícios do objeto (Werner Rume, Eigenschaftsirrtum und KouJ, 148; RarI Larenz, Lehrbuch des .Schuldrechts, 11, 54). Se o outorgante desconhecia qualidade valiosa do bem, tal que ele, se lhe fosse conhecida, não concluiria o negócio jurídico, pode ter a pretensão a anulação por erro como pode tê-la por dolo. 6. Qualidade assegurada. Se foi assegurada qualidade do objeto e falta essa qualidade no momento da entrega, há também a ação por inadimplemento. Se a qualidade já faltava ao tempo da conclusão do negócio jurídico, a promessa de garantia tem por eficácia a responsabilidade do outorgante, mesmo sem culpa. O interesse, que se apura, é o interesse positivo. Quem promete garantia promete com abstração de dolo ou culpa. Se a qualidade desapareceu e reaparece ao tempo da entrega, não mais se há de pensar em responsabilidade pela promessa de garantia. Cf. Tratado de Direito Privado, Tomo XXII, §§ 2.740-2.741. 7. Dolo do outorgante. Em caso de dolo do outorgante, além das pretensões por vicio do objeto, há a ação de indenização, conforme a regra jurídica, concernente e perdas e danos por dolo acidental (quando, a despeito dele, o negócio jurídico se teria concluido, embora de outro modo), e a ação de anulação por dolo. O silêncio malicioso, ou silêncio intencional, é dolo A indenização é pelo inadimplemento, salvo se o bem fica com o outorgado, caso em que seria consistente no interesse na existência da qualidade ou na inexistência do vicio silenciado. Sobre redibição e anulabilidade, Tratado de Direito Privado, Tomo IV, §§ 439 e 450, 1, 2. Nas doações a esposos, Tomo VIII, § 939, 10. Sobre os vícios redibitórios, Tomo XIII, § 1.526, 2. Sobre os vícios redibitórios do bem dado em soluto, Tomo XXV, § 3.002, 2. Sobre redibição e resolução, § 3.070, 5. Nas Ordenações Afonsinas, Livro IV, Título 22, (Lei de D. Duarte), pr. e §§ 1, 2, 3 e 4, pré-excluiu-se a pretensão à redibição a respeito dos cavalos criados em Évora e no seu termo, porque pululavam as demandas, e os compradores “se prestao delles em montes, e em caças, e em outros trabalhos, e Ihos danifição, e veem-lhos engeitar, e fazer demandas que lhos filhem, dizendo que são maus, e fracos, e doentes, e maliciosos, e outras tachas muitas que lhes põem, do que lhes recrecem demandas, e trabalhos, e ocupações em elías mais que em suas lavoiras, e em aproveitamento de sgus bees’. Quem quisesse vender cavalo, ou qualquer outra besta, em Evora ou no seu termo, tinha de vender ou trocar simplesmente”, ao que proviam as Ordenações Afonsinas por meio de regra jurídica dispositiva, que afastava a responsabilidade por vicios do objeto, “nenhua

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malicia, nem eyba, nem doença, que depois em elia seja achada, quer fosse patente, quer escondida ao tempo da compra, quer depois sobreviesse. § 204. Se existe, no direito brasileiro, a exceção de vício do objeto 1. Comunicação da existência do vício do objeto. No direito comum, a comunicação ou aviso da existência do vício do objeto, dentro do prazo preclusivo, não o interrompe. Resta saber-se gera exceção a favor do comunicante. Também a propositura da ação ou a vistoria judicialmente feita, com intimação do outorgante, gera a exceção. Responde-se afirmativamente. A ação redibitória tem prazo preclusivo. A ação é inconfundível com a ação por inexecução ou execução incompleta ou defeituosa do contrato, Se o adquirente avisou o vendedor da existência do vicio, ou, pelo menos, expediu aviso antes de precluir o prazo, pode, após o tempo para propositura da ação, se recusar a pagar o preço, nos mesmos termos em que se poderia a isso recusar se houvesse proposto ação. A exceção nasce, ai, do crédito, e não se pode dizer que não tenha sido exercido, dentro do prazo, o direito de pedir a rescisão, ou a diminuição do preço, nos termos do próprio aviso. O adquirente tem, a propósito, ação declarativa (Paul Oertmann, Recht der Schuldverhàltnisse, 461; G. Planck, Kommentar, II, 383). A exceção pode ser exercida quer na ação de cobrança do preço, quer na ação para restituição da coisa (Otto Warneyer, Kornmentar, 1, 815). A exceção extingue-se, pela renúncia, se o adquirente paga, depois do aviso, o preço, ou, depois do aviso, aceita a duplicata mercantil. Há regras jurídicas comuns à exceção de redibição e à de diminuição da contraprestação. Não basta a comunicação ou aviso em termos gerais (“a mercadoria está defeituosa’, “alguns sacos estão estragados , ao aparelho falta peça” ou “ao aparelho faltam peças”). Cf. L. Enneccerus-H. Lehmann (Lehrbuch, 1, 2, 335, nota 9). A razão para se admitir a exceção de redibição e redução, apesar do transcurso do prazo preclusivo, está em conciliação de duas rationes Iegis: a) o sistema jurídico tem por vício, com a tutela edilicia, proteger os outorgados a que os vícios ignorados do objeto causem dano; » a tutela edilicia não deve ser por muito tempo, para que não se deixe em perplexidade ou em estado de o outorgante poder ser surpreendido pelo exercicio da pretensão. A exceção de redibição e redução somente se há de justificar-se, com a comunicação ou o aviso ao outorgante, dentro do prazo preclusivo, se satisfez b); mas a sua existência atende, por si só, a a). Nas relações jurídicas de consumo passa-se diversamente: a comunicação comprovadamente feita pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços é causa obstativa da preclusão do direito (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1938.) 2. Exceção de redução do contraprestação. Quanto à exceção de minoração da contraprestação, todos os argumentos são a favor da sua existência. a) O adquirente tem as ações edilícias de vício redibitório, sujeitas a prazos preclusivos. Tem a ação de inadimplemento, ou a ação decorrente da garantia, cabível, se a venda foi à vista de amostras, ação que não está sujeita a prazo preclusivo. E de discutir-se tendo o adquirente comunicado ao alienante a existência de vício — e, vindo o alienante com a ação para haver a contraprestação, pode o adquirente opor a exceção, a despeito da preclusão do prazo. No direito alemão, há o § 478:”Tendo o comprador avisado do vício o vendedor, ou, antes da prescrição da ação de redibição ou de diminuição, expedido o aviso, também pode, após completar-se a prescrição, se recusar a pagar o preço da compra, como seria a isso autorizado em virtude da redibição, ou da diminuição. Dá-se o mesmo quando o comprador, antes de se completar a prescrição, pediu a admissão da prova em juízo para a segurança da prova, ou quando, pendendo pleito entre ele e adquirente posterior da coisa, por vício, denunciou o processo ao vendedor.” Na alínea 2a: “Tendo o vendedor dolosamente ocultado o vício,

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não é preciso o aviso ou ato equivalente a ele segundo a alínea 1ª”. Cf. §§ 651 e 490, alínea 3ª, parte II b) A exceção de que se trata já existe antes da preclusão das ações redibitória e diminutiva (Flechtheim, Aufhebungsanspruch und Einrede, Gruchots Beitráge, 44, 85; Ernst Suppes, Der Einredebegriff des BGB., 23; Offo Hoffmann, Die Verjtihrung der Einreden, 25; sem razão, CarI Crome, System, 1, 185 e 189; Felix Friedenthal, Einwendung und Einrede, 46; Max Flegel, Der Begrifi der Em rede, 27 s.). Não é a preclusão da pretensão que faz exsurgir a exceção; existem, desde antes, as duas, quiçá as três, com a que ocorre em caso de venda àvista de amostras. Uma se acaba, outra encobre com a exceção de prescrição; a exceção, que com elas concorria, continua tal como era. A exceção corresponde à ação por insatisfatório adimplemento do contrato. c) O aviso, de que se trata, é exercício da pretensão, sem ser exercício por ação: o adquirente avisa que não foi cumprida, como devera, a obrigação do alienante; ressalva o seu direito, dando, no prazo, por não bem recebida a coisa. No aviso, caracteriza-se o vício, e é óbvio que não bastariam expressões gerais “não veio em bom estado a mercadoria”, “tem defeito a mercadoria (ou parte da mercadoria)”, “a coisa estava arranhada” (cf. Paul Oertmann, Das Schuldverhãltniss, 461). A exceção fica; não mais pode o adquirente pleitear, porque precluiu o prazo para a ação, ou prescreveu a ação de insatisfatório adimplemento. Não importa isso dizer-se que se pré-exclui a ação declarativa da existência da exceção (Paul Oertmann, Recht der Schuldverhàltnisse, 3ª-4ª eds., 461; Otto Warneyer, Kommentar, 1, 815; sem razão, Nissen, Em Beitrag zu § 478 BGB.,Juristische Wochenschrift, 32, 365). Como se trata de exceção, o adquirente pode recusar o pagamento, porém não repetir nem tentar excluir do pagamento o que já foi pago (L. Enneccerus, Lehrbuch, II, 31ª-35ª eds., 389 s., nota 11). Se o adquirente, após o aviso, ou ato equivalente, paga o preço, renuncia à exceção; idem, se, depois do aviso, aceita letra de câmbio, ou assina nota promissória (Otto Warneyer, Hommentar, 1, 815), ou aceita duplicata mercantil. d) O fiador, se o adquirente tem a exceção redibitória, ou quanti minoris, pode opô—la como exceção dilatória (Paul Oertmann, Recht der Schuldverhàltnisse, 463; Otto Warneyer, Rommentar, 1, 815; como exceção não só dilatória, Ernst Fuchs, Die Gernemnschãdlichkeit der Konstruktiven Jurisprudenz, 28; CarI Schaper, Wesen und Wirkung der Wandelungseinrede, Jherings Jahrbúcher, 52, 297). e) O problema do dolo do vendedor, no ocultar o vício, e outro problema. A exceção é dolo, dolo no ocultar o defeito, que obriga a satisfazer perdas e danos, se acidental, ou não, e a esse corresponde ação de anulação do negócio jurídico, ainda se partiu de terceiro o dolo. O dolo do representante dá a ação pelo enriquecimento injustificado e a exceção do dolo. As ações de indenização não estão sujeitas à exigência do aviso (ali ter, no direito alemão, § 479). 3. Exceção de redibição. Quanto à exceção de redibição, alguns partiram, para mostrar-lhe o fundamento de que “a cada pretensão à desconstituição corresponde exceção” (Paul Langheineken, Anspruch und Einrede, 239 e 297; lKonrad Hellwig, Lehrbuch, 1, 254; Nissen, Rechtsstellung des Kaufpreisbúrgen, Juristische Wochenschrift, 31. 460 s.; Josef Kõhler, Lehrbuch, 1, 197); outros falaram de absoluta necessidade da exceção de redibição (Max Ernst Eccius, Die Gewãhrleistung wegen Mângel der Sache, Gruchots Beitráge, 43, 305 5.; cf. Nissen, Em Beitrag zu § 478 EGE., Juristische Wochenschrift, 31, 361 s.). Por seu lado, Flechtheim (Aufhebungsanspruch und Einrede, Gruchots Beitrãge, 44, 86 s.) aludiu à proibição da chicana, no fundo —à exceptio dou generalis (contra a alusão à proibição da chicana, que não daria ensejo a exceção, 8. Matthiass (Die Wandlung nach dem 8GB., Deu tsche Juristen-Zeitung, VII, 208), a que tantos seguiram, como Wilhelm Biermann (Die Klage des wandelungsberechtigten Kâufers, Archiv fúr die civilistische Praxis, 95, 330), Franz Haymann (Zur Prage nach der rechtlichen Natur und prozessualen Behandlung des Wandlungsanspruches, Gruchots Beitrãge, 46, 544), iohn Ulrich Schrõder (Zur GewâhrIeistung wegen Sachmangel beim Nau fes, 112). Ainda se referiram a dolus, entre poucos mais, Friedrich Endemann (Lehrbuch, 1, § 161 nota 15) e C. Mensing (Beitràge zur Lehre vom Wandlungs-und Minderungsanspruch, 59, nota 60). Entendeu H. Neumann (1-landausgabe des BGB., 1, nota ao § 465), que a exceção de redibição seria direito de retenção (cp. Richard Kloss Gewãhrleistung wegen Mângel und Fehler der Kaufsache, Súchsisches Archiu, IX, 291). A exceção de vício do objeto somente pode ser oposta quanto à contraprestação a ser feita; não contra a contraprestação ou a parte da prestação já feita (L. Enneccerus-H. Lehmann, Lehrbuch, 1, 2, § 111, III).

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A exceção que existe é a de minoração da contraprestação se houve exercício, antes da preclusão da pretensão pela notificação do outorgante, ou se pediu a prova judicial do vicio, ou se notificou o outorgante do pleito que medeia entre o outorgado e o adquirente posterior. Se houve dolo do outorgante, o que o outorgado pode fazer é propor a ação de anulação por dolo, se ainda não prescreveu. A exceção de redibição ou redução apenas tem a finalidade de diminuir a contraprestação ainda devida, se o outorgante não prefere a redibição. Se a ação do outorgante é julgada, em parte, improcedente, por ter sido julgada favoravelmente ao outorgado a exceção de redibição e restituição, de modo nenhum pode o outorgado exigir que se lhe devolva o que contraprestara. O que pode acontecer é que o outorgante prefira a redibição, uma vez que seria injusto que o outorgado se recusasse a pagar e quisesse, de qualquer maneira, ficar com a prestação. Alguns juristas, e. g., L. Enneccerus e H. Lehmann, falam de haver oferta de redibição na oposição da exceção, mas isso é de cedo modo escorregar para a teoria contratual da redibição. Se o outorgado exerceu a pretensão antes de precluir a ação de redibição ou de minoração (opôs a exceção na ação executiva ou na condenatória proposta poucos dias antes), o pedido implícito de redibição pode ser julgado favoravelmente ao outorgado (cf. Eduard Bõtticher, Die Wandlung ais Gestaltungsakt, 49). Transcorrido o prazo preclusivo, o acolhimento da exceção deixa ao outorgante preferir a redibição. O problema surge no caso de o outorgado ter exercido apenas a exceção de minoração da contraprestação. o que lhe é permitido. Aí, evidentemente, embora não o tenham visto os doutrinadores, não se pode pensar em redibição. A redibição pode ser oposta como exceção na ação de cobrança contra o outorgado se houve, dentro do prazo preclusivo, qualquer comunicação eficaz contra o outorgante. No Código Civil alemão, § 478, alínea 2t permite-se a exceção de redibição e de redução sem ter havido a comunicação (Anzeige) ao outorgante, se esse dissimulara dolosamente o vicio. Não se pode introduzir, no direito brasileiro, sem regra jurídica escrita, tal exceção, mesmo porque se confundiria com a exceção de delito (Tratado de Direito Privado, Tomo VI, §§ 635 e 718. 5) ou exceção do ilícito penal (Tomo Xl, §§1.249, 6, e 1.252, 12). Assim, há o prazo preclusivo e dentro dele é que se há de exercer a pretensão. O outorgado tem de exercê-la com interpelação judicial ou extrajudicial, ou outro meio que implique conhecimento do que se alega, por parte do outorgante. O prazo preclusivo não se refere à ação, mas à pretensão; a ação pode ser proposta depois, se dentro dele foi regularmente exercida a pretensão.

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Capítulo VII

Ação de extinção de usufruto § 205. Desconstitutividade em se tratando de usufruto 1. Extinção de usufruto. a) A ação de extinção de usufruto é ação mandamental, se a causa foi a morte de usufrutuário, ou advento de termo ou implemento de condição, ou cessação da causa de que se originou, ou destruição do bem infungível, ou pela consolidação, ou pelo fato de prescrição, ou constitutiva, se a causa foi culpa do usufrutuário (alienação, deterioração, falta de reparos). b) A ação de extinção de fideicomisso é ação mandamental. Da sentença não dependem as ações de petição de herança ou de reivindicação, que o fideicomissário proponha contra o que foi fiduciário, nem a ação de reivindicação contra terceiro, nem a petição de herança contra o possuidor da herança. 2. Constitutividade. Nem a ação de extinção de fideicomisso, nem a de extinção de usufruto, exceto se a causa foi culpa do titular, são constitutivas, mesmo como eficácia imediata à força delas (eficácia preponderante); e ai ressalta o erro de as terem alguns como constitutivas. A mandamentalidade prepondera, a evidência. § 206. Eficácia sentencial 1. Coisa julgada. A sentença que, no inventário, classifica a verba como de usufruto, passa em julgado. Entendeu a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal (22 de abril de 1941, AJ 59/464) que não tem eficácia de coisa julgada material, isto é, para que, noutro processo, como é o de extinção de usufruto ou fideicomisso, não mais se discuta. Há muitas questões que, resolvidas no processo de inventário e partilha, têm força ou efeito de coisa julgada material. O momento para se dizer que a verba a é de usufruto, e não de fideicomisso, e vice-versa, ou que se trata apenas de modus, é exatamente no inventário e partilha, em que se hão de interpretar as verbas para se saber qual a execução entre os herdeiros e legatários. Responde-se a questão precisa, que é a de se há, ou não, a relação jurídica de usufruto, ou outra. Toda classificação de verba testamentária leva consigo duas respostas: há a relação juridica a, e não há a outra que se supõe. Por isso é que são citados os herdeiros e demais interessados, inclusive o testamenteiro. para dizerem sobre as cornunicaçôes do inventariante. Por isso é que, admitido alguém como sendo herdeiro, há recurso (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 3 de junho de 1941, AJ 59/218). Certo, se a decisão exclui, pode haver falta, aí de força de coisa julgada (Tribunal de Apelação de Pernambuco, 20 de dezembro de 1940, AF VII, 93). Por isso é que há a deliberação da partilha, com o esboço, a apreciação das impugnações e o julgamento. Por que, em ação que não é de declaração como a de extinção do usufruto ou do fideicomisso, meter-se a questão — já resolvida, com toda a probabilidade — da classificação da verba, sobre a qual pode mesmo ter havido dis-cussão, decisão explícita, recurso e confirmação ou provimento? Na ação de extinção de usufruto ou de fideicomisso, só se vai extinguir o que fora julgado existir. Se estava errado, o meio teria sido ou ainda é o da rescisão do julgado, se cabe. 2. Exame dos efeitos. A primeiro exame, a ação de extinção de usufruto, baseada em culpa do usufrutuário, parece condenatória. Não no é. E constitutiva. O elemento condenatório é elemento de eficácia imediata, sim; porém não preponderante. O perdente, usufrutuário, que o deixa de ser em virtude da desconstituição por sentença, tem de entregar os bens, como condenado que é. Não se trata de ação mandamental, de modo que se

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há de pedir a posse imediata, talvez mesmo a posse mediata inferior, pois o autor da ação nunca deixou de ser possuidor mediato. Não se pede dentro dos autos.

Capítulo VIII

Ações revocatórias § 207. Conceito de revogação 1. Vinculação e eficácia mínima. Demasiado atentos às categorias de obrigação, de posição passiva na ação e de posição passiva na exceção, os juristas descuraram o estudo do efeito mínimo, isto é, o efeito que seria o único. Se algum ato jurídico tem um efeito, já não é ele totalmente ineficaz. A vinculação aparece, como o efeito mínimo, tratando-se de ato humano que entra no mundo jurídico e é eficaz, mas a oferta revogável éeficaz enquanto não se revoga e se teria de dilatar o conceito de vinculação. Pode o ato humano entrar sem essa eficácia presente, de modo que ainda aqui ineficácia e inexistência não coincidem. É da máxima importância não se ter o dever ou a obrigação como o primeiro efeito da relação jurídica, nem como a primeira relação jurídica. A irrevogabilidade da manifestação de vontade, por exemplo, já é outro efeito do ato jurídico: já a oferta se fez e há mais: já a vox não pode ser retirada. Foi, por exemplo, por descurarem desse ponto, que H. Obernecl≤ (Das Reichsgrundbuchrecht, 1, 4ª ed., 330), Eugen Fuchs (Grundbegriffe des Sachenrechts, 161 s.) e outros confundiram ‘estar vinculado” com estar obrigado”, deslocando para o campo do direito das obrigações o acordo de direito das coisas sobre transmissão. Ora, vincular-se à oferta é não poder revogá-la, a despeito da defeituosa terminologia de algumas regras jurídicas, que empregavam obrigatoriedade no sentido de vinculação. Tampouco havemos de confundir vinculação e restrição ao direito de disposição ou ao poder de dispor (erro em que incorreram Emil Koffka, Em Beitrag zur Lehre von der dinglichen Bindung, Festgabe fOr Dr. Richard Wilke, 173 s., e P. Simon, Die rechtliche Natur der sachenrechtlichen Einigunq, 21 5.; certos, Johannes Biermann, Das Sachenrecht, 65, Martin Wolff, Lehrbuch des Búrgerlichen Rechts, III, 27ª-32ª eds., 106, Leo Rosenberg, Sachenrecht, 3ª ed., 199, G. Planck, Kornmentar zum BGB.,lll, Q ed., 125, Dietrich Stóver, Einigung im Sachenrecht, Archív fOr BOrgerliches Recht, 26, 191). Se o proprietário do imóvel assina com trato de venda e compra, mais o acordo, (A transmite e B aceita), e depois outro contrato de venda e compra, mais acordo, com C, ainda que esse conheça o acordo AB, e C obtém, antes de E, o registro, E nada pode contra C (cf. Leo Raape, Das gesetzliche Verãusscrungsverbot des BGB., 113 s.). 2. Vinculabilidade. Se o ato jurídico, embora revogável enquanto não ocorre algum fato (e. g., aceitação), está exposto a vincular quem o pratica e, pois, a tornar-se irrevogável, há efeito que éanterior à irrevogabilidade. Tal efeito, para os atos jurídicos, é o efeito mínimo. Quem pratica atos, que entram no mundo jurídico, expõe-se a ele, que é a vinculabilídade. Todo ato jurídico tem, pelo menos, esse efeito. Quanto aos atos ilícitos, de ordinário à sua aparição surgem direito e dever. Quanto aos fatos jurídicos, lícitos ou ilícitos, inclusive os atos-fatos jurídicos, lícitos ou ilícitos, a eficácia deles em direitos e deveres coincide com a existência. 3. Vinculação e revogação. Se o fato de que depende a vinculação (= irrevogabilidade) ocorre, há vinculação (= há irrevogabilidade). Todavia, por efeito de reminiscências históricas, os sistemas jurídicos conhecem a revogação excepcional, devido a causa superveniente, ou contemporãnea ao ato, que permite a volta ao passado — a despeito da vinculação — para se ir tirar a vox ao suporte fático e se fazer ruir o ato jurídico. E o que acontece com a revogação da doação por ingratidão do donatário e a revogação dos atos por fraude contra

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credores, no direito falencial. 4. Natureza da revogaçâo. A revogação, como ato jurídico, entra na classe da manifestação de vontade, ou da comunicação de vontade ou de conhecimento, que se revoga, porém com sinal contrário. Não é ato jurídico com sinal contrário ao ato juridico que se vai atingir. Não se dirige à resolução do negócio jurídico, ou à cessação dele, ou do ato jurídico stricto sensu; dirige-se ao próprio suporte fático daquele, ou desse. A revogação é manifestação unilateral de vontade do revogante. Se está em causa ato jurídico stricto sensu, ou negócio jurídico unilateral, atinge a manifestação unilateral de vontade, como se dá a respeito do testamento, ou da tributação (imposição ou taxação). Se está em causa negócio jurídico bilateral, a manifestação de vontade do revogante que é atingida, pela retirada da vox; mas vem abaixo o negócio jurídico bilateral, porque uma das manifestações de vontade, que o compunham, está sem o elemento vocal. Assim, a revogação é sempre ato unilateral, com eficácia negativa, pela insuficiencia, assim superveniente, do suporte fático. Unilateral é a manifestação de vontade na revogação do testamento; unilateral, a manifestação de vontade na doação, que é negócio jurídico bilateral. Se, in casu, não é revogável a manifestação de vontade que se inseriu no suporte fálico do ato jurídico, e o manifestante tenta ‘revogá-la”, a manifestação de vontade fica incólume a essa investida. É ato jurídico ineficaz; porque ofende o principio de vinculação, isto é, da inatingibilidade dos atos jurídicos perfeitos, dos direitos adquiridos e da coisa julgada formal, pelo arbítrio de cada um. É o principio de respeito à estabilidade, expresso na máxima Quieto non movere, porém, ai, mais sensível, por se tratar de respeito a direitos, pretensões, ações e exceções. 5. Princípio da irrevogabilidade. De regra, os negócios jurídicos unilaterais são irrevogáveis. Dá-se a vinculação jurídica, nos limites do seu conteúdo. Os sistemas juridicos estabelecem a irrevogabilidade, em principio, porque quasempre se atingiria esfera jurídica alheia, e não há razão para se tratarem diferentemente os negócios jurídicos unilaterais e os contratos. Nuns e noutros, retirar a vox, revogar, seria desdizer-se, nas relações inter-humanas, prometer e retirar promessa. Os nossos atos, se entram na esfera juridica de outrem, hão de acompanhar-nos; revogar seria ir contra si mesmo (cf. Erwin Riezler, Venire contra facturo proprium, 143 s.). A vinculação é efeito inexcetuado do negócio jurídico. Se excepcionalmente pode ser revogado, é porque toda a sua eficácia ficou dependente de algum fato. Tal revogabilidade atende a situações criadas pela natureza das coisas, ou por certos interesses superiores, razão por que, também em princípio, a revogabilidade é irrenunciável (e. g., testamento e codicilo). Se irrenunciável, não se pode cercear ou dificultar a livre revogabilidade. Assim, se o menor de vinte e um anos, com dezesseis anos feitos, faz declaração de vontade negocial, o negócio juridico conclui-se, embora dependente do assentimento (dito “assistência”) do titular do pátrio poder, ou do tutor ou curador (G. Planck, Kommentar zum BGB., 1, 4ª ed., 230). Se esse não lhe dá, é outra a situação. O assentimento prévio, esse, é revogável até a conclusão do negócio jurídico. A recusa dele e sempre revogável; não e negocio jurídico: e apenas um nao não tem eficácia autônoma. A recusa do assentimento posterior (discute-se mesmo se é negócio jurídico, cf. Alfred Manigk, WilIenserklàrung und WillensgeschàJt, 731 5.) é livremente revogável; pode cair no vácuo, se não há mais ato jurídico do que precisava do assentimento. Se ainda vem a tempo, é ato jurídico (O. Planck, Kommentar zurn BGB., 1, 4ª ed.,230). 6. Precisões. O que se revoga é a manifestação de vontade (= retira-se vox). Se a revogação é de admitir-se (= se a manifestação de vontade é revogável), a dívida, que dela se irradiou, extingue-se com a revogação. A revogação é retirada da vox, da manifestação de vontade (= retira-se a vox). Se a revogação é de admitir-se apanhar-se a voz e, pois, não se manter a palavra. Na dimensão moral, os que costumam pôr e retomar a voz, são pessoas sem palavra, isto é, com quem não se pode contar. No mundo juridico, se a palavra, a vox, não podia ser retirada, há sanções. Algumas vezes há razões para que se reconheça aos que emitem manifestações de vontade o poder de retirá-las; mas seria difícil conceber-se isso dentro do mundo jurídico, com os meios jurídicos. Por isso, o direito reputa que alguns negócios jurídicos ficam na linha de fronteira entre o mundo fático e o mundo jurídico, de jeito que pelo lado que fica no mundo fático se pode recolher a voz, a manifestação de vontade. A explicação que se obtém, com esse expediente, satisfaz ao legislador, porque o negócio jurídico se concebe como negócio juridico em que ficou a brecha para o mundo fático e por essa brecha, à linha da fronteira com o mundo fático, se puxa para o mundo fático o que em verdade nunca esteve totalmente livre dele. Não foi sem profundidade que a sistemática jurídica criou e precisou o conceito.

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Com muita sutileza, a técnica legislativa concebeu a revocatória falencial, em que retira a vox alheia, para a proteção de interesses dos outros credores que a fraude prejudicaria. Há tutela do Estado, em expediente que supõe a situação jurídica do falido em relação ao próprio patrimônio. A revogabilidade das manifestações de vontade é excepcional. A revogação retira a vox, de modo que se volta ao status quo. Não há indenizabilidade, porque quem revoga só o faz porque pode revogar. A revogação do irrevogável é sem qualquer eficácia. Não se confunde com a resolução, que re-solve, desfaz a eficácia como se desfizesse o próprio negócio jurídico, sem ser pela retirada da vox, que parte do mundo fático. Nem com a denúncia. Nem com a resilição. Ao manifestante de vontade a quem se permite revogar deixa-se livre, de dentro do mundo fático, atingir a manifestação de vontade, que a voz (oral ou escrita) compôs, e dela retirar o elemento da própria voz. A operação da rescisão é inconfundível com a operação revocatória porque o ato jurídico revogável, ao entrar no mundo jurídico, ficou com abertura para o mundo fático. Por essa abertura, o revogante apanha a voz e a afasta do próprio negócio jurídico em que a voz fora inserta. O ato rescindível, não. No ato rescindível, não há brecha. A brecha é feita pelo direito da pretensão á rescisão. A operação é de cortar, cindir. 7. Técnica legislativa e revogação. A revogabilidade é excepcional porque ou os direitos contra o manifestante da vontade surgem desde logo, ou o vinculo, que se estabelece imediatamente, não pode ser desfeito unilateralmente. Se a revogação não corta mais do que esse vínculo inicial e não há dano ao receptor ou receptores da manifestação de vontade, o sistema jurídico permite a revogação. As leis podem estabelecer que, exercendo o poder de revogar, o revogante indenize. Esse plus não desvirtua o ato revocatório, que apenas se faz dependente da prestação, ou, o que mais se ajusta à espécie, dá ensejo à pretensão do outro figurante à indenização. A revogação não vai contra os efeitos. A desaparição dos efeitos é conseqUente. Retirar-se a voz é elidir-se, por dentro, o elemento do suporte fático. A manifestação de vontade, com a eliminação interior, sai do mundo jurídico. Quer se trate de revogação a líbito do manifestante da vontade, quer de revogação dependente de pressupostos de revogabilidade. Praticamente, isto é, nos resultados, a sorte do negócio jurídico revogado é semelhante à do negócio jurídico anulado. Apenas, na anulação, há deficiência do suporte fático, o que faz, desde o início, inválido O negócio jurídico; na revogação, o negócio jurídico pode ser válido e eficaz, e a manifestação de vontade cai, pela elisão da voz que a fizera. 8.Revogação livre e revogação dependente. A livre revogabilidade é aquela em que o manifestante da vontade pode, a qualquer momento e quaisquer que sejam as circunstâncias, salvo incapacidade, retirar o que disse, exprimindo vontade. A revogabilidade é dependente quando é de mister que algo ocorra, ou tenha ocorrido, para que esteja aberta à incursão do manifestante da vontade a brecha no negócio jurídico, de que falamos. O mandato é livremente revogável; a doação, não. O doador somente pode revogar a doação se compõe alguma das circunstâncias das regras jurídicas especiais. As Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 63, § 5, consideravam a ingratidão do donatário causa de revogação de doação: “A quinta causa é quando o donatário prometeu ao doador por lhe fazer a doação dar-lhe, ou cumprir alguma coisa, e o não fez nem cumpriu, como prometeu”. Com essa atitude provinda da Ordenações Afonsinas (Livro IV, Título 70, § 5), as Ordenações Filipinas evitaram solução que tornaria bilateral o contrato de doação com encargo. A dicotomia — revogação dependente e revogação independente — só importa para a composição dos pressupostos da revogabilidade. Manifestação de vontade que livremente se pode revogar é manifestação de vontade revogável desde que se fez. Manifestação de vontade dependentemente revogável é manifestação de vontade que, em princípio, não é revogável, mas que se torna revogável por se terem apresentado os pres-supostos. 9.Doação e revogação. A revogação da doação não extingue divida, porque se trata de contrato real. O bem

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doado volta ao doador. 10. Ação revocatária falencial. A ação revocatória falencial oferece a extraordinária particularidade de ser subtrativa de parte de elemento, da vox, que não deixa desfazer-se o negócio juridico. Não se assemelha à ação de nulidade, nem à de anulação, nem à de rescisão. Devido à lateralidade da fraus, satisfaz-se o Estado em tutelar os credores do falido com essa medida de eficácia relativa, obtida em ação constitutiva negativa. Daí a importância enorme da diferença entre a ação de declaração de ineficácia dos atos praticados pelo devedor insolvente e falido e a ação revocatória falencial, em caso de fraude contra os credores, mesmo pouco antes de se encerrar a falência. Mas ainda entre as ações revocatórias falenciais e as ações de anulação, inclusive por fraude contra credores. Naquelas, não se desconstitui existência; só se desconstitui eficácia. § 208. Ação de anulação por fraude e revocatória falencial 1. Caráter da ação de anulação. A ação de anulação por fraude contra credores ataca ato jurídico em que não figurou o autor, ato jurídico inter alios. De ordinário, a lei, à diferença da lei especial, concernente a concurso de credores em falência, concebe o ataque pela ação anulatória, não pela ação de impugnação ou de revogação direta, nem pela ação de impugnação ou pela ação revocatória. Ela e a ação revocatória do direito falencial são pessoais. 2.Objeto da ação de anulação. O que se pede na ação de anulação é a desconstituição do ato jurídico fraudulento. Se apenas se assumira dever, ou se outorgara poder, sem se prestar algo, a sentença satisfaz o autor, de si mesma. Se algo fora prestado, há de haver a condenação à restituição ou ao ressarcimento, que é cumulável e se sói cumular, implicitamente. Se basta o ofício ao registro de imóveis, a sentença tem carga man damental suficiente. Se a posse está com o terceiro, que foi figurante, ou com outrem, contra quem se pode executar a sentença, a sentença contêm elemento condenatório à restituição, porém não a eficácia — menos ainda a força — de reivindicação. A situação é inteiramente distinta da que se observa quanto aos atos de disposição em caso de fraude à execução ou às medidas cautelares (confusão a evitar-se em Salvatore Satta, La Rivendita forzata, 55). A lei fala, especialmente, da remissão de dívida. Já a L. 10, § 22, D., quae in fraudem creditorum facta sunt ut restituantur, 42, 8, dizia que “restitutionem fieri oportere in pristinum statum ... ut perinde omnia revocentur, ac si liberatio facta non esset’. Portanto, o commodum medii tem poris; por exemplo, dinheiro pago e juros desde o pagamento até o dia do retorno. 3. Eficácia da ação anulatória. A ação de anulação tem eficácia erga ommes, no que se diferença da ação de declaração de ineficácia relativa, que se proponha para se apontar a incidência da regra jurídica falencial, ou a incidência da regra jurídica sobre ineficácia do pagamento de crédito quirografário, não vencido, pelo devedor insolvente. Por isso mesmo, a respeito das ações por fraude contra credores e das ações revocatórias falenciais, não se pode pensar em ineficácia relativa, como se sustenta em direito francês e italiano (Radouant, em Planiol-Ripert, Traitá pratique de Droit civil français, VII, 268; A. Maierini, Deila Revoca degli atti Jraudolen ti, 408 5.; Camilo Brezzo, La Revoca degli atti fraudolenti, 239 5.; contra, Mano AlIara, DelIe obbligazioni, 270 5., 290 s.). Há a restituição ao estado anterior e não abre exceção para a ação de anulação por fraude contra credores; nem se tem regra jurídica como a do art. 2.901 do Código Civil italiano, que, na alínea 1ª, fala de ação revocatória para “che siano dichiarati inefficaci nei suoi confronti gli atti di disposizione dei patrimonio’. As regras juridicas são de sanção no plano da validade, e não no da eficácia, no que se parecem com as ações revocatórias falenciais, mas distinguem-se claramente, das regras juridicas sobre ineficácia falencial. O direito brasileiro obteve precisões dignas de encômio. Aliás, convém não se confundir a força constitutiva negativa da sentença com a eficácia de condenação à restituição, que só aproveita aos credores que vão ser admitidos a concurso ou à falência. Quando se baralham conceitos de invalidade e de ineficácia cometem-se erros sem conta e tem-se de explicar como ficção o só ser válido para uns, o que colide com toda lógica. (e. g. Baycoíanu, L’Action Paulienne en droit comparé, 71, e Bastian, Essai d’une théorie générale de I’Inopposabilité, 185 s., 297 s.). Tem-se escrito que, se a anulação sobrevém, o bem alienado é considerado como não saído do patrimônio do devedor, posto que, nas relações entre alienante e adquirente, se haja de ter como

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definitivamente alienado; de jeito que o adquirente pode exigir, sem que o devedor possa dispor. Tal não é a concepção do direito brasileiro. O ato jurídico é anulado em todo o ato de disposição. O adquirente, a que se retira o bem, tem pretensão a reaver o que prestou, pois faltaria causa à permanência da prestação em poder do devedor, que injustamente se enriqueceria. A sentença de anulação contém o elemento eficacial da condenação a restituir determinada coisa, ou dinheiro, ou coisa em gênero. Se foi bilateral o contrato, o terceiro deve restituir, mas pode ir contra o devedor, ou contra a massa, para haver o que prestou. Se houve assunção de obri-gações, ou pagamento, a sentença é, respectivamente, exaustiva, porque somente fica a pretensão à restituição do documento da dívida, ou de eficácia condenatória, para que se restitua o que foi pago, fraudulentamente. Quando se diz que, anulado o ato, se restituirão os figurantes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possivel restitui-las, se hão de indenizar com o equivalente, afastam-se inúteis e superficiais discussões em torno de se saber qual a causa para a restituição ao terceiro (e. g., enriquecimento injustificado lato sensu, Mano AlIara, Deile ObbIigazioni, 292 5.; nulidade subjetivamente relativa, Antonio Cicu, L’Obbligazione nel patrimonio dei debitore, 126, e Antonio Butera, Dell’Azione Pauliana o Revocatoria, 554 s., conceifo a repelir-se, energicamente; ineficácia relativa, Luigi Cosattini, La Revoca degli atti fraudolen ti, 237 s., conceito que aí, seria impróprio, porque somente serve à sanção de regras jurídicas como as que fazem anuláveis atos com fraude a credores). O outro figurante, atingido pela sentença de anulação por fraude contra credores, invoca a regra jurídica sobre restituição ao estado anterior como a invoca o autor que vence. Mais uma vez se revela quão acertada tal regra jurídica. A diferença entre elas é apenas no modo por que se opera a desconstituição — por alegação do vicio como anulante, ou por alegação do vício para alteração ao suporte fático. No que se revogou, a eficácia desconstitutiva é a maior, se bem que só se refira aos efeitos relativamente à massa: no que se anula, também, pois que é o ato jurídico que se desconstitui, e não só a eficácia relativamente à massa. Somente é coisa julgada, para obstar à ação anulatória, a sentença, trânsita em julgado, que haja negado a anulação por fraude contra credores, com fundamento na mesma regra jurídica. A sentença que negou a existência de nulidade, ou de anulabilidade por dolo, coação, erro, ou simulação, não tem eficácia para pré-excluir a ação de anulação por fraude contra credores (absurdo o acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Apelação da Paraíba, a 27 de março de 1944, RF 61/243). 4.Ação anulatória e ação revocatória. A ação de anulação e a ação revocatória falencial são os meios únicos para se obter, por fraude contra credores, a desconstituição do ato jurídico, ou o défice ao suporte fático do ato jurídico pela retirada da voz do devedor. Ainda na ação revocatória falencial, quando é pressuposto a scien tia fraudis, não se revoga toda a manifestação de vontade do outro figurante; o ato jurídico não se esbarronda pela deficiência do suporte fático, uma vez que, devido à insolvência e ao eventus damni, só se permitiu na lei a revogação relativamente à massa. Qualquer acordo, fora da ação de anulação, ou de revogação, para se destruir o ato jurídico, ainda se anulável por fraude contra credores, não seria anulação, nem revogação. Seria resolução, ou distrato, ou outra categoria negocial, que tal eficácia tivesse. 5. Autor. A ação de anulação compete ao credor; se já aberto o concurso de credores, não muda a legitimação, se não porque o credor posterior, admitido, se torna legitimado. A ação de revogação falencial compete ao síndico; se esse não na propõe no prazo legal, a qualquer credor; a ação revocatória falencial, proponível após a feitura do quadro geral de credores, ao síndico ou a qualquer credor. Tais alargamentos são consequência da par condictio creditorum, junta à aparição da figura do síndico. A disputa entre credores pode ser por fraude. 6. Réus. Réu, na ação de anulação e na ação falencial de revogação, é, principalmente, o devedor. Depois, o que recebeu algo do devedor. Não seria de admitir-se a propositura somente contra o que recebeu do devedor o elemento patrimonial (dívida assumida, coisa alienada, pagamento, dação em soluto). Não se trata de ação de enriquecimento injustificado, por parte do terceiro; nem de ação contra esse, por ato ilícito. A citação do adquirente ou beneficiado é imprescindível, porque também ele é réu, ou por ter recebido o benefício gratuito, ou ter recebido a promessa ou a prestação, por parte do que já estava insolvente, ou, com o ato fraudulento, se tornou insolvente, ciente disso ou da anterior insolvência. Quanto ã revocatória falencial, deixar-se de citar o

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falido seria infração de lei. O síndico é legitimado ativo; não pode ser, na espécie, legitimado passivo, tanto mais quanto há, ai. colisão de interesses entre o sindico e o falido. Falido é parte, demandado, iussu judiciso, há de ser citado. Se o não foi, deve o juiz indeferir, de início, a petição por inepta; pelo menos, ordenar que se integre o juízo por eqú idade. (A opinião que dispensa a citação do devedor é contrária às leis: e ainda que lei não houvesse, contra os princípios. Com razão, Enrico Reden ti, II Giudizio civile con pluralitá di parti, 114 s.: Antonio, Cicu, L Obbligazione nel patrimonio dei debitore, 47; Antonio Segni, L’Intervento adesivo. 156: Virgilio Andrioli, L’Azione revocatoria, 142 5.: sem razão, A. Maíerini, Delia Revoca degli atti fraudolenti, 354; Camilo Brezzo. Lo Revoca degli atti fraudolenti. 192; P. Esmein, em Marcel Planiol-Georges Ripert, Traité pratique de Droit civil français. VII. II, 262). Além do fi-audador e do adquirente ou beneficiado, há réus eventuais, como os subadquirentes ou sub-beneficiados. Se o terceiro (aí a expressão é mais adequada) adquiriu, ou se sub-beneficiou, antes de se haver registrado a citação para a ação de anulação por fraude contra credores, tem de ser citado, se a eficácia de sentença o pode atingir. Depois do registro. nao e preciso citá-lo: a eficácia da sentença apanha-o. Sempre que se não citou o subadquirente ou o sub-beneficiado que teria de ser citado, para poder ser contra ele a eficácia da sentença, somente em outra ação se poderia ir contra ele. Contra aquele que é atingido pela eficácia da publicidade registrária. não se precisa de citação, nem de propositura de nova ação (cf. Nicola Coviello, Deila Trascrizione, II, 659). Os autores podem registrar a citação enquanto se processa a ação, para que seja ineficaz qualquer subaquisição ou sub-beneficio posterior; depois do trânsito em julgado, pode ser registrada a sentença. Se há desistência da ação, ou transação, ou extinção do processo sem julgamento do mérito. ou perempção da ação, ou por outro meio se pôs termo à demanda. sem se julgar o mérito, e foi atingida a citação. pode qualquer interessado requerer o cancelamento do registro. Tratando-se de bem móvel, os autores, diante do risco da alienação a terceiro, podem pedir o sequestro. A ação é para anular ato fraudulento; estando a coisa em poder do réu, adquirente ou já subadquirente, nada obsta a que se defira (superada, assim, a velha opinião de Gianzana, II Sequestro giudiziario e conservativo, 3ª ed., 30; cf. Antonio Coniglio, II Sequestro giudizia rio e conserva tivo 264). As consequências são mesmas, praticamente, do registro da citação nas ações de anulação, tratando-se de imóvel. As alienações posteriores são ineficazes para os autores e, pois, para a massa. 7. Processualística. A ação propõe-se no foro do domicílio do devedor, e não no foro do domicílio do adquirente ou beneficiado (sem razão, A. Maierini, Delia Revoca degli atti fraudolenti, 69; Antonio Butera, Deli’ Azione Pauliana o Revocatoria, 357 s.); salvo se trata de ação entre credores ou de ação de credor por fraude do devedor ou de terceiro ou do síndico quanto a créditos, e o concurso de credores civil ou o concurso de credores falencial foi aberto noutro foro. O valor da ação é o do ato fraudulento, no que tenha de ser desconstituído ou revogado; e não o de crédito do autor ou dos autores (sem razão, Francesco Carnelutti, Stíma deI valore deila lite della revoca, Rivista di Diritto processuale civile, 12, II, 82 s.; sobre a falta de fundamento da argumentação, Luigi Cosattini, La Revoca degli atti fraudolenti, 201), ou o do valor menor entre o do crédito atacado e o do crédito atacante (sem razão, Camilo Brezzo, La Revoca degli atti fraudolenti, 196; Antonio Butera, DelI’Azione Pauliana o Revocatoria, 365 s.; Giuseppe Chiovenda, Istituzioni di Diritto Processuale Civile, 1, 163 s.). A ação de anulação e a revocatória falencial podem ser propostas em reconvenção, se o rito processual o permite. Nas ações executivas de summania cognitio ou incompleta cognição, e. g., ações de créditos certos e líquidos, de títulos cambiários e cambiarifomnes, a fraude contra o credor pode ser alegada, como defesa, com citação do devedor fraudador; nas espécies de cognição parcial, desde que caiba o exame do negócio jurídico subjacente. Também pode ocorrer quando o credor com garantia real argúi a fraude contra o outro credor com garantia real. Sempre há de ser o credor do devedor em concurso, ou em falência, ou síndico, que vá contra o credor executante. O terceiro pode, nos embargos de terceiro, opor a fraude contra credores. Na execução contra o devedor, pode-se alegar, como defesa (legitimação passiva) a ineficácia relativa dos atos anteriores mencionados pela lei como ineficazes relativamente ã massa, ou apresentar como defesa a revocatória, sobrevindo a abertura de falência. O credor que vai ao juízo, onde se estão a executar bens do devedor, ou há simplesmente demanda condenatória contra o devedor, alegando fraude contra credores, ingressa como parte devido à insolvência, ou à falência (atendido o prazo); não é terceiro. Bem assim, o síndico. A invalidade do ato pode tambérn ser oposta como defesa em ação ou execução, perdendo a massa o direito de propor a ação revocatória. Quanto à ação declarativa negativa da eficácia, relativa aos atos mencionados na lei de falências, não se precisa de regra jurídica sobre a alegação como defesa — a massa concursal ou falencial não é terceiro. Quanto às ações constitutivas em concurso de credores, sim: tinha-se de pôr em termos claros que o credor ou o síndico pode ingressar na relação jurídica processual, como parte, e alegar a fraude, porque sem isso, regeriam

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os princípios gerais que obstam aos titulares de ações de anulação ou revogação a entrada na relação juridica processual alheia. Tal regra jurídica é da máxima importância. Na ação de execução de sentença, o credor ou o síndico opõe embargos do devedor, por força da regra jurídica. A massa não atua como terceiro, confusão lamentável de 1 X. Carvalho de Mendonça (Tratado de Direito Comercial, VII, 555); nela representam-se os credores, como parte. A ação do credor exeqúente, que se dirigiu contra o devedor, esgalha-se: vai contra o credor e contra a massa, que veio a juízo, citada ou não. Quanto aos atos mencionados como ineficazes, não há necessidade de se pensar em inserção da massa como réu: então está ela de fora, como executado, que alega a ineficácia relativa. Idem, quando se trate de atos de adimplemento de dívidas qui-rografárias, não vencidas, pelo devedor insolvente. 8.Ônus da prova. O autor tem de provar a anterioridade do crédito, o ato de disposição, o estado de insolvência já existente ou ora existente, pelo fato do ato fraudulento, com o eventus damni e — tratando-se de ato a título oneroso — a scien tia Ira udis, por parte do adquirente ou beneficiado; eventualmente, dos subadquirentes ou sub-beneficiados. Todavia, há, a favor do autor, a presunção de serem fraudatórias as garantias dadas aos credores pelo devedor insolvente. Quanto às datas, o registro do documento, se houve, estabelece a prova. A prova de insolvência e do eventus damni é feita por todos os meios, inclusive indícios. Tem-se de provar que a penhora na execução forçada foi, ou seria negativa, ou insuficiente. Se o estado de insolvência já foi objeto de decisão como questão prévia, na abertura do concurso ou da falência, há coisa julgada, ou, se ainda não se tinha coisa julgada, há eficácia para se dispensar a prova. 9.Ação declarativa de ineficácia. Todos os atos jurídicos enumerados como ineficazes ex lege, quanto à massa não na atingem. O direito civil e comercial comum não tem ação declarativa de ineficácia relativa para esses atos jurídicos do devedor, exceto quanto ao pagamento pelo devedor insolvente de divida não vencida ao credor quirografário. O credor, em tal situação, terceiro, cujo bem foi apanhado pela constrição cautelar ou executiva. Na falência, pode ser arguida a ineficácia relativa até o encerramento da falência, se não houve por algum outro fundamento preclusão ou coisa julgada. A ineficácia é relativa à massa; de modo que só o síndico e os credores admitidos à falência podem invocá-la. Não se afasta, com a coisa julgada da sentença favorável, a proposítura da ação de anulação, nem, quanto ao que possa ser eficaz contra a massa, a ação revocatória. Se inserto em embargos de terceiros o pedido de declaração, dá-se o mesmo. As ações de anulação por fraude contra credores e a de revogação podem ser propostas, ainda se já o foi a declarativa falencial de ineficácia; a sentença proferida nessa não obsta àquelas. A sentença que se profira na ação de anulação, ou na de revogação, faz cessar a declarativa de ineficácia, porque aquelas são constitutivas negativas. § 209. Ação revocatória falencíal 1. Natureza da ação. A revogação falencial é só interior ao concurso falencial. Se se tratasse de anulação do ato jurídico, não poderia haver ineficácia relativa; teria de perder toda a eficácia o ato jurídico, ao deixar de ser. Em vez disso, a revogabilidade pode retirar toda a voz, ou somente cortá-la: ao suporte fático retira-se a vontade, pois que causa danos ao credor o ato jurídico, e tal alteração da vox, permitida pela regra jurídica especial, tem a consequência de tornar relativamente ineficaz o ato jurídico. Não se faz ato jurídico diferente; persiste o mesmo ato jurídico, alterado. O que se passou no mundo fático, pela intromissão da vox do credor prejudicado, ou pela vox do síndico, alterando o que o devedor quis, em vez de fazer ruir todo o ato jurídico, apenas o torna ineficaz relativamente à massa. Aqui, à diferença do que ocorre com os atos jurídicos atingidos pela sanção automática, ipso iure, da ineficácia relativa, que se estabelece na lei de falência, não há sanção — há somente o resultado normal, no plano da eficácia, do que se passou no mundo fático. A categoria jurídica patenteia-se inconfundível com a anulação do direito geral, razão por que a uma se chama revogação e se fala, a respeito dela, de ineficácia relativa, ao passo que à outra se chama anulação e se diz que, por efeito da sentença, cai no nada o negócio jurídico. De modo que, se há pressupostos comuns ás duas ações, os há também diferentes, e foi acertado que se mantivesse a diferença de normas. Não se precisou, no direito falencial, ir ao extremo de se tornar anulável o ato jurídico. Não é necessário anulá-lo; basta que se dê ao síndico ou credor

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revogar, no que há dano à massa. O ato jurídico continua; pode ser que se dê, por outro fundamento, a anulação. Mas revogação não é anulação, é mais profunda, porque é na composição do suporte fático, se bem que possa só ser alteração da voz do devedor (vontade do devedor fraudador menos vontade do credor fraudado ou do síndico de que a eficácia do ato não alcance a massa). Quanto à natureza da ação revocatôria falencial, pensava Ernst (Jáger que se tratasse de ação condenatória, ao passo que James Goldschmidt (Zivilprozessrecht, § 90, nº 2) a considerava extensão da ação executiva, em virtude de obrigação publicística de permitir a execução forçada (caso de responsabilidade por dívida alheia, segundo A. Menzel). Mas tais explicações não satisfizeram. A atribuição de caráter só processual à ação revocatória falencial (e. g., James Goldschimidt, Der Prozess ais Fechtslage, 468) descura do que há de regras de direito material nas leis concursais e falenciais. 2.Pressupostos da ação. De regra, o direito falencial não distingue, quanto aos pressupostos da ação de revogação, os atos jurídicos a título gratuito e os atos jurídicos a título oneroso. Distingue-os no tocante à ineficácia relativa ex lege, salvo quando, respectivamente, a atos jurídicos a titulo gratuito, o objeto é de valor inferior ao fixado na lei, e quanto à renúncia a herança ou a legado foi em data anterior a determinado tempo antes da decretação da falência. A ação anulatória, assim em direito civil como em direito comercial, dispensa o pressuposto da scien tia Ira udis, salvo quanto ao terceiro adquirente ou beneficiado por ato entre vivos. As regras jurídicas do direito comum afastaram toda a discussão em torno do consiliurn fraudis, conceito que ficou acantonado no direito falencial. Havendo eventus damni há contrariedade a direito, infração de dever, fraude. Se o ato jurídico foi a título oneroso, exige-se, a mais, a scien tia fraudis. Continua-se a abstrair do consilium fraudis. No direito falencial, não: o consilium fraudis é pressuposto necessário; há de haver culpa em senso lato, ao lado da antijuridícidade. Quando lei falencial fala de intenção de prejudicar credores, provando-se a fraude do devedor e do terceiro que com ele contratar, o que, com tão atrapalhada redação, se estatui é que são elementos o concilium ira udis, ai identificado com a intenção de fraudar, e a scientia fraudis, broncamente expressa por ‘fraude’ do terceiro. Per-gunta-se: o conhecimento do prejuízo aos credores, pelo devedor, basta para se compor o primeiro pressuposto? O que importa é definir-se o conteúdo mínimo. Não é preciso que o ato do devedor pareça a ele mesmo imoral (A. Grouber, De l’Action paulienne en droit civil français contemporoin, 110): nem que haja o animus nocendi (Camilo Brezzo, La Revoca degii atti fradolen ti, 112 sj Aubry e Rau, Cours de Droit civil français, IV, 226; Louis Josserand, Les Mobiles dans les Actes juridiques du Droit pri vê, 238 s.; Georges Ripert, La Rêgle mora/e, 313 nem culpa ou dolo, no sentido de pressuposto do ato ilícito relativo, ou absoluto, como seria razoável entender-se por todos os que vêem no fundamento da ação infração contratual, ou delito (e. g., culpa Lata, Galluppí, Teoria dei/a Opposizione dei terzo, 275). Basta que o devedor tenha conhecimento de que o ato jurídico causa o dano, ou que vai causá-lo, com o nascimento dos direitos, pretensões, ações ou exceções do adquirente ou beneficiado. 3. Fundamento da ação. O instituto da anulação, como o instituto de revocatória, assenta na necessidade, politicamente revelada, de se dar sanção contra os atos fraudulentos dos devedores. Eventualmente, dos subadquirentes ou sub-beneficiados. Esses somente são atingidos pela ação de anulação, ou pela ação de revogação, se de má-fé. Uma vez que se diz que a ação, nos casos de fraude contra credores, pode ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé, e se é dispensável a scientia fraudis do adquirente ou beneficiado a titulo gratuito, não na é quanto ao terceiro. Diz-se em lei que fica salva aos terceiros de boa-fé a ação de perdas e danos, a todo o tempo, contra o falido. Ora, na regra jurídica sobre ação revocatória, exigido foi o pressuposto da scientia fraudis. Há-se de entender que tal indenização somente cabe se houve prejuízo ao terceiro, a despeito da boa-fé, e. g., em caso de ineficácia relativa baseada na regra jurídica que concerne à ação declarativa. Aberto o concurso do espólio, ou a falência do falecido (falência sem falido), os sucessores não herdam o de que já não poderiam dispor. Se o falecimento é do adquirente ou subadquirente. legitimado passivo da ação de anulação, ou de revogação, os herdeiros e mais sucessores recebem a menos o dever de sujeitar-se à ação de anulação ou de revogação. Aí não há pensar-se em boa ou má-fé, porque se trata de sucessores a causa de morte.

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4. Sentença anterior sobre o ato jurídico. A ação de anulação por fraude contra credores e a de revogação falencial são ações constitutivas negativas — aquela dirigida ao ato jurídico, e essa, a suporte fático, para alterar a vontade (vox, revoca tio), que o devedor manifestou. Não importa ter havido, antes, sentença declarativa, ou condenatória, trânsita em julgado, ou propositura de ação executiva ainda não extinta a relação jurídica processual. O credor, titular da ação de anulação, ou o síndico ou credor, titular da ação revocatória, pode propor a ação, pois não há res judicata quanto à alegação de fraude contra credor. Se, porém, durante a execução, estava aberto o concurso, ou a falência, e o credor concursal ou o síndico ou o credor falencial não opôs embargos do devedor, com a alegação de fraude, tal como lhes permite a lei, tendo tido ciência da execução, a execução consuma-se, extinguindo-se a ação de anulação ou a ação revocatária. Igualmente, quanto às ações declarativas de ineficácia relativa, de que já se falou. A revogação do ato pode ser decretada, embora para celebração dele houvesse precedido sentença executiva, ou fosse consequência de transação ou de medida assecuratória para garantia da dívida ou seu pagamento. Revogado o ato, não há efeito da sentença que o motivou. Tal o que está no sistema jurídico, como regra de direito falencial. As ações do adquirente ou beneficiado contra o fraudador e as próprias sentenças contra ele não são óbice a que o síndico ou o credor proponha a ação revocatória. Ainda se o ato jurídico a ser revogado foi posterior. Frise-se poder ocorrer que a lei diga: “revogado o ato, ficará rescindida a sentença que o motivou”. Em verdade, não se dá” rescisão” da sentença, porque a matéria da revocatória não fora julgada. A fortiori, não obstam à ação revocatória a transação e as medidas cautelares. De regra, fala-se de sentença executória, após a qual o devedor pratique o ato. Nada se diz sobre o pagamento ou outro meio de solução, ultimada a execução, sem ter tido ciência da ação executiva o credor. Também essa intercalação de decisões judiciais, em que não houve cognição da revocatôria, nem pretensão, não é óbice à sua propositura. 5. Hipoteca judiciária. A hipoteca judiciária é efeito anexo da sentença, não efeito da sentença como fato (sem razão, Enzo Enriques, La Sentenza come fatto iuridico, 121). O elemento mandamental da sentença de condenação é bastante, segundo os princípios de direito processual, para o registro. Há dever do juiz. Não obsta à ação constitutiva negativa por fraude contra credores (anulatória, ou revocatória falencial), nem à incidência da regra jurídica falencial sobre ineficácia. 6.Exceção e réplica revocatôrias. A defesa, a que se referem leis falenciais, são as integrações da contestação pelo credor ou os seus embargos como executado. Há litisconsórcio. O credor, que pode invocar a regra jurídica sobre ineficácia, não contesta, nem embarga de executado: embarga de terceiro; bem assim o credor que ainda não tem por si a abertura do concurso ou da falência. Sempre que o credor pode, fora da ação de anulação, ou de revogação, alegar a fraude contra credores, ou integra contestação, ou embarga de terceiro (não de executado) — coisa diferente de exercer a exceptio pau liana. Pode dar-se que a tenha de alegar contra o excipiente, e então usa de réplica. 7.Anulação e revoqação; ação e exceção. No direito brasileiro, não há a regra jurídica geral sobre restar exceção de toda ação prescrita, nem sequer, quanto às anulabilidades. De modo que se levanta a questão de se saber se. em caso de simulação, ou de fraude contra credores, prescrita a ação, resta ao terceiro, órgão ou representante do poder público, que não propôs a ação de anulação por simulação lesiva a terceiro, a entidade estatal ou ao povo, ou o terceiro, ou síndico que não propôs a ação de fraude contra credores, a de nulidade ou de anulação, ou a de revogação, ou a exceção de simulação ou de fraude contra credores. As ações declarativas de ineficácia, de direito comum ou concursal, essas são imprescritíveis, por serem declarativas. No direito anterior, a ação de anulação por simulação deixava exceção (Álvaro Valasco, Decisionum Consultationum, ac Rerum Iudicatarum, II, 370 s.). O autor não é, ex hypothesi, figurante. Pode não ter tido qualquer noticia do ato simulado. Se a lei fala de se contar o prazo desde a data em que se realizar o ato ou o contrato, não nos adianta criticar, de leqe ferenda, o texto da lei, por ter encambulhado as ações por erro, ou dolo, de que são titulares figurantes do ato jurídico, portanto pessoas que necessariamente o conheceram, e as ações de simulação ou fraude contra credores, cujos titulares são terceiros, que podem ignorar por muito tempo, ou sempre, o vício da simulação ou da fraude contra credores. O legislador fixou o prazo, a contar-se do dia em que se realiza o ato juridico. Não podemos entender que o terceiro conheceu necessariamente nesse dia a simulação, ou a fraude contra credores. Se admitimos a sua ignorância, fazemos correr contra ele prazo de prescrição, o que de modo nenhum poderia ser justificado. Ou se entende que o prazo cabe do dia em que há publicidade do ato jurídico,

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ou se há de admitir que, não proposta a ação dentro do prazo legal, resta ao terceiro a exceção. Todavia, ainda a respeito da exceção, poder-se-ia levantar a questão de se precisar, ou não, da alegação e prova de não ter tido ciência do ato jurídico simulado ou fraudulento o terceiro. A melhor opinião é no sentido de se entender que a data do ato jurídico, quanto ao terceiro, é a do registro, e que a simulação ou fraude pode ser alegada e provada, como exceção, quando se pretenda atribuir eficácia ao ato jurídico que prejudique o terceiro, se tal atribuição seria criminosa. § 210. Extinção e prescrição da ação de anulação 1.Direito romano. A restituição no íntegro e o interdito somente se exerciam no ano útil (L. 6, § 14, e L. 10, § 18 D., 42, 8.) Discute-se o dia inicial, em que começava a experiundi potestas, era o mesmo para os dois remédios jurídicos: correria a) do dia da venditio bonorum (L. 10, § 18), ou b) da Venditio (= conclusão do negócio jurídico fraudulento), pois é só de venditio que fala a L. 6, § 14, tirada de Ulpiano, ao comentar o Edicto, ou se c), distintamente, conforme o remédio jurídico? como em a), Th. Reinhart (Die Anfechtungsklage wegen Verkúrzung der Glãubiger, 53), A. Maierini (Dei/a Revoca degli atti fraudolenti, 3ª ed.. 393) e Otto Karlowa (Rómische Rechtsgeschichte, 1, 49). Como em b), A. E. Rudorff (Ulber dier rutilische Concursordnung, Zei tsch rift fà r Rech tsgesch ich te, VIII, 79 s.). O argumento a favor de /4 é o de que faltava a palavra “bonorum” na L. 6, § 14, mas é de notar-se que a inserção feriria a gramática, confundindo tempos (E. Serafini, Dei/a Revoca degli atti fraudolen ti, 1, 211 s.) e seria inconcebível que ação tocante ao curador, cujo ofício cessava com a venditio, dessa começasse (E. Huschke, Publius Rutilius Rufus, Zeitschrift Júr Civilrecht und Prozess, 14, 64 s. fraco o contra-argumento de B. Windscheid, Lehrbuch des Pandektenrecl-zts, II, 9ª ed.,1.011, nota 21, de que também os credores eram legitimados, e de nenhum valor o de Alois Brinz, Lehrbuch der Pandekten, 1, P ed., § 123, 533, e outros de que o curador podia (!) intentá-la após a venditio bonorum). Pergunta-se, contra b): jpor que Ulpiano só se referiu à uenditio? Mais: jomo contar-se da venda, se somente com a Missio in bona nascia a ação? A escapatória De TH. Reinhart de poder o credor marcar o dies a quo, por se tratar de acho arbitraria, é de repelir-se, uma vez que a arbitrariedade da ação não ia até a esse ponto (E. Serafini, Dei/a Revoca degli atti fraudoieri ti, 1, 208). A ação justinianéia era para o ano útil (cl. L. 1, pr., L. 6. § 14, e L. 10, pr., e § 181. O prazo de quatro anos, que se entendeu ter sucedido ao de um (L. 7, C., de temportbus in integrum restitutionis, 2, 52), não concernia à ação pauliana —só se referia às restitutiones in integrum que persistiam fora da restituição em caso de fraude, que desaparecera. Nem o direito luso-brasileiro admitiu que tal afirmativa falsa de J. C. Koch (Dissertatio de praescriptione restitutionis in integruni, § 3) e outros entrasse no sistema jurídico: sempre se pensou na L. 1, pr., e na L. 10, pr. e § 18. 2.Direito brasileiro. (a) Extinto cada um dos créditos, extinta está a ação de anulação que tinha o titular do crédito ora extinto. À ação de anulação pode-se renunciar. A declaração de que se sabe que o devedor insolvente vai contrair dívida, ou alienar bem, e de que se assente em que o faça, impede que a ação nasça, pois fraude não há, quanto ao credor assentinte. Nenio fraudare videtur eos qul sciunt et consentiunt. De renúncia, expressa ou tácito, à ação só se pode falar depois que a ação nasce. (b) De ordinário, fixa-se o prazo prescricional, por simetria com as prescrições das outras ações de anulação por defeito de vontade, não por sugestão histórica da L. 7, C., de temporibus in integrurn restitution is, 2, 52, que as Ordenações Afonsinas (Livro [li, Título 126, § 5), Manuelinas (Livro III, Título 86, § 7) e Filipinas (Livro III, Titulo 41, § 6) receberam. A ação por enriquecimento injustificado, no direito anterior, extinta a ação pauliana, só em trinta anos prescreveria, salvo quanto ao terceiro de boa-fé (L. 10, pr.; 1 3. E. Zúrcher, Die Actio Pauliana, 42; sem razão, Th. Reinhart, Die Anfechtungs klage wegen Verkúrzung der Gidubiger, 27; V. Otto, Die Anfechtung von Rechtshandlungen, 173; P. Grútzmann, Das Anfechtgsrecht der benachteiligten Konkursgàubiger, 97). Não cabe hoje.

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§ 211. Anulação de negócios jurídicos onerosos do insolvente, ciente o outro figurante, e enriquecimento injustificado 1.Direito romano. Se o terceiro ignorava a insolvência do outro figurante, não pode ser anulado por fraude contra credores o negócio jurídico oneroso. A notoriedade, a que leis se referem, é ciência geral; portanto, o terceiro é tido como sciens. Discutia-se, no direito comum, se, a despeito de não caber a ação pauliana, era de propor-se, satisfeitos os pressupostos, a de enriquecimento injustificado. Trazia-se à baila a L. 6, § 10. D., quce in fraudem creditorum facta sunt ut restituantur, 42, 8. Trata-se de texto interpolado, pois que Labeào, a que se atribui, não poderia ter dito o que lá está escrito: ao seu tempo, o impúbere de modo nenhum se obrigaria (sem se distinguir se oneroso ou gratuito o negócio jurídico). Ao tempo de Ulpiano, é duvidoso que se hajam mudado os princípios; mas o direito justinianeu admitia a ação contra o impúbere, na medida do enri-quecimento. Daí ser sem base a discussão quanto a caber a ação se gratuito o titulo (Th. Reinhart, Die Anfechtungsklagewegen Verkúrzung der 0/aubiger, 108), ou se, também, quando oneroso (A. Maierini, De//a Revoca degli atti fraudolenti, 3ª ed., 181), ou só em se tratando de doação (Emil Meischeider, Die preussische Gesetzgebung Ober das Anfechtungsrecht der G/àubiger, 62; V. Otto, Die Anfectung von Rechtshandlungen, 123 s.). O impúbere, se respondia em caso de ação pauliana, respondia como quem adquirisse a titulo gratuito — pelo enriquecimento injustificado, o que não dava ensejo a se invocar a L. 6, § 10, para dela se tirar regra jurídica geral (cp. Siro Solazzi, La Revoca deg/i Atti fraudolenti, nel diritto romano, 1, 3ª ed., 168 s.). 2.Direito brasileiro. O enriquecimento injustificado supõe que não haja a dívida. Ora, se houve a fraude contra credores e ocorre a anulação, incide a regra jurídica sobre restituição; se não houve, nem por outra causa é nulo ou anulável o ato juridico, ou se prescreve a ação de anulação, o ato jurídico é imune a ataque, e não seria de pensar-se, tampouco, em ação de enriquecimento injustificado. Se houve crime, e não só fraude anulativa, perdura a exceção, e a ação pelo ato ilícito absoluto só prescreve no prazo que a lei estabelece. § 212. Ações cautelares 1.Para prevenir atos do adquirente ou beneficiado. Se o ato fraudulento pode ter maior extensão de efeitos se o adquirente ou beneficiado transfere ou constitui direitos sobre o que adquiriu, ou com que se beneficiou, é possível ao autor ou autores pedirem a medida cautelar do sequestro. Tratando-se de bem imóvel, o registro, no registro de imóveis, da citação feita para a ação de anulação por fraude contra credores, basta a estabelecer a ineficácia relativa de quaisquer atos que firam os direitos do autor ou dos autores. 2.Se há medida caute/ar antes do ato fraudulento. Se o devedor vai praticar o ato fraudulento, ou se há risco de que o pratique, discute-se pode o credor propor medida cautelar. No direito brasileiro, a resposta é negativa. Ou o estado de insolvência já existe e o credor pode provocar o concurso de credores, ou a falência; ou não existe, e o ato, que se teme, é que estabeleceria a insolvência, espécie em que o credor pode protestar, com a notificação ao terceiro, ou, por edital, aos que possam vir a ser beneficiados pelo ato fraudulento, ou, se satisfeito o requisito de ser provável a ocorrência de causar danos, de difícil reparação, pedir arresto dos bens, o que não se liga ao temor da fraude, mas o fato subsumível na regra jurídica. Se o crédito é sob condição, ou a termo, o arresto é de pedir-se, não concedido, ficaria sem proteção a pretensão (Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, 1, 243: “Pro credito autem in diem, vel conditionali mandatum suspicionis fugae relaxari potest, si superveniat deterioratio debitoris, ad hoc, ut caveat de solvendo, adveniente die, et purificata conclitione ‘9. Então, preparatória a medida cautelar, o prazo para a propositura da ação só se conta do advento da condição ou do termo.

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§ 213. Eficácia das sentenças na ação de anulação 1.Natureza das sentenças anulatórias. Ambas as ações e ambas as sentenças são constitutivas negativas, ações de anulação, ainda que se trate da espécie em que a anulação se fundou em atribuição de preferência (e. g., hipoteca, penhor, ou outra garantia). A regra jurídica sobre restituição ao estado anterior incide. Não se trata de ação real. A eficácia imediata à constitutivídade negativa é a condenatória; não se lhe pode cumular a de reivindicação (aliter, a ação de decretação de nulidade). Pede-se que restitua, com os frutos até a entrega, “e assim restituida”, escrevia Gregório Martins Caminha (Tratado da Forma dos Libelos, 20), ‘mande nela fazer execução pela dívida e sentença dele autor, de modo que seja pago”. A cumulação é da ação contra o terceiro (constitutiva negativa) com a ação contra o fraudador; depois vem a ação ludicati, oriunda da sentença na ação contra o fraudador, ou contra ele e o terceiro: a sentença na ação de anulação por fraude não contém o mandado executivo, porque não cabe cumulação. Se houve ou se não houve a cumulação, tem de haver execução de sentença (actio iudicati da ação de anulação por fraude). E preciso não se confundir a eficácia da sentença na ação de anulação por fraude contra credores (constitutiva negativa) e a eficácia da decisão declarativa de ineficácia da alienação em fraude de execução, para a qual basta a citação do terceiro, a fim de se prosseguir na execução (Antonio de Sousa de Macedo, Dicisiones Supremi .Senatus Iustitiae Lusítaniae,189: “...de iure nostri Regni per Ordinationes supra allegatas, si novus possessor, quando possessionem adeptus est, scivit vel scire debuit litem agi, privabitur sine ulIa mora, aut citatione: si autem nec scivit, nec scire debuit, citabitur, et de iure suo audietur summarle, cognita veritate absque alio processu’; Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, 111, 297), se da execução não tinha, por outro modo, ciência, nem devia ter. Se se crê com direito, tem de vir com os embargos de terceiro. Os atos jurídicos podem ser parcialmente atingidos pela decretação da anulação por fraude contra credores, se há separabilidade. 2. Destino do valor restituído. Anulados os atos fraudulentos, a vantagem resultante reverte em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores. Tentou-se tirar da L. 10, §§ 6-8, D., quae in fraudem creditorum facta sunt ut restituantur, 42, 8. que a sentença somente aproveitaria aos credores prejudicados, àqueles a quem o eventus damni atingiu (e. g., Laspeyres, Uber Anfechtung von Zahlungen mit der actio pau bana, Archiv fOr die civilistische Praxis, 21, 43; Emil Meis cheider, Die preussiche Gesezetzgebung Ober das Anfechtungsrecht der Glaubiqer, 89; Th. Reinhart, Die Anfechtungsklage wegen Verkúrzung der Glàubiger, 132 5.; H. Hasenbalg, Zur Lehre von der actio pauliana, 47 s.). O dano pode somente ter sido a um e em verdade somente poderia ter sido aos credores anteriores. Ulpiano não disse que só aproveitaria aos prejudicados, nem sequer, só aos anteriores. Lembre-nos que o curator bonorum agia no interesse da massa, e o próprio credor legitimado agia com o fim de proteger a massa, razão por que não se “revogava” somente até onde fosse o prejuízo a ele, mas todo o suporte fático caía (cf. L. 10, § 22) e o réu não se liberava solvendo a dívida ao autor (L. 10, § 8). Se só um fora prejudicado e esse recebe a divida, claro é que o eventus damni desaparece; se, porém, há prejuízo a outros e um dos credores vai a juízo, o réu, que lhe pague a dívida, não consegue com isso eliminar a ação. Ulpiano diz, firmemente, que não. O que é certo é que, para nascer a ação de anulação, é preciso ter havido diminuição do patrimônio, tal que, prejudique credores anteriores; mas a eficácia sentencial aproveita a todos, anteriores ou não, que se admitem ao concurso de credores. 3. Frutos. No direito romano clássico, a restituição dos frutos era integral, tratando-se da restitutio in integrum (L. 10, §§ 20 e 21, que somente a ela se referiam; dai a contradição dos textos da L 10, §§ 20 e 21, e ). Tratando-se do interdictum fraudatorium, regia o principio da L. 3, D., de vi et de vi armata, 43, 16: “ln interdicts exinde ratio habetur fructuum, ex quo edita sunt, non retro”, com a alteração da L. 25, §§ 4 e 6, 42, 8, isto é, restituem-se os frutos percebidos e os maduros ao tempo da alienação. No direito justinianeu, não importava se o terceiro tinha a coisa em seu poder, no momento da contestatio litis; se não podia restituir, prestava o (cl quod (nterest, estabelecido previamente, com o juramento do autor (L. 5, § 1, D., si quid in fraudem patroni factum sit, 38, 5, sobre a actio Fabiana). No direito justinianeu, restituia o conscius fraudis os frutos: também as despesas posteriores ao juízo, salvo o ius toilendi que tivesse o possuidor de má-fé (P. Grútzmann, Das Anfechtungsrecht der benachteiligten Konkursgláubiger, 91). O réu não-ciente da fraude restituia aquilo com que se houvesse enriquecido (L. 6, § 1,

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e L. 10, § 5), ao tempo da propositura da ação (sem razão, O. Schãnemann, Die Paulianische Niage 38, que pensou em restituir-se o com que se enriqueceu ao tempo do ato jurídico fraudulento). No direito brasileiro, a restituição dos frutos é nos termos da regra jurídica sobre restituição ao estado anterior, e, sem qualquer invocação das regras jurídicas peculiares à proteção da posse, o réu tem o ius tollendi se o teria o possuidor de má-fé. 4.Danos ao réu. Na anulatória, o credor réu pode sofrer danos devido ao ato do fraudador. Se estava de má-fé, o direito brasileiro não lhe reconhece qualquer ação contra o devedor; mas há a regra jurídica sobre a restituição ao estado anterior. Sem lei, não se poderia criar a favor do credor de má-fé direito de regresso (sem razão, A. Crouber, De l’action paulienne en droit civil français contemporain, 428; Antonio Butera, Dell’Azione Pauliana o Revocatoria, 659; Radouant, em Planiol-Ripert-Esmein, Traité pratique de Droit civil français, VII, II, 268, ainda ao lado da garantia por evicção); nem seria admissível pensar-se em ação de evicção, considerada terceiro a massa (A. Maierini, Delia Revoca degli atti fraudolenti, 416 5.; Antonio Cicu, L’Obbligazione nel patrimonio dei debitore, 79); nem a ação de evicção ou a de enriquecimento injustificado (Radouant, VII, II, 268), dois absurdos; nem há eficácia executiva imediata da sentença de anulação. A má-fé do adquirente não exclui a ação de restituição ao estado anterior. § 214. Eficácia da sentença na ação revocatória falencial1.Força constitutiva negativa. A força da sentença constitutiva negativa, na ação de revogação, é só no plano da eficácia; não atinge o ser do ato jurídico. Daí dizer-se que é só entre as partes, devedor e adquirente, réus, e credor, autor. O bem volta, não ao devedor propriamente, mas à massa falencial; fica ao credor réu o crédito contra o devedor réu. Se houve apenas assunção de divida, nada precisa voltar, porque tudo se passa em abstrato: o devedor continua a dever, mas o crédito do credor réu não pode figurar entre aqueles que vão ser satisfeitos com os bens da massa. Dá-se o mesmo em relação a subadquirentes e sub-beneficiados atingidos pela sentença, por terem sido réus ou por terem adquirido ou recebido benefício após a publicidade registária da citação, ou da sentença, ou após alguma medida cautelar. A revogação dos atos do falido apenas torna ineficaz os atos; não os anula: os atos são válidos e válidos permanecem, salvo posterior anulação segundo os princípios das anulabilidades. Na anulação, atinge-se o ato jurídico mesmo. Na revogação falencial, o que se tem por fito é pôr-se à disposição do síndico o de que se dispôs. Basta, portanto, por ela atacar-se a eficacia. Embargos de terceiro não têm os credores concursais ou falenciais, com alegação de fraude contra credores. Antes do concurso, sim: ou se não foram admitidos, sem coisa julgada que negue a existência dos seus créditos, ou os desconstitua. Não implica isso não poderem alegar ineficácia relativa, ainda se com cursais ou falenciais. O credor que invoca regra jurídica falencial sobre ineficácia relativa é terceiro e como tal pode embargar. (A propósito da ação de anulação, disciplinada em Código Civil, e ação revocatória, de que trate lei falencial, cumpre advertir-se em que alguns escritores caem em graves confusões. Uns, de lei falencial à mão, criticam a lei civil; outros, agarrados ao mirante civilistico, parecem impermeáveis aos conceitos da lei especial. Trajano de Miranda Valverde, Comentários á Lei de Falências, 1, 371 s., escreveu que os efeitos da anulação do ato por fraude não abrangem senão as próprias partes e os terceiros que hajam procedido de má-fé, subsistindo, assim, o ato e, portanto, os direitos que os terceiros de boa-fé tenham adquirido com fundamento nele. E acrescentou: vê-se, pois, que a ação revocatória — a do Código Civil — não é ação de anulação. Para isso, citou o art. 109 do Código Civil de 1916, que absolutamente não no diz. No art. 109 apenas se formulou regra jurídica sobre legitimação passiva, na ação de fraude contra credores. A ação é ação de anulação: a sentença tem eficácia constitutiva negativa no tocante à existência do ato jurídico; era anulável o ato jurídico, foi anulado e passa a não existir. Muito diferente é o que se dá quanto à ação revocatória, que retira algo ao suporte fático do ato jurídico, para que o efeito ou os efeitos não sejam ofensivos à esfera jurídica dos legitimados ativos e mais pessoas beneficiadas pela lei especial. Confundir-se ação de anulação com ação revocatória é pretender-se interpretar o Código Civil com a lei falencial, iex speciaiis, e — o que é mais grave — recorrer-se a teoria definitivamente repelida pela ciência, qual a das anulabilidades relativas.)

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2. Eficácia executiva mediata. A sentença, na ação revocatória, tem eficácia mediata que basta para se iniciar a execução. Gera, portanto, actio iudicati, tal como a ação anulatória. De iure condendo, poder-se-ia pensar em eficácia executiva imediata; mas, evidentemente, não há isso na lei, nem quanto à ação anulatória, nem quanto à revocatória. A carga de eficácia executiva é 3, e não 4. O síndico ou o credor vencedor na ação revocatória não leva à massa outro crédito contra o devedor (sem razão, Antonio Cicu, L’Obb)igazione nei patrimonio dei debitore, 56 e Luigi Cosattini, La Revoca degli otti fraudolen ti, 250). Apenas se apagam os efeitos contra a massa, permitindo-se a execução falencial. Para isso, não se precisa recorrer à figura — inexistente, nos sistemas jurídicos — da anulação relativa. Se o ato jurídico só em parte foi gratuito, a unitariedade do ato jurídico não é óbice à ineficácia relativa, e não cabe, a propósito da ação revocatória, levantar-se a questão da anulabilidade parcial em sentido quantitativo, que se põe — e pusemos — a respeito da ação anulatória. § 215. Eficácia da revogação 1.Espécies. A revogação pode ter efeitos ex tunc ou ex nunc, conforme a natureza do contrato e da prestação (Ismar Littmann, Das gesetzlíche Ràcktrittsrecht vom Verti-age nach dem BGB., 19; cp. Erwin Trappenberg, Die rechtliche Bedeutung der Kúndigung, 11). Quem revoga poderes outorgados, que já foram em parte exercidos, somente revoga ex nunc. A revogação opera-se por ato do mundo fático, que é a retirada da vox, e dentro do tempo presente, se houve a prestação e era duradoura. Então, não atinge o passado. E o que acontece á revogação de poderes do mandatário e à própria revogação da doação, no que concerne ao uso do bem doado, que se há de restituir. Quanto à propriedade do bem doado, a eficácia da revogação da doação é ex tunc, porém, não contra direitos de terceiros. Se A revoga a doação feita a B, que vendera o bem doado a C, a revogação não basta para se ir contra C. A eficácia da revogação falencial é especialíssima, porque não desfaz o negócio jurídico, apenas lhe retira eficácia em relação aos credores concursais. Não significa isso que não fira a vox (retirada parcial). A revogação da doação não extingue dívida, porque se trata de contrato real. O bem doado volta ao doador. A ação revocatória falencial oferece a extraordinária particularidade de ser subtrativa de parte de elemento, da vox, que não deixa desfazer-se o negócio jurídico. Não se assemelha à ação de nulidade, nem à de anulação, nem à de rescisão. Devido à lateralidade da fraus, satisfaz-se o Estado em tutelar os credores do falido com essa medida de eficácia relativa, obtida em ação constitutiva negativa. Daí a importância enorme da diferença entre a ação declarativa da ineficácia relativa e a ação revocatória falencial. Mais ainda entre as ações revocatórias falenciais e as ações de anulação, inclusive por fraude contra credores. Naquelas, não se desconstitui existência; só se desconstitui eficácia. 2.Eficácia relativa resultante de revogação. A ineficácia relativa quanto a uma ou algumas pessoas pode derivar, diretamente, da lei, dizendo-se, então, ineficácia relativa ex lege, ou resultar de algum ato jurídico, inclusive sentença proferida em ação de revogação. Enquanto a sentença, na ação de revogação por ingratidão do donatário, é de eficácia absoluta contra o réu na ação, ou contra os réus na ação, a sentença que defere o pedido de revogação falencial do ato juridico do devedor em fraude dos credores somente irradia eficácia relativa, tornando ineficaz, relativamente à massa, o ato jurídico do devedor, relativamente revogado. Pensou-se na existência de decretação de invalidades subjetivamente relativas, porém foi rechaçado tal conceito, por se não poder admitir que o ato juridico passasse a ser nada, continuando de ser. Muito diferente é o que se passa com as revogações. Nada têm elas com a validade do ato jurídico. O ato existe; e pode valer. Apenas a lei permite que o figurante do ato jurídico ou outrem (e. g., o síndico ou o credor, em caso de fraude contra credores), retire a voz, ou altere a voz, de modo que se esbarronde todo o ato jurídico, pela insuficiência do suporte fático, ou somente elemento do suporte fático se altere, com repercussão no plano da eficácia. Quando o credor pede que se decrete a revogação do ato jurídico do devedor, o seu pedido é de subtração do que, na manifestação de vontade do devedor, seria prejudicial aos credores. Tal alteração da voz elemento volitivo do suporte fático, importa que o ato jurídico se altere, de modo a não ter eficácia quanto à massa. Aí, a ineficácia relativa resulta da eficácia sentencial que assentou estar desconstituído, em virtude de revogação, o que, no ato jurídico do devedor, iria contra os credores. Na realidade, apenas ocorre alteração do suporte fático, que se

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reflete no mundo jurídico. A ação executiva, que nasce da sentença, em virtude da eficácia mediata executiva (3), exerce-se contra o devedor e contra o credor réu na ação constitutiva negativa e demais réus eventuais. Disse-se que a ação executiva vai apenas contra o devedor. Sem razão; o bem pode ainda estar em mãos dos outros réus, talvez mesmo em mãos de subadquirentes posteriores à citação registrada ou à sentença. O argumento, aliás, falso, de que o juízo da anulação não precisa de ação executiva (Antonio Cicu, Appunti in tema di revocatoria, Rivisto di Diritto commerciale, li, 132; Luigi Cosattini, La Revoca degli atti Jraudolen ti, 253), é impertinente: réus são todos; e a execução imediata teria de ir contra todos. Trata-se de ações pessoais. O terceiro, que adquiriu a propriedade segundo constava do registro, se de má-fé estava quanto à fraude contra credores, pode ser réu na ação e ir contra ele a ação ludica ti; mas isso não quer dizer que se faça tábua rasa da regra jurídica sobre aquisição pelo registro do titulo de propriedade imobiliária: o terceiro que adquiriu ao fraudador está exposto; não quem adquiriu desse terceiro. E preciso que se raciocine com o direito das nulidades, anulabilidades e revogabilidades sem se ferirem os princípios do direito das coisas. Os subadquirentes estão expostos à ação pessoal; não à reivindicação (certo, porém com raciocínio inexato, Martinho Garcez, Nulidades dos Atos Jurídicos, 1, 233 s., nota 206). 3.Ressarcimento eventual do dano. Se o réu não pode restituir em natura, indeniza. Não porque o fundamento da ação de revogação seja o ato ilícito absoluto (delito), ou por infração de dever contratual, ou por enriquecimento injustificado, mas sim porque se cogita, tão-só, de substituir a execução em natura. 4.Coisa julgada. A questão de poder, ou não, ser oposta a exceção de coisa julgada, se à ação de anulação precedeu a ação falencial de revogação, ou a de anulação em concurso de credores, resolve-se diferentemente para essa e para aquela: a) se houve sentença, que julgou improcedente a ação revocatória falencial por fraude contra credores, a eficácia é só entre os credores admitidos, ou citados, e aquele contra o qual se propôs a revo-catória, e tem-se de verificar se o fundamento da revogação pedida e não obtida foi o mesmo da ação de anulação (na Lei falencial exige-se, a mais, o consilium frouds, que não se exige à anulatória, ainda concursal), mas, se a sentença foi favorável ao autor, não se dá o mesmo, porque pode haver interesse em se pedir a anulação, que é mais do que a eficácia da revogação (ineficácia relativa); b) se houve sentença, que julgou improcedente a ação anulatória concursal, há coisa julgada, se o fundamento é o mesmo, mas, se foi julgada procedente, nada mais há a pedir-se. A anulabilidade de negócios juridicos do devedor insolvente notoriamente, ou com ciência do outro figurante, segundo o direito comum, supõe a insolvência do devedor, a anterioridade do crédito, o eventus dornni e a scientia froudis. Prova-se a scientia fraudis com a notoriedade ou com os outros meios probatórios. Se não há a notoriedade, há de ser alegado e provado o conhecimento da insolvencia por parte do credor (1ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 1948, BJ 37/230). A revogação falencial exige, a mais, o pressuposto do consilium fraudis. de modo que a coisa julgada não obsta à anulação. 5. Registro e cancelamento. Ainda em se tratando de ação revocatória falencial, não se pode falar de pretensão real do credor — há, apenas, ação executiva a ser proposta, ou, se acaso a posse está com o devedor, ou com a massa, o que seja de mister para a eficácia da atribuição da propriedade aos credores. Se foi pedido o cancelamento do registro, a sentença pode deferi-lo, enchendo-se de carga de eficácia mandamental, à custa da carga condenatória. Se a coisa certa, objeto da atribuição, não mais existe no patrimônio do adquirente ou beneficiado, ou de outro réu na ação, liquidam-se o valor da coisa e as perdas e danos; se a coisa foi alienada depois de se haver tornado litigiosa, pode dar-se apreensão, ouvido o terceiro, se o exequiente não preferir a execução com liquidação do valor da coisa e das perdas e danos. Não se tem de aludir ao enriquecimento, resquicio, nas leis alemã (Konkursordnung, § 38) e austríaca (§ 41), de teorias que fundavam a ação pauliana no enriquecimento iniustificado. Aliás, na ação revocatária, só se executa pelo valor do eventus damni, se bem que, na anulação, se haja de observar a regra jurídica sobre a restituição ao estado anterior quanto a todo o ato jurídico, ou no que foi atingido, se possível a separação. Na revocatória, o adquirente tem pretensão a que se lhe preste o que restar, satisfeita a massa, ou a que só se lhe exija o que for de mister a cobrir o valor do eventus damni, se tal restituição quantitativamente parcial for possível. E matéria para embargos do devedor.

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Se o crédito do adquirente foi garantido por outrem, a revogação, operando ex tunc, tem por efeito a permanência da garantia, pois a dívida não foi paga. Aliter, se trata de anulação. Há, porém, a permanência da fiança se a nulidade ou a anulação resultou de incapacidade do devedor.

Capítulo IX

Ação revocatória falencial § 216. Conceito e natureza 1.Dados históricos. A denegatio actionis ob fraudem constou de edicto a que se referiu Ulpiano (L. 25, D., de rebus auctoritate tudicis possidendis seu vendundis, 42, 5). Na L. 9, § 5, D., de iureiurando sive voluntario sive necessario sive ludicioli, 12, 2, havia a exceptio froudatorum, a favor do bonorum ernptor contra os débitos fraudulentamente assumidos pelo devedor insolvente. Do Digesto, além do mencionado edicto, havia dois outros (L. 1, pr., e L. 10, pr., D., qune in fraudem creditorum facto sunt ut restituantur, 42, 8). 2. Conceito e pressupostos. A ação revocatória falencial é ação constitutiva negativa, pela qual o síndico, ou algum credor falencial, se não a propôs, antes da decretação da falência, o sindico, no prazo legal, revoga o ato fraudulento do devedor e do terceiro, se houve intenção de prejudicar credores. Em verdade, o ato é atacado em seus efeitos, que eram os efeitos regulares. Com a ação, retira-se a vox, que constituiu o negócio jurídico, devido a ter havido intenção de prejudicar credores. Em vez de se declarar ineficácia relativa, eliminam-se efeitos prejudiciais aos credores. Há desconstituição. que pode ser parcial, se só em parte o ato prejudica os credores. Esse é um dos pontos que merecem maior atenção: retira-se a vox, no que ela seria prejudicial, lesiva, aos interesses da massa falida. A ação revocatória pode ser dirigida à desconstituição de qualquer ato jurídico pelo qual se haja retirado ao patrimônio do devedor valor que passou ao patrimônio de outrem. Em primeira plana vêm os negócios jurídicos, como vendas e compras, trocas, assunções de dívidas, remissões de dívidas, gravames, afíançamen-tos, pré-contratos de alienação. Depois, atos jurídicos processuais, como renúncias. desistências, inclusive as de recursos (Leo Rosenberg, Lehrbuch des deu tschen Zivilprozessrechts. 5ª ed., 860). Atos jurídicos “stricto sensu , como quitação, comunicação de vontade e restituição de penhor, podem ser revogados falencialmente. Bem assim, atos-fatos jurídicos, como tradição de posse, abandono de posse, abandono da propriedade imo-biliária e pagamento. A recusa a oferta de contrato não é revogável. De regra, é de revogar-se todo o ato jurídico. Todavia, se há parte, ou partes, independentes das outras, pode ser pedida a revogação parcial. Não assim, se só em conjunto pode ser atingida a finalidade do ato jurídico. Nada obsta a que só se peça a revogação do adimplemento, como do acordo de transmissão ou de constituição de direito real. As revogações podem ser de atos juridicos válidos ou de atos jurídicos inválidos. Se o juiz pode, de ofício, decretar a nulidade, primeiro há de fazê-lo, de jeito que fica prejudicado o pedido de revogação. Apontou Ernst Jaeger (Rommentar zur Konkursordnunq,6ª,7ª eds,, nota 25 ao § 29) o caso de se pedir a revogação do

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requerimento de registro de transmissão da propriedade imobiliária, se nulo ou anulável o acordo de trans-missão. A revogação falencial é somente quanto à eficácia. Os atos, a que se refere, são eficazes, à diferença daqueles que ex lege são ineficazes. A retirada da vox pelo síndico, ou pelo credor, é para que não tenham eficácia, quanto à massa falida, tais atos, supõe-se a má-fé de ambos os figurantes, o outorgante, devedor, comum, e o outorgado, terceiro. A lei adota os termos “revocatórios” e “revogação”, para evitar a importação de erronia, que temos exprobrado: “nulidade relativa”. Evita a alusão a’ “relatividade” de efeitos, ou a’”nãoprodução” de efeitos no tocante à massa, porque em verdade o que se pretende, com a ação revocatória falencial, é desconstituir efeitos. A desconstituição não é total, é parcial; só se desconstituem efeitos dos atos, em relação á massa, aos credores. A ineficácia relativa sobrevém, não é desde o inicio, desde a prática do ato, como se daria se a ação proposta tivesse sido a ação (declarativa) de ineficácia relativa. A sentença corta efeitos, mas só os corta, no que eles se dirigem contra a massa ou atingem a massa. Depois do trânsito em julgado da sentença revocatôria, tudo é como teria sido se a espécie tivesse sido uma das espécies por lei ineficazes. Mas ficou atrás o caminho percorrido, que foi o caminho que se teve de seguir para se chegar a poder cortar a eficácia do ato. Não se podem prever todas as espécies em que sói ocorrer a revogação. Daí ter-separado da ação revocatória a ação de restituição ou de indenização. O problema do fundamento da revocatio, em se tratando de falência, tem de ser versado à parte do que se discute a respeito da actio pouliono e da ação de anulação. A alusão àfraus mostra que se atendeu à circunstância de haver ofensa aos credores, ofensa que de certo modo se podia prever ocorresse. Mas foi evidente o erro de Giuseppe Giacomo Auletta (Revocotona civile e falimentore, 83 s., 111) em reduzir a sentença declarativa a que se profere na ação revocatória. Quem revoga retira a voz, não declara. Outro erro foi o de James Goldschmidt (Zivilprozessrecht, § 90) em sustentar (e tal concepção já se apresentara ao Tribunal Superior da Prússia, a 12 de janeiro de 1874) que apenas se há de pensar em manifestação da pretensão executiva do credor. Absurda a concepção de Alfredo Rocco (II Fallimento, 84; cf. Walter D’Avanzo, La Surroqatoria, 32 s., que lhe segue os passos) que assimilava o direito à revogação ao direito real — fantasia que Mário Guimarães de Sousa (Teoria Geral do Arrematação, 28) e Rodolfo Araújo (A Dogmática da Revocatório e a Ineficácia da Hipoteca na Falência, 37 s.) refugaram, com brilho e energicamente. Já profligamos considerar-se existente ligação do devedor aos credores, quanto ao patrimônio (o que, por influência francesa, lamentavelmente entrou no Código Civil italiano, no art. 2.740 e antes já havia entrado; cp. Tratado de Direito Privado, Tomo XXVII, § 3.206, 3). Tem-se, portanto, de afastar a suposição de violação de dever do devedor no tocante a garantia, o que aventurou Antonio Cicu (Appunti in tema di revocatoria, Rivista del Diritto commerciale, 1934, II, 125 5.; em E. Cuzzeri, Dei Fallimento, 5ª ed., 216 e 228). Variantes de tal opinião são as de Luígi Cosattini (La Revoca degli otti fraudolenti, 35 s. e 76 s.), e de Francesco Carnelutti (Sistema, 1, 837, 846 s., 850 s.). Tampouco caberia pensar-se em ação ligada ao abuso do direito, ato ilícito (e. g., Pedro Batista Martins, O Abuso do direito e o ato ilícito, 65 s.). Haveria confusão entre direito e poder. A teoria da nulidade, que medrou na doutrina francesa e na italiana, sobre obsoleta, é falsa. Pode ocorrer — e não raro ocorre — que, ao caracterizar-se a crise do devedor, procure ele desviar algo do patrimônio para si, ou para a familia, ou satisfazer a credores mais afeiçoados, ou a quem reconheça dever maiores obséquios ou atenções. Ainda quando há razões morais para isso, os seus atos põem em xeque o principio da par condicio creditorum. O exame de tais possibilidades ou situações, tornadas freqúentes, sugeriu ao Estado, que prometeu aos credores, sem predileções, digamos — serenamente, a tutela jurídica e medidas contra esses atos. Já falamos delas, anteriormente, e frisamos que as sanções da actio pauliana, e as das outras ações, até se chegar à revocatória falencial, foram materializações (= transplantações ao direito material) das medidas originariamente pré-processuais, adotadas por ocasião de ter o Estado de atender às pretensões à tutela juridica, exercidas pelos credores. A ação revocatória falencial dirige-se contra o receptor da prestação a respeito da qual se pede a retirada da vox

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do devedor, ou seu sucessor. Porém, não se pode negar a posição passiva do devedor. Também ele há de ser citado. a) Tem-se procurado assimilar a ação revocatória à ação de ineficácia relativa, a ponto de se querer que não haja constitutividade negativa na decisão que acolhe o pedido de revogação. Tratar-se-ia de pretensão à restituição, com a questão prévia da afirmação de ineficácia. Primeiramente, o nome seria de impropriedade irritante. Não se revoga declarando-se. Declara-se, por vezes, para se revogar. Mas quem revoga retira vox: portanto, desconstitui. Em verdade, porém, o nome não foi impróprio. A alusão, que nele há, à vox do devedor, tem o mérito de revelar o pensamento que esteve à base da concepção da ação revocatória falencial: o devedor deveria ter procedido de jeito que não lesasse os credores, inclusive de jeito que não ferisse a incidência futura do princípio da por condicio creditorum. O bem, a cuja restituição se procede, ainda pertencia ao falido, se a sentença foi proferida em ação de ineficácia relativa. Se proferida na ação revocatória falencial, não: pertenceu ao terceiro e, por eficácia ex tunc da sentença, deixou de pertencer, em toda o eficácia, como se a ele nunca tivesse pertencido. Infelizmente, na doutrina estrangeira, não se chegou a essas precisões, que só se alcançam após minuciosa investigação dos fins da ação e da eficácia da sentença. Como se a ele nunca tivesse pertencido, dissemos. Nunca tivesse pertencido, em todo a eficácia. O bem não deixa totalmente de pertencer ao terceiro. Mas o círculo de eficácia perde setor que corresponde à massa, aos credores concursais. b)As diferenças entre a ação de anulação por fraude contra credores e a ação de revogação consistem em que: a) o ato jurídico anulável é ato jurídico eficaz e se desconstitui em seu ser, donde ficar também, e em consequência, desconstituído em seus efeitos, ao passo que o ato jurídico revogável é eficaz, continua de existir, e só é desconstituido nos efeitos relativos à massa falida; b) a desconstituição do ato anulável é somente por ter havido defeito no ato juridico ao tempo em que se praticou, enquanto a desconstituição do efeito do ato jurídico revogável supõe o defeito àquele tempo, mais a superveniência da decretação da abertura da falência; c) o ato jurídico, após a anulação por fraude contra credores, desaparece, totalmente, do mundo jurídico, após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, ao passo que, trânsita em julgado a sentença favorável ao autor, proferida na ação revocatória, continua eficaz entre o demandado e o devedor. Ali, deixou de ser, totalmente; aqui, nem deixou de ser, nem de ser eficaz entre o devedor e o terceiro. O pedido, na ação revocatória falencial, é de restituição, em virtude da desconstituição, ex tunc, da eficácia em relação à massa. Visto do lado do devedor falido, o ato jurídico revogado existe e é eficaz; visto do lado da massa, existe, mas sem eficácia contra ela. O dever de restituição não é dever de indenização de danos. Tampouco é dever de prestar o enriquecimento injustificado. Na ação de ineficácia relativa, restitui-se o alheio, o que não está no patrimônio do terceiro com observãncia dos princípios de proteção aos credores se sobrevém decretação de abertura da falência do devedor comum. A respeito da pretensão à tutela jurídica, convém lembrar que se tem procurado encontrar, à base de qualquer das suas espécies, a ofensa, a violação. Ora, não se tutela só o ofendido, o violado, ainda quando se dilate, como alguns fizeram, impodentemente, o conceito de violação. Nem é preciso que haja aquela diminuição do gozo do direito, aquele choque no direito, a que se referiu Heinrích Degenkolb (Einlossungzwang und Ur-teilsnorm, 65 s.). A necessidade da tutela jurídica pode existir por si, sem ter havido ofensa, mesmo futura. Os sistemas jurídicos não concebem os direitos apenas como de obrigação pessoal, ou real, que tenha de ser cumprida por alguém. Há os direitos expectativos; há os direitos formativos, geradores, modificativos e extintivos: há a necessidade de atos que estabeleçam publicidade, ou eficácia perante alguém, ou todos; há a necessidade de proteção no presente e no futuro, ou só no presente, ou só no futuro. Daí não se tire que tais direitos são sem sujeito passivo. É preciso que se afastem, na conceituação da ação revocatória falencial: a) qualquer alusão a nulidade ou

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anulabilidade; b) toda ligação a reparações pelo ato ilícito, ou pelo ato-fato ilícito, ou pelo fato ilícito (apesar de se referir o animus nocendi, como pressuposto), pois o conhecimento do dano, a conscien tia fraudis, ai não tem a classe do ilícito; c) toda explicação pela retrodatação da perda do poder de dispor, com o que se pretendeu constituir falência fática, que o sistema jurídico brasileiro não tem (certo, Rodolfo Araújo, A Dogmático da Revacotária e a Ineficácia da Hipoteca na Falência, 68); d) a assimilação da ação revocatória falencial à ação declarativa da ineficácia relativa por fraude à execução e à ação (declarativa) de ineficácia relativa; e) a concepção do dever de restituir, que tem o terceiro, como dever pessoal, de modo que estivesse obrigado a isso (o terceiro restitui porque se desconstituíram efeitos, e ele, que estava com o que era seu, deixou de estar com o que seria seu = está com o que é alheio). 3.Intenção de prejudicar credores. O sistema jurídico brasileiro tem a ação declarativo de ineficácia relativa e a ação revocatória falencial. A ação revocatória, essa, é baseada na intenção lesiva do devedor, ou do devedor e do terceiro. Donde o problema: em todos os casos, é de mister que tenha havido intenção prejudicante do devedor e do terceiro? A resposta poderia parecer difícil, mas há longa tradição na inteligência da regra jurídica: é de exigir-se o consilium fraudis, se oneroso o negócio jurídico; só intenção do devedor, se gratuito. O contraente, que é devedor, há de estar de má intenção, em qualquer espécie; o outro, não, se só lucro lhe adveio: o donatário, por exemplo, se a ação se dirige contra ele, certo de lucro captando; o doador dispôs, gratuitamente, estando insolvente, ou em vésperas disso; os credores propõem a ação, para evitar o dano (certant de damno vitando). Para se resolver o problema, de modo nenhum se há de invocar a regra jurídica relativa a atos jurídicos a título gratuito, praticados no tempo fixado em lei, anterior à decretação da abertura da falência, porque aí a regra jurídica só diz respeito à ineficácia relativa (sem razão, Trajano de Miranda Valverde, Comentários á Lei de Falências, 1, 357). Se o ato é lesivo aos credores e o devedor sabe que o e, intenção de prejudicar houve, da parte dele. Se o negócio jurídico é gratuito, ou se trata de adimplemento de dívida oriunda de negócio jurídico gratuito, basta isso. Se o negócio jurídico é oneroso, ou se está em causa adimplemento oriundo de negócio jurídico oneroso, é preciso que haja a ciência pelo devedor e pelo terceiro. Convém evitar-se o erro dos que confundem as anulabilidades e as revogabilidades. A ação de anulação por incapacidade, violência, dolo, ou erro, não cabe, de modo nenhum, na espécie que se acha na regra jurídica sobre ação revocatória falencial, que somente concerne à ineficacízação relativa por fraude contra credores, combinados devedor e terceiro, animus nocendi, portanto, por parte dos dois figurantes: algo que é plus em relação à ação de anulação por fraude contra credores. Nem se hão de confundir os pressupostos da ação de revogação falencial com os pressupostos da ação contra os credores concursais e com os da ação de impugnação falencial de créditos, que é mais limitada. 4. Restituição. A ação de restituição está cumulada, mas há só cumulação sucessiva, porque se tem, primeiro, de desconstituir, para depois se deferir a restituição. Os bens devem ser restituidos à massa em espécie, com todos os acessórios, e, não sendo possível, dar-se-á a indenização. A massa restitui o que foi prestado pelo contraente, salvo se do contrato ou ato não auferiu vantagem, caso em que o contraente é admitido como credor quirografário. No caso de restituição, o credor reassume o anterior estado de direito e participa dos rateios, se quirografário. O ato de assentimento do credor que teria a ação revocatória não é ratificação, e sim renúncia: renuncia-se à ação, não se ratifica (Tratado de Direito Privado, Tomo 111, § 344, 4). O terceiro, inclusive sucessor entre vivos, há de ter recebido algo em seu patrimônio, mesmo que seja por diminuição do seu passivo. No caso de sucessão a causa de morte, a aceitação da herança ou do legado estabelece a legitimação passiva, e há de ser restituido o que saíra do patrimônio do devedor falido, ou de cuja herança se abriu a falência, e entrara no patrimônio do terceiro falecido. Não se apura se houve ou se há enriquecimento do terceiro. O terceiro que estipulara que os pagamentos fossem por depósito em banco e esse entrara em liquidação coativa, restitui o que fora depositado, e não só a

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quota que lhe coube na liquidação coativa do banco. Idem, o que comprara gado e a inundação afogou. Se o devedor doara, o terceiro aceitara e perdeu-se ou destruiu-se após a conclusão do negócio jurídico real, o objeto doado, o terceiro tem de restituir, com o equivalente em dinheiro. É preciso que, no exame dos casos, não se raciocine com os princípios da repetição por enriquecimento injustificado. A denúncia de contrato de locação, por parte do devedor, ordinariamente não é ato jurídico revocável. Mas pode acontecer que tenha havido negócio jurídico subjacente, pelo qual se haja atribuído valor ao terceiro, como se a nocência consistiu em permitir-se contrato melhor ao terceiro, ou se, com algum ato jurídico do devedor, locatário, se extinguira a pretensão à renovação do contrato. § 217. Legitimação ativa 1. Síndico. O síndico tem de promover a ação revocatório falencial dentro do prazo legal de trinta dias, contado do dia seguinte àquele em que se fez a publicação do aviso, no orgão oficial, de que se iria iniciar a realização do ativo e a liquidação do passivo. Se não o faz, é legitimado qualquer credor. Primeiramente, observe-se que a permissão a qualquer credor tem sido atacada, de Iege ferenda, pelos que entendem que somente o síndico devia ser legitimado a propor uma ou outra ação, ou que temem o grande número de ações propostas, uma vez que todos os credores podem propor uma ou mais. Ora, a lei apenas remedia a falta do síndico. 2. Credor. Ao credor só é dado propor a ação declarativa de ineficácia, se é o caso, ou a revocatória; de modo que já se julgou, necessariamente, a admissão dos credores declarantes, entre os quais ele há de estar. Resta saber-se o credor retardatário, que propõe a ação concernente ao seu crédito, pode propor a ação declarativa de ineficácia e a revocatória. A resposta é afirmativa, por haver interesse no rateio, se o há. A situação dele não é a dos credores declarantes e admitidos, que têm por si o fato de velarem pelo interesse público e dos outros credores. Há a necessidade da tutela jurídica por parte de quaisquer credores. Todavia, é preciso que o credor retardatário peça reserva. Esse pedido é como manifestação do seu interesse. Desde logo, sublinhe-se que se atribui a cada credor declarante poder propor a ação revocatória, mesmo se não tem interesse próprio: basta-lhe o interesse de todos os credores, ou o interesse público. O síndico pode intervir, como assistente, na ação de ineficácia negativa, ou revocatória, que o credor iniciou. Discutiu-se quanto a ser, ou não, pressuposto para a legitimação do credor à ação revocatória falencial o ser anterior ao ato jurídico revogando o crédito da pessoa que, na qualidade de credor, alega a legitimação ativa. Só os credores, que já o eram ao tempo dos negócios jurídicos anuláveis por fraude, podem pleitear-lhes a anulação. No direito falencial, tem-se pretendido que o princípio da anterioridade do crédito não exista, porque, sendo a anulação em proveito da massa, aproveita a créditos posteriores (Gustavo Bonelli, Dei Foilimento, 1, 3ª ed., 857 5.; Antonio Cicu, L’Obbiigazione nel patrimonio dei debitore, 108 e 78). Há evidente confusão entre pressuposto da ação de anulação e eficácia da sentença anulatória: os créditos posteriores não dão aos seus titulares legitimação, se vai ser aberto; se já está aberto o concurso de credores, ou a falência, pelo principio da par condicio creditorum, a todos aproveita. No concurso de credores, é de discutir-se o credor posterior pode alegar a fraude contra outros credores (os anteriores); bem assim, falência. A ação revocatória pode ser proposta pelo síndico, mas, se o não for dentro do prazo legal, também poderá ser proposta por qualquer um dos credores. Tem legitimação para as ações por fraude descoberta, após o prazo legal, o síndico ou qualquer credor admitido. A questão está, portanto, em se saber se o credor por crédito posterior à fraude é legitimado ativo, materialmente, à ação de revogação, decretada a falência. Quanto ao concurso de credores não-falencial, a discussão entre credores pode versar sobre a fraude; de modo que, a respeito dessa ação embutida no processo concursal, a questão é a mesma. Os argumentos a favor da legitimação ativa, de direito material, são o de que a

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defesa ou tutela jurídica individual se transforma, aí, em defesa ou tutela coletiva, e o de que, sendo no interesse da massa a eficácia da ação e, pois, da sentença, na ação revocatória ou na ação de anulação, seria absurdo distinguirem-se credores anteriores e credores posteriores ao ato fraudulento. Alguns põem em relevo, na sustentação, a natureza organica da massa, ou da empresa comercial, ou do patrimônio insolvente. Outros remontam ao direito romano, para se sublinhar ser bastante que um, pelo menos, dos credores participantes da execução seja ofendido pelo ato fraudulento (L. 10, § 6. D., quae in fraudem creditorum facto sunt ut restituantur, 42, 8: “...et si unus creditor sit ex illis, qui fraudati sunt, sive solus tunc fuit sive, cum ceteris satís-factum est, hic solus remansit, probandum esse adhuc actioni fore locum”, texto que se referia ao interdictum e no qual se substituiu “interdicto’ por “actioni” e “revocari substituiu “interdici). Antes da abertura do concurso de credores ou da falência, a ação anulatória ou a ação revocatória somente pode ser proposta pelo titular de crédito anterior ao fato fraudulento. A legitimação ativa do síndico, na falência, é legitimação de direito processual; os credores, por créditos anteriores ou posteriores ao ato fraudulento, somente podem propõ-la em lugar do síndico, se esse não cumpre o seu dever, ou se entende que não houve fraude. No concurso de credores, o titular de crédito anterior ou posterior ao ato fraudulento é legitimado ativo processual porque são os credores, e não cada um deles, que têm a titularidade do direito à anulação — o que merece atenção. No direito falencíal, a substituição processual, que se criou a qualquer credor, foi sugestão das legislações falenciais sueca e portuguesa; e está implícita no sistema jurídico brasileiro. O síndico representa como parte de oficio a massa; os credores, se esgota o prazo preclusivo, ou se ocorrem os pressupostos favoráveis ao credor se descobre causa de anulabilidade ou de outra classificação do crédito ou retificação, substituem, processualmente, o síndico (afastado, radícalmente, que o síndico represente o falido, ou que os credores, nas ações anulatórias revocatárias concursais o representem). A respeito de eficácia sentencial, na ação anulatória ou na revocatória, é de restituição ao patrimônio do devedor, que pode já estar, quanto à ação de anulação do direito comum por fraude contra credores, em concurso, ou necessariamente já está, nas outras espécies. A ação anulatória, no concurso de credores, é entre credores do insolvente, cujos créditos se apresentem ou constem da lista de credores. As ações, no concurso falencial, são entre síndico e credores do falido e entre síndico ou credores do falido e terceiros. De modo que, ali, de maneira nenhuma concernem à ação de anulação contra terceiro, isto é, contra quem foi beneficiado e não é figurante, nem no quer ser, do concurso de credores. Quando o ato fraudulento é anterior a qualquer dos créditos admitidos a concurso, se, de fure condendo, se pode entender que o concurso de credores, ou a falência, os torne anuláveis ou revogáveis, ou, até, que o sejam, no plano do direito civil, antes da abertura do concurso, não é de admitir-se, de fure condito, que o sejam. Mas a dificuldade de se provar a fraude contra credores, anterior a todos os créditos, principalmente a scientf a fraudis, ainda de iure condendo, sugere que se evite inserir nas leis da regra jurídica da classe do art. 2.901, 1), 2a parte, do Código Civil italiano. Para os atos jurídicos anteriores a qualquer crédito, há, no direito falencíal, a ineficácia relativa. Quanto à ação de ineficácia negativa, também seria impertinente exigir-se a anterioridade do crédito. O que está em jogo é o interesse da massa. São de repelir-se, energicamente, os argumentos contrários de J. Percerou (Des Faiflites et Banqueroutes et des Liquidations judiciaires, 2ª ed., 1017) e de Antonio Butera (Deita Frode e delia Sim ulazione, 472). É preciso atender-se, basilarmente: ao principio da par condicio creditorum a que o Estado está na contingência de subordinar a esse princípio a tutela jurídica; a que a tutela jurídica foi prometida, pelo Estado, a todos os credores e ao devedor; e a que o patrimônio, de que se vai extrair o valor para se satisfazer, no possível, a todos os créditos, é um só. O pressuposto da anterioridade do crédito é pré-processual, atinente — portanto — à necessidade da tutela jurídica. Não se trata de pressuposto de direito material (civil e comercial), como pretendia Luigi Cosattini (Lo Revoca degli atti froudolenti, 101 s.) Quando se trata de concurso de credores, ou de massa, mesmo hereditária, exsurge a necessidade da tutela jurídica, mesmo se o crédito não é anterior ao ato revocando. O que aqui dizemos a propósito da pretensão revocatória também se há de entender quanto à pretensão à declaração de ineficácia relativa. A sorte dos credores, diante da massa ativa, é a mesma, sem qualquer atinência a datas da irradiação dos créditos. Há com-sorte de todos os credores. § 218. Pressupostos da ação revocatória falencial

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1. “Animus nocendi”. Se há prejuizo para os credores e isso decorreu de animus nocendi, há a revocatória. Tal animus nocendi, de que resulta o eventus damni, tanto pode provir de fraude contra credores, isto é, de negócio juridico verdadeiro, quanto de negócio juridíco simulado. A ação revocatória ou corresponde à ação de anulação por fraude contra credores, ou à ação de anulação por simulação. Os credores concorrentes são legitimados a ela, na falência, como os credores concorrentes, no concurso de credores civil. Por isso, é possível o pedido alternativo: ou decretar-se a anulação por ser simulado o ato, ou, se não houve simulação, por fraude contra credores. A revocatória falencial tem a mesma aplicação que a alegação de simulação ou de fraude, no direito concursal civil. Basta que haja qualquer diminuição, presente ou futura, do patrimônio, como se, não tendo ocorrido a alienação, valeria mais o restante ou algum bem da massa (e. g., venda de motor indispensável à maquinaria). Eventus domni há sempre que o ato aumentou a gravidade do estado de insolvência, ou o determinou, ou tornou insuperável a crise do comerciante, ou tornou mais difícil a superação. O dano à massa, aos credores concursais ou ao credor concursal, para a ação revocatória falencial, é pressuposto. Quase nunca se exige que se aponte, porque, nos casos mais frequentes, ressalta a relação causal entre o ato jurídico revocando e a diminuição do valor do ativo, ou de retardamento da solução das dividas. O prejuízo pode consistir em terem sido mais completos ou mais rápidos os pagamentos se o ato jurídico não houver ocorrido. Não há prejuízo se o que se acha na massa vale o mesmo ou mais do que o que se retirara, com o ato jurídico revocando, inclusive ato-fato jurídico, do patrimônio do devedor. O terceiro pode alegar que o patrimônio do devedor, a massa falida, basta para satisfação integral de todos os credores concursais. O ônus da prova é seu. 2. Simulação. Também cabe ao credor concorrente a alegação de simulação. A simulação inocente é declarável, se o interessado a pede; da simulação nociva, causa de anulação, é que se cogita no concurso de credores. Cumpre, porém, ter-se em vista que a ação revocatória falencíal pode ir sem ser contra credores que declararam créditos e contra pessoas que não são, sequer, credores. A ação revocatória falencial pode ser inserta em impug-nação, porém se o caso é de crédito declarado. 3. Fraude contra credores. A fraude contra credores nada tem com o instituto da fraude à execução, ou da execução, em que se toma o nome ‘fraude” com o sentido mais próprio, que é o do étimo. Essa não tem por pressuposto o consilium fraudis, o animus nocendi; pode existir sem ele, e a sanção é sempre a mesma: a ineficácia relativa do ato fraudatório da execução. A fraude à execução pode ser alegada pelo credor concorrente, mas essa articulação não é impugnativa de crédito, nada tem com o que se estatui no concurso de credores. Trata-se de alegação do figurante da relação jurídica processual da execução para que se declare a ineficácia relativa do ato em fraude da execução. A argúição dirige-se contra o dono ou possuidor dos bens penhorados. Se havia ação do devedor contra alguém, noutro processo, é o devedor que há de apontar a ineficácia relativa, ou os credores concorrentes, como litisconsortes do devedor, se a ação fora penhorada. 4. Assuntos estranhos. a) A falsidade, tanto pode ser a falsidade como a falsificação, como se o devedor antedatou o titulo, ou se o credor alterou a data, para se furtar à sanção de ineficácia relativa. Falsidade declara-se. O negócio jurídico simulado desconstitui-se, se o concurso de credores é civil, por ação de anulação ou alegação de anulabilidade por simulação, ou por meio de revogação, se aberta a falência. A ação de falsidade é declarativa de inexistência; não é revocatória falencial, nem declarativa de ineficácia relativa.

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b) A exceção de prescrição só é alegável pelo devedor. Terceiros não podem alegar prescrição. Preclusão, sim. Se o devedor não alegou a prescrição, nada mais se pode fazer. Nem ele nem terceiro pode ir contra o factum proprium do devedor. A renúncia à prescrição, com prejuízo de terceiro, essa, sim, é relativamente ineficaz (Tratado de Direito Privado, VI, § 672, 3). Não entra na indagação da intenção; aprecia-se, objetivamente, o prejuízo. A decisão, a respeito, é declarativa da eficácia relativa, porém nada tem com a ação em que se alega, na falência, ineficácia de atos jurídicos do devedor falido. Se houve litígio e preclusão para a oposição da exceção, a sentença trânsita em julgado, tem eficácia completa, e não relativa. E preciso atender-se a que as sentenças, trânsitas em julgado, somente podem ser atacadas pela ação rescisória. A sentença nula não trânsita em julgado. Por outro lado, renunciar à prescrição e deixar de opor a exceção não são o mesmo. O problema da renúncia da prescrição não tem sido versado com rigor científico. Não se trata de negócio jurídico unilateral anulável ou falencialmente revogável pelo credor concorrente, mas sim de negócio jurídico unilateral sem eficácia contra os credores que seriam prejudicados. Se haveria o prejuízo, o juiz — diante do pedido do credor — declara a ineficácia relativa da renúncia. c) Pode dar-se que o crédito que poderia ser impugnado pelo credor concorrente civil, ou revogado pelo credor concorrente falencial, já tenha sido apreciado por sentença desfavorável ao devedor. De inicio, observemos que é absurda a afirmativa de A. A. Lopes da Costa (Direito Processual Civil brasileiro, III, 229) sobre estarem sujeitos a impugnação “todos os títulos, inclusive sentenças”. Temos de focalizar duas espécies: a) a sentença não trânsita em julgado, da qual o terceiro, habilitado em concurso de credores, pode recorrer, ou o síndico, se o concurso é falencial; b) a sentença já trânsita em julgado, contra a qual só se pode ir com a ação rescisória (a sentença nula, contra a qual se poderia ir com a querela nuílitatis, não trânsita em julgado). No Código do Processo Civil francês, art. 474, diz-se que une partie peut former tierce opposition à un jugement qui préjudicie às ses droits, et lors duquel, ni elie ni ceux queile représente n’ont été appelés. Veio isso da Ordenança francesa de abril de 1667, Tít. XXXV, art. 2. Tem-no também o Código de Processo Civil italiano, art. 404, alíneas 1ªe 2ª “Un terzo puó fare opposizione contro la sentenza passata in giudicato o comunque esecutiva pronunciata tra altre persone quando pregiudica 1 suoi dirifti. Gli aventi causa e i creditori di una delle parti possono fare opposizione alia sentenza, quando é l’effetto di dolo o collusione a loro danno Preliminarmente, ponhamo-nos de guarda contra os que não procuraram compreender o sistema jurídico brasileiro. O terceiro interessado pode recorrer, sempre, se quanto a ele não transitou em julgado a decisão. O que interessa saber-se é se, tendo transitado em julgado a sentença e não sendo caso de recurso do terceiro interessado, pode o terceiro — na espécie, de credor concorrente — alegar inexistência da dívida, e. g., por falsidade do título, nulidade, simulação, ou fraude contra credores. A sentença, que transitou em julgado (res iudicata inter partes), ou fosse declarativa, ou condenatória, ou tivesse outra força sentencial, de modo nenhum impede a ação declarativa negativa ou constitutiva do credor concorrente, que é o terceiro, uma vez que a res iudicata não se estende a ele. O sistema jurídico brasileiro não precisaria da tierce opposition. Tem ele os embargos de terceiro, se à eficácia da decisão ou da sentença se atribui poder de invadir a esfera juridica do terceiro. Aí está lúcida discriminação da eficácia das sentenças quanto a terceiros. O terceiro que alega inexistência do direito do outro credor, ou nulidade do título, ou simulação, ou fraude contra credores, ou ineficácia do titulo contra ele, ou contra os credores em geral, não ofende a res iudicata, que é só entre partes. § 219. Procedimento 1. Pedido em processo próprio, procedimento em impugnação, ou em contestação, ou em objeção, ou em embargos do devedor ou de terceiro. A fraude a credores que dá ensejo à pretensão revocatória falencial pode ser alegada, para desconstituição relativa da eficácia do ato jurídico, a) em ação própria, b) em impugnação, em se tratando de revogabilidade de ato jurídico de que resultou o crédito declarado com pressupostos legais,

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inclusive no prazo fixado, c) em contestação a pedido de restituição ou nos embargos de terceiro, ou em embargos do devedor ou de terceiro. A ação declarativa de ineficácia relativa e a ação revocatória falencial podem ser exercidas pelo demandado, ou em impugnação de crédito declarado. 2.Rito ordinário. O rito é o ordinário. Daí a conveniência de se propor logo, para se evitar o inconveniente da espera para se realizar o ativo e se liquidar o passivo. Proposta a ação revocatória, nada obsta a que se impugne o crédito, julgando-se logo a ação proposta, ou pedindo-se que se tenha como parte da impugnação e, pois, junto a essa o processo. § 220. Propositura da ação revocatória falencial 1. Legitimação ativa. Legitimado ativo, para a propositura da ação revocatória falencial, seja em ação própria, seja em impugnação, ou em contestação, é o síndico. Se o não faz no prazo legal, é legitimado qualquer credor. Não só os credores concorrentes. 2. Legitimação passiva. A ação pode ser proposta: a) contra todos os que figuraram no ato, ou que, por efeito dele, foram pagos, garantidos ou beneficiados; b) contra os herdeiros ou legatários das pessoas indicadas acima; c) contra os terceiros adquirentes, se tiverem conhecimento, ao se criar o direito, da intenção do falido de prejudicar os credores, ou se o direito se originou de ato de ineficácia relativa quanto à massa, ou contra os seus herdeiros ou seus legatários. A ação declarativa de ineficácia relativa é proponível contra os terceiros que adquiriram do figurante do negócio jurídico com o falido, ainda que de boa-fé. A ação revocatória falencial, não: somente se propõe contra quem foi o figurante com animus nocendi e contra os terceiros adquirentes que tiveram conhecimento, no momento em que adquiram, de ter havido a fraus creditorum. Quanto aos sucessores a causa de morte, herdeiros ou legatários, a posição deles é a do decujo, quer na ação declarativa de ineficácia relativa, quer na ação decretativa de deseficacização relativa, que é a ação revocatória falencial. Os sucessores, a causa de morte, dos terceiros adquirentes, que seriam os legitimados passivos na ação declarativa de ineficácia relativa ou na ação de revogação falencial, têm a mesma posição que seria a do decujo. 3. Competência. A ação revocatória falencial pode ser em ação própria, e então o rito é ordinário, e pode ser em impugnação, ou contestação, ou embargos do devedor ou de terceiro. Exercida em impugnação, ou em contestação ao pedido de restituição, ou aos embargos de terceiro, o juízo competente é o da falência. Porém pode ocorrer que a ação seja em defesa ou em embargos do devedor, noutro juízo, e então competente é o outro juízo. Dá-se o mesmo se a massa falida tem de apresentar embargos de terceiro, por haver constrição que ofende direito seu ou posse sua. 4.Prazo preclusivo. A regra jurídica sobre prazo para a propositura da ação revocatória falencial é de preclusão. Não há suspensão nem interrupção do prazo. A preclusão da ação declarativa de ineficácia relativa ou da ação revocatória falencial de modo nenhum atinge a ação que o interessado tenha ou as ações que ele tenha contra o falido; e. g., a ação de fraude contra credores. Pergunta-se: jo prazo preclusivo só apanha a pretensão exercida em ação ordinária, ou também a que se exerce em contestação, ou em impugnação? A ineficácia relativa, existente inicialmente, por se tratar de ação declarativa de ineficácia relativa, e a que

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resulta de desconstituição de efeitos, está ligada, ali, a pretensão declarativa e, aqui, a pretensão constitutiva negativa, que deixam de existir desde que decorreu o prazo. A pós-eficacização é automática. Se a ação foi fora de ação própria, como se inseriu em impugnação a declaração de crédito, o recurso é o que toca à decisão em que está inserta a sentença. 5.Sequestro em caso de ação declarativa de ineficácia relativa e sequestro em caso de ação de revogação falencial. Pode o juiz, a requerimento do síndico, ordenar como medida cautelar, na forma da lei processual civil, o sequestro dos bens retirados do patrimônio do falido e em poder de terceiros. O sequestro é conforme a lei processual, se ainda não proposta a ação declarativa de ineficácia relativa ou a de revogação falencial, ou se já proposta a ação. § 221. Ineficacização de decisão trânsita em julgado 1.Posição do problema. A revogação do ato pode ser decretada, embora para a celebração dele houvesse precedido sentença executória, ou fosse consequência de transação ou de medida assecuratória para garantia da divida ou seu pagamento. Revogado o ato, fica sem eficácia a sentença que o motivou. Se a lei fala em ficar rescindida a sentença, é de surpreender que a decisão sobre ineficácia relativa ou sobre revogação falencial possa atingir a eficácia de sentença proferida, trânsita, ou não, em julgado. A decisão que transitou em julgado, qualquer que fosse, não fica rescindido — fica sem a eficácia que teria contra a massa falida. (Mais uma vez chamamos a atenção para o emprego da expressão “rescindir”, sem ser no sentido técnico. Os males que dai resultam são enomnes. No caso que agora nos interessa, seria de extrema gravidade que se permitisse no sistema jurídico a rescisão automática de sentença e, o que seria extremamente grave, rescisão de sentença fora dos casos que a lei processual aponta. Em verdade, porém, não há — na espécie — nem a coisa nem o nome,) Tanto a ação de ineficácia relativa como a ação revocalória falencial se dirigem contra atos jurídicos, às vezes atos-fatos juridicos, como são quase todas as soluções de dividas, de modo que legitimados passivos, em primeira plana, são os figurantes ou seus sucessores. As ações que acaso foram movidas foram-no entre o devedor e os figurantes. A eficácia sentencial a eles ficou limitada, pelo menos na ordinariedade dos casos. Não pré-exclui isso que, pela natureza da ação, ou por eventual extensão subjetiva da eficácia sentencial, a alguma pessoa que nao foi figurante, hajam chegado os efeitos da sentença. Ai, necessariamente, se tem de negar a legitimação ativa de quem foi atingido pela sentença). Aliás, mesmo sem ter havido sentença, se ocorreu que um dos credores foi conivente na fraude do devedor e do terceiro, essa participação lhe pré-elimina a legitimação ativa, quer se trate de credor anterior ao fato quer de credor posterior ao fato. Não se pode enunciar o mesmo a propósito da ação de ineficácia relativa, porquanto, nessa, se abstrai totalmente de qualquer elemento subjetivo. A decisão que se profira na ação de ineficácia relativa, ou na ação revocatória falencial, depois de haver trânsito em julgado de sentença entre os figurantes (devedor e adquirente, ou devedor e sucessor do adquirente), de modo nenhum ofende coisa julgada material, O que a nova sentença faz é declarar a ineficácia relatiua, isto é, a ineficácia em relação à massa, aos credores concursais, ou desconstituir a eficácia do ato juridico revocando (não a eficácia da decisão entre o devedor e o adquirente, ou entre o devedor e os sucessores do adquirente, porque essa não ia até o autor ou os autores da nova ação). A revogação do ato pode ser decretada embora para a sua prática houvesse precedido sentença de eficácia executiva, ou mandamental, ou se houvesse originado de transação ou medida constritiva. Revogado, em relação à massa, o ato, a sentença não é óbice a que a ineficácia relativa se produza. É digno de observar-se que a anterior decisão pode ter precedido ou sucedido ao ato, isto e, ter lhe dado ensejo, ou tê-lo apreciado. Não importa. A eficácia é só entre os figurantes, salvo extensão subjetiva, o que está fora da hipótese.

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2. Sentenças pretensamente atingidas. A ação a que se refere a sentença pode ser qualquer ação de que haja resultado declaração, constituição, condenação, mandamento, ou execução forçada, a favor do terceiro, ora atingido pela sentença proferida na ação declarativa de ineficácia relativa ou na ação de revogação falencial. Pode ter sido sentença arbitral, homologada e trânsita em julgado. Pode ter sido decisão a respeito de transação judicial ou de concordata em outra falência. A matéria que se aprecia na ação declarativa de ineficácia relativa ou na de revogação falencial pode já ter sido examinada no próprio juizo falencial, ou alhures, com eficácia contra a massa falida. Então, a regra jurídica não incide. Nem se pode dizer relativamente ineficaz o que, alhures ou no próprio juízo falencial, se decidiu, com trânsito em julgado, ser eficaz; nem revogar-se, falencialmente, o que, alhures ou no juízo falencial, se decidiu, com trânsito em julgado, ser falencialmente irrevogável. § 222. Restituição dos bens1.Consequências da declaração de ineficácia relativa ou da revogaçãoo. Os bens são restituidos à massa em espécie, com todos os acessórios e, não sendo possível, dá-se a indenização. Trata-se de cumprimento da sentença declarativa de ineficácia relativa, ou da sentença desconstitutiva de eficácia. O dever de restituição é, aí, ligado à declaração da ineficácia relativa ou da revogação, razão por que a ação declarativa negativa de eficácia apresenta particularidade, 4 de executividade, e a ação revocatória falencial tem a mesma carga, como, em geral, acontece às ações de nulidade e às de anulação, com cumulação da ação de restituição: Na falência, uma das ações é de declaração e a outra de desconstituição, porém ambas, devido escopo de realização do ativo e liquidação do passivo, que é o do procedimento falenda), com o pedido — implicitamente cumulado — de execução (= de restituição). Observe-se, porém, que nem sempre a ação revo catória falencial é com o efeito restitutório, porquanto o ato jurídico revogável pode ser ato jurídico apenas irradiador de crédito. Então, ocorre a tal ação o que ocorre com as ações de anulação sem restituição. Se, pois, há o eleito restitutório, os bens ou são restituidos em natura, sejam coisas certas ou genéricas, ou, se isso não é possível, indenizatoriamente (= em equivalente pecuniário). Hão de vir, com o bem, ou os bens, as acessões e os frutos, produtos e rendimentos. Entrega o terceiro o que recebeu. Não quer dizer isso que deixe de ter direitos, pretensões, ações e exceções no tocante ao bem ou bens que entrega. Só os não tem em relação á massa, aos credores concursais. Pelo fato da entrega, o terceiro não está exposto a que se entenda ter renunciado aos direitos, pretensões, ações e exceções que ele tinha e tem, nem tampouco, que os haja transmitido. A finalidade da restituição não é devolver-se o bem em si, mas a de tornar possível a extração do valor, para a execução forçada. 2. Acessões e frutos. Aqui, tem-se de atender, sempre, às regras jurídicas sobre possuidor de boa—fé e possuidor de má-fé, conforme o direito material. Na ação revocatória falencial, só se há de pensar em má-fé, por parte do terceiro que figurou com o devedor no negócio jurídico, uma vez que é pressuposto necessário a intenção de prejudicar. A ação revocatória não vai contra terceiros de boa-fé; a ação declarativa de ineficácia relativa, sim, porque nela se abstrai do animus nocendi.) A massa restitui o que haja sido prestado pelo contraente, salvo se do contrato ou ato não auferiu vantagem, caso em que o contraente é admitido como credor quirografário. O que está na massa, ou na massa esteve e, pois, nela se inseriu, restitui-se. O que foi prestado e não entrou na massa (e. g., foi desviado), apenas é cobrável á massa, como crédito quirografário. (“Porque nela se abstrai do animus nocendi, dissemos acima, a propósito da ação de ineficácia relativa. O fundamento, a ratio legis, para tal solução é esse. Porém tal regra jurídica não é consequência necessária — em técnica legislativa de se não exigir a ação de ineficácia relativa o pressuposto do animus nocendi. O legislador podia não ter inserido a regra jurídica como ligada à abstração do animus nocendi.)

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Na ação revocatória falencial, o demandado ou a pessoa a quem se impugnou o crédito, ou se fez a objeção de revogação falencial, não tem direito aos frutos: responde por todos os frutos colhidos e percebidos, embora tenha a pretensão às despesas de produção e custeio; responde pela perda ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo se prova que do mesmo modo se teria dado, estando ela na posse do demandante; somente tem pretensão ao ressarcimento das benfeitorias necessárias, sem bis retentionis. Na ação declarativa de ineficácia relativa, pode ser alegada a boa-fé por parte do restituinte, no tocante à perda ou à deterioração da coisa restituenda. Todavia, no tocante às acessões e frutos, a restituição é independente da boa-fé. Quanto às benfeitorias, também. A massa falida recebe o bem com todas as acessões e os frutos. Pode ter havido contraprestação, total ou parcial. Se não houve, nada tem ela de restituir. Se houve, tem-se de averiguar se houve vantagem, ou não para ela. Não se diga “para o falido”. a)Se houve, para ela, vantagem, a divida é da massa. 14 Se não houve, o crédito é quirografário, porque crédito há, sem ter havido vantagem para a massa falida. Nos casos a) a qualquer momento tem-se de atender à sentença que diga ter havido a vantagem. Nos casos 14, há os ratejos. Se a sentença foi posterior aos prazos para as declarações de crédito, o credor é credor retardatário, embora não se lhe exija a habilitação. Evita-o, declarando-o em tempo, para o caso de advir a sentença declarativa de ineficácia relativa ou de revogação falencial. Da sentença que numa ou noutra ação se profira é que depende a classificação do crédito como dívida de massa, ou como dívida a credor quirografário. A fonte de tais princípios está no § 38 da Ordenação Concursal alemã: “Die Gegenleistung ist aus der Konkursmasse zu erstatten, soweit sie sich in derselben befindet, oder soweit die Masse um ihren Wert bereichert ist. Darúber hinaus kann em Anspruch nur aIs Konkursforderung geltend gemacht werden.” Éde restituir-se, tirada da massa concursal, a contraprestação, quanto ao que dela se acha na massa, ou quanto ao que com seu valor está enriquecida a massa. Acima disso, somente pode efetivar-se a pretensão como de crédito concorrente. O fundamento está no enriquecimento injustificado (Ernst Jaeger, Kommentar zur Konkursordnung, 6ª-7ª eds., § 38, nota 5). Tem-se como contraprestado o que se prestou como correspectivo do que se recebeu, ou se iria receber. Pode ter sido contraprestação a prestação de garantia (A. Bóhle-Stamschráder, Konkursordnung, 2ª ed., 108). A ação contra a massa não é de vindicação. nem de execução real; mas sim contra a massa, por dívida da massa. O terceiro tem, a respeito do que lhe há de ser restituído por ter havido contraprestação. a exceção correspondente a exceção de dever não adimplido, que o Código Civil alemão, §273, alínea 1*, erradamente chamou direito de retenção (cf. Tratado de Direito Privado. Tomo XXII, § 2.734, 4). No mesmo sentido da invocabilidade do § 273, alínea 1ª, do Código Civil alemão, E. Mentzel (Kommentar zur Konkursordnung, 6ª ed., § 38, nota 1) e A. Bdhle-Stamschrâder (Nonkursordnung, 2ª ed., 108); contra, Ernst Jaeger (Kommentar zur Konkursordnung, nota 4 ao § 38). O momento em que se verifica o enriquecimento injustificado é o em que se operam as restituições (A. Bôhle-Stamschrãder, 2ª ed., 108). Se o credor tinha privilégio especial ou geral, a que se quisera dar garantia real, a restituição deixa incólume o crédito tal como era. Se era quirografário, como tal é que concorre nos rateios. Terceiros de boa-fé, ai, são aqueles que figuraram em negócio jurídico com o falido e aqueles que adquiram de terceiro os bens restituíveis, têm ação de perdas e danos contra o falido; porém terceiros adquirentes de boa-fé somente podem ser os que adquiriram do terceiro, que figurara no negócio jurídico, ou dos que adquiriram desse, em se tratando de sentença declarativa de ineficácia relativa, e não os que adquiriram do figurante em negócio jurídico com o falido, se a ação, em que se pro feriu a sentença, foi a ação decretativa de ineficacização. Os sucessores a causa de morte ficam na posição jurídica dos decujos. A ação do terceiro pode ser exercida durante a falência, ou após o encerramento da falência. Contra o devedor a que se abrira a falência, ou contra seus sucessores a causa de morte.

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Essa ação prescreve no prazo ordinário. § 223. Conclusões1.Duas ações com fim idêntico. O fim que tem a ação revocatória falencial é o mesmo que se aponta à ação de ineficácia relativa. A distinção entre as duas ações ou consiste em pressupostos que não coincidem em toda a extensão deles, ou na própria força da sentença favorável em cada uma delas. A ação de ineficácia relativa é declarativa; a ação revocatória falencial, constitutiva. Aquela abstrai de qualquer scientia fraudis e é in-diferente, portanto, à boa-fé ou à má-fé em que esteve, no momento do ato jurídico revocando, o devedor ou o terceiro. Essa exige que o devedor e o terceiro hajam tido a conscientia fraudis. 2. Defeitos das doutrinas. Quanto aos defeitos das doutrinas, quase todos provieram de não se caracterizar o elemento comum às duas ações, que é o seu fim: a ineficácia relativa. Muito se teve de desbastar para se chegar a bom termo. Também concorreu para erros o encambulhamento das duas ações, por não se atender a que não pode ser declarativa a ação tendente à revogação, nem constitutiva a ação em que o mister do juiz édizer que tais efeitos não se deram, nem se dão. Efeitos que não foram, nem são, declaram-se; efeitos que foram e são, ou somente foram e não mais são, ou não foram mas hoje são, e têm de desaparecer no passado, no presente e no futuro, são efeitos que o juiz desconstitui. A participatio fraudis, o consilium fraudis, que é pressuposto para a revogação falencial, e de modo nenhum para a ação de ineficácia relativa, tem de ser alegado e provado. É participatio fraudis a conscien tia da nocividade (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 25 de maio de 1943, RT 147/644). Se a nocividade não foi intencional, por parte do devedor; apode ser revogado o ato? Se a lei fala de ‘intenção de prejudicar”, com limitação, de iure condendo estaríamos contra esse pressuposto. De ivre condito, não teriamos escolha: estaria na lei. O que mais se pode fazer é só se exigir do terceiro a scientia fraudis. 3.Estado e as ações de ineficácia relativa e de ineficacização. É de todo interesse frisar-se que a ação de ineficácia relativa e a ação revocatória falencial se fizeram meios de defesa coletiva, mesmo quando as proponha o credor, por não a haver o síndico proposto no tempo adequado. Não há, verdadeiramente, trans-formação do conceito de prejuízo, tomando-se como ponto de partida a concepção da revocatória romanística e a da ação de anulação na lei civil. Uma vez que a execução é coletiva e, pois, comum o ativo que se destina à satisfação dos credores, o prejuízo a apurar-se tinha de ser comum. Não foi transformação; não podia ser diferente o conceito de prejuízo, em se tratando dos dois institutos do direito falencial. O prejuízo do credor singular foi necessariamente superado. O que sofreu o desfalque foi o patrimônio. A relatividade, que é traço comum ás duas ações, serve à reconstrução — digamos assim — do patrimônio, que a decretação da abertura da falência constringe, in abstracto. Aqui, há problema da distinção entre a constrição in abstracto e a restituição acabada. Ao ser decretada a abertura da falência, o penhoramento abstrato colhe todos os bens do devedor, conforme a extensão objetiva do concurso de credores, inclusive aqueles bens que foram objeto de atos jurídicos anteriores relativamente ineficazes. Porém, isso não se dá a propósito dos bens que foram objeto de atos jurídicos anteriores apenas falemcialmente revogáveis, porque, quanto a esses, houve, e há, os efeitos próprios de atos dispositivos, enquanto não trânsita em julgado a sentença revocatória. Dai ter-se de fixar o momento em que ocorre a constrição. A resposta há de ser no sentido de se considerar abstratamente constrito tudo que a sentença alcança, desde o momento do trânsito em julgado. A carga de eficácia sentencial executiva não é mediata, de jeito que se tivesse de propor a ação iudicati; a carga de eficácia executiva é imediata. A entrega é o equivalente da arrecadação, e não o do penhoramento abstrato. A lei considera as espécies de fundamentos para a ação revocatória falencial como espécies de frustração

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antecipada de penhoramento abstrato. A solução técnica que se deu foi a de se criar pretensão constitutiva negativa, de modo que, exercida, devido à vox com limite subjetivo, o ato jurídico somente é eficaz entre o devedor e o terceiro. O interesse maior é do Estado, que prometera a todos os credores a tutela jurídica. A função de órgão da execução, que tem o síndico, contínua até se encerrar a falência. As declarações de crédito, com que os credores atendem à invitação a declarar, são comunicações de conhecimento (tenho tal crédito, de tanto e da classe tal). O síndico, os outros credores e o órgão do Ministério Público podem impugnar. Uma vez que já se estabeleceu a relação jurídica processual concursal falencial, os credores exercem as suas ações executivas, por encrustamento na relação jurídica concursal já existente (quase assim, mas apegado à concepção das ações executivas singulares propostas com a declaração de crédito, Salvatore Satta, Teoria e Pratica dei Processo, 399). Tudo suficientemente se esclarece se atendemos à carga de eficácia da sentença decretativa de abertura da falência, que é de força constitutiva e eficácia imediata executiva. O elemento declarativo, mediato, pertence a questões prévias, que necessariamente se põem. O síndico e o curador, quando qualquer deles propõe a ação de ineficácia relativa, ou a ação revocatória falencial, são órgãos de execução. Quem em verdade tem precípuo interesse na declaração de ineficácia relativa ou na decretação de revogação é o próprio Estado, que prometera aos credores a tutela jurídica. Dizer-se, aí, que o credor que propõe a ação de ineficácia relativa, ou a ação revocatória falencial, “representa” os credores, apenas exprime que o credor age como orgão de execução, em lugar do síndico, órgão normal, ordinário, típico, da execução. Nem o síndico, nem o credor, que propõe qualquer das duas ações, está em lugar do devedor, mesmo porque o devedor não poderia propor, se não tivesse havido a decretação da abertura da falência, ou, a fortiori, depois, qualquer das duas. Síndico e credor curam do interesse dos credores, portanto como órgãos da execução coletiva. É possível que o credor proponente da ação não venha a ser beneficiado pelo bom êxito da ação, mas isso não lhe retira a legitimação ativa: o que importa é que haja prejuízo para a massa. O que se recolhe vai ao patrimônio falencial, ao ativo falencial, e não ao patrimônio do devedor. Dele nenhum proveito pode mais ter o falido. Quanto aos atos jurídicos relativamente ineficazes, o Estado declara-os relativamente ineficazes, como prestador da prometida tutela jurídica (= como juiz) e como interessado na integridade da massa (= pelos órgãos da execução, o síndico e — aí — o credor proponente). Quanto aos atos jurídicos revogáveis, o Estado desconstitui a tais atos jurídicos os efeitos que ofenderiam os interesses dos credores, a que ele prometera a tutela jurídica, mediante a ativi.dade de órgãos da execução (o síndico ou o credor proponente) e mediante a atividade jurisdicional (= como juiz). E pena que a noção insuficiente da distinção entre anulabilidade e a ineficácia relativa ainda afeie alguns acórdãos (e. g., 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 1ª de novembro de 1949, RF 143/108). Uma das consequências de o interesser diferente (= por sobre o credor individualmente considerado), está em que não é de exigir-se que o crédito de que é titular o credor proponente seja anterior ao ato jurídico de que se pede a declaração ou a desconstituição (Supremo Tribunal Federal, 6 de abril de 1951, AJ 99/202). 4.Concurso de credores civil e a ação de ineficácia relativa. Há atos jurídicos que são relativamente ineficazes em relação aos credores falenciais. É de perguntar-se há, no direito concursal civil, regras jurídicas que correspondam às da lei de falências, ou se os credores que não têm a ação de decretação de falência somente se podem valer da ação de fraude contra credores, que é constitutiva negativa, e não declarativa, como a ação a propósito das atividades do insolvente mencionadas como causas de revogação falencial. A resposta, de fure condito, é negativa. De iure condendo, seria de bom alvitre levar-se ao concurso de credores

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civil a mesma eficácia, no passado, da sentença decretativa da abertura do concurso de credores.

Capítulo X

Ação revocatória de doação § 224. Revogação por ingratidão1. “Revocatio”. Tem-se de apontar, na lei, os casos de ingratidão, como se faz a respeito dos casos de irrevogabilidade. A doação existia, era válida e eficaz; a ingratidão, fato posterior (ou somente conhecido posteriormente), não a faz inválida: a retirada da voz, com o fundamento, faz dever o donatário a restituição (cf., para o direito romano, Von Bothmer, Die rechtliche Construction des Widerrufs gúltiger schenkungen, Archiu ftir die civilistische Praxis, 61, 335 s. Pollack, Der Schenkungswiderruf, insbesondere seine Vererblichkeit, 40-65). “Revocare”, “revocare res donatas” (“repetere’), “revocare donationem” estão nas fontes. No direito justinianeu também se fala de “evertere donationem” e de ‘retractare donationem”. As opiniões que substituem à revocatio a rescisão, a denúncia cheia, cometem desprezo da lei. A doação revoga-se por ingratidão do donatário. A doação onerosa, essa, é revogável por inexecução do encargo, desde que o donatário incorra em mora. Não há, no direito brasileiro, doação revogável a arbítrio do doador. E a marca do principio costumeiro francês Donner et retenir ne vaut. Por isso, se a aquisição de bem futuro ficaria dependente de vontade do doador, não há pensar-se em doação. Nem é doação o contrato pelo qual alguém presta, gratuitamente, mas se reserva o poder de dispor. Não afasta isso a doação com a cláusula de reversão ao doador, nem a doação condicional, como se A doa a B com o traspasse aos filhos de E se E contrai novas núpcias, ou se A doa a E, com a transmissão a C, se C se casa. Em vez da condição, pode haver o termo. O termo pode ser dies ad quem, ou dies a quo. Ao outorgado, na doação, pode ser atribuido o direito de propriedade, após o implemento de condição ou o advento de termo. A aposição da condição suspensiva não protrai a conclusão do contrato real de doação se já há o direito. Se A é o proprietário sob condição resolutiva e C o proprietário a quem irá a posse do bem, pode C doar a E o seu direito real, pois o sistema jurídico brasileiro tem o instituto da propriedade resolúvel. O que se doou foi o que se tinha no momento da doação. Se a condição é resolutiva, ao implir-se, passa ao doador, ou a outrem, aquilo que se atribuira ao donatário. A velha discussão sobre a permissibilidade de tal condição, em se tratando de direito de propriedade (cf. C. Appleton, Histoire de Ia Propriété prétorienne et de I’Action publicienne, II, 265 s.), perdeu razão de ser diante das regras juridicas sobre propriedade resolúvel. A doação mortis causa é irrevogável a arbítrio do doador, posto que possa ser revogada por ingratidão, se ocorre uma das espécies de ingratidão que a lei considera pressuposto suficiente. No direito romano, supunha-se a persistência da vontade do doador usque ad mortem (cf. L. 16, D., de mortis causa donationibus et capionibus, 39, 6). No direito justinianeu, podia ser inserta a cláusula de revogabilidade (L. 13. § 1, e L. 35, §4, D., de martis causa donationibus et capionibus, 39, 6), o que de certo modo a deturpava (L. 27 e L. 35, § 2). Se bem que todos os casos de revogabilidade por ingratidão sejam de fatos posteriores à conclusão do contrato de doação, ou — pelo menos — desconhecidos, até então, pelo doador, a expressão “revogação” é acertada, porque não houve infração de dever negocial por parte do donatário. Não seria adequado falar-se de denúncia, nem de resilição. Não se exige que os atos, a que se refere a revogabilidade, sejam contra direito, posto que alguns o sejam.

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Se doador e donatário se concluem para que se revogue a doação por ingratidão, com prejuízo para terceiro, não há revogabilidade, porque não ocorre, ex hypothesi, “ingratidao Houve simulação. A 1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 23 de setembro de 1940 (RT 133/575), teve ensejo de apreciar o caso de briga simulada entre pai e filho (doador e donatário), com intuito de. revogada a doação, tirar-se à nora a metade do bem. O direito romano clássico não tinha a revogação por ingratidão. À revogação da doação feita pelo patrão ao liberto (Fragmenta Vaticana, 272) não se há de ligar a revogação por ingratidão, que não supõe vínculo entre os interessados. Segundo os Fragmenta Vaticana, 275, o que não pode ser de Constâncio (ano 292), e sim só de Diocleciano, porque é anterior àquele (ano 286), haveria rescisão (Perfectam donationem, mutata voluntate donatoris etsi parum graus existent cui dono res data est, minime rescindi posse saepe rescriptum est). No texto estava apenas “minim ... di”. De qualquer maneira, aí está indicio de aparição. Mas no ano 349 é que se tem a L. 1, Codex Theod., revocandis donationibus, 8, 13 (L. 7, C., de revocandis donatianibus, 8, 55). Se as mães passavam a segundas núpcias, podiam revogar as doações feitas aos filhos que foram ingratos. Posteriormente, no ano 426, L. 6, Codex Theod., de revocatione donationis (L. 9, C., de reuocandis donationibus, 8, 55), atribui-se aos pais o mesmo poder, no tocante a filhos, netos e bisnetos, mas já se apontavam espécies de ingratidão (ex causis quae legibus continent fuisse constabit ingratam). Na L. 31, D., 1, § 39, 5, ressalta que seria irrevogável a doação à filha, não a que fosse feita ao genro. Não há, porém, o fundamento, e há conjecturas, e não exatas interpretações. Com a L. 8, C., de revocandis donationibus, 8, 55 (L. 3, Codex Theod., de revocandis donationibus, 8, 13) há alusão a superveniência de filhos. De revogação por ingratidão somente se cogitou na L. 10, C., de revocandis donationibus, 8, 55, onde a legislação justinianéia interpolou a referência à ingratidão do texto de Filipe Árabe (Fragmenta Vaticana, 272). A ingratidão, por si só, não determina a desconstituição do contrato de doação. A técnica legislativa, devido à superveniência do fato ou dos fatos, poderia ter admitido a figura da denúncia cheia. Em vez disso, firmou-se a concepção da retirada da vox. 2. Causas de revogabilidade por ingratidão. Só se pode revogar por ingratidão a doação: a) se o donatário atentou contra a vida do doador; b) se cometeu contra ele ofensa fisica ou psíquica; c) se o injuriou gravemente, ou caluniou; d) se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos, de que este necessitava. 3.Atentado contra a vida do doador. A primeira causa de revogabilidade da doação é o ter o donatário atentado contra a vida do doador. Se o donatário assassinou o doador, podem os herdeiros exercer a revogação? O “direito” de revogar não se transmite aos herdeiros. Mas, se o donatário foi o causador da morte, não é de se interpretar que não há a legitimação dos herdeiros. Idem, se o donatário impediu a revogação da doação por ingratidão. Cf. Código Civil alemão, § 530. 4. Ofensa física ou psíquica. Se a lei somente fala de ter o donatário cometido “ofensa física” contra o doador, a limitação é errônea. Nenhuma alusão se há de fazer à gravidade da ofensa. A ingratidão pode manifestar-se em pequeno ferimento ou pancada, porque o que mais importa é a intenção de ofender. A ofensa física ou psíquica de gravidade não basta se não houve qualquer intenção. Por outro lado, o simples empurrão para ferir, ou jogar no rio, ou no mar, basta para a alegabilidade.

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5. Injúria grave ou calúnia. A injúria grave e a calúnia têm os seus conceitos suficientemente precisados no direito penal. O sistema jurídico supõe os dois conceitos conforme aquele ramo do direito. E crime a injúria a alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. O juiz pode deixar de aplicar a pena quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria, e no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. Há crime se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes. Pré-exclui-se a criminalidade da injúria ou difamação se o caso é: a) de ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa pela parte ou por seu procurador, ou b) de opinião desfavorável de crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar, ou c) de conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do oficio. Se houve publicidade, responde, nos casos a) e e), quem lha deu. Fica isento da pena o querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação. Calúnia é a imputação falsa de ato definido como crime. Se não há falsidade na imputação, não há calúnia; nem há calúnia, se o ato que se atribui não é crime. A difamação, imputação de ato que não se considera crime, mas é ofensivo da reputação, não é, no direito penal, calúnia, nem injúria, porque a lei penal a considerou crime diferente. A exceção de verdade somente se admite se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções. No direito privado, a difamação falsa é calúnia, a difamação cuja falsidade não foi alegada e provada é injúria. Tem-se de levar em conta o caso concreto, com o exame das circunstâncias, para se saber se a injúria foi grave. Se houve grave provocação, pré-excluida está a alegabilidade da injúria, mesmo se grave. O donatário tem de conhecer a doação: se injuriou ou caluniou antes de conhecer a doação, não há revogabilidade por ingratidão (L. Enneccerus-H. Lehmann, Lehrbucl-z des Búrgerlichen Rechts, 11, 411, nota 2). Se o donatário alegou em juízo ter sido em defesa o ato, ou foi fundamento de propositura de ação, que se julgou favoravelmente ao donatário (e. g., ação de busca e apreensão de filhos, 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 30 de janeiro de 1953; cp. 3ª Câmara Civil, 18 de fevereiro de 1952, defeituosa decisão, por ser sem referência à coisa julgada), não é de considerar-se injúria, ou calúnia, para se invocar a regra jurídica sobre revogabilidade. 6.Recusa de alimentos necessários ao doador. Não se supõe que se trate de donatário que deva alimentos, nem se cria ao donatário dever de alimentos. Se outrem deve alimentos ao doador e pode prestá-los, o donatário não tem de prestá-los para evitar a revogabilidade por ingratidão. Por outro lado, a doação é revogável se o valor doado cobriria, com os prováveis proveitos, os alimentos que se prestassem (princípio da correspondência dos alimentos com a doação). Quanto aos alimentos, parte da doutrina italiana, a despeito de o Código Civil italiano revogado ter copiado o francês, viu no “indebitamente’ que se adicionara, o pressuposto de serem devidos os alimentos, ou por lei, ou por testamento, ou por convenção. Assim, por exemplo, Emanueli Gianturco (Contratti speciali, 123), V. A. Cottino (Le Donazioni nel diritto civile italiano, 164) e Carmelo Scuto (Le Donazioni, 734, 827 s.). Pontes de Miranda No direito brasileiro, como no direito francês, não se supõe infração de dever jurídico de prestar alimentos, mas sim de dever moral, incluso na gratidão. Para que tal dever exista, basta que tenha havido a doação, que o doador houvesse necessitado deles e que o donatário, a despeito de poder prestá-los, os houvesse recusado. Se há dois ou mais donatários, sem ser em comum, o dever existe para qualquer deles. Cada um só se libera se o outro prestou o necessário. Se a doação foi em comum, também, mas o co-donatário pode alegar que o outro há de prestar a sua quota, se pode. Se os co-donatários eram cônjuges e prestavam, porém um deles faleceu, o cônjuge sobrevivo tem de prestar todos os alimentos necessários.

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Tudo, na ação de revogação, só se passa entre o doador e o donatário, ou donatários em comum, se há legitimação passiva desses. Afasta-se qualquer prejuízo a terceiro, salvo se a litispendência já então podia ser alegada. Mesmo se houve estipulação a favor de terceiro, ou se doou para que o donatário pagasse divida sua, a revogação da doação de modo nenhum atinge o terceiro. Idem, se o outorgante doou porque terceiro Ibo exigiu. Qualquer direito real limitado que atingiu o bem, a favor de terceiro, no intervalo entre a doação e o exercício do ius poenitendi, não pode ser ferido pela sentença que acolheu a retirada da vox do doador. Dá-se o mesmo quanto a medidas cautelares ou executivas, anteriores ao despacho sobre a citação, na ação de revogação. Para a legitimação dos herdeiros à continuação da demanda que o doador iniciou, não é preciso que a citação tenha sido feita em vida do doador, mas sim que a petição tenha sido despachada pelo juiz. Se o juiz deu despacho desfavorável àcitação e sobreveio reforma do despacho, foi em vida iniciada a demanda. Os herdeiros são legitimados a recorrer. Não bastaria o exercicio extrajudicial da ação, a despeito da L. 10, C., de revocandis donationibus, 8, 55. Se o donatário reconheceu o fundamento da revogação e acordou em restituir, houve negócio jurídico bilateral, cuja eficácia equivale à da revogação. Quanto aos frutos, tem o donatário de restituir todos os que percebeu desde a litispendência. Não é obrigado a restituir os frutos que percebeu antes da litispendência. Não se diga: antes da contestação. A litis contestatio é conceito superado, que somente se encontra, hoje, onde o passado persiste, contra as linhas de evolução (cf. F. Heiner, Der kirchliche Zivilprozess, 75; Rúck, Die Organisation der rómischen Kurie, 54; Robert Phillimore, The ecclesiastical Law o! the Church of England, 7.Perdão e renúncia. Pode haver perdôo do ato que seria causa para se pedir a revogação por ingratidão. Sem efeito é qualquer renúncia prévia (Heinrich Dernburg, Das Búrgerlich Recht, II, 2, 173; Paul Oertmann, Das Recht der Schuldverhàltnisse, 532). O perdão é ato jurídico stricto sensu (cf. Tratado de Direito Privado, Tomos II, §§ 159, in une, tabela, 240, 241, 243, 245, 246; IV, § 420, 4; VIII, § 833, 2, 8; XXII, § 2.723). A renúncia é negócio jurídico, manifestação unilateral de vontade, receptícia, e somente pode ser concluído por pessoa que tenha poderes para isso. Pode haver renúncia à ação de revogação da doação em qualquer das espécies de fundamento. Pensava diferentemente Fr. von Savignº, porque seria renúncia à ação de injúria. Sem razão, porque a ofensa á vida, a ofensa física ou psíquica, a calúnia e a injúria e a própria recusa de prestar alimentos devidos geram ações com fundamento em interesse público, e na ação de revogação só se atribui a esses fatos interesse particular. Não se pode renunciar antecipadamente o direito de revogar a liberalidade por ingratidão do donatário. 8.Revogação e direitos de terceiros. A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiro, nem obriga o donatário a restituir os frutos, que percebeu antes de litispendência; mas sujeita o donatário a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-las pelo meio termo do seu valor. Se acaso houve razão para se ir contra o terceiro, como se foi de má-fé a aquisição pelo terceiro, é invocável a regra jurídica sobre a restituição ou a indenização. contra o terceiro, quanto aos frutos que percebeu. 9.Ação de revogação. No direito brasileiro, o ius poenitendi é exercido pela ação de revogação. Não basta o exercício extrajudicial. Trata-se, portanto, de revogação por ação constitutiva negativa. O prazo que a lei fixe é prescricional, de modo que pode ser interrompido. Também são invocáveis as regras jurídicas sobre suspensão. A ação de revogação de doação é ação pessoal. Por outro lado, personalíssima, porque se extingue com a morte

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do doador ou do donatário. As exceções únicas que, no caso de ter sido proposta, em vida, pelo doador, aos seus herdeiros (ou legatários, pois, proposta ação, é legável) permite que a continuem, e a de assassínio do doador ou de impedimento do exercício da pretensão a revogar. A revogação pleiteia-se dentro do prazo legal, contado do dia em que chegue ao conhecimento do doador o fato. Quanto à legitimação regem os princípios gerais no tocante ao doador que se tornou absolutamente incapaz ou relativamente incapaz. Morto o doador, a ação iniciada contra o donatário pode ser continuada pelos herdeiros. Se após a litispendência faleceu o donatário, contra os seus herdeiros. Antes tivemos de tratar de caso especial, que exige interpretação da lei: se o donatário assassina o doador. A revogação não prejudica terceiros. Se A doou a B o terreno e B o alienou a C, não pode C ser atingido pela eficácia da sentença a favor de A. Salvo conluio (e. g., simulação). § 225. Casos de irrevogabilidade por ingratidão1.Doações especiais. A revogabilidade não atinge: a) as doações puramente remuneratórias; b) as oneradas com encargo; c) as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural; d) as feitas para determinado casamento. 2.Doações remuneratórias. Pré-exclui-se a revogabilidade por ingratidão se a doação só se fez porque se quis remunerar. Afasta-se que sejam irrevogáveis por ingratidão as doações a alguém que prestou serviços de pequena valia, em relação ao valor da doação. Por exemplo: A conheceu B quando, tendo parado o automóvel de A, B o levou a casa, com o seu; fizeram-se amigos, e A doou a B um terreno. Tal doação é revogável. Se B auxiliou A a tirar do atoleiro o carro e o consertou, e não quis, apesar de ter casa de consertos de automóveis, qualquer remuneração, a doação do terreno a B e’ “puramente” remuneratória. Quando alguns escritores entendem que, na doação remuneratória, o animas danandi, a intenção de liberalidade, deixa de existir, o erro é grave. O doador podia doar ou não doar; doou porque quis. Mais: não existia, sequer, dívida sem obrigação, ou sem ação; dívida não existia. Não se pode assimilar tal espécie à de quem paga divida desmunida de pretensão ou de ação, ou divida prescrita. Quem pensa doar por dar ao credor de divida prescrita, ou de divida sem pretensão ou sem ação, não doa: paga. Se o garçom serve o almoço e, a despeito de estar na conta o percentual da gorjeta, o freguês lhe entrega algumas notas, ou objetos. há doação, e não datio ob causam, erro de Cujácio, do Cardeal de Retes, de A. Leyser e de outros. Mesmo se de altíssimo valor o serviço, como é o caso de salvamento da vida do doador ou do seu barco (sem razão, por exemplo, L. Arndts, Lehrbuch der Pandekten, § 83, B. Windscheid, Lehrbuch der Pandekten, II, § 368, E. W. L. von Meyerfeld, Die Lehre uon den Schenkungen, 1, 368 s. e 375). As doações remuneratôrias são doações como as outras; apenas há a regra jurídica especial da irrevogabilidade. Não importa se estimável, ou não, o serviço. A doação remuneratória supõe que tenha havido serviços, ou méritos, ou que os haja, sem que exista qualquer relação jurídica entre o doador e o donatário, de que possa irradiar-se dívida. Remunera-se, com a doação, sem que se tivesse de remunerar. Não há pensar-se em parte onerosa e em parte gratuita: a doação remuneratória é integralmente gratuita; toda ela é gratuítamente feita, posto que com toda ela se remunere. A remuneração é só no mundo fático. 3. Encargos do donatário. Pré-exclui-se a revogabilidade por ingratidão dos contratos de doação em que haja “encargo”. Encargo é modus. Mas, aí, lei não devia referir-se, apenas, às doações modais: havemos de interpretar a regra juridica como abrangente das doações modais e das doações mistas. Por exemplo, a doação em que o donatário presta mensalidade ao doador (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 12 de dezembro de 1950, DO de 20 de outubro de 1952), ou a termo. Não é de admitir-se, porém, que não seja revogável por ingratidão, como pretendeu a 2ª Turma, a doação em que o doador se reserva residência no prédio doado. Aí,

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não há encargo, nem contraprestação; há limitação. As reservas não são encargos. Por exemplo: não é modal a doação com reserva do usufruto (e. g., 44 Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 14 de setembro de 1950, RT 189/403); nem a doação do prédio em que haja de morar o doador, ou de cujos aluguéis receba parte (sem razão, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 23 de fevereiro de 1948, RF 122/501). 4. Doações em adimplemento de obrigações naturais e doações por dever moral. São irrevogáveis, diz-se, por ingratidão as doações feitas em cumprimento de obrigação natural. Ora, o que se presta para se cumprir obrigação natural não é doação, é pagamento (ato-fato jurídico). O que se presta por dever moral — como se A dá a B um automóvel, porque B, para salvá-lo, se jogou no rio, e, na pressa, deixou o seu mal brecado, e o perdeu na ribanceira — está fora das regras jurídicas de revogabilidade. Não é fácil dizer-se determinada atribuição patrimonial, entre pessoas em contato de colaboração moral, ou de aequitas, foi doação remuneratória ou não. Em todo o caso, o problema tem a importância que assume diante dos outros sistemas jurídicos que também pré-excluem a revogação e a devolução se a doação correspondeu a dever moral. O que se presta por dever mora 1 é o que se presta por existir, na dimensão da moral, porém não na dimensão do direito, a vinculação. Para o jurista, esse liame é só no mundo fático. Mesmo se o caso é de honra, ou de decoro, sem dever jurídico. A apreciação há de ser feita com os dados do caso, inclusive pelo juiz (cf. Max Sossheim, Die Anstandsschenkungen im BGB., Juristische WochenschriJt, 1, 744), que responde à pergunta: há, ou não, dever moral? Na espécie, já se supôs, para que houvesse doação, a resposta negativa, no tocante a existência de dever jurídico (se houvesse, haveria sola tio, e não donatio); e se há de declarar se há dever moral, para que então se afaste a revogabilidade por ingratidão. Está incluída a doação por decoro? Não se pode dizer, em todos os casos, que a doação por decoro seja sempre doação por dever moral (Max Mahler, Die natàrlichen Verbindlichkeiten im BGB., 79): o que basta, ali, como elemento de pressão interior, não corresponde, sempre, à vinculação moral. Mas havemos de entender que está incluído no que se prevê em geral, a despeito de não serem o mesmo dever moral (sittliche Pflicht) e dever de ecoro ou cerimônia (Anstandspflicht). d

O dever moral pode ser resultante de relação do doador com terceiro (Otto Warneyer, Kommentar zum Borgerlichen Gesetzbuch for das Deu tsche Reich, 1, 873), como se A doa o dinheiro, para a passagem de aeronave, a B, filho de C, por ver E em dificuldades e lembrar-se de que C o salvara no banho de mar. Também o dever de decoro pode ser perante outrem, ou clube, ou empresa industrial ou comercial ou sociedade cultural. Os presentes aos dependentes e aos trabalhadores, a que não se tem de prestar salário, os presentes de natal, de festas, de aniversários, ou de outras ocasiões, são doações irrevogáveis por ingratidão. Idem, as “gratificações” de ano bom e outras aos trabalhadores. A regra jurídica sobre irrevogabilidade não pode ser invocada a propósito de doações entre cônjuges, por dever natural. Se parte da prestação do devedor foi por dever moral ou de decoro, essa parte é protegida pela irrevogabilidade (Max Sússheim, Die Anstandsschenkungen im BGB., iuristische Wochenschrift, 1, 744). A dotação (Ausstattung) — por exemplo, a que o pai, ou a mãe, ou quem criou e educou a pessoa, presta, por ocasião de instalar o consultório médico, ou o escritório de advocacia —corresponde a dever moral. Mas a tendência da doutrina é para incluir isso no que se presta por dever jurídico (cf. W. E. Knitschky, Dos Rechtsverhàltnis zwischen Eltern und Kindern, 99), tanto mais quanto, se A cria desde cedo filho de outrem, mesmo na dimensão do direito se tem de considerar com dever jurídico, embora as leis não tenham regras jurídicas explícitas.

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Se o protesto não foi regular (aliter, se não houve protesto) e está sem qualquer dever jurídico o endossante do título cambiário ou cambiariforme, mas doou ao credor o que ele deixou de receber do subscritor do título, em verdade doou por dever moral (Victor Ungnad, Der .Schenkungsbegriff, 41). Para se saber o que é dever moral, tem-se de atender à ética que existe na civilização ou no povo (Erich Kuhn, Welche Erscheinungen kennt das BGB., dei den gemeinrechtlichen Noturalobligationen gleichartig oder ãhnlich sind?, 107). Em todo o caso, é preciso que a moral ou os bons costumes imponham dever, que se repute dever moral ou dever de decoro. 5. Doação para casamento. Se a doação foi para determinado casamento, ou o casamento se celebra, ou não se celebra. No segundo caso, não há pensar-se em persistir a vinculação; no primeiro caso, enquanto se espera a celebração, a doação é irrevogável. Depois do casamento, seria discutível, na técnica legislativa, que se permitisse revogar por ingratidão doação que teve tal finalidade. 6. Eficácia da revogação. O efeito específico é a retirada da vox. Com a revogação da doação nasce a pretensão à restituição do bem que fora doado. Feita pelo doador a revogação, a pretensão à restituição transmite-se aos herdeiros ou legatários. Não se trata, aí. de revogação por herdeiro ou outro sucessor da causa de morte, mas sim de transmissão, a causa de morte, do direito ao bem ou aos bens que têm de ser restituidos. Se, revogada a doação, o donatário ficasse com o bem ou com os bens doados, injustificadamente estaria enriquecido. A responsabilidade do donatário à restituição, em caso de ingratidão, nada tem com a diferença entre o valor do que foi doado e o mais, no tocante ao grau da culpa (sem razão, Heinrich Hoeniger. Die gemischten Vertràge in ihren Grundformen, 297 s.). Cada quota se rege pelas regras jurídicas respectivas, sem se ter de verificar qual o grau de onerosidade para se medir a culpa (cf. Otto Schreiber, Gemischte Vertrãge im Reichsschuldrecht, iherings iohrbúcher, 60, 205 s.). Se foi proposta a ação de revogação por ingratidão, em caso de doação de bem imóvel, tem de ser feito o registro da citação, por se tratar de ação pessoal reipersecutória. Com a sentença trânsita em julgado, faz-se o registro.

Capítulo XI

Ação de revogação dos poderes de administração pelo comuneiro § 226. Administração do bem comum1.Administração comum. A regra é ser a comunhão administrada por todos os comuneiros. O comuneiro que administra sem oposição dos outros presume-se mandatário comum. Quando se diz que o comuneiro, que administra sem oposição dos outros, se presume mandatário, supõem-se atos do comuneiro que revelem estar administrando e, da parte dos outros, carência de qualquer ato, positivo ou negativo, que se interprete como contrário a esses atos. De modo nenhum se permitiu ao comuneiro assumir, a seu talante, a administração. Antes da distribuição, que é ato jurídico stricto sensu, os frutos pertencem a todos, cada fruto é de todos. As operações posteriores de distribuição e separação das porções é que tornam de cada comuneiro os frutos tais ou a porção tal. As circunstâncias dificultam, por vezes, a administração comum, ou um ou alguns dos comuneiros divergem de tal gestão própria dos negócios da comunhão. Em tal conjuntura, volvem os comuneiros a deliberar. Naturalmente, o que se há de buscar, de início, é o acordo unânime. A primeira solução — a da comum administração — falhou: não houve a unanimidade. Passa-se à segunda: a da venda. Se todos acordam, vende-se a coisa comum. Se algum dos comuneiros não concorda, não se vende. Se a coisa é divisível, e não há vedação legal ou negocial da divisão, divide-se, se um dos comuneiros quer divisa a sua parte. Se não há

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divisibilidade, ou se nenhum deles a pede, seria absurdo manter-se o principio da unanimidade de deliberação dos comuneiros. Se, por circunstância de fato ou por desacordo, não ser possível o uso ou uso e o gozo em comum, resolvem os comuneiros se a coisa deve ser administrada, vendida ou alugada. Se todos concordarem que se não venda, à maioria compete deliberar sobre a administração ou locação do bem comum. Para a administração já é a maioria que decide, pois que falhou a administração em comum, falhou a venda, e não cabe dividir-se. 2. Administração sem explícita deliberação. Primeiro se há de resolver se a coisa deve ser administrada. Depois, sobre quem a deve administrar. Existe situação especialíssima, que se esboça quando nem todos os comuneiros querem tomar parte na administração e um ou alguns efetivamente administram a coisa. Então, a resolução sobre a administração e a escolha dos administradores são um só ato. Porém seria erro atribuir-se a essa tacitude, a esse administrar pela não-oposição, todos os efeitos que teria a resolução explícita, formal, de que seja administrada a coisa, e sobre quem a administre. Por isso mesmo, a lei se há de se satisfazer com a presunção juris tantum. O comuneiro que administra sem oposição dos outros, presume-se mandatário comum. A regra vem do Esboço de Teixeira de Freitas, art. 4.358, passou ao Código Civil argentino, art. 2.709, e produz situações que outros sistemas jurídicos não conhecem. O comuneiro que administra presume-se com o mandato dos outros. Despesa, ou divida, que, feita por ele somente, a ele obrigaria, obriga a todos se é ele quem administra e se trata de ato de administração. Consequência: o ônus de afirmar que não houve mandato cabe aos outros comuneiros, na ação que alguém propuser contra eles, pelo ato do comuneiro presumidamente mandatário; e, sobre esse ônus, o de prová-lo. Não havendo essa situação, especial, têm de reunir-se os comuneiros para resolverem sobre a administração e, depois, sobre quem administra. A convocação pode ser verbal ou escrita, judicial ou extrajudicial. De qualquer modo, assente sobre a administração que não se quer vender, a maioria é que decide. Respondido que se vai administrar a coisa, sem ser comum a administração, o que ex hypothesi, falhou, ou a) se passa, desde logo, à escolha do administrador ou dos administradores, ou 14 se não resolve quanto a esses. Aqui, a tolerância da administração por um ou mais comuneiros, tal como se prevê em leis, reforça, no plano dos fatos, a presunção legal relativa ao mandato. 3. Escolha. As leis não cogitam de qualquer regra jurídica que dê aos comuneiros a preferência para a administração eleita. A maioria escolhe quem bem quer, inclusive um dos que votaram, ou todos os que votaram, menos um ou alguns. Não se pode pensar na administração por todos, porque isso, segundo a própria hipótese, foi posto de lado. (Não se conclua daí que se não possa voltar a essa solução.) Pronunciando-se a maioria dos comuneiros pela administração, escolherá também o administrador. Escolhido algum ou alguns comuneiros, ou algum ou alguns terceiros, a relação entre eles e os outros comuneiros ou comuneiro é a de mandato. Teixeira de Freitas viu bem a categoria de que se tratava. Se o comuneiro administra sem mandato, ainda presumido, isto é, com oposição dos demais, então responde como gestor de negócios alheios sem mandato. § 227. Deveres, função e permanência 1.Deveres e obrigações do administrador. Os deveres e obrigações do administrador da comunhão, seja comuneiro ou terceiro, são os deveres do mandatário. Cabe-lhe, a mais, repartir os frutos e rendimentos, fazer as despesas necessárias e úteis, dar infomnes que os comuneiros desejem, representar os comuneiros em juízo e fora dele, em tudo que concerne à administração. Fora dos atos de administração, precisa de mandato com poderes especiais e expressos — unânime — dos comuneiros. 2. Ato de administração. Tudo que atinja o ius in re escapa ao conceito de ato de administração (vender a coisa, ou parte dela; constituir usufruto, servidão etc.).

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São atos de administração os que consistem: a) na colheita e venda dos frutos: b) em segurar a coisa, ou parte dela, ou bens móveis que entram na comunhão; c) na instalação de serviços sanitários, de escoamento, de gás, luz e força, de extintores de incêndio, de caixas ou canos de água; d) na limpeza normal das peças e do exterior dos edifícios; e) nos consertos e mais reparações; 1) na cobrança de aluguéis. Quanto aos atos de administração, rege o principio da suficiência da maioria, para os atribuir ao administrador; ao passo que o administrador somente pratica atos de disposição, se lhe conferiu poderes, especiais e expressos, a unanimidade dos comuneiros. 3. Maioria. No direito brasileiro, a maioria é formada segundo o valor dos quinhões, e não pelo número de pessoas. De modo que um só comuneiro, se tem 50 + x%, pode tudo decidir quanto à administração, quem administre e os atos que tem a praticar. Em todo o caso, pode dar-se o empate, isto é, haver a favor da resposta “Sim” 50% e a favor da resposta “Não” 50%. Então, decide o juiz, a requerimento de qualquer comuneiro, ouvidos os outros. Nas espécies em que o juiz resolve, a decisão obriga a todos os comuneiros como a da maioria absoluta obrigaria. Nos assuntos em que se faz mister a unanimidade, não se pode submeter à maioria, nem ao juiz qualquer resolução. Porque a maioria somente resolve quanto à administração. Porém, em tudo que concerne à administração, o administrador tem poderes, que só a maioria dos comuneiros pode retirar, respeitados, ainda assim, os prazos da nomeação. A posse imediata do administrador é de defender-se contra um dos comuneiros, ou grupos de comuneiros; ou todos os comuneiros, se o título não permite que o destituam. Segundo regra jurídica, que é dispositiva, as contas têm de ser prestadas em data certa e não pode a maioria adiá-las, exigi-las antes da data; de modo nenhum dispensá-las. Em casos de malversação, ou mudança de estado que inabilite o administrador para exercer o cargo, ou quando a administração cause danos, qualquer dos comuneiros tem ação para revogação dos poderes. Cada um dos comuneiros responde ao administrador pelo que corresponde à sua quota, e não solidariamente como seria no mandato comum.

Capítulo XII

Ação de separação consensual e ação de separação litigiosa § 228. Separação judicial em geral 1.Conceito de separação judicial e pressuposto de existência do casamento. A expressão separação judicial”, que a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. adotou, para designar a dissolução da sociedade conjugal, conservando-se o vínculo (faedus matrimonii), corresponde ao divórcio canônico, que se superpusera, no tempo, ao divórcio romano. A indissolubilidade do vínculo, onde se mantém nas formas jurídicas, perdeu quase toda a significação, sob a complacente atitude de tolerância com que os crentes aceitam a hipocrisia das anulações de casamentos. A sua conservação é um dos índices de que a personalidade humana está em decadência nesses países; o favorecimento das anulações, a recepção desses casamentos nos meios ditos católi-cos, é índice de quanto a hipocrisia constitui a base da sociedade politica. E tão grave o dano que advêm disso e tão profundas as consequências, que os povos imperialistas protestantes prestigíam todos os movimentos a favor do vinculo nos povos de cuja desordem psicológica e econômica tiram proveito. A política alemã na Itália, antes da guerra e provavelmente depois, ordenava que se combatesse, fora da Alemanha, a adoção da lei do divórcio. Sobre a história do divórcio católico, Direito de Família, 2ª ed., 1, 345-349, e 3ª ed., 1, 412-419; Tratado de Direito Privado, VIII, § 829. A separação judicial supõe a existência do casamento. Enquanto não se declara a inexistência ou não se pronuncia a nulidade do casamento, pode ser pedida a separação judicial.

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Ao juiz da separação judicial não é dado, salvo em reconvenção, decretar a nulidade, ou pronunciar anulação. Não assim, se trata de matrimônio não-existente. Então, cabe-lhe recusar-se a decidir a separação judicial, quanto ao mérito, declarando, antes, a inexistência. Toda ação de separação judicial, que é ação constitutiva, a despeito da forte dose de condenação (exceto na separação consensual), leva consigo, implícito, ponto prejudicial de existência. Daí terem os que promovem a separação judicial de provar a existência do casamento (Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1925; Corte de Apelação de São Paulo, 25 de julho de 1934). Se não está junta a certidão, ou prova que a supra (Tribunal de Justiça de São Paulo, 25 de fevereiro de 1919; V Câmara da Corte de Apelação do Distrito Federal, 26 de abril de 1923), é de converter-se o julgamento em diligência para que o façam as partes (Tribunal de Justiça de São Paulo, 4 de agosto de 1906), e a qualquer tempo, pendente a lide, pode exigi-lo o juiz. Não há, porém, inconveniente em que, justificada a urgência da separação e certa prova do estado de casados, e esclarecida a dificuldade de ser atendido o despacho, se homologue a separação consensual, ou se profira sentença no processo de separação litigiosa em que ambos os cônjuges afirmam a existência do casamento. Se, sem prova do casamento, o juiz proferiu a sentença de separação judicial e, após recurso, ou sem ele, a decisão passou em julgado, ou se passou em julgado decisão de outro grau de jurisdição, que, provendo ao recurso de sentença denegatória, o concedeu, não constitui tal resolução prova do casamento. Pode ser invocada como um dos meios e prova, na posse de estado de casados. Na Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, art. 46, diz-se que, “seja qual for a causa da separação judicial, e o modo como esta se faça, é permitido aos cônjuges restabelecer a todo o tempo a sociedade conjugal, nos termos em que fora constituída, contanto que o façam mediante requerimento nos autos da ação de separação”. 2. Ação e sentença de separação judicial e pedido de decretação de nulidade ou anulação do casamento. A ação ou a sentença de separação judicial não obsta ao pedido de decretação de nulidade, ou de anulação do casamento, nem a litispendência da ação de nulidade ou de anulação obsta ao pedido de separação judicial. Se passou em julgado a sentença que decretou a nulidade, ou que anulou o casamento, não mais se pode pedir a separação judicial: o casamento não existe mais. Nem a separação judicial decretada persiste. 3. Espécies de separação judicial. Duas são as espécies de separação judicial: a) a separação consensual, que é permitida, por mútuo consentimento dos cônjuges, se forem casados por mais de dois anos; b) a separação litigiosa, erradamente dita “judicial’, em que um dos cônjuges imputa ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum. 4. Pressupostos da separação consensual. São pressupostos da separação consensual: a) estarem casados os cônjuges, há mais do prazo legal (datando-se o pedido, portanto, pelo menos, do dia imediato ao término do segundo aniversário); b) consentimento dos cônjuges, conjuntamente manifestado perante o juiz; c) homologação judicial. Nada obsta a que os cônjuges acordem em que a separação seja apenas quoad lectum, permanecendo eles sob o mesmo teto — o que suscita a questão de se saber se os filhos da mulher, concebidos após a separação, se presumem do marido. Diante do art. 341 do Código Civil, não seria possível ao pai invocar a só separação legal para excluir a filiação. Com outro teto extingue-se a presunção. A ação de separação consensual pode ser proposta a despeito da existência de pedido de separação litigiosa. Não há litispendência contra ele; nem o pedido de separação litigiosa determina a competência por conexão (certa, a V Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 18 de março de 1941, RF 87/132), nem previne a competência. A separação consensual pode mesmo ser aforado noutro juízo que o do domicílio dos cônjuges, ou do marido, ou da mulher, que é o das separações litigiosas em geral. Por outro lado, a propositura da separação litigiosa depois da separação consensual não impede que os cônjuges prossigam nesse. Não se dá litispendência contra aquele, nem fica determinada a competência pela conexão, nem prevenida. A razão é simples: não há eadem causa petendi; e a separação consensual conserva certa liberdade de aforamento, própria da maioria das ações constitutivas. No art. 1.123, o Código de 1973 fez licito às partes, a qualquer tempo, no curso da separação litigiosa, requererem-lhe a conversão em separação consensual, caso em que se há de observar os arts. 1.121 e 1.120, § 1ª, 1ª parte. A conversão não se confunde com o que expusemos acima a respeito de duplicidade de pedido ou de extinção de um e permanência do outro.

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A sentença de homologação da separação consensual é de força constitutiva negativa, se considerarmos que o estado natural é o de não-casado, e o casamento, vinculo que declarações de vontade das partes constituíram, se expõe apenas à data da propositura da ação e à eficácia da sentença. O “consentimento” o ato dos cônjuges, o seu negócio bilateral para a separação judicial é juridicamente relevante, posto que precise da homologação que o integre. A validade das cláusulas pode ser apreciada pelo juiz, não lhe sendo possível decretar a nulidade das que só em ação seriam alegáveis pelas partes. Tudo depende, pois, dos princípios de direito material. Demasiado largo o acórdão do Tribunal de Apelação de Santa Catarina, a 26 de novembro de 1943 (J 1944/109). Todavia, o juiz pode invocar o art. 1.109 do Código de 1973. Convertida em ação de separação consensual a ação de separação litigiosa, processa-se na forma da lei, apresentando-se a petição com os requisitos do Código de 1973, arts. 1.120 e 1.121 (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 30 de março de 1951, RT 192/732). 5. Petição de separação consensual. No caso de separação consensual, devem os cônjuges apresentar ao juiz a petição, a ser assinada por ambos, ou, se não sabem ou não podem escrever, por outrem, a rogo deles, além dos advogados, ou do advogado comum, não sendo de se desprezar o despacho do juiz para que se tome por termo o pedido. No direito anterior a 1939 era repelida a assinatura a rogo. O Código de 1973 e a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de1977, permitem-na, com firma reconhecida se não lançada na presença do juiz. Uma só pessoa pode assinar a rogo por ambos os cônjuges, se é o caso (Turma Julgadora do Tribunal de Justiça de Alagoas, 23 de abril de 1948. RCJB 80/201). Em vez disso, podem constituir procurador, por escritura pública, se não podem ou não sabem escrever (sem razão, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a 3 de agosto de 1948). Se sabem e podem escrever, não pode ser assinada por procurador a petição (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 12 de outubro de 1948, RT 177/716). A procuração pode ser por instrumento público, se o cônjuge não sabe ou não pode escrever. Quem pode o mais pode o menos, — mas é procuração em que o texto da petição deve ser inserto. Exige-se a assinatura dos cônjuges no pedido de separação consensual. Dai procurou tirar a Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Santa Catarina, a 19 de março de 1945 (J 1945/93), que se exigia ser feita aos cônjuges, e não aos procuradores ou advogados, a intimação da sentença; mas a mesma Câmara Cível, a 14 de maio e a 4 de junho de 1945 411945/244), afastou-se de tal ilação. A prova que valha a certidão de casamento é a que se determine em direito material. A exigência que fez o Código de 1939, art. 642,1, de se instruir a petição com o contrato antenupcial atendia a que o juiz precisa saber qual o regime matrimonial dos separandos. No Código de 1973 retirou-se a alusão, de modo que apenas, muitas vezes, há conveniência, porque se faz a descrição dos bens do casal. Tem de ser feita a declaração de bens. Comunicação de conhecimento e não declaração de vontade, quanto aos bens que são comuns e, o que é conveniente, quanto aos bens que são próprios, ou apenas quanto aos bens somente comuns. Exteriorização da vontade de ambos os cônjuges, dirigida ao juiz, de modo que a declaração de vontade, que aí se faz, ainda não é o negócio jurídico, uma vez que a cooperação da autoridade, que é o juiz, é necessária ao negócio jurídico da partilha dos bens dos separandos. A distinção entre comunicação de conhe-cimento e declaração de vontade é relevante, na teoria e na prática. Por aquela, pode ser responsabilizado o cônjuge que deu a informação ao outro, ou que escreveu a petição, se o outro não pode ler. A declaração não contém afirmações, mas vontade. Não é essencial a declaração de vontade sobre a partilha dos bens; mas a comunicação de conhecimento sobre os bens é essencial; sobre ela repousará o inventário, podendo fazer-se nova comunicação (complemento, não retificação da relação anterior) se, por ocasião da partilha, se tiverem de inventariar outros bens. E essencial a descrição dos bens do casal na petição inicial (1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 7 de outubro de 1940, 17 de novembro de 1941, 8 de junho de 1942, RT 128/244; 134/576; 136/677; 3ª

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Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 28 de julho de 1947). É escusada se não há bens. Ou se as circunstâncias mostrarem que não se pode, no momento, saber quais sejam esses bens. Não se submete o interesse de assunto ligado à pessoa ao interesse de ordem econômica. Se um dos cônjuges abre mão de algum bem, de modo que o outro recebe mais do que lhe tocava, paga esse os impostos de transmissão de imóveis, como liberalidade (1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 4 de maio de 1948, RT 174/665). A Câmara Civel do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a 21 de março de 1946 (i 212), entendeu que não prevalece (isto é, não é eficaz) o acordo que desobriga um dos cônjuges de prestar assistência aos filhos do casal. Não está certo. Se julgou e transitou em julgado a decisão, só a ação rescisória poderia caber. A questão nada tem com a pretensão dos filhos a alimentos. O acordo sobre os bens em que fica evidente o prejuízo de uma das partes não deve ser homologado (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 29 de setembro de 1942, RT 140/614). O juízo da separação judicial não é próprio para atos de liberalidade que infrinjam limites legais às doações; a fortiori, se não há aplicação das regras jurídicas sobre criação e educação dos filhos e alimentos ao cônjuge. A ação de sonegados pode ser proposta em caso de inventário em separação judicial (lª Turma de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 24 de setembro de 1951, RT 205/532), ainda se litigiosa (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 5 de abril de 1951. 192, 772). 6. Acordo sobre a guarda dos filhos. O acordo sobre a guarda dos filhos é declaração de vontade. Somente se há de entender como tal; e a regra legal sobre a guarda dos filhos é, ai, dispositiva, ou interpretativa. Em consequência, o juiz não pode homologar a separação judicial se a) no acordo, um dos cônjuges renunciou a direito irrenunciável, e. g., ao pátrio poder (a guarda dos filhos pode ser objeto de pacto); ou b) um dos cônjuges se isentou de algum dever cogente quanto aos filhos; ou c) se nada se estabeleceu sobre o sustento em sentido lato (criação), ou educação dos filhos. 7. Criação e educação dos filhos. A criação dos filhos compreende comida, casa, vestes, remédios, médico etc.; a educação, o meio em que hão de viver, as convivências e a escola. A decisão que homologa a cláusula da separação consensual concernente aos filhos, ou que foi inserta pelo juiz, pode ser modificada, se as circunstâncias por modo tal mudaram que se impõe a modificação, no interesse do filho ou dos filhos (ação de modificação). Na espécie, a ação pode ser iniciada pelos cônjuges, inclusive em acordo modificativo, que se leve à homologação, ou pelo Ministério Público, pois que foi ouvido sobre a cláusula, ou. de ofício, pelo juiz. Competente para julgar a ação de modificação de cláusula da separação judicial sobre os filhos é o próprio juiz da separação judicial, e não o do domicílio posterior dos pais, ou dos filhos (7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 17 de julho de 1951). A 8ªCâmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 13 de janeiro de 1950 (Di de 8 de janeiro de 1951), entendeu que, na separação consensual, não podem os cônjuges estabelecer o internamento dos filhos. A confusão ressalta. A cláusula é licita. Se as circunstâncias posteriores sugerem aos separados judicialmente outra solução, podem eles modificar aquilo em que acordaram. Tais circunstâncias, quando sejam concernentes a interesse dos filhos, ou do filho, ou, ainda, a algum ou alguns deles, podem ser tão importantes que perfaçam a pretensão de qualquer dos separados judicialmente ou do Ministério Público à modificação da cláusula. Trata-se, então, de ação de modificação,que pode ser iniciada pelo juiz, de ofício. A ação de modificação é inconfundível com a de suspensão do pátrio poder, exercida após o trânsito em julgado da sentença proferida na ação de separação judicial. Quando o 1ª Grupo de Câmaras Civis do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 14 de novembro de 1950, e a 2ª Câmara Civil, a 20 de junho de 1950 (RT 190/216 e 188/247), julgaram que motivos graves podem dar ensejo a’ “alteração” das cláusulas adotadas na ação de separação judicial a respeito dos filhos ou por serem os fatos

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alegados “desabonadores da conduta do genitor prejudicado”, ou porque tais fatos possam ser nocivos ao “bem-estar do menor” ou ao “seu desenvolvimento físico e moral”, como se houve prematura internação em estabelecimento de ensino, andaram perto da distinção entre as duas ações — a de modificação da cláusula da separação judicial e a ação de suspensão ou mesmo de perda do pátrio poder, ação que não modifica o acordado na separação judicial, ou estabelecido pelo juiz, e apenas tem eficácia que atinge a esfera jurídica dos pais ou de um deles. 8. Pensão alimentícia entre os cônjuges. A pensão alimentícia do cônjuge A ao cônjuge B é dependente das necessidades do cônjuge B e dos meios do cônjuge A. A sentença, nesse ponto, é sujeita à mudança das circunstâncias. Pode dar-se que nada haja querido o cônjuge B. O direito a alimentos, na ação de separação judicial, pode não ser exercido. Todavia, homologada a separação judicial, a necessidade posterior de prestação alimentícia não faz titular de pretensão a alimentos o separado judicialmente, salva a ação de nulidade ou de anulabilidade do acordo, se é o caso (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 22 de julho de 1947, DJ de 17 de fevereiro de 1949; sem razão, a Turma Julgadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, a 26 de março de 1947, RF 117/515, e 1ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1947, 12 de abril, 2 e 6 de setembro de 1948; 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 24 de abril de 1947, RT 168/270). Pode dar-se mesmo que haja base para a ação rescisória. A regra jurídica sobre irrenunciabilidade do direito a alimentos não concerne a alimentos em ação de separação judicial (Tratado de Direito Privado, IX, § 1.001, 1; sem razão, a Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 29 de abril de 1947, e a 44 Câmara Civil, a 4 de dezembro de 1947 e 5 de fevereiro de 1948, RT 168/707; 172/199 e 173/305. Certas a 6ª Câmara Civil, a 12 de dezembro de 1945, 172/231, e a 44 Câmara Civil, a 24 de setembro de 1948, 177/325). 9. Ação de modificação. A ação de modificação da cláusula de alimentos ao cônjuqe, - por mudança de circunstâncias, somente se pode referir à importância da prestação (cf. Supremo Tribunal Federal, a 6 de dezembro de 1950, RT 209/476, Ai 97/391; 1ª Turma, 11 de julho de 1949, RT 194/474; 54 Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 13 de março de 1951, RF 137/116; 8ª Câmara Cível, 9 de outubro e 22 de novembro de 1951; 2ª Turma do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, 21 de agosto cÍ T951, H71E3 VVSS4J E g, se sobre veio grande desvalorização da moeda. Se o separado judicialmente, para o qual não se cogitou de pensão alimentícia, vem, mais tarde, a precisar dessa, não lhe nasce pretensão (Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Ceará, 21 e 28 de maio e 24 de setembro de 1951, JD 11/28/50, 111/54 e IV/108/145/149, RT 205/52 1, com algumas decisões discordantes datadas de 18 de fevereiro de 1952, JD V/53 e 56, e VII/171; 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 3 de agosto de 1949, RF 128/144; 8ª Câmara Cível, 18 de julho de 1950, RT 194/365; 6ª Câmara Cível, 8 de agosto de 1950; Seção Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 25 de setembro de 1950, e 1ª Câmara Civil, 28 de março de 1950, RT 189/895/619; 3ª Câmara Civil. 20 de setembro de 1951, 195/226,RF145/311 e 16 de junho de 1952, 203/186; sem razão, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, a 2 de outubro de 1951, RT da Bahia, 44/400; 1ª Câmara Cível, 18 de dezembro de 1951, 45/274; 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 12 de junho e 24 de agosto de 1951, RF 142/230; 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 14 de agosto de 1952, RT 204/268; 2ª Câmara Civil, 9 de setembro de 1952, 206/285). Se era ignorado o paradeiro do cônjuge A, que assinara a petição, e depois se descobre que poderia dar ao cônjuge E pensão alimentícia, entende-se que não houve renúncia (1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 13 de setembro de 1951). 10.Exigência do reconhecimento da firma. A espécie é de pressuposto de validade, de modo que se sana a nulidade com o reconhecimento posterior à entrega da petição, ou há ratificação em juízo. A exigência do reconhecimento da firma por tabelião é somente quanto à assinatura não-lançada na presença do

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juiz. Se não houve, converte-se o julgamento em diligência para que seja reconhecida a firma (6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 9 de fevereiro de 1951, RT 191/677, RF 146/321; 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1951), ainda que no segundo grau de jurisdição. A solução de se decretar a nulidade (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 24 de abril de 1951, RT 193/272) viola os princípios do direito processual civil. Se foi arguida e não atendido o arguente, a sentença, que transitou em julgado, é rescindível por violar literal disposição de lei. A exigência do reconhecimento da firma, nada tem com a assinatura do procurador judicial (6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 5 de dezembro de 1952, RT 208/296). Só se refere às assinaturas dos cônjuges. Se só um dos côniuges não podia assinar e o outro assinou, aquele tem o tratamento do art. 1.120, § 1ª, e esse, o do art. 1.120, § 2ª, do Código de 1973. Na hipótese de ambos poderem assinar e terem assinado, mas um na presença do juiz e o outro não, a assinatura desse tem de ser reconhecida por tabelião. 11.Acordo sobre a partilha dos bens. A partilha dos bens, se houve acordo, é parte integrante da sentença da homologação, ainda que o juiz exclua a parte ilícita ou contra os bons costumes, separável. Se não houve acordo, procede-se a inventário dos bens. De modo que o requisito da declaração de vontade sobre os bens do casal (comuns) não é essencial ao pedido. Não tendo havido a declaração de vontade quanto aos bens, não houve sentença sobre os bens, mesmo que tenha havido sobre os bens comuns alguma comunicação de conhecimento. A partilha feita na separação judicial dispensa o inventário posterior, judicial (4ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 14 de janeiro de 1944, J 22/14). Inventariante, no processo de inventário e partilha, é qualquer dos cônjuges, porquanto os direitos, pretensões e ações referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (Constituição de 1988, art. 226, § 59) 12.Partilha em execução da sentença de separação judicial. A partilha, se não houve acordo, tem de ser em execução da sentença de separação judicial, que é sentença de separação de corpos e de bens. A sentença é o título executivo e dá a base ao inventário judicial e à partilha. Trata-se de ação de inventário e partilha no mesmo processo, salvo se as partes preferirem fazer noutro processo, ou se, tendo morrido um dos cônjuges, se prefere, por economia processual, levar a partilha entre os cônjuges ao juízo do inventário e partilha dos bens da herança. (Teoricamente, observe-se que a sentença constitutiva negativa da separação judicial tem efeito executivo. Efeito, e não força. A semelhança das sentenças condenatórias. Porque tem efeito executivo, há ação de partilha, que é executiva, fundada no título executivo da sentença de separação judicial). São de invocar-se as regras juridicas sobre bens não suscetíveis de divisão cômoda e adjudicação, em se tratando de partilha por separação judicial? (cf. 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 10 de outubro de 1951). Ao cônjuge assiste na partilha por separação judicial a mesma atenção que a lei lhe reconhece na partilha por morte do outro cônjuge. A fortiori, pode ser pedida a adjudicação antes da hasta pública, ou do leilão. 13.Partilha inclusa no acordo inicial. O juiz não pode obrigar a que na separação consensual se faça desde logo a partilha. Pode não ser possível no momento o acordo, ou ser de conveniência, para os cônjuges, que só se faça depois. A omissão da partilha só é dependente dos cônjuges. Se houve acordo e, antes da homologação, um dos cônjuges alega erro, dolo ou outro defeito de vontade, a decisão do juiz que, homologando a separação judicial, deixe de fora a partilha, se entende que remeteu os interessados às vias ordinárias (anulabilidade do acordo, negócio jurídico bilateral). O que o juiz não pode fazer é indeferir o pedido de homologação por considerar elemento necessário a partilha (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 17 de janeiro de 1950, 1W 132/90, QD 70/173; Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Espirito Santo, RTCJES VII, 507). A descrição e a

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avaliação, sim, são requisitos necessários. Se os bens são atribuidos em sua totalidade ou por mais de metade ao outro cônjuge, há doação (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 2 de maio de 1952, RT 202/27 1), ou outro negócio jurídico de disposição. A afirmativa de 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 2 de maio de 1952 (RT 202/27 1) no sentido de somente poder haver doação após a partilha, é de repelir-se. Doa-se parte pro indiviso, doa-se a metade em determinado bem, o que pode ser feito antes da partilha, ou fora da partilha; doa-se por negócio jurídico incluso no acordo de partilha, para que se considere cláusula desse e dependa da homologação da partilha (pode ser concebido, aliás, como separável, só dependente, portanto, da homologação da separaçâo judicial). Se atribuem todos os bens a um só dos cônjuges, entende-se que houve partilha e doação, ou partilha e outro negócio jurídico, oneroso, devendo-se respeitar os princípios concernentes ao negócio jurídico que está à base da atribuição. Entende-se, outrossim, que se respeitou o princípio de igualdade (imprópria a explicação que dá a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 11 de junho de 1948, RF 126/89): ainda se atribuem todos os bens, houve, implícita, a partilha, na qual é de se supor que se hajam observado os princípios pertinentes. 14. Audiência dos cônjuges. O juiz tem de ouvir os cônjuges sobre os motivos do pedido. A ratificação do pedido de separação judicial é formalidade essencial e constitui parte integrante da comunicação de vontade e da declaração, que foi a petição inicial no juízo dúplice da separação consensual. Pode esclarecer algum item da petição, até mesmo alterá-lo, desde que mantenha o pedido de separação consensual. Ratificado o pedido, o desaparecimento do cônjuge não obsta à homologação (Tribunal de Justiça de São Paulo, 12 de fevereiro de 1913); não assim, a morte, ainda que a separação judicial esteja em grau de apelação (1ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 9 de julho de 1906, RD 1/368; Tribunal de Justiça de São Paulo, 28 de fevereiro de 1919). Aliter, se em grau de recurso extraordinário, intentado do acórdão que reformou a sentença homologatória por quaestio iuris segundo o art. 102,111, a), b), c), da Constituição de 1988. E preciso cuidado em não se confundirem as ações de nulidade de casamento (absoluta e relativa) com as ações de separação judicial. As de nulidade dizem respeito ao passado, o elemento declarativo é maior, posto que sejam ações constitutivas. As ações de nulidade e anulação correm contra o morto. Não coincidem a legitimação ativa e a legitimação passiva, nas ações de nulidade ou anulação, e nas ações de separação judicial. As ações sobre existência do casamento são ações declarativas. 15. Ratificação ou retratação. Sob o Código de 1939, art. 643, que provinha do Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, art. 86, havia prazo legal inicial de reflexão, para se ratificar, nunca menor de quinze dias, nem maior de trinta. A ratificação antes de iniciado o prazo não valia (nulidade não-cominada). Dizia-se que não valia se depois de expirado, salvo força maior (Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 30 de outubro de 1947, AJ 87/274; 5ªCâmara Cível, 11 de maio de 1951, DJ 16 de abril de 1953; 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 5 de fevereiro de 1947, RT 166/616, e 5 de junho de 1947, 168/678), mas isso se chocaria, hoje, com o art. 1.122, § 2ª, do Código de 1973. A ratificação tem de ser feita pessoalmente. Não se admite representação (2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, 20 de janeiro de 1948, Paraná i 47/171). A ratificação há de ser na presença do juiz (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 8 de setembro e 20 de novembro de 1947, RT 170/583; 6ª Câmara Civil, 2 de maio de 1947 e 27 de fevereiro de 1948, 167/688, e 173/738; 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 19 de julho de 1948, Há 37/52; 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 17 de março de 1951) e por ele assinada (sem razão, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 15 de setembro de 1947, OD 50/254). A 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 20 de novembro de 1947 (RT 171/648), permitiu a ratificação perante o juiz no dia, e a lavratura e assinatura do termo noutro dia, o que é contra os princípios (com razão, a 6ª Câmara Civil, a 2 de abril e a 13 de agosto de 1948, 173/742, e 176/652, e a 1ª Câmara Civil, a 14 de setembro de 1948, 177/304, que manda ouvi-los de novo). Se um dos cônjuges (3ªª Câmara Civil, 16 de setembro de 1948, 177/316: 1ª Câmara Civil, 28 de outubro de 1948, 178/166; sem razão a 2ª Câmara Civil, a 28 de setembro de 1948, 177/611); porém nada impedia que se fixassem dois prazos (cp. 3ª Câmara Civil, 20 de abril de 1950, 186/710). Quanto à designação do dia, há de ser depois de se haver completado o prazo mínimo; portanto, se o prazo foi de quinze dias, no décimo sexto dia, não incluido o dia do despacho. Tinha de ser pedida de inicio, ou após a

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marcação do prazo, ou após se haver completado o prazo. Se o juiz designou o dia no despacho de fixação do prazo, sem que se houvesse pedido a designação, entendia-se que o fez por ter sido implicito o pedido de designação, e hão de manifestar-se os cônjuges, aceitando a designação ou não a aceitando, pois, aceita, expressamente ou pela ciência sem imediata manifestação de não servir o dia a ambos, ou a um deles, surge o dever de comparência, só invocável para que não se torne ineficaz a petição inicial com a invocação da regra juridica sobre força maior. A designação de outro dia pelo juiz era nula (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 2 de abril de 1950, RT 187/800), salvo se houve impedimento ou não-comparência do juiz, ou se vai haver impedimento ou não-comparência desse ou se ocorreu para qualquer dos cônjuges motivo justificado de não-comparência. Se o juiz havia marcado prazo que foi de menos de quinze dias e a ratificação se deu no décimo sexto dia, não havia nulidade; porque decorrera o tempo mínimo de reflexão. Era erro dizer-se como disse a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,a 26 de dezembro de 1952, que era nulo o processo se o prazo de reflexão concedido aos cônjuges foi inferior a quinze dias. Nulo seria o despacho, nessa parte; e nula a ratificação que antes do décimo sexto dia se operou. Se depois ou no décimo sexto dia, satisfeita foi a ratio legis. A qualquer tempo, ainda que em grau de recurso, as partes podem desistir (Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1919); mas um só, depois da ratificação, não pode desistir (Direito de Família, 1, 2ª ed., 377). Se a separação judicial não foi homologada e houve recurso de ambas as partes, ou de uma, podem ambas desistir dos seus recursos, ou a que recorreu desistir, sozinha. Aí não há retratação do pedido, mas desistência do recurso. A 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 24 de setembro de 1940 (RT 128/240), entendeu que a falta de audiência dos cônjuges não acarreta nulidade do processo. Tal afirmação romperia com o princípio da relevância de todas as regras de forma e com o principio da relevância das regras sobre audição das partes. Ora, o art. 1.122 é insofismável: ‘t. ouvirá os cônjuges Trata-se de nulidade não-cominada. O que se pode passar é o que se passaria com qualquer outra nulidade dessa natureza (Código de 1973, arts. 244-249, 245 e 248), principalmente o que se prevê nos arts. 244, 248 e 250. A mesma 2ª Câmara Civil julgara bem, pronunciando a nulidade, no acórdão de 26 de maio de 1942 (RT 137/643), tal como, anteriormente, a 1ª Câmara Civil, a 10 de março de 1941 (RT 130/667). A expressão “ratificar” está, aí, em vez de “recomunicar” e não no de “declarar ex novo”. E integração. Morto um dos cônjuges, extingue-se a pretensão à separação judicial, pois, a ação. A 1ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal (9 de julho de 1906, RD 1/368) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (28 de fevereiro de 1919) assim julgaram. Posteriormente, a 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo (23 de julho de 1942, RF 92/718) entendeu que a morte, depois de homologada a separação consensual, quando em grau de apelação a ação, não a extingue. Negar-se-ia, assim, o principio de que em causa de separação judicial, ou de divórcio, não cabe sucessão. A solução seria injusta, porque eliminaria a retratabilidade essencial à ação e estabeleceria coisa julgada formal, sem comunicação da sentença a uma das partes, a que faleceu. As próprias ações de nulidade de casamento são, a priori, sem sucessão: é a lei que abre exceções a isso. Admitir-se que se constitua a separação judicial (ou o divórcio), cuja sentença é constitutiva negativa ex nunc, quando não há mais casamento, pois um dos cônjuges morreu, seria absurdo. Esse argumento não prevalece quanto às ações de nulidade de casamento, porque essas são de eficácia constitutiva negativa ex tunc: no passado há casamento, para ser decretada a nulidade, se a lei acha que deve admitir a hereditariedade da ação iniciada. Naturalmente, não se está a cogitar da ação de nulidade de casamento em que houve a chamada substituição processual, sendo que, ainda nos casos de casamento nulo por infração de regra de competência, a propositura pelo orgão do Ministério Público é dependente da vida dos cônjuges. Às vezes, as leis brasileiras empregam a expressão “ratificação” no sentido de reafirmação ou recomunicação de conhecimento, ou de recomunicação de vontade, em lugar de se aterem ao sentido estrito, têcnico, em que se fala de “ratificar” o negócio jurídico nulo. Qual a função da “ratificação” nos pedidos de separações consensuais? A de asseverar que a vontade dos cônjuges de separarem judicialmente persistiu. Portanto, não-revogação. A comunicação de vontade inicial era, pois, revogável; e a lei, em vez de se satisfazer com o simples decorrer do prazo, para que cessasse a revogabilidade, exige a explicitude dessa vontade de não revogar. A relevância da matéria, que é a sociedade conjugal, e a experiência da vida, que aponta a freqúência das conciliações entre separandos, sugeriram que se adotasse o pressuposto da ratificação, que tem aí o

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conteúdo da afirmação da conservação da vontade antes comunicada. A lei poderia ter-se satisfeito a) com o prazo para revogar o pedido, ou b) com a exceção de conciliação, à semelhança da separação litigiosa, ou exigir e) a ratificação. Fez a essa pressuposto necessário. A autuação e a distribuição fazem-se, excepcionalmente, depois de decorrido o prazo e antes do ato judicial da ratificação. Assim, temos a inquirição das partes pelo juiz, perfeitamente explicável e de grande alcance, e tal inquirição era separadamente; depois, se incidente o art. 1.122, § 1ª, 2ª parte, do Código de 1973, a fixação do prazo para a ratificação; a ratificação, que é comunicação de vontade e declaração, ao mesmo tempo (obter, na separação litigiosa, onde não há declaração de vontade, salvo acidental), e faz-se por termo nos autos; ouve-se o orgão do Ministério Público: sobem os autos, conclusos, ao juiz. Se a data do art. 1.122, § 1º foi além dos trinta dias, a nulidade é nãocominada (art. 244; antes, no Código de 1939, art. 273; cp. 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 12 de abril de 1945, RF 102/491). O órgão do Ministério Público é fiscal, não parte (2ª Câmara Civel da Corte de Apelação do Distrito Federal, 22 de abril de 1919). A falta importa em nulidade não-cominada. Na separação consensual, exige-se a audiência do órgão do Ministério Público. Entendeu a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul (22 de julho de 1943, 3 23/463), que não intervém o orgão do Ministério Público se litigiosa a separação. A interpretação, aí, tem de ser a fortiori. Se se exige na ação de separação consensual, com mais forte razão na litigioso (veja Tratado de Direito Privado, Tomo VIII, § 830, 10). 16. Desistência. A desistência antes da ratificação, em que resulta a retratação, tem o efeito de, sendo feita pelos dois, excluir qualquer traço do processo, de que nenhuma anotação fica no cartório; feita por um só, vale o processado, que fica arquivado, juntando-se-lhe a própria retratação. Só as partes podem requerer certidões ou cópias dessas peças. § 229. Recurso e coisa julgada1. Recurso. No Código de 1939 havia a apelação de ofício, de modo que somente passava, formalmente, em julgado a sentença, depois de acórdão que negasse provimento à apelação. O Código de 1973 não repetiu essa regra jurídica no art. 475, 1 a III. Da sentença caberá apelação, a ser recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Trânsita em julgado, a averbação é feita no livro de casamentos, ainda que estranha a jurisdição (efeito mandamental da sentença de separação judicial, que é constitutiva). A averbação não é integrante da constitutividade da sentença, mas ligada à eficácia erga omnes. O pedido de separação consensual é irretratável após a ratificação (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 15 de setembro de 1947, CD 50/254. RT 182/463, RE 122/381 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 2 de julho de 1947, Ai 88/50; 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1948, RI 38/67). A fortiori, após a homologação (lª Turma, 4 de outubro de 1948, AJ 89/138, RT 183/461; 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 5 de julho de 1946, RCJB 77/59; 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de novembro de 1947, RT 172/765, RF 119/478). Foi absurda a decisão da 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 4 de novembro de 1947 (RT 17 1/256), que admitiu a retratação unilateral a qualquer tempo, mesmo na via recursal. 2. Cessação dos efeitos da sociedade conjugal. Relativamente aos efeitos quanto à” divisão” dos bens, dependem eles de ser registrada a sentença no Registro de Imóveis (Corte de Apelação do Distrito Federal, 25

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de setembro de 1934, AJ 33/280). Mas os efeitos da sociedade conjugal cessaram com o trânsito em julgado da sentença (Corte de Apelação do Distrito Federal, 6 de outubro de 1929, Ai 14/59; 12 de março de 1940, 82/106), ou, erga omnes, da averbação da sentença de separação judicial no Registro Civil de Pessoas Naturais. A comunhão que persiste não é mais de direito matrimonial. É de direito das obrigações e das coisas. Esse ponto é assaz relevante. 3. Retratação bilateral. A retratação bilateral no segundo grau de jurisdição tem efeito de descida dos autos, para que se arquivem no cartório onde foi proferida a sentença. Se não foi bilateral a desistência, a descida dos autos permite mandado de segurança contra o Tribunal (Supremo Tribunal Federal, 19 de janeiro de 1945, AJ 75/3). 4.Morte do cônjuge. Após a morte do separando, não mais se pode homologar a separação judicial (Tratado de Direito Privado, VIII. § 837, 7; cf. 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 27 de janeiro de 1947. RE 114/406; sem razão, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 29 de julho de 1948, BJ 37/67). § 230. Homologação definitiva1. Eficácia da sentença que homologa a separação judicial. O Código de 1939, art. 288, tinha o defeito de não haver compreendido o principio do art. 323 do Código Civil, hoje consagrado na Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, art. 46, que permite, a todo o tempo, o restabelecimento da sociedade conjugal dissolvida pela separação judicial e pensar que as sentenças de separação judicial não têm eficácia material de coisa julgada. Interessante é observar-se que os críticos caiam em erros semelhantes: mal viam ou sentiam o engano do legislador (sem saber por que era erro): ora o estendiam ao caso das separações litigiosas (e. g., discussão do Código de Processo Civil de Minas Gerais, em Odilon de Andrade, Comentários ao Código de Processo Civil, 1, 93), ora timidamente aventuravam que as sentenças de separação judicial não produzem coisa julgada “no que diz respeito ao restabelecimento da sociedade conjugal” (Código de Processo Civil de Pernambuco, art. 172, inciso 4; Clovis Bevilacqua, Código, II, 284; Lafaiete Rodrigues Pereira, Direitos de Família, 64; pareceres de Alfredo Bernardes e L. F. 5. Carpenter, AJ 19/32; 6ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 29 de maio de 1931), ora negando a coisa julgada à sentença de qualquer separação judicial (assim, Tito Fulgêncio, Do Desquite, 154). Felizmente, o legislador de 1973 atendeu a rija crítica que fizéramos ao Código de 1939, art. 645, e a juristas que incidiam no mesmo erro, e retirou todo o art. 645. A reconciliação dos cônjuges é circunstância nova, nova declaração constitutiva, que nada tem com a questão da coisa julgada material. Se perdi a ação de reivindicação, não fico privado de comprar a coisa- O elemento constitutivo é comum a todas as sentenças de separação judicial; o elemento de condenação, só às da separação litigiosa. A sentença na separação consensual é constitutiva: opera como operaria o contrato de venda e compra por instrumento público, mais o reforçamento da decisão judicial. A da separação litigiosa é constitutiva e, em segundo plano, de condenação. 2.Guarda dos filhos, criação e educação. O acordo sobre guarda dos filhos, quotas para criação e educação deles, bem como sobre a pensão alimentícia ao cônjuge, tem de ser respeitado como a parte da sentença de separação litigiosa em que o juiz fixa a pensão alimentícia do cônjuge pobre ou a quota para criação e educação dos filhos. Ali, declaração dos cônjuges; aqui, decisão do juiz. Como se trata de equiparação das cláusulas do acordo à resolução do juiz, tem-se de saber de que natureza é essa resolução. Ora, essa resolução contém exatamente um dos problemas mais sutis de direito processual: o problema da sentença em que o juiz tem de emitir declaração de conteúdo ainda não determinado. Tal sentença (cf. Wilhelm Kisch, Urteilslehre, 110 s.) não é gênero à parte das sentenças de condenação, declarativas, constitutivas, executivas e mandamentais; é espécie de cada uma delas, mas principalmente da constitutiva ou da executiva. No caso das separações judiciais, essas sentenças chamadas “dispositivas” (verfiigende Urteile) têm a função de dispor, na falta do

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acordo, sobre aquela pensão e aquela quota. De modo que a inteligência brasileira viu o problema técnico, apontou a semelhança entre as duas fixações de quota e de pensao, porém não dispunha da técnica para isolar (a) o elemento comum da dispositividade, (14 a judicialidade do acordo homologado e (e) a judielalidade da determinação pelo juiz, com simples diferença de grau na cooperação do juiz. Não se pense em caso de simples determinação ao modo do arbitrador; porque o juiz, aí, coopera. por si, na separação litigiosa; e não arbitra — homologa, na separação consensual. O assunto é assaz importante em questões de direito do trabalho. Não se aluda à força material da coisa julgada; mas sim à constitutividade, fazendo claro que é inoperante a diferença de grau de cooperação do juiz para que a eficácia constitutiva se exerça. A dispositividade é insignificante, no caso da resolução judicial: o acordo não é prius embora se diga que o juiz disporá, na falta de acordo; o prius é a resolução sobre o que é necessário para a criação e a educação dos filhos, pensão alimentícia ao cônjuge e guarda dos filhos, fundando-se os julgamentos em comunicações de conhecimento feitas pelas partes cuja verdade se apure (o elemento condenatório é ressaltante). Apontar como dispositiva a sentença de fixação de quota ou pensão, nada adiantaria. A sentença é, aí, constitutiva, com forte dose de condenatoriedade, se não houve acordo. Se houve acordo, constitutiva integrativa. Assim, a regra juridica apenas sói dizer, tautologicamente, que as sentenças constitutivas, com elemento condenatório, e as constitutivas integrativas são sentenças constitutivas, de força constitutiva. Tais regras jurídicas são úteis enquanto não se eleva o nível da cultura jurídica. Podem ser, porém, mal-entendidas. Se não foi cumprido o acordo sobre a guarda e educação dos filhos, cabe a ação de modificação da sentença, por mudança circunstâncias (5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 9 de abril de 1948, DJ de 8 de dezembro). Aliás, podem os cônjuges acordar diferentemente do que se estabelecera, homologando-o o juiz (8ª Câmara Cível, 27 de novembro de 1946). § 231. Reconciliação e eficácia1.Reconciliação dos cônjuges. O Código de 1973 não se referiu à reconciliação. Uma vez que o direito brasileiro só possui a separação quoad thorum et habitationem, e não a separação quoad foedus et vinculum, a reconciliação é sempre possível, qualquer que seja a causa da separação judicial. É lícito aos separaçãojudicial. A política do legislador, ao conceder a reconciliação com o restabelecimento da sociedade conjugal “nos ter mos em que fora constituída” foi justamente estabelecer a volta ao que era. Cessada a separação judicial, isto é, restaurada —juridicamente — a sociedade conjugal, readquire cada cônjuge o direito de suceder ao outro. Não basta a reconciliação de fato, nem o pedido de reconciliação, ainda que já tomado por termo, pois a lei processual exige homologação pelo juiz para que a reconciliação juridicamente se perfaça. Atendendo às vicissitudes da fortuna dos cõnjuges separados judicialmente, antes ou durante a separação quoad vitae consuetudinem, bem como às simulações, por interesses inconfessáveis, de sucessivas separações judiciais e reconciliações, a reconciliação em nada pode prejudicar os direitos de terceiros, adquiridos antes e durante a separaçao judicial, seja qual for o regime de bens. Se a separação foi litigiosa ou consensual, é indiferente. Particularidade da reconciliação é a de ser um dos poucos casos de comunicação de sentimento, conteúdo de declaração de vontade. A sentença de reconciliação é constitutiva positiva (negativa da constitutiva negativa sobre a separação judicial, portanto positiva), o que concerne a formalidades registrárias é efeito mandamental, para eficácia erga omnes. Não há eficácia ex tunc. 2.Processo e sentença. A reconciliação tem de ser reduzida a termo, por ambos assinado, seguindo-se-lhe a homologação por sentença. A sentença é constitutiva integrativa da forma. A averbação no registro civil é necessária para os efeitos erga omnes e, se há imóveis, ou outros bens sujeitos a ato registrário que tenham de volver a ser comuns, ou dotais, é indispensável a averbação no respectivo registro. O regime, porém, restabelece-se entre os cônjuges com o trânsito em julgado da sentença, e opera erga omnes com a averbação no registro civil. Não há escolha de novo regime; restabelece-se o anterior. . Morte, antes do trânsito em julgado da sentença. A morte, antes do trânsito em julgado da sentença de homologação, extingue a ação de reconciliação. Não se deu e, pois, não mais se poderia dar a passagem em

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coisa julgada formal. Trata-se de ação não herdável constitutiva ex nunc. 4. Separação litigioso, pedido após o pedido de separação consensual. Extinta a sociedade conjugal por separação consensual, não há possibilidade de separação litigiosa (Supremo Tribunal Federal, 26 de julho de 1946, QD 51/132). Se, durante a separação consensual, há propositura da separação litigiosa, o juiz não pode julgar a esse antes de transitar em julgado a sentença que deixe de homologar aquele. Não há razão para se vedar, enquanto isso não ocorre, que se processe a ação de separação litigiosa (só assim se pode admitir o que disse a 2ª Turma, a 27 de junho de 1948, OD 50/238): não se pode pensar em exceção de litispendência, pois faltam os pressupostos. Convertida em ação de separação consensual a ação de separação litigiosa, processa-se na forma da lei, apresentando-se a petição com os requisitos do art. 1.121 (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo. 30 de março de 1951, RT 192/J 32º. § 232. Ações de separação judicial e sentença1.Separação litigiosa e separação consensual. Tanto as ações de separação litigiosa quanto as de separação consensual são ações constitutivas negativas: a diferença entre aquelas e essas apenas está em que aquelas têm, a mais, o elemento da luta, da disputa, da apuração de culpa, que faz relevante — porém, não preponderante — a decisão de condenação e, pois, a eficácia condenatória.Não havia transformação da separação litigiosa em separação consensual, no mesmo processo (4ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 18 de dezembro de 1942, RF 95/367), mas hoje, o Código de 1973, no art. 1.123, concebe a líbito das partes, a qualquer tempo, a conversibilidade da separação litigiosa em separação consensual, observando-se os requisitos dos arts. 1.121 e 1.122, § 1ª, 1ª parte; aliter, vice-versa. 2. Sentença na ação de separação consensual. A sentença em ação de separação consensual é constitutiva negativa, com forte efeito executivo; a sentença, em ação de separação litigiosa, é constitutiva negativa, com forte efeito condenatório e efeito executivo. Constituição (força) mais condenação (efeito), tal a estrutura eficacial da sentença de separação litigiosa. Ambas têm o efeito executivo, de modo que são titulo executivo para a partilha, actio familiae erciscundae, que se processa em inventário judicial, depois de homologadaa a separação judicial, ou trânsita em julgado a sentença de separação litigiosa. A sentença na separação consensual é constituição (força) mais execução, porque de regra a ação executiva de certo modo já começou. Se não houve acordo sobre a partilha, a carga é menor. A carga de executividade é, pois, separável: o que é essencial é a indicação dos bens; não a partilha (Tribunal de Apelação de São Paulo, 8 de julho de 1942, AJ 63/449). § 233. Reconciliação 1.Conceito. A reconciliação não é desistência, nem retratação: o que se reconcilia, nem desiste, nem se retrata; porque a reconciliação supõe já trânsita em julgado, formalmente, a sentença de separação judicial. Antes da coisa julgada formal, se os cônjuges se conciliam, isto é, revogam o pedido, ou algum deles o faz, dá-se a retratação. Se, em vez disso, no plano só processual, portanto ainda que se não conciliem, um deles ou ambos desistem, não há retratação, pois essa se refere à res in iudicium deducta; mas apenas desistência. 2. Eficácia. A reconciliação é ação de natureza constitutiva negativa (de segundo grau) — vai contra a sentença constitutiva negativa da separação judicial. A sentença alude a negócio jurídico, que se passou no plano do direito material e se revela, se explicita, no pedido de homologação, prestação jurisdicional integrativa das declarações de vontade dos cônjuges, concordantes. A sociedade conjugal restabelece-se como força mesma da sentença constitutiva negativa de segundo grau. O negócio jurídico do casamento integrado em juízo estabeleceu (eficácia constitutiva: “sim”); a separação judicial fez cessar (eficácia constitutiva negativa: “não”); a reconciliação restabelece (eficácia constitutiva negativa de segundo grau: não-não”). O elemento declarativo, forte, que se lhe encontra, é a declaração de que houve, no plano do direito material, as declarações

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concordantes de vontade. As sentenças nas ações de separação judicial e de reconciliação são suscetíveis de rescisão. (Sentença constitutiva negativa de segundo grau = sentença constitutiva positiva).

Capítulo XIII

Ação de desapropriação § 234. Conceito e natureza da ação de desapropriação1. Conceito. O direito de desapropriação, inclusive de encampação, a pretensão e a ação que dele resultam são de direito público. Não há ofensa ao direito de propriedade, porque, a despeito de incursão no patrimônio alheio, se respeita, com a indenização, que há de ser prévio e justa, o principio de garantia da propriedade. Discute-se é ato, individualmente dirigido (a um ou alguns), incursão singular, no que se distingue das limitações não indenizáveis, que se dirigem a todos (teoria do ato único, Emzelakttheorie, lançada por Gerhard Anschfltz, Die Verfassung des Deutschen Reichs, 613), ou se atinge a tutela, ou a substância da propriedade, pela exigência que se faz, de jeito que pode haver ato singularmente dirigido que não seja desapropriação (Schutzwúrdigkeitstheorie, teoria da tutelabilidade ou do fito de tutela, Walter Jellinek, \/erwaltungsrecht, 4ª ed., 413; anexo de 1950, 32; antes, Entschàdigung fúr baurechtliche Eigentumsbeschrànkungen, 1 S.; Eigentumsbegrenzung und Enteignung, 1 5; Substanzminderungstheorie, teoria da diminuição da substáncia, W. Schelcher, Gesetzliche Eintgentumsbeschrãnkung und Enteignung, Archiu des dffentlichen Rechts, N. E., 18, 1930, 350: Ernst Rudolf Huber, Dedeutungswandel der Grundrechte, Archiv des ôffentiichen Rechts, N. E, 23, 44; Haab, Privateigentum und materielie Enteignung, 58 e 83; e, em alguns pontos, R. Stódter, Uber den Enteignungsbgriff, Die óffentlichen Verwaltung, 1953, 97 s.; também, com a teoria da exigibilidade, Zumutbarkeitstheorie, R. Stõdter, Ôffen tlich rech tliche Entschãdigung, 214 s.). O direito brasileiro considera a substância da propriedade como algo de que é implícita a desapropriabilidade, se os pressupostos constitucionais se compõem. A desapropriação é a retirada integral da propriedade, com indenização integral, que há de ser, no direito brasileiro, prévia e justa. 2.Espécies. Há a desapropriação “stricto sensu”, que é aquela em que se não invoca outro elemento para a sua decretação, que o exercício da pretensão, a decisão judicial, a necessidade pública, a utilidade pública ou o interesse social, e a justa e prévia indenização, elementos comuns a todas as desapropriações. Quando Constituição diz que a indenização há de ser justa e prévia impede qualquer critério de fixação e prestação da indenização que não seja justa ou que não seja prévia. Foi assim que a técnica jurídica afastou o princípio clássico da não-intervenção para poder tornar admissível o princípio da intervenção conforme pressupostos precisos. Aliás, desapropriar não é só atingir o poder de dispor. Desapropria-se mesmo se deixa a propriedade ao titular do direito, como, por exemplo, se só lhe tira o uso. Desapropriação há, mesmo se não resulta aquisição por alguém, posto que a transdesapropriação seja a espécie mais frequente. Tornar extracomércio o que está no patrimônio de outrem é desapropriar. O que veda a produção por alguma empresa, ou a restringe, — desapropria. Também desapropria quem cerceia direito patrimonial, seja de origem privatistica, seja de origem publicística. A requisição exige mais do que a necessidade pública, pois é pressuposto a iminência de perigo, como guerra e comoção intestina, e dispensa a previedade. Porém, segundo veremos, a requisição é espécie de desapropriação. A requisição pode ser de bens imóveis e de bens móveis, inclusive de obra (e. g., requisição de operários). As requisições de serviços e de obra atingem a economia privada ou o fundo de empresa. Somente podem ser feitas nas espécies do art. 5º XXV, da Constituição de 1988 (cf. a respeito, Werner Weber, Die Dienst-und Leistungspflíchten der Deutschen, 99).

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A encampação é a desapropriação por estar resolvida ou ir resolver-se a concessão e em consequência do

contrato ou ato jurídico unilateral da entidade estatal que quer desapropriar. Não importa se havia causa para a resolução por inadimplemento, ou se não a havia. Abstrai-se disso. A alusão à troca, ao câmbio, é devida à necessidade conceptual da equivalência do que se retira com o que se presta para se encampar. Campar, ou cam piar, é trocar, escambar. Com patina ou cmpiatura, é o escambo, a troca (Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário das Palavras, Termos e Frases, que em Portugal antigamente se usaram, 1, 2ª ed., 109). O étimo é cambium, posto que nada digam os etimologistas. Havia o substantivo camba e o verbo cambar (Leges et Consuetudines 643). Havia, também, encambar (Dom Duarte, Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela, 635). O arbitramento para a avaliação dos bens, em caso de encampação, pode ser oriundo de cláusula inserta na lei que concedeu a exploração, ou no contrato entre o concessionário e a entidade concedente, ou oriundo de acordo durante o processo da ação de desapropriação. Há encampação dissimulada, se a entidade estatal intervém, com a substituição da titularidade, mediante regras jurídicas ou medidas que impedem a execução do contrato que seguiu à concessão, ou mediante regras jurídicas que obstam à exploração pelos que no momento têm a concessão. Na primeira espécie, o que mais importa é a propositura da ação de indenização por ato ilícito; na segunda, atingidos pela lei — e. g., a lei que proibiu a exploração de seguros por empresas particulares — somente são obrigados à entrega mediante a justa e prévia indenização dos direitos sobre bem ou bens que têm de passar ao Estado, ou a entidades paraestatais. Desapropriação é ato de direito público, mediante o qual o Estado transfere direito ou subtrai o direito de outrem, a favor de si mesmo, ou de outrem, por necessidade, ou utilidade pública, ou por interesse social, ou simplesmente o extingue. § 235. Pressupostos da pretensão e da ação1.Necessidade pública, utilidade pública e interesse social. A desapropriação somente se pode dar se fundada em necessidade pública, ou em utilidade pública, ou no interesse social. São três espécies de interesse público. A desapropriação pode ser inspirada no interesse social e então somente dele depende. Contudo, ficando ao arbítrio do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, os abusos e frustrações poderiam ser frequentes. Daí, a indicação de três conceitos (“necessidade pública”, “utilidade pública”, “interesse social”), que representam fixações constitucionais impostas às leis ordinárias. embora as leis, por sua vez, já significassem vitória da burguesia liberal contra o absolutismo (M. Layer, Prinzipien des Enteignungsrechts, 17). Em verdade, o enunciado apenas dá ao Estado o direito material de desapropriação (Richard Grau, Vom Vorrang der Bundeskompetenz Festgabe for Ernst Heinitz, 74), dentro dos conceitos constitucionais e legais. 2. Natureza da regra jurídica sobre desapropriação. A regra jurídica constitucional é bastante em si, self-executing. Se não existisse qualquer lei sobre desapropriação, a Justiça apenas teria de verificar se não houve violação do principio, quer dizer — se foi ordenada por necessidade pública, ou utilidade pública, ou interesse social, tendo-se dado indenização prévia e justa. Se lei existe — ou a) os seus termos exorbitam do texto constitucional e, então, é contrária à Constituição, cabendo a decretação de inconstitucionalidade, ou b) apenas ela explicita, com justeza, os três conceitos (necessidade pública, utilidade pública, interesse social), ordenando, na forma devida, a indenização prévia, e tem de ser tratada como qualquer outra lei explicitadora dos textos constitucionais, ou c) reduz demasiado qualquer dos três conceitos, ou dois, ou todos, de modo que crie vantagens para os proprietários, o que, se lhes confere direitos subjetivos não-constitucionais, também permite ao Estado (União, Estados Federados, Distrito Federal, Territórios e Municípios) a alegação da incons-titucionalidade. Já a Constituição Política do Império do Brasil, art. 179, § 22, dizia que, ‘se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso”, “a lei marcará os casos em que terá lugar” a exceção a’’ plenitude do direito de propriedade”. A de 1891, como a de 1937 (cp. agora a de 1967), contentava-se com permitir a “desapropriação por necessidade ou utilidade pública”. A diferença entre elas apenas consistia em que, na Constituição de 1891 e na de 1937, os conceitos de necessidade pública e de utilidade pública eram mais

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rígidos do que na Constituição do Império. A Constituição de 1934 aproximou-se da Carta imperial, de modo que o legislador ordinário ganhou certo desembaraço, porém, ao mesmo tempo, ficou adstrito, diante do Estado, a mais exata observância de bons princípios de política. Praticamente, a técnica de 1934 diminuía o número de casos de controle judicial. A de 1946 volveu a 1891, mas acrescentou aos dois pressupostos suficientes, por bem dizer clássicos, outro também, e suficiente: o de haver interesse social. Passou isso àde 1967 e à de 1988. 3.Competência sobre desapropriação. Sob a Constituição de 1891, só a União poderia legislar sobre desapropriação. A Constituição de 1934 permitiu a legislação estadual, supletiva ou complementar, sobre desapropriações. Não cabia qualquer dispensa de pressupostos; tão-somente lhe era dado suprir lacunas ou deficiências. Na Constituição de 1937, era bastante complexa a competência legislativa (nossos Comentários á Constituição de 1937,111, 493). Na Constituição de 1946, o art. 6ª propositadamente excluiu da legislação supletiva ou complementar a matéria das desapropriações: volveu, pois, a 1891. Deu-se o mesmo com a de 1967 e a de 1988 (art. 22, II). Quer dizer isso: nem os Estados Federados, nem os Municípios, nem o Distrito Federal podem legislar sobre desapropriação. O direito é todo federal. Porém, com isso, não se pré-exclui a legislação local sobre exigências, a mais, para a entidade estatal exercer a pretensão constitucional à desapropriação, nem, tampouco, as regras jurídicas sobre competência dos juizes e funções do Ministério Público. Quando a lei confere à entidade, que não é a União, o Estado Federado, o Distrito Federal, o Território, ou o Município, o direito de desapropriar, entendem alguns juristas que se cria à pessoa outorgada, por lei, direito público (e. g., M. Layer, Prinzipien des Eriteignungsrechts. 329; contra Otto Meyer, Deutsches Verwaltungsrecht, III, § 33). Em verdade, porém, somente nasce a pretensão contra o Estado — máxime no direito brasileiro. A lei de desapropriações pode prover a que a transmissão se faça a alguma empresa, em vez de à União, a Estado Federado, a Território, ao Distrito Federal, ou a Município que se obrigou a desapropriar (desapropriar é só fazer perder). A fortiori, a alguma autarquia. ou sociedade de economia mista. Todavia, quem desapropria — ato de retirada da propriedade — é o Estado (União, Estados Federados, Território, Distrito Federal, ou Mu-nicípio), e não a pessoa de direito privado ou público. O ato de exercício da pretensão à tutela jurídica é do Estado, a responsabilidade é do Estado. O que sofre a desapropriação nada tem com a futura titularidade do direito. O pressuposto da necessidade, ou da utilidade pública, ou do interesse social, tem de ser satisfeito, objetivamente. Não importa, portanto, que se dê, pendente o processo a substituição daquele a quem se há de transmitir a propriedade, desde que o pressuposto continue satisfeito. 4. Apreciação judicial. A desapropriação, para ser acorde com a Constituição, tem de ter fundamento ou em necessidade pública, ou em utilidade pública, ou em interesse social. Se o ato de desapropriação, tal como se apresenta ao juiz (ato de exercício de direito formativo extintivo), não satisfaz a um desses requisitos, é contrário à Constituição. Se a lei admitiu alguma espécie que não cabe em qualquer dos três conceitos, é a lei mesma que é contrária à Constituição, como o próprio ato de desapropriação. Se a lei enumerou os casos de necessidade pública, ou de utilidade pública, ou de interesse social, e o ato desapropriativo não se inclui em qualquer deles, há ilegalidade do ato, o que dispensa a Justiça de só decidir por maioria absoluta, que a Constituição exige às decretações de inconstitucionalidade. A Constituição não judicializou a decisão da desapropriação. Podia a decisão ser do próprio Poder Executivo, mas teria de haver o processo administrativo, com a fixação do valor, à semelhança do que se passa na justiça, e a prévia e justa indenização. Se não fosse criado o remédio judicial que apreciasse o ato, caberia o mandado de segurança. A tradição do Brasil é a ação de desapropriação. Se alguma lei, em vez de editar regras jurídicas gerais, entende desapropriar determinado direito, a execução da lei tem de começar pela prestação da indenização, prévia e justa, mas isso não exclui a apreciação da justiça quanto a estar a regra jurídica, ou não, de conformidade com o texto constitucional. Também se pode dar que a lei exija que a cada caso preceda autorização legislativa. Então, a lei exige a lei especial, de modo que o exercício do direito formativo extintivo é, então, em parte, pelo Poder Legislativo, ficando ao Poder Executivo apenas a função de prestar a indenização prévia e justa ou a indenização prévia após a avaliação (se o próprio Poder Legislativo não ordenou a avaliação e não se baseou nela). A apreciação judicial é ineliminável.

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5. Ato desapropriativo. A desapropriação, ainda quando se dê a composição amigável segundo acordo entre desapropriante e titular de direito, não é negócio jurídico (Paul Laband, Die rechtliche Natur des Retracts und der Expropriation. Archiu for die civilistische Praxis, 52, 169 5.; Otto Meyer, Deutsches Verwaltungsrecht, II. Y ed., 123). Trata-se de ato de direito público com que se exerce o direito formatiuo extintiuo. Ato jurídico stricto sensu. A questão de ser transferência ou extinção da propriedade, com a possível constituição de outra, nova, elimina-se, se assenta, de início, que a desapropriação é causa de perda, e não causa de aquisiçâo: o que adquire a propriedade não sucede àquele a quem foi desapropriada (contra, Konrad Hellwig, Lehrbuch des deu tschen Civilprozessrechts, § 39, 5). Resta saber-se qual o título pelo qual o novo dono adquire. E o registro: por ele, há a perda da propriedade, conforme a sentença de desapropriação (eficácia negativa do registro): e a aquisição, se de aquisição é o caso, segundo os termos da lei, ou da declaração do desapropriante, contída na declaração de desapropriação, ou posterior, ou ainda, anterior, por se tratar, em qualquer das três espécies, de outra declaração (eficácia positiva do registro). Se a desapropriação foi para a coisa ficar extra commercium ou nullus, não há a eficácia constitutiva positiva do registro: só há a negativa, que é a da perda da propriedade. Tratando-se de bem para cuja aquisição não se precise de registro, a aquisição é pela entrega da posse, ou outro fato suficiente, segundo a espécie. O que é preciso é que nunca se perca de vista que a desapropriação, em si, tira — não dá. A desapropriação nada tem de instituto jurídico misto, como pareceu ao Supremo Tribunal Federal (31 de janeiro de 1914, RD 33/472), parte de direito administrativo e parte de direito civil e processual civil. Como instituto e como fato jurídico, ato jurídico stricto sensu, a desapropriação é de direito público, constitucional, administrativo e processual. O que é de direito civil é um dos seus efeitos, o principal deles, que é a perda da propriedade. É de visão superficial dizer-se, por exemplo, como Rafael Bielsa (Relaciones dei Código Civil con ei Derecho administrativo, 69 s.), que se rege, em parte, pelo direito constitucional, e, em parte pelo direito civil. O direito civil não rege, de modo nenhum, a desapropriação: a desapropriação, já no plano da eficácia, atinge o direito civil, e a ela, somente por isso, tem o direito civil de aludir como um dos modos de perda da propriedade. Nem se precisaria aludir a ela, como, em verdade, a ela não se alude, no tocante à perda da propriedade mobiliária e ninguém por isso vai sustentar que a desapropriação não é um dos modos de a perder. Desapropriação não é modo de adquirir. Por isso não se referiu a ela, como causa de aquisição, quer de propriedade imobiliária, quer de propriedade mobiliária, o Código Civil, e foi bem que assim procedesse o legislador de 1916. A afirmação de que o não fez devido a “seu caráter extraordinário e híbrido”, como diz M. Seabra Fagundes (Da Desapropriação no direito brasileiro, 12) é de refusar-se, por bilateralizar, contra os princípios, o ato e os efeitos desapropriativos: não se adquire por desapropriação, salvo se a doutrina do país ainda não se libertou de influências da concepção ultrapassada da venda e compra forçada. A necessidade pública, a utilidade pública, ou o interesse social pode existir, sem que tenha o Estado de chamar a si o bem, de apropriar-se dele. Na desapropriação não há obrigação ex lege de dar. O desapropriado sofre a desapropriação, porque assim o permitem a Constituição e as leis. Não dá; perde. Por essa perda, pelo fato de outrem, recebe a indenização, que, no direito brasileiro, é prévia e justa; não ofenderia à estrutura do instituto, e sim à regra jurídica constitucional, o poder ser posterior a indenização. Para os civilistas, era inadmissível que ato de direito público pudesse ter efeito tão profundo no direito civil como o de tirar a propriedade. Para os juristas que se dedicaram ao direito público, inclusive, depois, ao direito constitucional, não foi menos de repelir-se isso, porque o direito civil é que lhes enchia a psique. As alusões a efeito de lei, ou de Iex specia lis, ou de obrigação sul generis, resultante de receber o desapropriando a indenização (que aliás não era prévia, ou não no era necessariamente), tinham de vir, como explicações que menos atendessem aos fatos do que ao intuito de não se quebrarem as convicções da mentalidade privatística. Mais cômodo parecia a alguns supor-se direito privado, preexistente, a desapropriar, de modo que a sentença do juiz apenas o declarava e atendia ao pedido executivo, adjudicando o bem. Verdade é, porém, que alguns, dentre os que viram a natureza publicistica do ato de desapropriar, foram demasiado longe e quase apagaram, ou totalmente apagaram, o direito público do Estado a praticá-lo, ou melhor, o direito público de que o ato de desapropriar é apenas exercicio. A concepção desse ato administrativo, que determina o que há de ser o direito para o agente e o dever para aquele a que se dirige, é reminiscência de épocas autoritárias, em que aos atos de imperium não se via, por detrás (ou não havia), qualquer limitação, nem qualquer sustentáculo jurídico. Ora, ainda a respeito da criação de impostos, essa concepção não corresponde, ou não mais corresponde ao Estado

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de Direito: as Constituições não deixam ao Estado qualquer ato, se não cabe em algum dos setores de competência legislativa, executiva e judiciária. 6. Bens desapropriáveis. Todos os bens são suscetíveis de desapropriação, inclusive os inalienáveis e os insub-rogáveis; salvo se, públicos, não são do domínio do Estado (evite-se falar de destinados a uso comum público, ou a uso público especial ou se intransferiveis por sua natureza). Os bens públicos, ditos, dominicais, são os do domínio do Estado, com outra destinação que a de uso público ou estatal, e são suscetíveis de desapropriação: os do Município, pela União, ou pelo Estado Federado, ou por Território, em que sejam situados, ou pelo Distrito Federal, se nele situados, ou por outro Município em que sejam situados; os do Estado, pela União, ou por outro Estado em que sejam situados, ou por Território, Distrito Federal ou Município em que sejam situados; e assim os do Distrito Federal ou dos Territórios. Os bens de domínio dos Estados Federados, Municípios, Distrito Federal e Territórios podem ser desapropriados pela União e os dos Municípios pelos Estados Federados, mas após autorização legislativa. A desapropriação é feita pela União, pelos Estados Federados, Municípios, Distrito Federal ou Territórios. Quem é titular do direito de desapropriar é o Estado, no sentido próprio. Não há desapropriação por outras pessoas de direito público, ou privado, que não sejam as entidades de direito constitucional que ai se mencionam. Tal direito é imperium. A declaração de desapropriação é apenas exercício desse direito público de préseência, que vai de atos dessa natureza até aos de protocolo das reuniões em que há precedência dos que têm cargos oficiais. A propriedade é, em principio, desapropriável, inclusive a da União por ela mesma (e. g., edicta-se lei em que se torna bem de todos o bem da União, alienável ou não, inclusive propriedade fiduciária ou fideicomissária). Se a União declara de necessidade pública, ou de utilidade pública, ou de interesse social, o bem do Estado, ou do Distrito Federal, ou do Território, ou do Município, e o uso de tal bem já se destina a isso, sem ocorrer necessidade pública, ou utilidade pública, ou interesse social em que se dê a perda da propriedade pela entidade intra-estatal, pode ser objetada ao desapropriante essa circunstância. O ato pelo qual a União, o Estado, o Distrito Federal, o Território, ou o Município, desloca da classe dos bens do domínio da União para a dos bens do povo, ou para a classe dos bens de propriedade da entidade intra-estatal destinados a uso especial, o bem, sem perda da propriedade, não é desapropriação; é ato de direito público de outra natureza (Loebell, Das preussische EnteignungsgesetZ, 25), e interior à administração. Quanto aos bens da ekasse dos bens cera destinaçã.o especial, ou públicos, de propriedade do Estado mas com o destino para uso comum, hà desapropriabilidôde. Os bens do domínio do Estado, Municipio, Distrito Federal e Territórios, são desapropriáveis pela União, e os do Município, pelo Estado; portanto, sem se excluir a pré-seência da União, quanto aos de propriedade de outra entidade pública, posto que essa já haja publicizado o uso. Na doutrina De Lalleau (Traité de l’Expropriation, 1, n2 182) e C. E.Grúnhut (Das Enteignungsrecht, 76 s.) restringiam a desa-propriabilidade aos bens de propriedade privatística da entidade intra-estatal. Mas há bens de propriedade do Estado incluídos nas classes de destinação. Sempre que o bem não é de todos, a desapropriação é possivel. Se é de todos, a passagem à apropriação é assunto de lei (federal, estadual, ou municipal), compostos os interesses das entidades interessadas. § 236. Pressupostos processuais 1. Declaração de desapropriaçâo. A declaração de desapropriação é que marca o que há de ser desapropriado, objetivamente (qualitativa e quantitativamente). Cabe apreciação judicial de estar nela incluido, ou não, o bem, ou a parte do bem (lª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 26 de julho de 1906, RD VIII, 117). Igualmente, a verificação de estar o pedido do Estado nos limites da declaração de desapropriação. O bem que pode ser desapropriado há de ser aquele em que se verifica a necessidade pública, a utilidade pública, ou o interesse social; não os próximos ou os dispensáveis. Todavia, surge o problema da abrangência da vizinhança. Se essa abrangência apenas valorizaria o que vai ser desapropriado, ou aumenta a utilização, não há razão bastante para se incluir o prédio vizinho, ou contiguo. A extensão só é legitima se, quanto ao prédio vizinho, também se verifica haver necessidade pública, utilidade pública, ou interesse social na desapropriação, ou se o que sofre a desapropriação alega que, sem essa extensão, lhe ficaria parcela imprestável ao uso que

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dava, ou que estava em via de dar, ao bem, ou que o desapropriante lhe teria de pagar indenização pelos danos com as obras no bem desapropriando, ou com a desvalorização do resto. Aí, a desapropriação do todo pode evitar complicações e dúvidas, bem como gastos maiores. Nada obsta, portanto. a que, no correr da demanda, se estenda a área, ou se eleve o número de bens desapropriados, se com isso se vai ao encontro do que alega o dono do bem, ou dos bens desapropriados, e não se infringe a lei. Não há, porém, dever e obrigação de desapropriur o todo, se podo ser indenizado o demandado, sem ser preciso desapropria o bem pertencente a terceiro. Tais princípios estão, assim, claramente expostos, e devemos evitar as vacilações e obscuridades de M. von Seydel (Baverisches Staatsrecht, III, 634) e W. Schelcher (Die Rechtswirkuflgefl der Enteignung, 65). No direito brasileiro, se não há necessidade pública, nem utilidade pública, nem interesse social de se desapropriar mais do que parte de x, nem de se desapropriarem x, v e z, o demandado pode objetar quanto à parte desnecessario inútil. ou sem interesse social, ou quanto ao têm désnecessario, inútil, ou sem interesse social (assim também se pensou, de lege ferenda. na Prússia. quando se rejeitou regra jurídica que o permitira, em 1874, cf. Otto Bãhr e W. Langerhans. Das Gesetz Uber die Enteinung, 41; obter, em Bade, 1835, e Saxônia, 1902; no direito brasileiro, a solução é de lex lata constitucional, art. 59, XXIV). Assim, a desapropriação pode estender-se a área contigua, necessária ao desenvolvimento da obra a que se destina, e ás zonas que se valorizarem extraordinariamente, em consequência da realização do serviço. A declaração de utilidade pública deve compreendê-las, mencionando quais as indispensáveis à configuração da obra e as que estritamente se ligam ao necessário, ao útil ou ao interesse social. O Município não pode desapropriar bem do domínio do Estado; nem o Estado, bem da União. Obvia-se aos graves inconvenientes disso, pedindo o Município ao Estado, que lhe transfira o domínio do imóvel ou móvel, negocialmente, ou lhe dê a destinação que o Município aponta, ou pedindo o Estado à União, para que negocialmente lho transfira, ou destine o bem ao fim que o Estado colima. Não se afasta a hipótese de se dirigir o Município ao Poder Legislativo federal explicando a necessidade pública, ou a utilidade pública, ou o interesse social da desapropriação do bem estadual, ou da própria União, se os entendimentos pré-negociais O Município não pode desapropriar bem do domínio do Estado; nem o Estado, bem da União. Obvia-se aos graves inconvenientes disso, pedindo o Município ao Estado, que lhe transfira o domínio do imóvel ou móvel, negocialmente, ou lhe dê a destinação que o Município aponta, ou pedindo o Estado à União, para que negocialmente Ibo transfira, ou destine o bem ao fim que o Estado colima. Não se afasta a hipótese de se dirigir o Município ao Poder Legislativo federal explicando a necessidade pública, ou a utilidade pública, ou o interesse social da desapropríação do bem estadual, ou da própria União, se os entendimentos pré-negociais falham. Dá-se o mesmo com o Estado, no tocante a bens da União. Quanto àqueles bens que não entram no conceito de domínio, e são coisas de todos, ou que foram destinadas ao uso de todos, ou a utilização deles pela entidade política que invoca necessidade pública, utilidade pública, ou interesse social, ou não colide com a comunhão geral do uso e nenhuma questão teórica ou prática surge, ou há colísão, e a solução tem de ser processada mediante acordo que desdestine o bem, de modo que se faculte a compossibilidade dos dois usos, ou há de ser a de se permitir a desapropriação. A desdestinação (dita Declassierung, Ausreihung, Unterdrúckung) é o ato jurídico stricto sensu, administrativo ou constante de lei, pelo qual se desveste de sua destinação pública o bem, para fazê-lo volver à categoria de propriedade privada. Não se confunde com ato de mudança de destinação ao uso público, pelo qual o bem se desloca da classe dos bens de uso comum do povo para a classe dos bens de uso especial das outras entidades intra-estatais, ou vice-versa. A lei que permite a alienação dos bens que são bens de uso comum do povo ou de uso especial contém permissão de desdestinação; a que permite a alienação dos bens de propriedade privada de entidade intra-estatal não na contém. Desde que se opere a desdestinação, conforme a lei, o bem público passa a ser desapropriável. O fundamento da desapropriação não basta para que se dê a desdestinação, nem a mudança de destinação: a entidade política, a que se liga o bem (evitemos dizer “a que pertence’, no sentido de ser proprietário, porque escapariam a isso os bens de todos) é que resolve sobre a desdestinação, como sobre a destinação. Pode acontecer que a destinação seja incidente do processo de desapropriação, como se a entidade, contra a qual se exerce a pretensão à tutela jurídica desapropriatória, não alega óbice da destinação (objeção), o que faz supor-se que era sem profundidade (= não implicava exclusão da propriedade privada). Todavia, se o bem não era do domínio da entidade intra-estatal, a decisão é rescindível. Com razão, A. Dalcke (Das Gesetz úber die Enteig-nung, 36) entendia que o demandado na ação de desapropriação há de alegar que o bem está destinado ao uso público e o seu direito não cabe no conceito estrito de “domínio”, de que leis usam; mas errava ao dar ao silêncio do demandado a consequência de deslocação da classe do bem, no plano do direito sobre ele, e não só no plano do uso. Tal silêncio pode ser tido como anuência à desdestinação, porém não à desclassificação titular. Para que a desclassificação titular se dê, é preciso que ocorra segundo a lei; somente a lei pode estabelecer

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desclassificações titulares tácitas ou implícitas, como pode pré-excluir que se admitam consequências desdestinatórias ao silêncio, ou à própria anuência expressa. O interesse em que o bem seja do domínio da entidade política, ou de todos, não é o mesmo interesse em que o bem seja destinado a todos, ou ao Estado, como poder público ou como particular; tanto assim, que ele pode destinar a todos o que é do seu domínio, no sentido das leis que regulam a desapropriação, ou o que é bem público do Estado como Estado. Cf. Tratado de Direito Privado, Tomo II, §§ 155 e 156. 2. Direitos atingíveis. Os direitos que a desapropriação atinge não são somente os do proprietário. Há os dos titulares de direitos reais limitados. Tais os dos usufrutuários, dos usuários, dos habitadores, dos credores anticréticos, hipotecários, pignoratícios e caucionários, além dos condôminos, inclusive co-herdeiros, enfiteutas e fideicomissários, que co-dividem, materialmente, ou no tempo, a propriedade. A indenização há de ser a todos os que sofrerem com a desapropriação. Mas a técnica legislativa pode adotar, quanto aos direitos reais: a) o princípio da unicidade da indenização, segundo o qual o valor da indenização corresponde a todos os elementos da propriedade, de modo que representa soma de valores; b) o princípio da pluralidade de indenizações, segundo o qual a cada direito, que os demandados perdem, corresponde um valor. O princípio a) tem variantes, dentre as quais a’) o da unicidade da indenização quanto aos direito reais, a”) o da unicidade da indenização quanto ao direito ou direitos diretamente atingidos, e a”’) o da unicidade de indenização quanto a quaisquer direitos (e. g., posse, locação). O princípio a) é o do direito brasileiro. Os direitos de terceiros contra o expropriado, isto é, direitos que não recaem no bem, ou no direito desapropriando, não se incluem no valor da indenização. Quando se trata de direitos que recaem sobre o bem, como os direitos reais, no valor de indenização se incluem os valores deles, razão por que se dá a sub-rogação. Quando se trata de direitos obrigacionais, não se incluem; a indenização é à parte. Se o possuidor do bem tem direito a indenização ou a frutos, ou a benfeitorias anteriores à declaração de desapropriação, o desapropriante há de justa e previamente indenizar ou entregar. Não se computou na indenização o valor da posse: deve ter sido subtraído a ela. As benfeitorias necessárias posteriores à declaração são indenizadas, ainda que após a entrega da prestação indenizatória pela posse, porém não se trata de indenização pela desapropriação, razão por que incide a regra jurídica sobre opção entre valor atual e custo, por analogia. As benfeitorias úteis posteriores à declaração de desapropriação somente se indenizam se as autorizou o desapropriante. São pontos, esses, que merecem toda a atenção, porque a necessariedade e a utilidade não têm o mesmo trato. Se o bem está alugado, o valor do aluguel não se inclui, pois que não há sub-rogação, ainda que se haja registrado o contrato com a cláusula de ter de ser respeitado pelo adquirente. Não há, aí, direito real. O trato das benfeitorias feitas pelo locatário é o mesmo dos outros possuidores, por coincidirem as regras jurídicas, o que simplifica a questão, pois seria de discutir-se incide a regra jurídica sobre benfeitorias feitas pelo proprietário após o ato desapropriativo, ou a regra juridica sobre benfeitorias feitas pelos locatários se feitas com o consentimento do locador. Rege aquela, concernente às benfeitorias feitas pelo que sofreu com a desapropriação. O valor do fundo de comércio é indenizável. Tem-se pretendido que, no processo da desapro-priação, o locatário ou outro possuidor não tem entrada para pedir a indenização. Mas há, aí, desapropriação, ou se dá fim à relação jurídica por outro meio! A regra jurídica constitucional estaria ferida se o desapropriante não indenizasse o locatário ou outro possuidor. Se não há outro meio para se extinguir a relação jurídica, o desapropríante tem de chamar a juízo o possuidor, contra o qual, sem eficácia de coisa julgada, o mandado de imissão na posseria contrário à Constituição vigente e ao sistema jurídico brasileiro. Quando lei ordinária diz que no valor da indenização não se inclui direito de terceiro contra quem sofre a expropriação, apenas estabelece que se há de indenizar, a esse, x-y, a fim de que, vindo o possuidor com a sua pretensão, se lhe tem de prestar y, ou o valor de v, ao tempo em que se lhe tire o direito. Somente se diz, necessariamente, o que se vai desapropriar e por que se vai desapropriar. Tudo mais ou se estabelece por acordo, ou por processo judicial. A declaração de expropriação é mero exercício do direito formativo extintivo, porém ainda sem eficácia extintiva, porque a Constituição estabeleceu que antes de tal eficácia teria de ser indenizado, com justiça, o que se perde com a desapropriação. A relação jurídica processual que se estabelece com a ação de desapropriação, sucedânea do acordo, que é negócio jurídico, é de estrutura processual “entidade política desapropriante - Estado (juiz), Estado (juiz) —* pessoa contra quem se desapropria o bem”. Tudo que se pode passar entre o Estado e a pessoa de direito público ou privado, a favor de que se faça a desapropriação, é estranho à relação jurídica processual da desapropriação: é entre a entidade desapropriante (Estado) e a pessoa a favor de quem se está fazendo a desapropriação. Desapropriante é sempre

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o Estado. A declaração de desapropriação deu a medida (lato sensu) do que se há de desapropriar; e deu o fundamento legal, que se há de conter num dos fundamentos constitucionais. E tudo isso que há de ser provado pelo desapropriante. O ônus da prova incumbe-lhe. Nada se presume ser de necessidade pública, ou de utilidade pública, ou de interesse social, para ser desapropriado. Ao que vai sofré-la é que incumbe combater as provas e provar o que, por fundamento aliunde, pré-exclui o direito de desapropriar (e. q., o ter-se exaurido esse direito por estar satisfeita, noutro processo, ou em acordo de desapropriação, a necessidade pública, ou o ter desaparecido a utilidade pública, ou o interesse social por se ter descoberto outro meio, mais eficiente, de solver o problema de utilidade pública, ou de interesse social). Se, segundo a lei, a declaração de desapropriação há de ser em decreto, é ineliminável o ser em decreto, para que ato administrativo de tal relevo tenha ampla publicidade, no interesse do Estado e dos que podem sofrer a desapropriação. Ainda que se venha a dar a composição por acordo, não se dispensa o decreto com a declaração de desapropriação. O pressuposto da declaração de desapropriação é pressuposto formal (Julius Hatschel≤, Lehrhuch des deu tschen ,ind preussischen Verhaltungsrechts, 5ª-7ª eds., 280), que se satisfaz em decreto, ou em lei, seguida de execução. A declaração de desapropriação afirma que o bem a ser desapropriado é de necessidade pública, ou de utilidade pública, ou de interesse social. Durante o processo, o demandado pode negar que isso ocorra, cabendo-lhe o ónus de afirmar, porém não o de provar. O desapropriante afirmou; ônus da prova incumbe-lhe. O processo iniciado sem a declaração de desapropriação é nulo. A falta é insuperável, porque haveria de preceder à propositura a declaração de desapropriação. Em todo caso, se o juiz, pelo pedido, pela contestação e pelas provas, pode decidir que não procede a ação, a nulidade processual não é óbice a que o faça. A lei sobre desapropriações é uma coisa, e outra, a declaração de desapropriação, que é exercício do direito de desapropriar (evite-se dizer aplicação da regra jurídica geral ao caso particular: a lei incide sobre todos os casos que são suporte fático para ela incidindo, nasce o direito a desapropriar, de que a declaração de desapropriação, ato administrativo, é exercício). Se o decreto de desapropriação pode ser expedido sem que a União, o Estado Federado o Território, o Distrito Federal, ou o Município esteja autorizado, in casu, é questão que se há de resolver dentro do sistema jurídico da entidade desapropriante. A União somente exige a autorização legislativa quando se trate de desapropriar bens de outras entidades (Estados Federados, Territórios, Distrito Federal, Municípios). Com a lei de desapropriações, desde que os pressupostos, apontados na Constituição e por ela, estejam satisfeitos, há incidência da regra jurídica sobre todos os casos, nascendo à União o direito de desapropriar, quiçá também a outras entidades, ou só a alguma ou algumas dessas, exceto, todavia, quanto à União, em se tratando de bens dos Estados Federados, Territórios, Distrito Federal e Municipios, porque se exigiu mais um pressuposto, o da autorização legislativa. Dá-se o mesmo em relação à desapropriabilidade dos bens de Município pelos Estados Federados, ou pelos Territórios. A ratio legis é evidente. Teme-se que o Poder Executivo abuse do direito de desapropriar, tratando-se de bens pertencentes a unidades menores. Isso não quer dizer que a declaração de desapropriação passe a ser pelo Poder Legislativo. A autorização, que, aí, é plus, tem de ser dada pelo Poder Legislativo; não a declaração de desapropriação. Se a lei disse ‘fica declarada a desapropriação do bem A”, ainda assim se há de ler a lei como de autorização; o Poder Legislativo apenas completou, com o elemento da autorização, o suporte fático. A necessidade ou desnecessidade da autorização é problema de técnica legislativa, que nada tem com o problema da classificação do ato de declaração de desapropriação, que é ato administrativo de exercício de direito. Os juristas, sobretudo italianos, que vêem na exigência da autorização, em certos casos, substituição do ato administrativo, não prestaram atenção suficiente à distinção ineliminável entre autorização e declaração de desapropriação, ainda quando se encurte o tempo, concebendo-se a sanção da lei como tendo em si, já, o ato administrativo de declaração de desapropriação (fusão formal dos dois atos, um integrativo da lei, e outro de execução). A lei que diz “Ficam desapropriados os bens A, B e C é elíptica; há-se de ler como se dissesse: “Fica o Poder Executivo autorizado a declarar a desapropriação dos bens A, B e C. Nem o Poder Legislativo declara a desapropriação, nem, com mais forte razão, desapropria. A própria declaração de desapropriação é a elipse de “declaração de que os bens A, B e C vão ser desapropriados’. 3. Prazo legal. O prazo legal, que se fixa, para somente após ele se poder publicar, eficazmente, outra declaração de desapropriação sobre o mesmo bem, tem por fito evitar que a administração continuamente possa

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submeter os proprietários ao mesmo vexame. Somente sob esse aspecto há conformidade com a Constituição: se, por um lado, é digno de toda a proteção o direito do proprietário, não no é menos, por outro lado, o direito de desapropriar, tanto mais quanto o fundamento, a despeito da mesmidade do objeto, pode mudar, e ter desaparecido, dentro do prazo o fundamento, que depois reapareceu. Não há, a priori, contrariedade à Constituição, como parecera a Filadelfo Azevedo, em voto vencido no julgamento da 1) Turma do Supremo Tribunal Federal, a 27 de julho de 1944 (RDA II, 1, 89-92). Há de entender-se, porém, que a regra jurídica só limita, temporalmente, o exercício do direito de desapropriar, por parte do Poder Executivo federal, dos Poderes Legislativo e Executivo dos Estados Federados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; não o Poder Legislativo federal, que pode derrogar, ou ab-rogar a lei. Só está impedida, pelo prazo, de exercer o direito de desapropriar aquela entidade pública que fizera a declaração de desapropriação. Todavia, para obviar aos inconvenientes da tardança no efetivar-se a desapropriação, pode o proprietário do bem propor a ação provocatória, ordinariamente, ou sob a forma com matéria. O Estado, por sua vez, pode notificar o proprietário, ou publicar decreto que, alegando a desaparição do interesse no desapropriar, restrinja, até o dia da notificação, ou até o dia da publicidade, a sua responsabilidade pelos danos. 4. Indenização. A indenização é pela desapropriação, pela perda que se vai dar. No direito brasileiro, tal prestação é prévia; é pressuposto da desapropriação, e não consequência: não se presta a indenização, porque se tirou a alguém o bem e, sim, porque se lhe vai tirar: tem-se de prestar, para que se componha o suporte fático, para que a regra jurídica da extinção da propriedade do desapropriando incida sobre ele e o registro da sentença. tratando-se de bem imóvel, produza a perda. Não há, propriamente, obrigação de indenizar. Se por algum erro do juiz se deixou de prestar a indenização e o demandado a reclama, reclama contra fundamento da desapropriação: o dever de prestar é por enriquecimento injustificado, e não porque se “deva” a contraprestação. A doutrina dos povos que não têm a prévia indenização não nos serve e criaria sérias dificuldades teóricas e práticas. Não se pense em qualquer preço de venda e compra. Logicamente, dizia Paul Laband (Die rechtliche Natur des Retracts und der Expropriation, Archiu fOr die ciuilistische Praxis, 52, 182), a desapropriação é prévia, e a obrigação de pagar não mais do que consequência; mas isso ainda era resquício de velha concepção privatística no próprio jurista a que mais deveu a concepção publicística do instituto da desapropriação. Nenhuma precedência lógica se estabelece. Precedência da desapropriação, ou precedência da indenização, há de resultar da lei, que traduza certo pensamento politico-juridico a respeito. A Constituição brasileira assenta que há de ser prévia e justa. Por isso mesmo, os legisladores ordinários têm de tratar do procedimento da indenização antes de qualquer efeito da desapropriação: qualquer efeito, que se obtenha antes, tem de ser provisional e de acordo com a lei. O quanto da indenização devia ser baseado no valor do bem ao tempo de se perder a propriedade do bem desapropriado, portanto ao tempo em que ela se consuma. Mas o princípio da indenização prévia impede que assim se proceda: ainda não se sabe quando se proferirá a sentença, nem se conhecem todos os fatores que influiriam no valor futuro. Teremos de ver, adiante, qual a solução do direito brasileiro. Ao despachar a petição, já o juiz nomeia o perito. Se há concordância sobre o preço, o juiz homologa o laudo pericial, por sentença, título hábil para o registro no Registro de Imóveis. Findo o prazo para a contestação, se não há concordância expressa quanto ao preço, o perito apresenta o laudo em cartório, no prazo legal, antes da audiência de instrução e julgamento. O valor haveria de ser, portanto, o da data do laudo, entre a nomeação e o advento do termo; e a lei não o adotou. Se o juiz decreta a desapropriação antes de ser prestada a indenização fixada, obrou contra o texto constitucional: a decisão é contrária à Constituição; o recurso há de ser provido; o registro pode ser cancelado. Se, a despeito da infração, o demandado recebe a indenização, satisfez-se o pressuposto. Seja como for, qualquer tomada de posse e qualquer sentença de desapropriação antes da prestação da indenização, é contrária à Constituição. Poder-se-ia construir o recebimento da indenização após o registro como eficacização da desapropriação, ou sanação. Não é essa, porém, a priori, a melhor construção, nem se ajustaria à regra jurídica constitucional. A sentença é contra a Constituição. A ação rescisória é que poderia ir desconstitul-la. O trânsito em julgado estabelece situação em que, preclusa a pretensão à rescisão, somente se poderia propor contra o Estado ação de enriquecimento injustificado. Se o desapropriando recebe, após o trânsito em julgado, o quanto indenizatório, arma de exceptio dou o Estado contra a ação de enriquecimento injustificado, ou de objeção contra a alegação de injustificado enriquecimento. Para que o Estado, prestando a indenização, após o registro, fique a coberto de qualquer ação do desapropriado, tem de promover homologação do acordo no que importam o recebimento após o trânsito em julgado da sentença e consequente registro. Portanto, se o que sofreu a desapropriação pede o depósito ou recebe amigavelmente, há de o juiz ordenar, ou o interessado ou ele mesmo requerer que se tome por termo o acordo, seguindose-lhe a homologação.

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Se a sentença transitou em julgado, sem que se houvesse depositado a indenização, ou sem que a houvesse validado o desapropriando, não pode o oficial do registro negar-se a registrar a sentença, porque a sentença, a despeito da infração, é apenas rescindível. Todavia, a citação, na ação de rescisão da sentença por esse fundamento, é registrável se referente a bem imóvel ou bem móvel, a que se exija registro. A indenização há de ser prévia a despeito de qualquer efeito da desapropriação, inclusive efeito por adiantamento. Se o desapropriante alega urgência e deposita a quantia, o juiz imite-o na posse dos bens compreendidos no decreto de declaração de desapropriação, ou a respeito dos quais o pressuposto da urgência e o quanto da indenização se verifiquem. Se o demandado recusa o depósito, ou se há razão para se não deferir o levantamento, continua depositada a indenização, até que seja ou possa ser levantada. Tal fixação não é definitiva; o pedido de levantamento por quem é legitimado a isso é que lhe confere definitividade, pelo conteúdo de concordância com o quanto. Se tal concordância não ocorre, prossegue-se como se não tivesse havido esse incidente. Pode ocorrer que a fixação do quanto seja maior. Se o Estado anuiu no depósito somente a título provisional, por lhe parecer que era demasiada a quantia fixada, prossegue-se na fixação definitiva, ainda que o demandado o haja aceito. Afasta-se qualquer protelação da prestação do desapropriante. Ou se presta ao dono do prédio, ou, se não se sabe, ao certo, quem seja, se deposita. Nenhuma decisão administrativa, a respeito de quem seja o titular, pode ter qualquer eficácia a favor ou contra o que se diz titular. Se havia dúvida, persiste; se não na havia, a mais precisa decisão contrária da administração não na cria. Não interessa quais sejam as pessoas que disputam a titularidade, inclusive a União, possuidora dos bens, se entende, após o decreto de desapropriação, que os bens eram seus. Seria venire contra factum proprium. 5.Indenização, registro e mudança de figurantes. A eficácia do registro é quanto à perda da propriedade. Durante o procedimento, não importa qualquer mudança respeito ao proprietário: cada adquirente entra na relação jurídica processual, se o quer, e mostra, de acordo com a lei, a sua legitimação. Até o registro, a propriedade está atingida pela declaração de desapropriação, e qualquer ato concernente à propriedade, que haja de constar do Registro de Imóveis, não é eficaz contra a declaração de desapropriação. O registro da declaração de desapropriação que se aconselha em alguns sistemas jurídicos, é, no direito brasileiro, bis in idem, devido à publicidade do decreto de declaração de desapropriação. Todavia, o juiz ou o oficial do registro não pode recusá-la, pois a ação é real, e a citação é registrável segundo a lei de registros públicos, ainda para aqueles que a reputassem pessoal reipersecutória. Quanto ao direito a receber a indenização, é questão entre os que discutem a propriedade. Por isso mesmo, o levantamento é mediante a prova de ser proprietário o requerente, ou, se há dúvida, depositada a quantia, em virtude de sentença na ação em que os interessados o disputarem. A perda da propriedade, ou do direito real, ou elemento da propriedade, que é finalidade da desapropriação, não é efeito da declaração de desapropriação, nem do ato incidental da imissão temporária, que não tira a propriedade, nem, tratando-se de imóvel, da sentença que defere o pedido do Estado para que se decrete a desapropriação: é efeito do registro. Os sistemas jurídicos que atribuem tal efeito à declaração de desapropriação ainda se ressentem de resquícios do Estado de polícia, ou revelam regressão, às vezes contraditória, como aconteceu sob a Constituição de 1937. De modo nenhum seria de admitir-se essa velha doutrina dos Estados de polícia, que se esteava em Otto Stobbe (Handbuch des Deutschen Privatrechts, II, 175). Nem a dos que, levados pela falsa assimilação da desapropriação à venda e compra (venda e compra forçada), faziam os efeitos datarem do momento em que o desapropriante e o proprietário acordavam na coisa e no preço (e. g., C. F. W. J. Hãberlin, Die Lehre vonder Zwangsenteignung, Archiu 11k die cíuilistische Praxis, 39, 30 s., fixação definitiva da quantia; ou tornada “determinável” a quantia). Nem a dos que viam efeito das obrigações de prestar coisa e indenização e efeito de transmissão, em adimplemento, como Georg Meyer (Lehrbuch des deu tschen Verwaltungsrechts, 1, 287 e 280). O bem só se julga “desapropriado”, quando sentencia na causa, ou, com o consentimento do “desapropriado”, quando se concluir o acordo; a eficácia real, que atende à sentença, ou ao acordo, só se produz com o registro, em se tratando de imóvel. A sentença tem eficácia desde logo, isto é, a despeito da apelação sem efeito suspensivo, interposta pelo demandado, ou alguém

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que o haja substituido, ou esteja em litígio sobre a propriedade; mas o registro somente se pode fazer após ter sido prestada a indenização, entregue ao demandado, ou depositada, ou após o trânsito em julgado da sentença. No direito brasileiro, o dever de indenização toca ao Estado; o direito à prestação, àquele a que se suprime o direito desapropriando. Se o bem está gravado com direitos reais, a avaliação deve levá-los em conta, e tais titulares são partes no processo de desapropriação. a) Se a indenização não lhes é paga antes da sentença, ou porque não foram ouvidos durante a lide, ou porque estava em discussão o que concerne à indenização (ou pagamento deles, por se tratar de direito real de garantia), a sentença mesma é ineficaz quanto a eles (ineficácia relativa). b) Se a indenização foi depositada, de conformidade com o julgado, dá-se sub-rogação (real), enquanto não se indeniza, ou não se paga a divida aos titulares de direitos reais. Na espécie a), a solução da dívida ao dono do bem deixa aos titulares de direitos reais (usufruto, uso, habitação, enfíteuse, servidões) direito e pretensão real contra o Estado como contra quem quer que fosse, e os titulares de direitos reais de garantia continuam credores. Têm uns e outros pretensão contra o Estado, e por enriquecimento injustificado, contra o que recebeu toda a indenização. Desde o momento em que se fez a declaração de desapropriação, nascem os créditos, com vencimento para quando se fixar o quanto da indenização. Se há desistência por parte do desapropriante, cumpre verificar se tal desistência contém renúncia à eficácia do ato de exercício do direito de desapropriação, ou se apenas se desiste do processo, mantida a declaração de desapropriação. Se renunciou à eficácia do ato de exercício do direito de desapropriar, entende-se que somente após o prazo legal pode, de novo, exercer esse direito formativo extintivo. O direito à indenização nasce, não quando se inicia a ação de desapropriação, mas sim quando se faz a declaração de desapropriação. Tal direito desaparece quando o Estado renuncia à desapropriação, razão por que se cria indesapropriabilidade antes de correr o prazo. A pretensão somente nasce quando o juiz julga a fixação. há, então, para o Estado, a obrigação de pagar a dívida. Pode ser intimado a depositar. A indenização há de ser prévia. Prévia a quê? Não à sentença que fixe a quantia da indenização: não se sabe de quanto é. Se há recurso, não cabe exigir-se o pagar-se, ou o depositar-se. Portanto, a previedade é em relação ao registro do título, que é a sentença (somente o registro opera a perda da propriedade, tratando-se de bens registrados) e em relação ao mandado de imissão, que o juiz não deve expedir antes de efetuado o pa-gamento ou depositada a quantia. No direito brasileiro, a indenização tem de ser prévia. De maneira que não se pode dizer que seja efeito da desapropriação; é meio para se obter a desapropriação. Ainda para a posse provisória, é preciso que se deposite o valor dela. A indenização há de ser justa. A indenização há de ser em dinheiro. 6. Qualificação do demandado. Um dos requisitos da petição inicial de desapropriação é o dela constar a qualificação do réu. Se não foi citado o proprietário, ou titular do direito desapropriando, o processo é ineficaz. Alguns sistemas jurídicos excluem a ineficácia da desapropriação, sob o fundamento de que o assunto merece trato diferente daquele que se lhe daria em direito civil e em direito processual civil. No sistema jurídico brasileiro, só se não permite a reivindicação se o bem já foi incorporado á Fazenda Pública, ou, melhor, se já foi registrada a sentença. Os bens desapropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolve-se em perdas e danos. E de se advertir, de início, que a incorporação pode não ter sido à Fazenda Pública — ter sido entregue ao povo, e então seria de todos; ou entregue a alguma empresa que tenha fim de necessidade pública, utilidade pública, ou interesse social. Em qualquer das três espécies não há a reivindicação após o registro da sentença. Antes disso, a decretação da nulidade do processo importa que não haja sentença trânsita em julgado, ou rescisão da sentença; portanto, pré-exclui-se o registro. Em consequência, se ao oficial do registro chega sentença de desapropriação em que o réu não é proprietário segundo o registro, o princípio da continuidade do registro impõe ao oficial que recuse o registro, levantando a dúvida. O proprietário segundo o registro pode propor ação contra o desapropriante, registrando a citação para elidir a fé do registro que se fizer. A reivindicação poder-se-á dar. Somente não cabe: se, tratando-se de aquisição, a pessoa que constava do registro não seria de admitir-se; se o registro foi a favor do Estado, isto é, da União, do Estado Federado ou do Município, ainda que se dê a rescisão da sentença registrada. Todo cuidado há de ter o intérprete em se não deixar levar por princípios de direito estrangeiro.

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Se ignora quem seja o proprietário, a solução é a citação por edital. Não dispensa isso a citação de qualquer pessoa que tenha direito sobre o bem, ou que seja possuidor próprio ou impróprio. Se o citando não é ignorado, mas é desconhecido ou incerto, dá-se o mesmo. Também a respeito de qualquer pessoa que tenha direito sobre o bem, ou seja possuidor próprio ou impróprio, pode ter de incidir alguma regra jurídica processual sobre edital, por incerto, ignorado ou inacessível o lugar em que esteja o demandado. Sem citação não há qualquer eficácia. Se a sentença é nula e o registro se fez, pode haver a reivindicação. Idem, se a sentença é inexistente. Não há reivindicabilidade, se a sentença é rescindível por nulidade do processo; se a sentença é inexistente, nula, ou ineficaz, sim. A sentença é inexistente (= não existe a decisão que aparece como sentença), no sistema jurídico brasileiro, se é só aparente, ou se a relação jurídica processual não se estabeleceu, por se não haver obrigado à prestação jurisdicional o juiz, ou juiz que se pudesse obrigar, por ser inexistente um dos figurantes. A sentença é nula é a que se profere em relação jurídica processual, a que, devendo ser angular, faltou a angularidade, por falta ou nulidade de citação, ou se faltou algum requisito de validade da sentença. Se de sentença inexistente ou de sentença nula se tira carta de sentença para se proceder ao registro, o oficial de registro deve negar-se a registrá-la. Registrabilidade é efeito. Sentença inexistente e sentença nula não produzem efeito. Aliter, se a sentença só é rescindível. Se o oficial do registro, a despeito da inexistência ou da nulidade da sentença, registra a carta de sentença, o registro é retificável, Só há óbice à reivindicação se houve registro em virtude de sentença eficaz, e sentença inexistente e sentença nula não têm efeitos, nenhum efeito. A fixação dos conceitos de sentença inexistente, nula e rescindível pertence ao direito processual. O recurso pelo demandado ou quem o substituiu não tem efeito suspensivo. Pode cumprir-se a sentença. Se for provido o recurso, já feito o registro, a decisão do tribunal reforma a sentença e cancela-se o registro em virtude do acórdão reformativo. Tem-se de saber a que alegações de nulidade do processo se prende a irreivindicabilidade. A incorporação, de que se cogita, somente pode ocorrer após o levantamento da quantia indenizatória, ou o depósito, e o registro da sentença. Se essa é reformada, no recurso, não é de reivindicação que se trata, e sim de provimento ao recurso, que tem a eficácia específica mais a de se cancelar o registro. No recurso, podem ser argúidas quaisquer matérias, inclusive nulidades processuais. O terceiro, que se diz dono, recorre, em vez de reivindicar. Se vem com a reivindicação, o registro da citação na ação — de que o oficial de registro deve dar conhecimento ao juiz da desapropriação, ou cuja certidão o terceiro pode juntar aos autos do processo de desapropriação — é registro provisional e estabelece, por sua publicidade, a dúvida, quanto à propriedade, e há o depósito. A ação de reivindicação é uma das ações “próprias” para se disputar o levantamento: a vitória, antes da desapropriação, afasta o demandado no processo de desapropriação e deixa o lugar dele ao autor da ação de reivindicação; depois da fixação do quanto da desapropriação, habilita-o plenamente ao levantamento da indenização. As nulidades processuais, que não bastam à reivindicação, são as nulidades que se podem alegar em ação rescisória da sentença, tanto mais quanto a decisão favorável em qualquer ação se resolve em perdas e danos. Nulidades, ineficácias, entenda-se; porque, não tendo o terceiro recorrido, mas intentado a reivindicação, não por não ter sido citado no processo de desapropriação, tal ineficácia tem de ter a consequência de tornar o julgamento na ação da desapropriação res inter a tios. O decreto de declaração de desapropriação tem publicidade, porém não importa, havendo citação errada do demandado na ação de desapropriação, eficácia de vocatio in ias de quem quer que seja interessado no bem desapropriando. Quanto à inexistência de sentença e às nulidades processuais que fazem nula a sentença, e não somente rescindível, a decisão na ação declarativa negativa, ou de constituição negativa, ou incidenter, é de eficácia retificativa do registro, por ser, também ele, inexato (e. g., sentença de quem não era juiz, desapropriação promovida sem decreto de declaração de desapropriação, desapropriação pelo Município contra o Estado Federado, ou contra a União, do Estado Federado contra a União, ou particular). A garantia constitucional dá ensejo a recursos extraordinários sempre que se haja caracterizado violação dos princípios constitucionais, principalmente se a lei estabelece que a indenização seja segundo critério que constitucionalmente não é”justo’, ou se faz posterior a qualquer ato desapropriativo a indenização.

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7.Renúncia à declaração de desapropriação. O Estado pode renunciar à declaração de desapropriação. Volve ao que era a situação dos fatos antes do decreto em que a declaração de desapropriação foi feita. O demandado não pode renunciar, nem desistir do processo de desapropriação, porque nenhum outro direito tem que o direito à indenização e à defesa no processo. Pode desistir de recursos e de ações contra o Estado. A renúncia à declaração de desapropriação somente pode dar-se até proferir-se a sentença, ou até o julgamento do recurso, se da sentença se recorreu, ou de outro julgamento, se outro recurso cabível se interpôs. Após isso, a renúncia pelo Estado é renúncia ao registro da sentença e à imissão na posse, o que já exige poder o Estado dispor de bem, de acordo com a lei. A renúncia à ação e a desistência do processo são inconfundíveis. Pode-se desistir do processo, sem se renunciar à ação, se bem que renunciar à ação implique ter-se de desistir do processo. De regra, não se entende que renuncia quem diz desistir; mas o Estado, que desiste do processo de desapropriação, entende-se ter renunciado à ação, salvo explicitude em sentido contrário. Já falamos do prazo preclusivo, para que o Estado, feita a declaração de desapropriação, obtenha conclusão do acordo, ou intente a ação de desapropriação. Não basta que tenha iniciado conversações, ou conseguido punctações, sobre o modo de se resolverem as divergências entre ele e o proprietário; nem que tenha alegado urgência e depositado a quantia. É preciso que haja concluído o acordo, ou que haja feito citar-se o proprietário e não tenha havido extinção do processo sem julgamento do mérito. Se houve a declaração de desapropriação e não se chegou a acordo, nem foi proposta a ação de desapropriação, ou foi proposta e o processo se extinguiu sem julgamento do mérito, precluindo-se o prazo que está em lei, cabe pedir o proprietário indenização pelos danos que lhe causou a declaração de desapropriação. A declaração de desapropriação não é revogável, no preciso sentido técnico. A desistência pelo Estado tem como consequência não se ter por interrompido o curso do prazo legal. Citado o proprietário, a duração do processo de desapropriação não é prevista pela lei, mas o Estado está sujeito às regras jurídicas processuais sobre extinção do processo sem julgamento do mérito, inclusive por abandono da causa. (A pré-exclusão de incidência de tais regras jurídicas, em lei sobre cobrança de dividas fiscais, não se poderia estender, por analogia, às ações de desapropriação). Se preclui o prazo para a propositura da ação de desapropriação, de modo que só após prazo fixado por lei possa a entidade intra-estatal fazer nova declaração de desapropriação, com tais ocorrências nada tem a extinção do processo sem julgamento do mérito, que não impede nova propositura. ‘óbice à propositura, ali, é o ter havido preclusão dos direitos oriundos da declaração mesma, e não a simples extinção do processo sem julgamento do mérito. Pode o Estado, extinto o processo sem julgamento do mérito, propor, de novo, a ação de desapropanação, se o prazo legal ainda não expirou; se já expirou, não mais lhe é permitido propor a ação de desapropriação, pois teria de fazer nova declaração de desapropriação, o que só lhe é dado fazer após o prazo legal. Se o Estado já prestou a indenização, que há de ser prévia, e ainda não foi proferida a sentença, pode o Estado renunciar, ou desistir, porque a desapropriação ainda não foi decretada. Tem de pedir a quantia paga, alegando enriquecimento injustificado, ou levantamento, e se expõe a prestar a reparação dos danos que a declaração de desapropriação e a propositura e mais atos do processo causaram. Não há revogabilidade da prestação da indenização, certamente; nem a prestação da indenização cria ao Estado o dever de levar por diante o processo e obter a desapropriação (sem razão, Loebeli, Das preussische Gesetz Ober die Enteignung, 189) — apenas o expõe a prestar indenização pelos prejuízos causados. Sobre o que recebeu tem o demandado direito de retenção, até que se lhe preste essa indenização; e pode pedir ao juiz que indefira o levantamento, até que seja fixada, com força de coisa julgada, a indenização. Na ação de enriquecimento injustificado, que o Estado proponha contra o que recebeu a indenização, pode esse alegar, em reconvenção, os danos que sofreu, ou objetar parcialmente à argúiçáo de enriquecimento injustificado, pois não foi sem causa, salvo o excesso em relação aos danos. A ação do proprietário pelo não prosseguimento da desapropriação, ainda se não foi proposta a ação de desapropriação, funda-se em que, desde a declaração de desapropriação, o proprietário não pode utilizar o bem como entendia (é bem que vai ser desapropriado), não há compradores para ele como se não existisse tal ameaça, e talvez tenha sido o proprietário levado — e. g., devido à imissão provisional na posse — a mudar de prédio, ou a comprar outro.

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Aliás, no caso de ser decretada a nulidade do processo, ou de ser julgada improcedente a ação de desapropriação, tem o Estado de prestar a indenização pelos prejuízos que a declaração de desapropriação, ou a declaração de desapropriação e o processo causaram, se precluiu o prazo, ou que somente foram causados pelo processo, se ainda há tempo para a propositura de outra ação e o Estado a propõe. Não é preciso provar-se culpa, qualquer que seja a ação de indenização contra o Estado (Otto Meyer, Deu tsches \/erwaltungsrecht, III, § 34,111, 2) in une). A responsabilidade do Estado é pelo ato de incursão na esfera jurídica alheia. O procedimento judicial da desapropriação pode cessar pela transação, ou pela desistência, homologada pelo juiz. Se advém o acordo, em vez de ter ocorrido antes de qualquer procedimento judicial, não se afasta a homologação pelo juiz, pois essa é necessária para se encerrar a jurisdição. Devem-se transcrever o acordo e a sentença homologatória. O acordo é negócio jurídico, não no é a desapropriação. Trata-se, aí, de negócio jurídico para liquidação (cf. Otto Fischer, Expropriationsvertràge, 34 s.). 8.Acordo. O acordo pode ser incidente do processo de desapropriação. Trata-se como acordo a declaração unilateral de vontade que uma das partes faz, de modo que não haja qualquer divergência sobre indenização e a desapropriação mesma. Se fora dos autos, tem de ser junto a eles, para que, homologando-o, o juiz ponha termo à relação jurídica processual. Trata-se de negócio jurídico de direito privado, porque as partes saem do processo, ainda que dele não saiam formalmente, para fixarem o que se há de prestar pela desapropriação. Tal negócio jurídico pode ser eliminativo da própria desapropriação, e. q., ser contrato de venda e compra, ou de troca; pode ser simples concordância para efeitos processuais. Nada obsta a que só se refira à posse provisional e à indenização respectiva, não-definitiva. Pode ser transação para que o demandado ou o Estado desista de recurso, ou desista o Estado da própria ação. Se o negócio jurídico não versa sobre algum ponto de desapropriação, mas sim sobre o próprio fato futuro da desapropriação, pré-eliminando-o, pode ser que a adie, ou afaste de todo, ou a pré-substitua; a venda e compra e a troca pré-substituem-na. Aqui o proprietário negocia, tornando sem razão de ser o processo de desapropriação; e são os princípios jurídicos e regras jurídicas concernentes ao negócio jurídico bilateral que incidem, e não os da desapropriação. O que não se há de admitir é a mistura do instituto da desapropriação com a categoria do negócio jurídico, caindo-se nas erronias de venda e compra para fazer as vezes da desapropriação, ou forma de tolerância da desapropriação (cf. C. F. Grúnhut, Dos Enteignungsrecht, 166). Ou há acordo sobre a admissão dos pressupostos, ou sobre a indenização, ou se vai além disso e se afasta a desapropriação, como se, após o laudo do perito, o Estado, sem caráter de transação, adquire o bem pelo preço que o proprietário exige, ou se o Estado adquire o direito de opção de venda e compra que terceiro tem. Ainda que o acordo seja pré-substitutivo, nada obsta a que se faça perante o juiz da desapropriação, em vez de o ser perante o tabelião; porém deve-se repelir que se dispensem exigências de direito de família e das sucessões, como a assistência do pai, tutor ou curador do menor, como faz a lei francesa, ou o assentimento uxório ou material. Outro ponto que merece atenção é o atinente à eficácia do negócio jurídico pré-substitutivo. Não se pode afastar, ai, a reivindicação, por ter havido incorporação ao patrimônio da entidade intra-estatal desapropriante. Tal regra jurídica somente pode ser invocada quando o acordo não pré-substituiu a desapropriação, ainda que feito perante o juiz. Seria preciso que a lei houvesse estabelecido essa eficácia excepcional do negócio pré-substitutivo — o que não no faria desapropriativo. O argumento de que tal acordo equivale à desapropriação, e há de ter eficácia contra terceiros (C. F. Grflnhut, Das Enteignungsrecht, 186), e de refusar-se: não há nenhuma equivalência, exatamente porque se pré-substituiu a desapropriação; não houve desapropriação, nem equivalente disso. Desapropriação, ou há, ou não há. Ainda quando se deixa a arbítrio de terceiro a fixação do preço não há pensar-se em contrato de venda e compra misturado com a desapropriação: a desapropriação não se mistura; por isso mesmo, o acordo que não a pré-substitui serve à fixação de pressupostos da desapropriação, sem se contaminar, nem contaminar. Se no negócio jurídico se aludiu à competência do juízo para nomear perito, ou se deixou ao perito nomeado fixar o quanto da indenização, não se trata de venda e compra com a cláusula de fixação do preço por terceiro (cp. L. 15, C., de contrahenda ernptione, 4, 38), como pensavam Georg Meyer (Das Recht der Expropriation, 212) e F. Seydel (Das Gesetz Ober die Enteignung, 57). Não houve pré-substituição. Sempre,porém, que a aquisição da propriedade pelo Estado seja anterior à solução da dívida indenizatória, ou à de fixação, pré-substituiu-se a desapropriação: o direito civil é que rege; seria impertinente a invocação de princípios e regras do direito concernente à desapropriação.

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O acordo, de que estamos a falar, não é de confundir-se com o acordo, posterior ao trânsito em julgado da sentença, ou, até, após o registro, se a sentença é nula ou rescindível. Tal acordo é só no plano do direito material e precisa de ser homologado se querem efeitos processuais, e. g., o de extinguir a pretensão à rescisão da sentença. Se a sentença é nula e ainda não houve registro, nada obsta a que se registre o acordo. Se a sentença é nula e já houve registro, o acordo tem de ser homologado e com ele se pede a retificação do registro e o novo registro substitutivo, sendo a decretação da nulidade da sentença questão prévia. Se a sentença é rescindível e ainda não houve o registro, com o acordo homologado ou sem ele se poderia obter o registro, mas é aconselhável homologar-se para se pôr claro que se extinguiu a pretensão à rescisão da sentença. O acordo desapropriatório tem de ser registrado, para que se dê a perda da propriedade pelo titular do direito desapropriado, ou pelos titulares dos direitos desapropriados. A técnica legislativa poderia ter exigido a sentença do juiz, integrativa do fundo e da forma, ou somente integrativa da forma, ou não na exigir. Se esse acordo se faz, já iniciado o processo judicial de desapropriação, é como transação e tem de ser homologado. Se, antes de qualquer ato processual em juízo, ou depois de cessar, qualquer que tenha sido a causa, a relação jurídica processual, ocorre o acordo desapropriatório, de nenhuma sentença se precisa. O acordo, negócio jurídico entre vivos, integra, de si só, a desapropriação, e basta ao registro, em se tratando de propriedade re-gistrada, com eficácia igual à que teria a sentença final de desapropriação. De iure condendo, teria sido preferível exigir-se a homologação judicial com integração do fundo, pelo exame dos pressupostos, e da forma. De iure condito, o oficial do Registro de Imóveis não se pode recusar a registrar o acordo tal como se lhe apresenta, se em escritura pública. Se do registro consta algum direito real, ou pessoal, que não foi objeto do acordo, ou o foi sem que o seu titular houvesse figurado no acordo, o registro não no atinge — ali, porque dele não se cogitou; aqui, por ser ineficaz quanto ao titular não figurante. Se a posse foi transferida, ou se o possuidor a transfere após o acordo, nenhuma dificuldade houve em se executar o acordo, Não assim se há posse imediata, ou alguma posse mediata intercalar, por parte de quem não figurou no acordo, ou se o possuidor imediato, ou mediato, que não transferira a posse, se recusa a fazê-lo. Então, o acordo tem de ser levado a juízo, instruindo a petição de ação de imissão na posse. Se a ação não foi contestada, julga-se antecipadamenteo o petitum e expede-se, desde logo, o mandado de imissão na posse; se o foi,,toma a causa o curso ordinário. Ainda quando não intentado o processo contra terceiro, a contestação é com amplitude máxima de defesa. Contra o terceiro, que tem posse imediata ou mediata intercalar, o acordo não basta à ação, porque teria de preceder à ação de imissão na posse a desapropriação do direito de terceiro. O Estado não pode, por exemplo, imitir-se na posse do bem alugado, porque, ex hypothesi, está em vigor e eficaz erga omnes o contrato, ou, em se tratando de imóvel, há o prazo de entrega pelo inquilino. No direito brasileiro, a desapropriação não resolve a locação. O Estado, ao expropriar o prédio, expropria propriedade mais direito ao uso do prédio, se de eficácia erga omnes, ou contra o Estado. Indeniza o dono, o enfiteuta, o usufrutuário, ou o usuário, ou o que tem direito de habitação, ou direito real de garantia, ou direito pessoal com eficácia erga omnes, ou contra ele. Se o adquirente do prédio comprado ficaria sujeito a respeitar a locação, o desapropriante tem de respeitá-la, ou indenizar. Só não a respeita se desapropria o direito, indenizando justa e previamente. Onde as leis especiais sobre desapropriação se afastam disso são contrárias à Constituição. Tem-se pretendido que o Estado somente é obrigado a prestar ao locatário, ou outro titular de direito pessoal, que tenha posse, se o negócio jurídico foi registrado. Há. aí, evidente confusão entre eficácia da posse, que é erga omnes, e eficácia do negócio jurídico, que pode não ser erga omnes. Ainda mais: há; confusão entre eficácia erga omnes do negócio jurídico e eficácia em relação ao Estado. O Estado, que levou em conta, por exemplo, para lançamento de imposto de renda, o aluguel que o dono do prédio desapropriando recebe, não pode ignorar a locação. Nem pode ignorar a locação a entidade política que considerou a locação para lançamento do imposto predial. Tudo se resolve com alegações e as provas in casa. Tanto mais quanto, se o dono do prédio desapropriando não tem a posse própria, tem o Estado de fazer citar, também, o possuidor próprio: o dono do prédio desapropriando poderia ter reivindicado, e não no fez; ou, se entendia que o possuidor era desalojável possessoriamente, poderia ter proposto a ação possessória, e não a propôs. O Estado, ao querer desapropríar, encontra o direito de propriedade de A e a posse de B, de modo que A é apenas titular de d — p. A indenização é a A e a B, salvo se tempestivamente trânsita em julgado a sentença contra B na ação que contra ele acaso proponha A. É possível que, não tendo de respeitar a locação, o desapropriante permita que o locatário permaneça no prédio. O Estado está sujeito ao seu próprio direito. Se o prédio foi desapropriado para uso do Estado que é o

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adquirente, há, no direito civil, as causas de denúncia que se enumeram sobre locação. Se o foi para demolição e edificação licenciada, ou reforma, que dêem ao prédio maior capacidade de utilização, ou para uso comum do povo, ou especial, cabe a denúncia, satisfeitos os pressupostos. Naturalmente, as causas de resilição estão todas, à disposição do desapropriante. Se há denunciabilidade e o Estado desapropriante não denuncia, a permanência é a de possuidor imediato, por locação (cf. 8ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 4 de junho de 1948; 5ª Câmara Cível, 2 de julho de 1948, DJ de 11 de abril de 1950; 8ª Câmara Cível, 7 de janeiro de 1949, AJ 90/148; 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 25 de fevereiro de 1949, RT 180/338; 3ª Grupo de Câmaras Civis, 23 de setembro de 1949. 180/702; 2ª Câmara Civil, 11 de outubro de 1949, 183/756). Por isso mesmo, se o que teria ação de imissão na posse, ou a denúncia, não a exerceu, tratando como a locatários os que o eram do prédio desapropriado, podem esses pedir mandado de segurança contra o juiz que os queira despejar (l Grupo de Câmaras Civis do Tribunal de Justiça de São Paulo, 8 de novembro de 1949, RT 183/143). Não têm razão os que não vêem qualquer incidência das leis emergenciais. É possível que tenha havido a indenização ao locatário, e então a ação não é a de despejo, mas a de imissão na posse, ou de esbulho, conforme a espécie. Dissemos que, se há concordância sobre o preço, o juiz homologa por sentença o acordo. Tal concordância, antes de expirar o prazo para a contestação, homologada, é pré-excludente do resto do procedimento; porém de modo nenhum a homologação faz as vezes da decisão final. A respeito escreveu M. Seabra Fagundes (Da Desapropriação no direito brasileiro, 293): “Se o acordo se der, após o ajuizamento do pedido e antes de findo o prazo para a contestação, será oficialmente homologado pelo juiz. A ação é, neste caso, encerrada pelo despacho saneador, que, em tal eventualidade, assume o caráter de decisão terminativa do processo, equiparando-se às sentenças proferidas nos processos de jurisdição voluntária”. De modo nenhum. A indenização tem de ser prévia. Primeiro se há de prestar aquilo em que se acordou, para que se possa desapropriar. Se a homologação fossentença final, de que resultasse a desapropriação, estaria violada a regra jurídica constitucional: o juiz teria fechado a relação jurídica processual, permitindo registrar-se a sentença de homologação, sem ter verificado se o demandado recebera a indenização, ou se fora depositada, regularmente. Nada mais contrário aos princípios de direito processual e, o que mais importa, à Constituição de 1988, que exige, como as anteriores, que a indenização seja prévia. A sentença final da ação da desapropriação é ineliminável. Homologado o acordo, entrega o Estado a indenização, ou a deposita; entregue, ou depositada, os autos sobem ao juiz, que profere a sentença de desapropriação, em que há a questão prévia da entrega ou depósito da indenização (elemento declaratório da sentença) e a desconstituição da titularidade do demandado, com ou sem atribuição a outrem, seguida do mandado de imissão na posse. Tratando-se de bem cuja perda de propriedade, ou de elemento da propriedade, depende de registro, a sentença, que então se profere, é que é o titulus. Não se poderia dispensar a sentença final, com o argumento de que, após a homologação do acordo, só se trata de execução do ato desapropriatório. A ação de desapropriação somente tem de excutividade o que enche o elemento mandamental (mandado de imissão na posse) e o constitutivo negativo. O próprio registro não é execução; é emprego normal, típico, da sentença proferida, como titulo. Por outro lado, é preciso advertir-se que o demandado pode ter acordado no valor oferecido, mas contestar, no tocante ao pressuposto da destinação, a ação. Não se põe termo à relação jurídica processual: prossegue-se na ação, pois os princípios constitucionais têm de ser observados. A despeito do acordo sobre o valor, pode existir discordância sobre o direito de desapropriar. A sentença final ou defere ou indefere o pedido. Se indefere, o acordo perde toda a eficácia. Se o acordo vem após a contestação, precisa de ser homologado, para que se considere sobre toda a matéria sub judice, mas, aí, é, de desistência, ou de transação, que se trata. Não há apenas o acordo. Há o acordo desapropriativo sobre res deducta total ou parcial, com as consequências, respectivamente, de, ali, se pôr termo à relação jurídica processual, pela desistência do autor, que tem a eficácia de renúncia á ação de desapropriação, se não se fixou que só do processo em andamento se desistia, e de, aqui, ou se pôr fim à relação jurídica processual, ou, o que é menos provável, só se haver transigido sobre o quanto porque parte do pedido se eliminou. Se o acordo desapropriativo foi seguido de entrega, ou depósito da indenização, e não houve contestação, nada obsta a que sejam a mesma, formalmente, a sentença homologatória e a sentença final.

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9. Custas. As custas são pagas pelo autor se o réu aceitou o preço oferecido; em caso contrário, pelo vencido, ou em proporção, na forma da lei. Se houve o acordo desapropriativo, as custas serão pagas pelo que, no acordo, assumiu a obrigação de as pagar; se o acordo não o previu, pelo desapropriante. Se não houve o acordo desapropriativo, mas sim o acordo sobre o preço, homologado pelo juiz, paga-as o desapropriante, que é autor. Se não houve acordo desapropriativo, nem o acordo sobre preço, há o laudo pericial, a audiência de instrução e julgamento e a sentença final. Então, ou a contestação do réu é procedente, ou não no é, no todo ou em parte. A procedência no todo tem a consequência de se carregarem as custas ao desapropriante, que é vencido, e pretendeu desapropriação sem ter direito a desapropriar. A procedência em parte, que importa não se dar a desapropriação, trata-se como improcedência total da ação, devendo carregarse as custas ao desapropriante (e. g., não pagou nem depositou o quanto da indenização, ou não havia razão para se desapropriar). Se a ação é julgada procedente, mas a indenização não foi a que se oferecera, nem a que exigia o dono do bem, a condenação nas custas é proporcional. Se o demandado rejeita a oferta e indica outro quanto, ou, simplesmente, que se arbitre, entendeu a 1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 12 de julho de 1943 (RT 148/217 a), que não paga as custas; mas, se o demandado não aceita o quanto arbitrado, trata-se como vencido para o efeito da condenação proporcional (1ª Câmara Civil, 8 de junho de 1942, RF 96/654 sã, ainda se o arbitrado coincide com o que se ofereceu, porque ai as custas são pagas proporcionalmente. Se o autor desiste da ação, carregam-se-lhe as custas; se por transação, metade a cada um, salvo acordo sobre isso. Note—se que o demandado é vencido se nega ser caso de desapropriação e a sentença lhe é contrária. Paga, então, as custas. Não importa negação de ser caso de desapropriação alegar-se que o Estado invocou a regra jurídica constitucional sobre a necessidade pública, a utilidade pública, ou o interesse social, e não deu prova da existência de pressuposto. Aí apenas frisa o demandado que o ônus da prova toca ao autor e isso não é alegar o contrário. E fazer considerações sobre direito objetivo. Se o demandado alega que as despesas de desmonte, de transporte e de reinstalação lhe são devidas e o juiz não lhe dá razão, é vencido nessa parte, servindo de base o quanto pedido. Se, invocado o texto constitucional, verbis “necessidade pública”, o demandado contesta haver tal necessidade pública, e o autor faz prova de “utilidade pública”, ou de “interesse social”, a sentença, que desapropria, não pode condenar ao pagamento das custas do demandado, se necessidade pública não havia. E vice-versa. Se o bem for desapropriado por duas entidades estatais (União e Estado, Distrito Federal, Território ou Município; Estados Federados e Municipio, ou Distrito Federal; Distrito Federal e Município de alguma unidade estatal, ou Território), o que pode ocorrer, como se é para edificação de porto comum, ou hospital de fronteira, ou estrada de rodagem comum, ou ereção de monumento de interesse comum, as custas são repartidas em proporção, se os valores ofertados são diferentes, e têm elas de ser condenadas às custas. Se o bem desapropriado é propriedade de duas ou mais pessoas, as custas, em que hão de ser condenadas, são proporcionais. § 237. Justiça e execução1.Petição inicial. (a) Os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, que hão de ser expostos na petição inicial, são: a existência da coisa ou parte da coisa, ou elementos do direito de propriedade, ou de outro direito, desapropriáveis, que o Estado quer desapropriar; o fato da necessidade pública, ou da utilidade pública, ou do interesse social, na desapropriação, as regras jurídicas em que se baseia para afirmar a existência de direito a desapropriar, dentro dos princípios constitucionais; o ter sido feita a declaração de desapropriação como ato inicial do exercício do direito de desapropriação; se as circunstâncias fazem necessário, ou se é indispensável à exposição do fato da necessidade pública, ou da utilidade pública, ou do interesse social, a indicação da entidade a favor da qual se vai desapropriar. Se a necessidade pública, a utilidade pública, ou o interesse social existe, independentemente de qualquer atribuição a entidade de direito público, ou privado, a que o Estado deva a desapropriação, e dispensável a inserção. Tal atribuição pode ser, até, posterior à desapropriação. Se as circunstâncias ou a exposição dos pressupostos fazem preciso mencioná-la, é conveniente dizê-lo na petição inicial; mas, salvo nos casos em que se daria inépcia da petição, a todo momento pode ser designada, se o argúi o demandado. A designação pode ser indispensável se a necessidade pública, a utilidade pública, ou o interesse social só se caracteriza com a destinação a alguma entidade. Se ocorre isso, a mudança é desdestinação, o que pode ter consequências jurídicas. Por outro lado, a destinação a alguma entidade pode ser, em verdade, a certa classe de entidades, o que somente leva, com a mudança do destinatário inicial, a desdestinação, se tal mudança põe fora da classe de destinatários possíveis a atribuição desapropriativa.

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(b) O petitum consiste na determinação do que se quer desapropriar (bem, parte do bem, elemento do direito). A oferta da quantia da indenização é apenas base para a fixação: se aceita, está composto o negócio jurídico da fixação; se não aceita, a posterior fixação é prestação jurisdicional ao Estado e ao demandado. A declaração de desapropriação, em decreto, é sempre necessária. Não há desapropriação, sem que a preceda a declaração de desapropriação, ainda que essa se opere por acordo. O acordo desapropriativo não desapropria; o acordo seria negócio jurídico, por si só: seria venda-e-compra, troca, ou outro contrato. O acordo integra a desapropriação, por ser ato jurídico que pré-substitui o processo de desapropriação. Por outro lado, o exemplar ou cópia autenticada de acordo (pode não ser bilateral) só é indispensável quando é indispensável mencionarse a enti-dade, a favor da qual o Estado desapropria. O que é imprescindível, em quaisquer casos, é a declaração de desapropriação. Se a lei se adiantou em fazê-la, materialmente é o Poder Executivo que a emite, ao dar execução à lei. A planta do bem desapropriando há de ser junta à petição, salvo se a descrição do bem imóvel, com as suas confrontações, basta, ou se é de bem móvel que se trata, ou de elemento de direito, que a simples menção individualize. (c) Se alguma outra entidade é que vai utilizar o bem, exerce ela contra o Estado a pretensão à desapropriação (= pretensão a que o Estado desaproprie). Assim, os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções atribuidas de poder público podem promover desapropriações. Entenda-se: podem exigir ou solicitar do Estado a declaração de desapropriação, ingressando em juízo com esse (litisconsórcio facultativo), ou representando-o, se munidos de poderes para isso. Em qualquer caso, a entidade não-estatal não pode ser o autor, per se; se houve outorga do Estado para a representação, é questão de interpretação da lei, decreto, ou negócio jurídico. A “delegação” apenas se considerará atribuição de poderes para representar em juízo o Estado. Para isso, é indispensável o ato de direito público, que pode ser a lei, o decreto, ou o negócio jurídico, sendo de notar-se que a lei não é preciso juntar-se — basta citar-se, salvo algum caso de se terem de provar o teor e a vigência, em virtude de regra jurídica processual. Decretada a nulidade do processo, pode repetir-se o pedido, se ainda dentro do prazo. Têm de ser citados todos os titulares de direitos que a desapropriação há de apanhar; portanto, quem quer que, com a desapropriação, sofra a perda de direito. Não se pode citar só o titular do domínio se há titulares de direito de usufruto, uso, ou habitação, credores com hipoteca, ou com penhor, ou caução; nem se pode citar só o titular do título de sócio, ou de crédito, que está caucionado, sem se citar o credor caucionário. Quem não foi citado não sofre a eficácia da sentença homologatória de acordo, ou da sentença de fixação do preço, nem a eficácia da sentença final, como igualmente, não sofreria a eficácia recursal. Pela mesma razão, não se pode citar um só dos condôminos se não tem esse a representação dos outros; nem se dispensa a citação do enfiteuta, nem a do cônjuge meeiro; nem a dos outros herdeiros, se não há inventário. Onde há titular de direito, dispensar-lhe a citação seria contrário à Constituição e aos princípios gerais de direito. Se não se quer respeitar contrato de locação, tem-se de citar o locatário. 2. Valor do bem. O valor do bem e o das suas pertenças são computados em parcelas; a indenização é a soma. Se algo tiver de ser tirado do solo, ou das paredes, ou do teto, ou de outra parte integrante do prédio, ou, ainda, de alguma pertença, a despesa é por conta do desapropriante. O juiz pode arbitrar importe de despesas para desmonte e transporte de maquinismos instalados e seu funcionamento. O transporte, a instalação e o pôr em funcionamento são devidos sempre que as despesas que se tenham de fazer hajam de ser do bolso do demandado, para estarem os objetos como a desapropriação os encontrou. A parcelação serve à eventual exclusão, de algumas delas, à postulação e discussão separadas, bem como à apreciação judicial de cada uma das questões. Quanto ao arbitramento de despesas pequenas, de modo nenhum pode haver qualquer arbítrio judicial: não se deixou à discrição do juiz arbitrar, ou não, quantia que baste aos gastos do desmonte, transporte e reinstalação dos maquinismos, ou outras peças. Há direito público subjetivo do dono do bem a que, fora da indenização correspondente à desapropriação, se lhe abone o que seja suficiente a essas despesas a mais, a que a desapropriação o expôs. As leis soem explicitar a competência do juizo para julgar esse pedido, que aliás se incluiria no de indenização pelo bem desapropriado. Ao juiz cabe verificar se o desapropriado, com a desapropriação, sofre esse dano, imediatamente consequente, porém não implicitamente, à desapropriação: trata-se de indenização pelo prejuízo que sofreu, ou vai sofrer o desapropriado, além da perda do direito, posto que, nas duas espécies, derivado de exercício regular de direito, que é o de desapropriar. O Estado, exercendo o direito de desapropriar o prédio em que está estabelecida a fábrica, obriga-se pela indenização prévia da desapropriação e pelo dano que a desapropriação causa ao desapropriado, pelo desmonte, transporte e

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reinstalação dos seus maquinismos. Se o Estado quer evitar essas despesas, tem de pedir a desapropriação de tudo, ou diligenciar para que sejam feitas pelo menor custo possível, ou assumi-las. Não pode causar danos, sem reparação. A indenização da desapropriação destina-se a evitar a diferença de nível entre o patrimônio do desapropriado antes da desapropriação e após a desapropriação: ou ela abrange essas despesas, ou o Estado as deve por outra causa, que é consequência imediata do ato desapropriativo. Se o mecanismo está ligado ao prédio e a separação ofenderia o maquinismo, a desapropriação deve abrangê-lo, como correspondente a parcela de indenização. Se pode ser retirado e não funciona, nenhuma reinstalação para funcionar é devida. Se o Estado pediu a desapropriação, sem mencionar o desmonte, o transporte e a reinstalação, a oferta do preço pode ser impugnada pelo demandado, na contestação, mas os avaliadores, ao procederem à avaliação, podem desde logo prever as despesas de desmonte, transporte e reinstalação, incluindo-as na indenização. Ao juiz é dado mandar, de ofício, computá-las. O desmonte, a reinstalação e o início de funcionamento pode ser por conto do Estado. O juiz nenhuma função tem quanto às despesas, à custa do Estado. Se o Estado se prontifica a fazê-los, pode o juiz condená-lo, alternativamente, a isso, ou à indenização. A indenização tem de ser completa; porque o Estado causa o dano, e a desapropriação há de ser indenizada: o valor do prédio é o dele, com as suas pertenças, mas não é justo que se não indenize o que resulta, imediatamente, embora não implicitamente, da desapropriação. Todavia, não se indeniza o que concerne a transporte de máquinas ou mais coisas despregáveis, se trazidas ao prédio depois da declaração de desa-propriação, nem o que lá estava sem ser necessário, ou útil. Ainda assim, se o desapropriando recebeu, após a declaração de desapropriação, o que antes encomendara, ou se não seria razoável que deixasse de instalar o que era indispensável no intervalo entre a declaração de desapropriação e o desmonte, pode alegá-lo e prová-lo para que o juiz, apreciando o caso, condene o Estado a também fazer as despesas que forem de mister. A declaração de desapropriação ainda não é desapropriação, não põe ponto final à vida profissional e às exigências residenciais das pessoas que habitam o prédio desapropriando. Se as instalações pertencem a outra pessoa, a que se desapropria o direito de uso (e. g., locatário), as despesas são pagas a essa pessoa. 3.Mandado de imissão na posse. (a) Feita a prestação do quanto indenizatório, diretamente, ou por meio de depósito — o juiz expede o mandado de imissão na posse, e a sentença é título hábil para o registro no Registro de Imóveis ou noutro registro. O juiz, nessa decisão, posterior, necessariamente, à juntada da prova da pre-stação, julga que se juntou tal prova e que a prova merece fé: dai ordenar que se expeça o mandado de imissão. Tal sentença é a sentença de desapropriação, inconfundível com a sentença fixadora do quanto, que se profere na audiência e com a decisão homologatória do acordo sobre a indenização. A sentença final é constitutiva-mandamental: constitutiva, porque é ela que decreta a perda da propriedade e serve de título ao Registro de Imóveis mandamental, porque manda expedir o mandado de imissão na posse. O elemento declarativo é interior, funciona como questão prévia de declaração de estarem satisfeitos os pressupostos da desapropriação. O mandado de imissão só se refere à posse. O domínio ou outro direito real sobre imóvel só se perde com o registro dessa sentença, ou do acordo desapropriatório. Tratando-se de móvel, sentença e imissão perfazem o fato extintivo, salvo, se há, por lei, alguma finalidade registrária. Não há perda, a fortiori aquisição do direito real sobre imóvel, em virtude somente da sentença, porque a eficácia real depende do registro. Por isso mesmo, erram palmarmente os que dizem que o registro “regulariza” (?) a transferência do domínio. É absurdo afirmar-se que o registro “não é imprescindível”, e que ‘a transmissão do domínio, na desapropriação, se opera, mesmo em relação a terceiros, sem o registro do titulo de transferência no Registro de Imóveis”. O argumento de que o que adquirisse ao demandado o bem imóvel, após a sentença final, não teria qualquer direito sobre o bem, é sem pertinência: com a declaração de desapropriação, estabeleceu-se a publicidade, de modo que seria ineficaz contra o Estado, que indenizou a imissão; a sentença final nada muda a essa situação: o registro do título negocial de modo nenhum atingiria o Estado, porque se feito antes mesmo da sentença, não se daria a eficácia contra o Estado. Com a sentença, o Estado vai ao oficio do Registro de Imóveis e obtém o registro, porque a perda é eficácia de ação real. É preciso, em tais assuntos, de extrema delicadeza, não se deixar o raciocínio tecer conclusões fáceis, fora dos princípios. Não se diz, nas leis, que a sentença basta para ato dispensável, prescindível, supérfluo, ou inepto. A lei deu à sentença eficácia para o registro, não a fez sucedâneo do registro; a lei atribuiu à sentença o caráter de titulus, não a de eficácia extintiva da propriedade: a desapropriação está decretada; a eficácia real, quanto ao imóvel, depende do registro.

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Por isso mesmo, se o terceiro adquire o bem imóvel, pelo registro, e foi rescindida a sentença final na ação de desapropriação, o Estado não pode deixar de entregar o imóvel ao adquirente. Nem se pode pensar em invocação do principio da irreivindicabilidade contra o que se incorporou ao patrimônio do Estado, pelo Estado, porque, se não se deu a perda, o fortiorí não se deu a incorporação. O outro argumento, que se traz à baila, de não se referir o art. 532 do Código Civil às sentenças de desapropriação é infantil: seria contra a técnica legislativa contemporânea referir-se o Código Civil ao momento de eficácia do ato desapropriativo; tinha de referir-se (e referiu-se à eficácia da desapropriação, como uma das causas de extinção, sem entrar na apreciação do momento em que a extinção se dá). (b) A imissão na posse no bem ou nos bens desapropriados é efeito mandamental da sentença de desapropriação, e não da perda da propriedade. A perda da propriedade ou somente ocorre com o registro da sentença no Registro de Imóveis, ou com a posse mesma anterior ou posterior à sentença, tratando-se de desapropriação de bem móvel não sujeito, para a aquisição da propriedade, a registro. O que há de preceder à sentença é a afetuação do pagamento da indenização, ou a consignação, se a sentença mesma não é concebida em termos de indenização prévia a qualquer efeito. A imissão ou resulta da sentença, como feito mandamental, ou foi adiantamento de execução. Não há — portanto — outro meio para o que declarou a desapropriação tomar posse dos bens desapropriandos. Se a sentença, antes da solução da dívida indenizatória, ou o juiz, por decisão incidente, sem ser provisória a imissão na posse, se a lei a permite, manda imitir na posse o desapropriante, procede contra a Constituição. A posse imediata do desapropriante não dispensa o ato material para a imissão na posse indireta ou mediata. Se o Estado, por exemplo, era locatário, não pode, por si só, transformar a sua posse em posse de desapropriante. O efeito possessório da desapropriação depende do cumprimento do mandado de imissão, posto que sistemas jurídicos haja que, à diferença de direito brasileiro, atribuam à sentença o efeito de dação de posse (legislações prussiana, saxônica e há vara), ou permitam ao juiz atribuir-Iho (Lei francesa de 3 de maio de 1841, art. 41). Aqui convém que obtenhamos algumas precisões: a) Se o desapropriante não tem qualquer posse, precisa de ato judicial, do mandado de imissão provisória na posse imediata, ou, se não a pediu, ou se não a obtivera, de ato judicial, do mandado de imissão na posse própria, que há de ser necessariamente após o trânsito em julgado da sentença final na ação de desapropriação. b) Se o desapropriante é possuidor impróprio, ou seja imediato, ou seja mediato, o deferimento da imissão provisional é de mister, para que saia o mandado de imissão provisória na posse, que não precisa de ato material, do elemento corpus, porque a eficácia mandamental do ato judicial dá ao desapropriante a posse provisória. Mesmo se o desapropriante tinha a posse imprópria imediata, dois títulos de posse passa a ter (o de possuidor imediato, que era o seu, e o de possuidor provisional, ai mediato). 4 Se não há deferimento de imissão provisória na posse, ou porque não fora pedida, ou porque foi indeferido o pedido, a posse que se vai entregar é —de regra — a posse própria. Dissemos (‘de regra”, porque pode acontecer que o objeto da desapropriação seja apenas direito à posse imprópria (e. g., desapropriação de contrato de locação). A imissão provisional na posse só é admissível se lei previu os pressupostos e foram satisfeitos, E sempre sem depender da propriedade, ao passo que a imissão em virtude de sentença final pode preceder ou suceder ao registro. A imissão provisional é adstrita ao fim da desapropriação: não pode o Estado, que quer desapropriar para determinado uso, obter posse para outro uso. Durante o processo da desapropriação, pode o titular do direito sobre o bem desapropriando lançar mão das ações possessórias contra o Estado, respeitadas as leis, e a posse há de ser por mandado de imissão na posse, ou conforme o acordo desapropriatário. Na ação possessória contra o Estado, pode esse objetar que já tinha posse direta ou imediata, e não a está transformando em posse indireta, ou que o próprio desapropriando lha transferira. O sistema jurídico brasileiro não tolera a doutrina de outros povos que pré-exclui a tutela possessória do desapropriando contra o Estado. O ato do Estado seria ato de justiça por mão própria. A imissão judicial na posse, em vez disso, opera contra todos. O opor-se à tomada de posse pelo Estado, se não precede mandado judicial, não é ato contrário a direito. O possuidor, demandado, ou terceiro, pratica-o em legitima defesa. Em alguns sistemas jurídicos, o Estado pode entrar nos prédios desapropriandos, desde que incluídos na declaração de desapropriação, podendo a policia auxiliá-lo (coação policial). Seria ilegal tal tomada de posse. A própria imissão provisional pelo juiz exige-se que se faça com a apreciação de pressupostos necessários (urgência da imissão antes da sentença, depósito da quantia fixada). 4. Ato desapropriativo. O ato de desapropriação é ato jurídico stricto sensu, de que se irradiam efeitos jurídicos, dos quais é principal a perda da propriedade pelo demandado, ou pelo que, acudindo ã declaração de desapropriação, entra em acordo desde logo. Toda restrição da propriedade que, durante o tempo entre a

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declaração e a eficácia do acordo, ou da sentença, se haja produzido, cessa. No direito brasileiro, em virtude de regra juridica constitucional, a indenização é pressuposto necessário do ato desapropriativo, e não efeito. No passado, não se pensava em perda da propriedade, sem ser segundo o direito civil, donde ter-se lançado mão da categoria jurídica da venda e compra, a que se juntou o adjetivo “obrigatória”, “forçada”, ou “coacta”. Se bem que W. von Rohland (Zur Theorie und Praxis des deutschen Enteignungsrechts, 29) apontasse os restantes partidários de tais teorias privatisticas, ainda alguns juristas, alhures e no Brasil, são vítimas de tal reminiscência. Ora, no Brasil, não podemos, nem sequer, conceder a indenização como preço de venda, pois é pressuposto necessário da desapropriação mesma. Nem bastaria isso a que se cogitasse de obrigação sW generis, nascida da sentença, ou do recebimento da indenização, de entrega da coisa (assim, mais ou menos, Georg Meyer, Das Recht der Expropriation, 184 5.; mais restrito a alguns casos, em Verwaltungsrecht, 1, 286). Para o direito brasileiro mesmo, que exige a indenização prévia, a construção não serve: nenhum dever de entrega surgez o desapropriante, ou quem ele indicou ou indique, é imitido na posse. O dever de entrega vamos encontrá-lo nas requisições, ainda expropriativas, razão por que se alude ao ato de requisitar: O ato de requisição é negócio jurídico unilateral de direito público, em exercício do direito de requisitar, que advém da incidência de regra jurídica constitucional especial e das leis federais e estaduais sobre requisições. Ambos os atos —o de desapropriar, que depende da declaração de desapropriação e do acordo, ou do processo e sentença, e o de requisitar, que é extrajudicial — são de direito público; a perda da propriedade é que, simples efeito, se passa no plano do direito privado. Alguns juristas deixam escapar que a desapropriação tem como efeito principal, que corresponde, outrossim, à sua natureza, a transferência da propriedade. Mas tal conceituação é de repelir-se: o efeito de aquisição é posterior, ainda logicamente; a desapropriação tira a propriedade a alguém, é causa de perda da propriedade, e não de perda e aquisição por outrem. Tratando-se de bem imóvel, a aquisição, que pode não acontecer ainda após o registro (se o bem foi desapropriado para ser bem de todos), só se opera com o registro. Tratando-se de bem móvel, a eventual aquisição por alguém é em virtude de ato do Estado. A requisição expropriativa, que só se pode fundar no texto constitucional, é causa mediata de perda da propriedade, não desde a entrega, que é em virtude de dever de entrega nascido com o ato jurídico da requisição legal, de que resulta, para o requisitante, o dever de prestar a indenização (aqui, a indenização é efeito, em vez de pressuposto necessário, como se dá na desapropriação stricto sensu, baseada no art. 5t XXIV), mas desde que a causa imediata da perda ocorra. A respeito das requisições, nega Otto Meyer (Deu tsches Verwaltungsrecht, II, 2ª ed., 384, 3ª ed., 218), na esteira de Otto Stobbe-Lehmann (Handbuch des Deu tschen Privatrechts, III, 1, 3ª ed., 506), que importem desapropriação. Mas verdade é que às vezes tal expropriação se dá; donde a espécie de requisição a que chamamos requisição expropriativa, como as requisições não ex-propriativas que na mesma regra juridica constitucional também se fundam. As requisições para execução de planos econômicos, subordinadas a principio constitucional especial, de regra só estabelecem certa administração e gestão estatal, ou para-estatal; se desapropriam, têm de considerar-se desapropriações regidas pelo art. 59, XXIV, ou, se ocorrem os pressupostos excepcionais do art. 5ª, XXV, requisições expropriativas. A incorporação das empresas no patrimônio estatal pode ser completa ou incompleta, isto é, a meio caminho (intermediária). É incompleta a incorporação, quando a entidade estatal encampa, ou assume o ativo e o passivo, ou só a superintendência, mediante promessa de indenização, sem que se dê a inclusão dos bens no patrimônio estatal, ao qual passou, apenas, o direito aos bens. Se incompleta, pode ser tão superficial que deixe à empresa incorporada a personalidade jurídica de direito privado, com os quadros de acionistas e a organização interna, ou com fixação de prestações a titulo de juros-dividendos aos acionistas. As formas que a espécie pode apresentar são muitas. A aquisição das ações pela entidade estatal, posteriormente, torna-a acionista, sem se quebrar a estrutura jurídica intermediária. Se a aquisição atinge o que na lei de direito privado é bastante para que se dê início à liquidação, tal liquidação, salvo Iex specialis, se rege pelo direito privado. Umas das formas intermediárias é aquela em que a direção continua a mesma, apenas sobreposto a ela o agente do Estado, a que os assuntos principais, ou aqueles que forem indicados pelas regras estatais, vão para exame, veto ou resolução definitiva, necessariamente ou em via recursal provocada. A propriedade adquirida após a desapropriação é adquirida segundo o direito civil: se imobiliária, pelo registro; se mobiliária, segundo os princípios de direito civil, para o qual o ato de direito público é titulo. Tal aquisição nada tem com o ato desapropriativo. Já se supõe perdida a propriedade do desapropriado (eficácia de direito civil do ato de direito público). O ato de

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registro da sentença, ou do acordo, contêm a indicação da titularidade, ou da não-titularidade do direito. Se o bem é dominical, no sentido de propriedade privatistica do Estado, ou se é público especial, ou de todos, é com o registro que se sabe; ela é que inaugura a nova ordem subjetiva da história juridica do bem. A aquisição da propriedade é posterius, em relação à perda da propriedade pelo dono do bem. Tal aquisição pode ser só efeito civil e pode ser efeito civil a que se junta efeito de direito público, como se o bem passa a ser de propriedade do Estado e destinado a uso especial (serviço ou estabelecimento estatal), ou ao uso de todos. Os dois efeitos são efeitos de dois atos distintos, o da aquisição e o outro. Se o bem desapropriando pertence ao Estado, ou ao Município, ao Distrito Federal, ou ao Território, e é destinado ao fim especial do Estado, ou ao uso de todos, a desapropriação acarreta a desdestinação, porque só o adquirente é que pode destinar. A desdestinação, aí, é implícita na perda da propriedade; é mais adestinação que desdestinação. Operada a desapropriação, nenhuma ligação há com o passado, subjetiva ou objetivamente. Há efeito que só se produz após o registro da sentença de desapropriação, ou, em geral, após a perda da propriedade pelo que sofreu a desapropriação. E efeito do fato jurídico da perda — efeito positivo de fato jurídico negativo. Ao perder a propriedade, o perdente faz-se titular de direito de preferência —portanto, há dever de oferta, por parte do Estado, se vai dispor do bem, ou desdestinar. Há necessidade da afronta, para que se inicie o prazo preclusivo. Não importa se o bem é imóvel ou móvel. Não se justifica tratarem-se desigualmente o proprietário do bem imóvel e o do bem móvel. Se o Estado desapropria o bem móvel, desdestinando-o depois, como se alegou ser necessário, ao Museu de coisas históricas, e depois o vai vender, tem de afrontar o ex-dono. Convém ainda observar que, se o Estado requisitou, expropriativamente, e desdestina o bem requisitado, alienando-o, nasce ao que sofreu a requisição expropriativa o direito de preferência. A requisição expropriativa apenas se distingue da desapropriação em que os pressupostos daquela são especialíssimos. A requisição, expropriativa, ou não-expropriativa, que não obedeceu aos princípios constitucionais, é ato ilícito do poder público, que por ele responde, ainda que não tenha havido culpa do orgão estatal que requisitou. A eficácia do registro é quanto à perda da propriedade. Durante o procedimento, não importa qualquer mudança a respeito do proprietário: cada adquirente entra na relação jurídica processual, se o quer, e mostra, de acordo com a lei, a sua legitimação. Até o registro, a propriedade está atingida pela declaração de desapropriação, e qualquer ato concernente à propriedade, que haja de constar do Registro de Imóveis, não éeficaz contra a declaração de desapropriação. O registro da declaração de desapropriação que se aconselha em alguns sistemas jurídicos, é, no direito brasileiro, bis in idem, devido à publicidade do decreto de declaração de desapropriação. Todavia, o juiz ou o oficial do registro não pode recusá-lo, pois a ação é real, e a citação é registrável, e sê-lo-ia, ainda para aqueles que a reputassem ação pessoal reipersecutória. Quanto ao direito a receber a indenização, é questão entre os que discutem a titularidade. Por isso mesmo, o levantamento é mediante a prova de ser proprietário o requerente, ou, se há dúvida, depositada a quantia, em virtude de sentença na ação em que os interessados a disputarem. A perda da propriedade, ou do direito real, ou elemento da propriedade, que é finalidade da desapropriação, não é efeito da declaração de desapropriação, nem do ato incidental da imissão temporária, que não tira propriedade, nem, tratando-se de imóvel, da sentença que defere o pedido do Estado para que se decrete a desapropriação: é efeito do registro. Os sistemas jurídicos que atribuem tal efeito à declaração de desapropriação ainda se ressentem de resquicios do Estado de polícia, ou revelam regressão, às vezes contraditório. De modo nenhum seria de admitir-se essa velha doutrina dos Estados de polícia, que se esteava em Otto Stobbe (Handbuch des Deu tschen Privatrechts, II, 175). Nem a dos que, levados pela falsa assimilação da desapropriação à venda e compra (venda e compra forçada), faziam os efeitos datarem do momento em que o desapropriante e o proprietário acordavam na coisa e no preço (e. g., C. E. W. 1 Hãberlin, Die Lehre von der Zwangsenteignung, Archiu fOr die civilistische Praxis, 39, 30 s., fixação definitiva da quantia; ou tornada “determinável” a quantia). Nem a dos que viam efeito da obrigação de prestar coisa e indenização e efeito de transmissão, em adimplemento, como Georg Meyer (Lehrbuch des deu tschen Verwaltunqsrechts, 1, 287 e 280). O bem só se julga “desapropriado”, quando sentencia na causa, ou consensualmente “desapropriado”, quando se conclui o acordo: a eficácia real, que atende à sentença ou ao acordo, só se produz com o registro, em se tratando de imóvel ou de móvel, para cuja transmissão da titularidade alguma formalidade registrária se exige. A sentença tem eficácia desde logo, isto é, a despeito do recurso sem efeito suspensivo, interposto pelo demandado, ou alguém que o haja substituído, ou esteja em litígio sobre a propriedade; mas o registro somente se pode fazer após ter sido prestada a indenização, entregue ao demandado, ou depositada.

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Capítulo XIV

Ação popular § 238. Fontes e conceito 1.Fontes. A Constituição Política do Império do Brasil era omissa, bem como a de 1891. A ação popular apareceu na Constituição de 1934, art. 113, 38: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados Federados e dos Municípios”. Retirou-o a de 1937 nossos Comentários, III, 556: “O direito constitucional, que daí resultava, não é mais ficou, porém, o direito oriundo de lei ordinária, suscetivel de mudança e de revogação”. Na de 1946, art. 141, § 38: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista”. Na de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, art. 153, § 31: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas”. Na de 1988, art. 59, LXXIII: “Qualquer cidadão é parte legitima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucum-bência 2.Ação desconstitutiva dos atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Trata-se de direito público subjetivo dos Brasileiros natos ou naturalizados. Qualquer cidadão. Direito público, ou direito político, que é espécie daquele? A questão é de importância, porque há Brasileiros a que estão suspensos, ou que perderam os direitos políticos. Vedada sua cassação, os direitos políticos perdem-se ou suspendem-se com: a) o cancelamento da naturalização por sentença trânsita em julgado, portanto — perda ou suspensão dos direitos públicos políticos e dos direitos públicos não-políticos, se ligados à nacionalidade; b) a incapacidade civil absoluta (referência da Constituição à lei civil ordinária); c) a conde-nação criminal tránsita em julgado, enquanto durarem seus efeitos; d) a recusa de cumprir obrigação, obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 59, VIII, da Constituição de 1988; e) improbidade administrativa, segundo o art. 37, § 49, da Constituição de 1988. Resta saber-se o Brasileiro, a que se suspenderam, ou que perdeu os direitos políticos, deixa de ser “cidadão”, para o efeito da regra jurídica constitucional sobre ação popular. Ora, muito embora não se trate de eleições, ou de ato para a instrumentação dos Poderes, o direito público subjetivo à ação popular é direito político. Dele não gozam, portanto, os Brasileiros que se achem nas situações acima mencionadas que faz repercutir nos cargos eletivos, ou não, a suspensão ou a perda dos direitos políticos, e reforça a nossa conclusão: o cargo público não é necessariamente ligado a direito político, e no entanto a perda dos direitos políticos acarreta a perda do cargo; fora de estranhar-se que o mesmo indivíduo, que perdeu os direitos políticos e o cargo, pudesse exercer a ação fiscalizadora da regra jurídica constitucional, ou que de tal direito gozassem os absolutamente incapazes e os que foram condenados criminal-mente. Aliter, o que é assente, quanto ao direito de petição, que até os estrangeiros não-residentes têm. O habeas corpus é ação popular, correspondente a direito público subjetivo, porém não político. O estrangeiro pode pedir habeas corpus para si, ou para outrem. O direito à ação popular não depende de regulamentação da regra jurídica constitucional. A regra jurídica é

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bastante em si (assim, acertadamente, o Supremo Tribunal Federal, a 28 de setembro de 1949, Ad 93/161). Nada obsta a que, em vez de propor a ação constitutiva negativa, proponha o cidadão a ação de mandado de segurança, porque os dois direitos e as duas pretensões se podem cumular: então, a sentença, no mandado de segurança, tem força mandamental e, em forte dose, a eficácia constitutiva negativa. Vale dizer: propõe-se a ação constitutiva negativa, com o pedido do mandamento, que envolve, como força sentencial, a eficácia da sentença. A 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 25 de abril de 1949 (RT 180/631), deu a vereador legitimação ad causam para pedir mandado de segurança, com argúição de ser ilegal resolução da Câmara Municipal, sancionada pelo Prefeito. Aliás, poderia ele invocar, como qualquer cidadão, a regra juridica constitucional sobre ação popular, se satisfeito o pressuposto de se alegar a lesividade ao patrimônio da União, do Estado Federado ou do Municipio. § 239. Natureza da ação e legitimação ativa 1. Ação popular. O texto constitucional assegura a ação popular, atribuida e exercível por Brasileiros (“cidadão”, aí, é o Brasileiro), em se tratando de ato nulo ou anulável de que haja decorrido ou possa decorrer dano ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. As Constituições estaduais não podem limitar tal direito — no caso de dano aos Estados, ou aos Municípios — aos Brasileiros, residentes ou domiciliados no Estado ou no Município, ou não. A regra juridica constitucional tem toda a generalidade. Algumas Constituições apenas tocaram no assunto. A Constituição francesa de 14 de novembro de 1848, art. 110, dizia: “L’Assemblée nationale confie le dépôt de la présente Constitution et les droits queile consacre à la garde et au patriotisme de tous Les Français”. Também, a Constituição grega, art. 111. Mas 3eu-se, com isso, a ação popular? De modo nenhum. São frases amplas, de que não se tiram direito subjetivo, pretensão e ação. A legislação ordinária, desde o Império, fez do habeaos corpus ação popular. Agora, mas desde 1946, o texto da-nos caso tipico. As leis podem criar outras, inclusive para a guarda e execução da Constituição. Da criação de algumas dependia mesmo o bom êxito de muitos artigos da Constituição de 1967, assaz programática, porém sem suficiente rol de direitos públicos subjetivos, como se passa, com a Constituição de 1988. A ação é constitutiva negativa, razão por que seria melhor dizer-se “a anulação ou a decretação da nulidade”, em vez de se falar de “declaração” de nulidade, expressão viciosa. Ato nulo não se declara nulo: ato nulo é, existe, embora nulamente (= eivado de nulidade): ato nulo ou anulável desconstitui-se. 2.Titulares sucessivos. A ação intentada pelo que, depois, perdeu os direitos políticos, ou a que foram suspensos, pode ser continuada por outro Brasileiro que deles não esteja privado, ou a que não se suspenderam. Idem, em caso de morte, ou ausência julgada de acordo com a lei. Quem exerce a pretensão à ação popular, tem as pretensões à representação ou à petição. Publicado o ato, não há obstáculos às provas. A regra jurídica é bastante em si (2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná. 6 de dezembro de 1949. Paraná 51/318). A & Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 16 de junho de 1949 (RT 18 1/826), decidiu que só as pessoas físicas, e não as jurídicas, inclusive os partidos políticos, podem exercer a ação popular. “Qualquer cidadão”, disse o texto constitucional. A 3ª Câmara Civil (27 de março de 1950, RT 186/648) foi além: exigiu ser eleitor, o que não se justifica. 3.Pressupostos objetivos da ação popular. Na interpretação da regra jurídica constitucional, entende-se: ou a) que foi criada invalidade dos atos por lesivídade ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ou 14 que apenas se dilatou a legitimação ativa, para as ações de nulidade ou de anulação. Se 4, bastaria que o ato fosse Lesivo, para que nulo fosse, ou anulável. Se 14, é de mister que haja a nulidade ou a anulação, segundo os

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princípios, para que se possa propor a ação popular. O ato a que a regra jurídica constitucional se refere pode ser nulo, ou por ser ilícito ou inegociável o objeto do negócio jurídico, ou por defeito de forma, ou pela falta de algum pressuposto que a lei repute essencial à validade, ou por haver Iex specialis que dê a sanção de nulidade. Tratam-se as ineficácias como se tratam as nulidades, isto é, aqueles casos em que faltam poderes aos ôrgãos estatais ou às entidades a que alude a regra jurídica. A fraude á lei tem a sanção da nulidade. O ato a que se refere a regra jurídica constitucional, pode ser nulo, ou anulável, ou ter havido erro, ou dolo, ou coação, ou simulação, ou fraude contra credores, ou porque resulte de texto de lei que faça dependente de anulação a desconstituição de negócio jurídico. No mesmo sentido, a V Turma do Supremo Tribunal Federal, a 5 de novembro de 1954 (DJ de 29 de setembro de 1958).

Capítulo XV

Ação rescisória de sentença e outras decisões § 240. Conceito e natureza da ação rescisória 1.Julgamento de julgamento. Na ação rescisória há julgamento de julgamento. E, pois, processo sobre outro processo. Nela, e por ela, não se examina o direito de alguém, mas a sentença passada em julgado, a prestação jurisdicional, não apenas apresentada (seria recurso), mas já entregue. E remédio jurídico processual autônomo. O seu objeto é a própria sentença rescindenda — porque ataca a coisa julgada formal de tal sentença — a sententia lata et data. Retenha-se o enunciado: ataque à coisa julgada formal. Se não houve trânsito em julgado, não há pensar-se em ação rescisória. E reformável, ou revogável, ou retratável, a decisão. Neste Tratado, temos de cogitar apenas do que caracteriza a ação rescisória de sentença e outras decisões, O assunto é tão amplo, que lhe dedicáramos tratado especial. Em consequência do que dissemos, não há ação rescisória de sentença que pode ser revogada ou reformada, porque a tal sentença falta coisa julgada formal. Nem de sentença inexistente, pois seria rescindir-se o que não é: não se precisaria de desconstituir, bastaria, se interesse sobrevém a alguma alusão a essa “sentença”, a decisão declarativa de inexistência. Nem de sentença nula, porque se estaria a empregar o menos tendo-se àmão o mais. Há sentenças que transitam em julgado mas são suscetíveis de modificação, em ação adequada (ação de modificação). A par de serem modificáveis, tais decisões são rescindiveis, se compõem os pressupostos. Pode ser procedente o pedido de modificação, embora não o pudesser, in casu, o de rescisão; ou ser improcedente, posto que procedente pudesser o de rescisão. a) Em virtude da distribuição supra-estatal, da repartição, intra-estatal, das competências jurisdicionais (espaço) e da ligação de todo o direito a um lugar e a um momento (espaço-tempo), os pressupostos comuns e gerais às ações rescisórias dependem de um juiz e de uma lei vigente. Mas, ainda quando se abstraia de tal localização espaçial-temporal, a lei vigente possui regras de Iocalizaçâo por competência e regras de prazo, dentro do qual se pode propor a ação rescisória. No caso de algum território passar a pertencer a outro Estado, ou a outro Estado Federado, naturalmente se

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decidirá com quem ficarão os processos, sendo difícil, fora dos casos de jurisdição ligada aos imóveis, prever-se a que juiz competirá conhecer da rescisória de sentenças proferidas antes da anexação. Ainda assim, a regra é entender-se que os arquivos ficam no mesmo lugar em que existia a antiga jurisdição territorial. Tudo ocorre conforme se deva resolver, a posteriori, o problema de sucessão de jurisdição, seja interestatal, seja inter-provincial. Nada obsta a que as pessoas de direito público, responsáveis pela prestação jurisdicional entregue, acertem, entre si, qual deva ser a sucessora em cada juízo, ou, até, em cada matéria. Os pressupostos somente podem ser os da lei da entidade sucessora. Essa, aliás, poderá resolver diferentemente, conservando, por exemplo, os pressupostos do antigo direito, ou negando a ação rescisória, porque não existia, ou concedendo-a, excepcionalmente, embora não a tenha em geral, por ter existido. b) A rescisão das sentenças está — nas suas origens — ligada à rescisão dos negócios jurídicos em geral. Através dos tempos, a diferenciação aos poucos se caracterizou, e caiu-se no oposto: consideram-sentença e ato jurídico como fatos de natureza diferente, sem se atender a que a sentença também é prestação oriunda de ato jurídico. O rigor do ius civile, formalístico, por vezes sacrificava o fundo à forma. Depois, sob a influência do bis gentium, agravaram-se os inconvenientes, e interveio o Pretor. Não podia continuar a frequente aparição de atos civilmente ineficazes, contra a verdade neles contida, e de atos civilmente válidos, de conteúdo iníquo. Dizermos que a mudança se operou pela intervenção do Pretor constitui observação ou interpretação histórica. O Pretor consagrou exceções. Foi mesmo ao ponto de criar ações. Cedo verificou que isso não bastava. Usou do seu iniperium e acutilou os atos ou as suas consequências perniclosas. Tal é o significado originário de restituere. Cientificamente, o que se passava obedecia a uma lei sociológica a que por vezes nos referimos (Tratado dos Testamentos, 1, p. Xl): “Se examinarmos a evolução, que se operou, do formalismo romano àmentalidade hodierna, veremos que se procedeu a uma verdadeira crítica das funções das formas, sem qualquer preconcebida antipatia (pois que a vida moderna criou formas novas), porém no sentido de apreciar a utilidade social e individual do seu emprego. Dai um movimento que apenas constitui, nesse domínio, a realização de uma das leis evolutivas do direito. Tanto assim que, no apreciar as formas como processos técnicos, meios, para fins de segurança jurídica (se garantem segurança para os que desejam eficácia aos seus atos de vontade; se limitam segurança para os outros), o direito contemporâneo, como o dos séculos passados, ora atenua o rigorismo da forma, como elemento, exterior e sensível, necessário ao ato jurídico, ora reconhece a legitimidade de novos quadros formais em que se verta e se modele o querer dos homens.” Primeiro, as decisões haviam de ser rescindidas pelo terceiro, pacificador; depois, foi o príncipe que ex justa causa concedeu a rescisão. Depois, foi estendido tal poder aos prefeitos do Pretório, ao Pretor, ao presidente, ao procurador de César, aos mais magistrados, mas só quanto às suas decisões, e não quanto à dos superiores. A restituição não se dava quando o dano fosse mínimo. Os textos falam de tal exigência, sem que se deva exagerar o limite. Naturalmente, ninguém poderia pretender restituição contra delito que cometeu, ou contra ato em que foi culpado de fraude. Nem sequer, contra julgamento proferido em virtude de juramento entre as partes, ou, ainda, contra prescrição de trinta ou quarenta anos, ou contra as vendas feitas pelo Fisco. Não era exigência absoluta ter existido lesão; bastava correr-se o risco de sofrer prejuízo. O caso fortuito não podia fundamentá-la. Além de tudo isso, era de mister a causa restitution is, bem como não haver “outro meio’ de reparar ou de prevenir o dano. Eram legitimados ativos o lesado e os seus sucessores per universitatem. Só o seria o sucessor singular quando se lhe tivesse cedido tal direito. E ponto que merece toda atenção: o direito de pedir a rescisão não está implícito na situação jurídica firmada pela sentença rescindenda. Eram legitimados passivos o interessado no ato lesivo e seus herdeiros; excepcionalmente, contra terceiros. No caso de restituição contra renúncia à herança vacante, não era preciso dirigir-se contra pessoa determinada. O pedido de restituição fazia manter-se o status quo, a execução suspendia-se, o que hoje de ordinário não se dá. O efeito era o de se porem as coisas no estado em que se achavam antes do ato contra o qual se obtivera a restituição. Podiam pedir-se os frutos e as pertenças, restituindo-se o que se percebeu. Então, como hoje, se não era necessário anular todo o ato, o juiz somente cortava as consequências reprováveis: “.. .sed ad bonum et aequum redigenda sunt”. A princípio, a apreciação da causa restitutionis era deixada aos magistrados. O edicto do pretor enumerava as seguintes iustae causae: menoridade; violência; dolo e fraude; erro; mínima capitis diminutio do devedor; ausência e outras causas análogas. Rescrito de Adriano permitiu-a contra julgamento definitivo baseado em falsos testemunhos. Mais tarde, contra o que se fundou em documentos falsos. No caso de sentença proferida em virtude de juramento do autor, a aparição de novas provas era causa para a ação. Nos casos de ín rem actio, a restituição pronunciava-se contra todos. Mas a L. 10, C., de rescindenda vendi tione, 4, 44, reconheceu que, com isso, se ofendiam os princípios. Dava-se o mesmo quanto a outras restituições. Por

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exemplo, em matéria de direito de herança. Pela natureza das coisas, podia a restituição aproveitar a terceiros. A restituibilidade contra a sentença vem-nos do direito romano, onde havia a restituição no direito processual penal (restitu tio ex capite iustitiae, ao lado da restituição por graça do príncipe, restitu tio ex capite gratiae, cf. G. A. 1(. von RIemschrod, Systematische Entwicklung der Grundbegriffe und Grundwahrheiten des peinlichen F?echts, II, 258) e no direito processual civil. c) Não se pode pretender possuísse o direito romano sistema perfeito sobre nulidade dos atos jurídicos de direito privado e de direito público. Certo é, porém, que alguma coerência se lhe observa. Irritum fieri, ad irritum revocari rescindere não se confundem com nuilum esse. O rescindere e o revocare (voluntatem, donationem, libertatem) concerniam à destruibilidade, com certa diferença pelos efeitos in rem e ex tunc, por parte daquele (Ludwig Mitteis, Rõmisches Privatrecht. 239), e ex nunc ou simplesmente pessoais, por parte desse. As vezes revocare aparece em Lugar de rescindere, por imprecisão de linguagem. Rescinde-se o que vale, rescindem-se as relações que o direito considera serem e valerem — não as que não são ou não valem, “non quae ipso iure nuíla sunt”. Rescinde-se, nos textos romanos, a aceitação, o contrato, a doação, a própria liberdade, hoje irrescindivel. como se fala de “rescindere obligationem rescindere placita’, “rescindere rem iudicatam”. “Verbum rescindere aliquando generalius usurpatur etiam de iis actibus, qui ipso iure nuíli sunt”, diz E. P. Vicat (Vocabularium luris utriusque, IV, 179). Ora, nulidade é causa de decretação, mas há plus em relação à rescisão. Havia a lição de H. de Cocceius e dos outros, fundados em fontes romanas, bem como nas Ordenações, para as quais a distinção entre atos nulos, ou anuláveis, e rescindíveis era clara em muitos pontos. A cada instante, nos tratadistas, se adverte: “Negotia alias iure valida”; “Quod fit rescisso negotio, quo quippe iure civili valido”. As Ordenações Afonsinas, no Livro III, Título 78, adotaram, como veremos, no traduzir a Constituição de Alexandre, atitude inteligente e circunspecta. Cf. L. 2. (Alexandre), C., quando provocare necesse non est, 7, 64. O texto de Alexandre falou de sentença dada contra a forma de direito manifesto, contra tam manifesti ivris formam. Não é só manifesto na espécie; quer-se o manifesto com direito objetivo puro. É também de notar-se que se falou em “rem iudicatum retractare”, o que se não deve fazer quando a infração do juiz foi no Jato, e não no campo do direito objetivo. Se pudesser, então, proposta a rescisão por erro no fato, na apreciação da prova documental, a violação seria do direito subjetivo, o que a lei de Alexandre não pretendia resguardar. As Ordenações Manuelinas trasladaram, no Livro III, Título 60, § 2, a Constituição de Alexandre (haurida das Ordenações Afonsinas), precedendo-a de trechos estranhos a ela, até certo ponto incompatíveis. Imitou-as a Ordenação Filipina do Livro III, Título 75, pr., e § 1 (quanto à parte que precede o que corresponde à lei de Alexandre, já citada). Em geral, para o direito relativo à rescisória, a doutrina era assaz esclarecida, pelo influxo dos juristas de tantos povos. O prazo para a ação rescisória não era sempre o mesmo. Na maioria dos casos, um ano útil, que Justiniano dilatou para quatro anos contínuos. Corria, não do dia do ato contra o qual se pedia restituição, mas daquela data em que cessou a causa restitutionis. A restitu tio contra rem iudicatam, que se dava por falsos documentos (falsis instrumentis), acaba em trinta anos: bem como no caso de nova instas-menta, por se tratar de lei civil. O prazo para a propositura da ação sempre foi preclusivo, tendo sido o do annus utilis e depois, o tempus continuum (em Roma e seus distritos foi de cinco anos, L. 2, C. Th., de integri restitutione, 2, 16, à diferença das províncias). Quanto à prescritibilidade da restituição em modo de exceção, E. C. von Savigny (System, VII, § 338, k) ficou sozinho (cf. J. F. L. Gôschen, Grundriss zu Pandecten-Vorlesungen, 471; K. Búchel, Civil-rechtliche Erórterungen, 1, 8-81). Seguir no desenvolvimento legislativo do direito português, desde o direito do século XIII e as Ordenações Afonsinas no século XV (1446), que consolidaram leis de séculos passados, até as Ordenações Filipinas, no alvorar do século XVII. Equivale a nos prepararmos para os problemas mais delicados do instituto processual da rescisão de sentenças. O elemento canônico foi diminuto, embora perceptível, em tal assunto, e dele falamos em tratado. a) Na ordem supra-estatal e interestatal, domina, como princípio essencial, o princípio da auto-rescisão das

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sentenças judiciais, isto é, sentenças do Estado A somente podem ser rescindidas pelos juizes do Estado A. Mais uma vez acentuemos: a) a declaração da inexistência da sentença pode ser feita por decisão de qualquer juiz, em qualquer Estado, posto que só haja eficácia declarativa no Estado em que foi dada tal decisão ou naqueles que importarem a eficácia; b) a decretação da nulidade, segundo o direito do Estado cujo juiz proferiu a sentença, pode ser feita por decisão de qualquer juiz, se a lei daquele Estado não limitou a competência intra-estatal, o que implica em vedar a decretação alhures; c) para a decretação da rescisão só o juiz do Estado em que se proferiu a sentença tem competência; d) a sentença proferida pelo juiz do Estado em que há duplicidade de justiça há de ser rescindida pela justiça que a proferiu, salvo regra jurídica constitucional em contrario. b) Na ordem interna, se as sentenças de alguma entidade de direito interno (Estados Federados, Províncias, União) somente podem ser rescindidas por juizes da Justiça que as proferiu, depende da solução técnica que foi adotada, Se a sentença de um juiz ou tribunal de justiça da unidade política 8 somente pode ser rescindida pelo mesmo juiz, ou pelo mesmo tribunal, que a proferiu, ou se por tribunal superior ao tribunal prolator, é solução técnica que fica à legislatura. 2.Pressupostos objetivos da ação rescisória. Se é certo que há pressupostos da ação rescisória, que são ligados (porém não os mesmos) à ação cuja sentença se quer rescindir, ressalta a diferença entre a apreciação de um processo por outro processo e a apreciação interior dos Jatos de um processo por ele mesmo. (a) Qualquer dos pressupostos objetivos basta para a rescisão. Derivam eles: a) de fatos relativos à pessoa do juiz; tais são os referentes a pressupostos subjetivos da ação cuja sentença se quer rescindir: insuficiência de juizes prolatores ou incompetência absoluta deles, ou do único juiz que proferiu a sentença rescindenda; impedimento, ou prevaricação, ou concussão, ou corrupção; b) de fatos de direito objetivo puro: violação do direito, literal disposição de lei”, isto é. sentença rescindenda acoimada de ser contra ius in thesi; c) de fato jurisdicional contraditório com outro fato jurisdicional: coisa julgada; d) de fatos processuais, ou extraprocessuais, mas levados ao processo como base de deliberação judicial para a sentença (falsa prova), se a falsidade foi apurada em processo criminal, ou se provada na própria ação rescisória; e) de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; f de, após a sentença, ter o autor obtido documento novo, isto é, não-constante dos autos, cuja existência ignorava, ou de que não há podido usar, se tal documento seria bastante para, só por si, ser-lhe favorável a sentença ou o acórdão; g) de haver fundamento para se considerar nula, ou ineficaz, a confissão, a desistência, ou a transação, em que se baseou a sentença, ou o acórdão; 14 de ter havido erro da sentença, ou do acórdão, quanto a algum fato, se o erro resultou de ato ou atos, ou de documento, ou de documentos, constantes da causa. Quanto a 14, o erro pode ter consistido em admissão de fato que não ocorreu (“fato inexistente”), ou da inexistência de fato que havia ocorrido. O art. 485 do Código de 1973 foi mais amplo e mais acertado na enumeração dos pressupostos necessários do que o direito anterior (cp. Código de 1939, art. 798). A insuficiência visível de juízos é causa de nulidade. Os casos de rescisão, isto é, os pressupostos objetivos, são os da lei processual da mesma justiça que proferiu a sentença. Nada têm que ver com a lei processual ou material do Estado que dá o direito material, público ou privado, a que se liga a “ação”, de cujo processo se quer rescindir a sentença (plano internacional). Dentro do mesmo Estado (no sentido próprio), os pressupostos objetivos são os da lei processual de cada organização judiciária, sem que caiba inquirir-se o direito material da sentença rescindenda é estrangeiro, ou não. (b) No plano internacional, é isso de grande importância, porque o pressuposto objetivo pode ser diferente de um para outro Estado. No plano intra-estatal, antes da lei una, o processo intentado no Distrito Federal e noutra justiça brasileira podia obter sentenças idênticas, em processos contra dois indivíduos domiciliados numa e noutra região judiciária, podendo haver rescindibilidade de uma e não-rescindibilidade de outra. O conceito de rescindibilidade depende, conforme dissemos, do direito processual civil do Estado em que se proferiu a sentença. Sentença de Estado estrangeiro, deixa-se de cumprir, por não se lhe importar a eficácia, uma vez que não pode ser homologada e de homologação precisa, ou se cumpre, como se há de cumprir a posterior sentença que a rescinda. Então, a eficácia que se importa é a da sentença rescindente e tal eficácia

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rescinde a sentença estrangeira cumprida, ou homologada e ainda não cumprida. Em direito intertemporal processual somente é sentença (existência), ou somente vale a que a nova lei (até ao tempo do trânsito em julgado) considera como tal (Th. Schwalbach, Die Prozessvoraussetzungen im Reíchszivilprocess, A rch iv fOr die civilistische Praxis, 63, 404). A lei que regula o cabimento da ação rescisória é a do tempo da propositura, salvo: a) se a lei não vale, constitucionalmente; b) se a lei tem outros limites de tempo, segundo a regra de direito intertemporal. A lei nova até ao tempo do trânsito em julgado pode dizer: iudicatam non esse. Salvo sanatória especial, as sentenças nulas e as sentenças inexistentes não convalescem. (c) Nos casos apontados pela lei processual, a pessoa, que foi parte na relação jurídica processual, ou que a uma das partes se equipare, fica autorizada a ir a juízo propor a ação rescisória. E caso particular do direito público subjetivo de ir a juízo; donde a diferenciação a que se deve proceder: a) O direito público subjetivo de ir a juizo e pedir a prestação jurisdicional, que independe do direito material subjetivo que se invoca. Direito público material, porque a ação é conceito de direito material, ai público. A pretensão, que a ele se liga, de direito pré-processual, é a pretensão à prestação jurisdicional, à sentença. b) A pretensão processual, que nasce do exercicio da pretensão à tutela jurídica: ai, o Estado não prometeu, apenas, a prestação jurisdicional; deve-a, está obrigado a ela, porque a pretensão à tutela juridica já foi exercida pelo estabelecimento da relação jurídica processual. c) A pretensão a exigir que se rescinda a sentença, pretensão de direito público. A execução ou qualquer ato voluntário que constitua execução por parte de vencido, futuro autor da ação rescisória, não obsta à ação. Pode ser exercida tal faculdade e usado o remédio jurídico processual, ainda que, em vez da execução compulsória, se haja procedido à execução voluntária, em qualquer das suas formas. Exercida a pretensão à rescisão e rescindida a sentença, ultima-se o juízo rescindente. O julgamento do juízo rescisório, cujo processo de regra se abriu simultaneamente, porém não sempre, nada tem com essa pretensão à rescisão: já o julgamento encontra desfeita a sentença, e julga no processo que antes se fizera, ou em certos casos o refaz. O pedido contém, de ordinário, dois pedidos, o de rescindir a sentença e o de rejulgar (rescis-sorium); mas nada obsta a que separem (2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, 9 de janeiro de 1942, RF 91/191). O autor não está inibido de pedir somente o ofício rescinden te; posto se haja de supor, na dúvida, que pediu os dois. Temos pois: a) A sentença na ação rescisória, quanto ao juízo rescindente, rompe, cinde a sentença: havia sentença; não há mais. Toda a eficácia, que não depende de novas decisões, se opera. O que depende de nova decisão é do juízo rescisório, que pode satisfazer-se com a prova feita no processo em que se proferiu a sentença rescindenda, ou substitui-la pelo que se acolheu no juízo rescindente, ou foi produzido segundo os princípios. O juízo rescindente é que o marca. b) Se não houve pedido de rescisório, ou a sentença rescindente o exaure, ou com o julgado se pede o rescisório. A cumulação faz competente para o rescisório o juiz ou tribunal do juízo rescindente. Errada a afirmação do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, a 4 de novembro de 1942 (AJ 65/478), de que se tenham de separar e as competências necessariamente sejam diferentes. Se a decisão rescindida não admitiu, ou não conheceu de recurso, e a sentença na ação rescisória entende que foi violada a lei processual, aí sim, como em outros casos, a matéria restrita do juízo rescindente importa cumprir-se a sentença rescindente com a ida dos autos ao juízo que não admitira o recurso, ou ao juízo do recurso. Certo, o acórdão das Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 3 de dezembro de 1942 (DJ de 8 de fevereiro de .1943, 471). Por vezes, o juízo rescindente é exaustivo. Se a decisão que rescinde a sentença apanha toda a petição inicial, como se diz que a nota promissória, que foi fundamento da condenação, é falsa, ou não tem os requisitos da nota promissória, a proposição mesma que rescinde indefere o pedido de condenação. A sentença rescindente que acolhe alegação de preclusão ou de prescrição indefere, igualmente, o pedido de constituição, de condenação, de mandamento ou de execução. Há portanto, rescisório implícito. A exaustividade, quanto a um ponto da sentença rescindente, não impede que, nos outros pontos, a sentença rescindente não exaura a relação jurídica processual. Se a rescisão não exaure a relação jurídica processual, tem-se de julgar o processo em que se proferiu a sentença rescindenda. Sempre que a atividade rescindente se circunscreve à sentença rescindenda, tem o julgado de substituir o outro. Portanto, há exaustividade. Se, porém,

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a substituição da sentença deixa decisão anterior, tal decisão anterior é tratada como se a decisão rescindida, posterior, não tivesse existido. Por exemplo: a) a sentença rescindenda foi o acórdão do tribunal que não considerou apelável, ou agravável, ou suscetível de outro recurso a decisão anterior; i» a sentença rescindenda foi o acórdão do tribunal que deu provimento à apelação, ou ao agravo, ou a outro recurso. Na espécie a), a rescisão tem a consequência de permitir o recurso, que sobe ao tribunal próprio. Na espécie b), a decisão rescindente ou tem o efeito de negar a recorribilidade, e então transitou em julgado a decisão de que se apelou, ou se agravou, ou, em geral, se recorreu, ou altera o julgado rescindendo, o que normalmente contém, implícito, o rescisório. À ação rescisória não importa se a sentença já está a produzir a sua eficácia, ou não, se já a produziu, ou se já se iniciou outra ação que seja efeito dela (e. g., se já se propôs a execução, Supremo Tribunal Federal, 13 de janeiro de 1943, DJ de 26 de agosto, 3.418; RT 95/577, ou já se ultimou). O que importa é que já haja coisa julgada formal. A ação rescisória ataca-a. No acórdão das Câmaras Civis Conjuntas do Tribunal de Apelação de São Paulo, de 30 de janeiro de 1941 (RD 144/70), foi dito que: a) a decisão proferida em processo de inventário é atacável por ação rescisória, 14 quando a questão resolvida se tornou contenciosa pela discussão surgida no processo. A proposição a) é verdadeira; a restrição proposicional b) não no é. Não se precisa de discussão para que haja decisão, O que o acórdão poderia ter acrescentado seria: “salvo se a decisão foi apenas mencionante de ato jurídico das partes’. O acórdão tinha de examinar, preliminarmente, se a decisão de que se tratava tinha eficácia de coisa julgada formal; depois, se entrava na classe das sentenças que são rescindíveis. Respondido que transitara, formalmente, em julgado: ou há decisão que se rescinde por um dos pressupostos objetivos, ou se tratava de ato processual nãosentencial, que entra na classe dos atos atingíveis como os atos jurídicos, ou de decisão simplesmente homologatória. (d) A ação rescisória, que cabe nos casos fixados pela lei: “ação de direito público”, como existem as ações de direito civil. (Não se confunda com as ações públicas, em contraposição às ações privadas, de que se compõe a doutrina das ações criminais, porque tanto as ações públicas criminais quanto as ações privadas criminais são de direito público). (e) O remédio jurídico processual da rescisória, que é a figura processual, com os seus pormenores formais, a sua particularidade em relação aos outros remédios jurídicos processuais, e a sua inconfundibilidade com os “recursos”. Não é essencial à rescisória produzir-se perante o juiz do primeiro grau de jurisdição e subir ao tribunal, que proferiu a última sentença, ou outro, superior a ele; nem ter prazo longo, porque a maior ou menor extensão dos prazos para a propositura não faz ser ação (no sentido de “remédio”), ou recurso, o expediente ou instrumento processual (W. Kisch, Beitrãge, 181; A. Schoetensack, Uber Rechtsmittel u. Wiederaufnahmeklagen, Festschrift for H. von Burckhard, 264). Mais: também noutros paises as causas, ou, pelo menos, algumas das causas ordinariamente aceitas como fundamento de rescisão, permitem remédios, e não só recursos. Na tradição luso-brasileira, vinda dos primeiros séculos do milênio, é a de ser ação — e não recurso — a rescisão, tanto mais quanto rescisão de julgado, em recurso, seria evidentemente, contradição. A ação rescisória é constitutiva negativa, como a ação de revisão criminal: tende a eliminação da sentença que passou em julgado; é ação para destruir a coisa julgada formal das sentenças proferidas. Não se fala de destruição da coisa julgada material; porque há rescisão de sentenças que não têm força nem efeito de coisa julgada material. Por outro lado, a eficácia da nova sentença ou (1) é negativa, total ou parcial, da eficácia da antiga sentença que acolheu o pedido, ou apenas repele o pedido de rescisão; ou (2) é negativa, total ou parcial, da eficácia da antiga sentença que não acolheu o pedido, e pode ter eficácia a mais do que a força constitutiva, ou apenas repelir o pedido de rescisão. A questão de classificação somente encontraria dificuldades no caso (2); porém o elemento prevalecente é o constitutivo negativo. Se a nova sentença declara, desconstitui (ou constitui positivamente, e. g., sentença rescindente que, no rescisório, decreta a nulidade do casamento), condena, manda ou executa, é que o rescisório se enche desse elemento próprio. Esse é ponto extremamente importante. O juízo rescindente e o juízo rescisório são distintos, conceptualmente, porque tal distinção resulta da natureza das coisas, dos fatos. Qualquer exame não-superficial do que é, na realidade processual, a ação rescisória mostra, crucialmente, que rescindir a sentença não é decidir a matéria que fora por ela julgada. Se o legislador funde as duas decisões, de natureza diferente, em verdade continua de ver-se a fusão, porque, ainda quando a sentença no juízo rescisório seja constitutiva negativa, não no é da

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sentença, como o é a que se profere no juizo rescindente. Quando a sentença já foi executada, ou a) porque era sentença executiva, ou 14 com eficácia imediata executiva, ou porque c) sobreveio, em virtude da carga 3 de eficácia executiva, ação de execução, de sentença, a rescisão da sentença apanha, ali, a própria execução, ou torna sem causa qualquer enriquecimento. E conveniente que o autor da ação rescisória, prevendo demora no julgamento da ação rescisória da sentença, ou outro inconveniente, junte o pedido de rescisão de qualquer sentença ou ato processual rescindível praticado no processo de execução de sentença. (f) Das Ordenações Filipinas, Livro 111, Titulo 75, pr., e Título 87, § 1, tiravam os juristas que a sentença dada com falsa causa era suscetível de rescisão. Lição de 5. Scaccia, do Cardeal de Luca, de D. B. Altimaro e dos portugueses Francisco de Caídas, Antõnio da Gama, Manuel Alvares Pêgas e outros (cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria, III, 134 e 144; Agostinho de Bem Ferreira, Suma da Instituta, 1, 27). Algumas vacilações, casuisticamente expressas em exceções sutis, provinham de impreciso conceito da falsa causa; mas nenhum deles incidia na ameaça terrível de crer irrescindíveis as sentenças proferidas nos casos típicos de falsa causa. A tendência das novas leis brasileiras de processo já eram para omitir a falsa causa como pressuposto à parte. Não havia inconveniente prático, desde que, ocorrendo um dos casos, o juiz a entendesse subsumida na violação do direito em tese ou no pressuposto da falsa prova. Alguns juristas achavam que não estava certo, porquanto, muitas vezes, a falsa causa não se enquadra em nenhum deles, devendo procederse à verificação in hypothesi. No exemplo do testamento revocatório ou infirmatório, que depois se achou, nem a prova foi falsa, nem se infringiu direito in thesi, posto que sentença exista, haja passado em julgado e precise, evidentemente, de ser rescindida. O Código do Processo do Paraná referia-se, explicitamente, à falsa causa. Assim devíamos assentar que a falsa causa permitia a rescisão quando o juiz não julgaria do modo por que julgou, se objetiva ou subjetivamente tivesse reconhecido ou conhecido a causa verdadeira. Aparecendo novo testamento, rescindir-se-ia a sentença que se firmou no revogado ou infirmado, porque o juiz, se dele tivesse ciência, não julgaria como aconteceu julgar. Vindo-se a saber que os contraentes eram Brasileiros, domiciliados no Brasil, caberia rescisão da sentença que aplicou a lei estrangeira, por falsa causa. Dir-se-á que houve violação do direito expresso. Seria enganarmonos a nós mesmos ocultar o pressuposto autônomo que se interpõe entre o julgado rescindendo e a violação, mediata, do direito expresso. Não é certo que o juiz havia violado o direito in thesi. Com os fatos da causa e o conhecimento, talvez perfeito, da lei, concluiu pela aplicação dessa, sem ofender o direito objetivo invocado pelas partes e único, então, que poderia aplicar. Alguma prova foi falsa (= não verdadeira). Posteriormente, já depois de entregue a prestação jurisdicional, é que se vem a saber da causa verdadeira. Impor-se-ia a rescisão: houve a falsa causa, inconfundível com a ofensa ao direito subjetivo da parte, e de tal falsa causa é que resulta, já em segundo plano, que é o plano conseqUencial; a violação do direito subjetivo. Se fôssemos considerar como de ofensa ao direito in thesi todos os casos em que tal ofensa resulta dos verdadeiros fatos responsáveis pela rescisão, só haveria pressuposto para o ingresso procedente no juiz rescindente: a violação do direito expresso. Porque o juiz incompetente violou tal direito; o julgar com falta, ou defeito da parte, violação também seria; não o seriam menos a decisão contra coisa julgada, contra o outro caso de erro, que é a falsa prova, e a dada em processo nulo. Repare-se, porém, em que, em todos eles, como na hipótese da falsa causa, a infração do direito expresso não é um prius: consegue, depende, resulta da falsa causa. Se a sentença fosse proferida ex pluribus causis, das quais uma só verdadeira, válida seria, pois que uma só causa bastaria (D. 8. Altimaro, Tractatus, II, 449); “si vero sententia feratum ex pluribus causis, quarum una fit vera, alie falsa, valida est sententia una existente vera”. Não, se, havendo muitas causas, só numa se apoiou. Sim, ainda que se não referisse a nenhuma explicitamente e apenas houvesse “considerado o que dos autos consta”, como Graciano e o Cardeal de Luca explicavam. Era preciso que o erro da causa fosse irrecusável. Se, por exemplo, o erro consistiu em considerar empréstimo o que foi locação, mas a solução seria a mesma, não seria violação de direito expresso, nem a falsa causa, na espécie, bastaria; salvo se as consequências fossem diversas. Disso trataram Bertoldo e S.Scaccia.

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Aliás, não era preciso que a sentença, direta e expressamente, se referisse à causa. Uma vez que, no decidir, numa causa se apoiou o juiz, que era falsa, o pressuposto surgiria. Não assim se dada generaliter et enuntiative, sem que se pudesse apurar qual a causa a que se referiu. E a espécie a que se reportaram os velhos jurisconsultos (D. B. Altimaro, Tractatus, 11, 449; Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria, III, 140), na qual o juiz diz Vis actis, quia constat etc., depois prevista por algumas leis processuais. Como, todavia, nem sequer se dá verdadeira omissão de fundamento, que constitua nulidade formal da sentença, era de firmar-se o seguinte: a) se nenhuma das causas poderia ser verdadeira, dar-se-ia a rescisão; b) se qualquer das causas obrigaria a julgamento diferente, também se formaria o pressuposto; c) se a causa única, em que se poderia basear o julgado, é falsa, impor-se-ia o remédio rescindente. Em se tratando de achada do testamento, ou do novo testamento, a ação, que cabe, após o cumpra-se, é a ação de petição de herança. Toda sentença que diz ser herdeiro B somente tem eficácia se testamento não apareceu em que se pré-exclua, no todo ou em parte, a B, ou se o herdeiro A não se apresentar, com provas, em ação adequada, que o apontem como excludente de B, no todo ou em parte. Se foi posto cumpra-se a testamento e foi executado ou ainda não foi executado, o aparecimento de novo testamento que obtém o cumpra-se, retira o mandamento concernente ao testamento anterior. Se, na execução do testamento, houve alguma sentença, que atribuiu diferentemente bens da herança, tal decisão ou entrega foi em virtude do cumpra-se ao testamento anterior e cabe a ação de enriquecimento injustificado. Sempre que a sentença é sentença que supõe anterioridade ou posterioridade de alguma causa, a aparição de documento ou registro que negue a afirmação torna ineficaz a decisão anterior. Como se há de considerar o caso da sentença que julgou domiciliada no Brasil a pessoa cuja lei pessoal seria de aplicar-se e tal pessoa não era domiciliada no Brasil, ou vice-versa? Posteriormente, descobre-se a falsidade da declaração de domicílio ou do documento apresentado. O fundamento para a rescisão somente pode ser o do art. 485, VI ou VII, do Código de 1973. 3.Ação contra a coisa julgada formal. (a) Em quase todos os povos, a ação rescisória é ação, qualquer que seja o nome que se lhe dê, qualquer que seja a veste processual sob que apareça, se a lei lhe confere o caráter de ir contra a coisa julgada formal. Ainda que tivesse o nome, não seria ação rescisória, se as sentenças contra as quais dela se pudesse usar fossem sem tenças ainda não passadas em julgado. Quando as Ordenações Filipinas, Livro III, Título 75, pr., estatuiam que “a sentença, que é por direito nenhuma, nunca passa em coisa julgada, mas em todo tempo se pode opor contra ela que é nenhuma e de nenhum efeito e, portanto, não é necessário dela ser apelado”, ou não se referia às rescindíveis, mas às existentes e às nulas ipso iure (hipótese a se pôr de parte), ou era “alusiva” ao prazo legal de então para a ação rescisória. Não há sair-se do dilema. Admitindo-se que fosse o primeiro o pensamento do velho direito luso-brasileiro, não seria à altura da ciência jurídica do seu tempo, menos ainda de hoje. A ação rescisória supõe a sentença que passou em julgado, isto é, de que não cabe recurso. Aparentemente, haveria contradição entre tal concepção e o caso das rescisórias cujas sentenças rescindendas foram contra o principio de não se poder decidir matéria idêntica (em pessoa, causa e coisa), uma vez que algumas leis falam em não passarem em julgado tais sentenças. Já vimos, porém, que isso não se dá. O direito de outrora refletia a heterogeneidade das fontes e o romanismo ainda perturbava a depuração científica da terminologia. As sentenças que não passam em julgado (sem eficácia de coisa julgada formal!) não precisam de tal ação. Podem renovar-se os processos, indefinidamente, posto que, enquanto não se renovam, tenham eficácia. Nenhum princípio a priori, ou constitucional, impede que o legislador do direito processual adote para as decisões válidas, porém que não fazem coisa julgada, ação autônoma, como ocorrera nos antigos Códigos de Processo Civil de São Paulo, art. 359, parágrafo único, e do Paraná, art. 939. Aí, categorizava-se demasiado a impugnativa: podia ser somente recurso; e é ação. Os “pedidos de reconsideração”, ou “de reforma”, ou “de revogação”, quando alguma lei os permite, são ações de tal ações “encurtadas. Devido à facilidade do ato de conciliação dos cônjuges separados judicialmente fala-se de não passarem em julgado as sentenças de separação consensual. Aliás — e esse é outro ponto da máxima relevância — é confusão de graves consequências indagar-se de ser a sentença, dotada, ou não, de eficácia de coisa julgada material, para depois se responder se é, ou não, rescindível. A rescindibilidade das sentenças nada tem com a produção da força, ou, sequer, do efeito de coisa julgada material. A coisa julgada, de que se trata, quando se

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permite a ação tendente à rescisão da sentença passada em julgado, é a coisa julgada formal, a força formal de coisa julgada. A ação rescisória só se propõe contra sentença que transitou em julgado, isto é, de que não cabe, ou não mais cabe recurso. Nada tem com o haver o autor interposto, ou não, os recursos que a lei lhe permitia. Acertadamente, o Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 17 de setembro de 1942 (Ai 64/363), frisou-o. Hão de estar exauridos os prazos dos recursos, sem se indagar da negligência — ou anuência — das partes, inclusive o autor da ação rescisória. O autor, para propor ação rescisória, tem de interpor os recursos, ou deixar que passe em julgado a decisão, não porque deva recorrer, e sim porque um dos pressupostos da pretensão a rescindir é o ter passado formalmente em julgado a sentença. O que perdeu o prazo do recurso pode pedir rescisão. (b) A V Turma do Supremo Tribunal Federal, a 7 de outubro de 1948 (RF 123/116), lançou verdadeira heresia jurídica quando disse que a ação rescisória pode ser proposta antes de passar em julgado a sentença. Não há pretensão à rescisão antes do trânsito em julgado. A ação rescisória tem por fito exatamente atacar a coisa julgada formal, o que o sistema jurídico só lhe permite em espécies estreitas. Ainda a 4 de agosto de 1947, a 1a Turma (DJ de 25 de fevereiro de 1949) admitiu a ação rescisória se incabível o recurso; mas, aqui, a questão é outra: se a parte interpôs recurso de que não se conhece, a sentença transitou em julgado antes; razão por que pode ser proposta a ação rescisória, pendente recurso, para que o prazo preclusivo não se esgote; julgado o recurso, foi eficaz, ou não foi eficaz a propositura. De qualquer jeito, não se pode julgar a ação rescisória antes de se julgar o recurso: se dele não se conhece, julga-se a ação rescisória; se dele se conhece e não se lhe dá provimento, a ação proposta só é aproveitável por princípio de economia processual, porém mais acertado seria propor-se outra, porque o prazo preclusivo só se inicia com o trânsito em julgado da decisão no recurso. Se se conheceu do recurso e se lhe deu provimento, está sem objeto a ação rescisória proposta. Proposta a ação rescisória, não pode o juiz dizer se o recurso extraordinário é de se conhecer ou não. Se houve interposição de recurso extraordinário sobre ponto que não é aquele sobre que versa o pedido da ação rescisória, nada obsta a que se conheça da ação rescisória. Quid luris, se o ponto é o mesmo? Dois caminhos têm sido apontados: a) aguardar-se que se pronuncie acerca do recurso o Supremo Tribunal Federal: b) julgá-la desde logo. Contra o segundo argúi-se que, decidido de um modo, pode o Supremo Tribunal Federal julgar diferentemente, e contra isso se tem argumentado que novo recurso extraordinário é interponível da decisão proferida na ação rescisória e, então, se há de apresentar a coisa julgada do primeiro recurso extraordinário. O primeiro, diz-se, tem o inconveniente de obrigar as partes á espera de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, que pode tardar, obrigando a renovação da jurisdição, a despeito de já haver coisa julgada na ação e, pois, possibilidade de rescisão. Houve terceira opinião. c), que entendia não caber aiiida a ação rescisória, devendo-se não conhecer dela, o que tiraria a ação, porque o prazo corre da coisa julgada e pode ter havido coisa julgada (Corte de Apelação do Distrito Federal, 13 de outubro de 1937). Só o Supremo Tribunal Federal pode conhecer ou deixar de conhecer do recurso extraordinário. Se o autor da ação rescisória entende que não cabe o recurso extraordinário, exerce a pretensão à rescisão para que não preclua o prazo de propo-situra. Se acha que cabe, arrisca-se a que vá correndo o prazo desde que houve o trânsito em julgado, a despeito da interposição do recurso incabivel. Proposta a ação, tem de aguardar o julgamento do recurso (cf. Seção Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 17 de março de 1948, RT 173/1.023). Nenhum risco há, porque a pretensão à rescisão foi exercida. É esse um dos pontos a que se há de prestar toda a atenção. Ainda a favor da solução a), absolutamente certa, há a consideração de que o prazo para a propositura da ação rescisória de sentença é prazo preclusivo. O autor exerce a ação alegando e provando que houve recurso extraordinário, mas é incabível. A matéria não poderia ser apreciada na ação rescisória. Tem-se de esperar o julgamento do recurso extraordinário para que se possa julgar a ação rescisória. Se dele não se conheceu, cabe julgar-se a ação, considerado que houve a coisa julgada formal no primeiro grau de jurisdição. Se dele se conheceu e se confirmou a sentença rescindenda ou acórdão rescindendo, nada obsta, por principio de economia processual, que se prossiga na ação, ratificado o processado, pois apenas se passou a contar o prazo preclusivo da data em que transitou em julgado a decisão quanto ao recurso extraordinário. Se do recurso ex-traordinário se conheceu e o provimento não atingiu o ponto ou os pontos sobre que versa a petição de rescisão,

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dá-se o mesmo. Se do recurso extraordinário se conheceu e o provimento altera o julgado recorrido, no ponto ou nos pontos, ou em algum ou alguns pontos que foram indicados para rescisão — ou não tem objeto a ação de rescisão, ou o prosseguimento somente pode ser com explicitação do ponto ou dos pontos que ainda se quer sejam examinados pelo juízo rescindente. (c) A propósito de ação rescisória, algumas proposições de não cabimento são extremamente vagas e contêm margem para graves erros. Se a nulidade da sentença não é suprível e resiste ao trânsito em julgado, há mais do que rescindibilidade: há nulidade do julgado. Não se pode dizer que, tendo havido nulidade da sentença e sendo insanável pelo trânsito em julgado, ainda se precisa rescindir o julgado: é nulo. Se a nulidade processual se sanou, ou nao mais é de pronunciar-se, não cabe a rescisória porque a regra jurídica de sanação, ou de pós-exclusão, por si só afasta que, incidindo, se rescinda o julgado por violação da que teria tido o efeito nulificante se a segunda regra jurídica não existisse. Se a nulidade não se sanou, a sentença é nula. Então, na ação rescisória, pode o juiz ou tribunal decretar-lhe a nulidade porque é o ensejo que se lhe oferece, segundo os princípios, e a ação rescisória supõe que válida seja a sentença. Rescindir não é decretar nulidade, nem anular. Alguns acórdãos têm insinuado que não há decisões interlocutórias com força de coisa julgada formal (e. g., Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1941, Ai 60/190). Coisa julgada formal produz-sempre que não mais se pode recorrer, ou não se poderia, por ser irrecorrível a decísao. Onde quer que haja decisão irrecorrivel, ou de que já não caiba recurso, há pretensão à rescisão. O que se pode dar é que não haja interesse para a rescisão, mas essa é outra questão. (d) Quanto à rescindibilidade das decisões da Justiça do Trabalho, os julgados que a negavam apoiavam-se em bem mofinos argumentos, ou em erros crassos, como o de não estar prevista a ação rescisória entre os recursos (!) admissíveis no processo das questões de trabalho (Conselho Nacional do Trabalho, 11 de maio de 1944; cf. 24 de junho de 1946). Invocou-se, por vezes (e. g., 11 de maio de 1944 e 27 de novembro de 1943), o principio de não se poder, na Justiça do Trabalho, conhecer duas vezes da mesma questão (9. Todos esses argumentos foram trazidos à tona no despacho do Vice-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, a 31 de maio de 1948. Não mereciam qualquer comentário. A ação rescisória é remédio jurídico processual previsto na Constituição. A lei que rege todas as espécies é a lei processual. No mesmo sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, a 16 de agosto (RJB 80/203; OD 54/327), e a 22 de dezembro de 1948 (DJ de 19 de fevereiro de 1949); finalmente, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 27 de agosto de 1951 (DJ de 8 de junho de 1953); sem razão, a 2ª Turma, a 13 de julho de 1951 (DJ de 16 de março de 1953) e a 17 de agosto de 1951 (Di de 14 de setembro de 1953). Certo, o voto vencido do Ministro Delfim Moreira Júnior, ao acórdão do Tribunal Superior do Trabalho, a 26 de janeiro de 1950 (RJB 94/78, RT 140/499). Imaginemos que haja recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal e se proponha, depois, a ação rescisória com um dos fundamentos legais. Poder-se-ia postergar a regra juridica da Constituição? Afirmaram a existência da ação rescisória o Tribunal Regional do Trabalho da 12 Região, a 15 de fevereiro de 1950 (RT 190/461; RF 130/564), a 30 de janeiro, a 16 de abril de 1952 (DJ de 16 de junho e 14 de julho de 1952) e a 23 de setembro de 1952: o Tribunal Regional do Trabalho da 22 Região, a 1ª de outubro de 1951 (RT 215/389), e o Tribunal Regional do Trabalho da 3ªRegião, a 9 de julho de 1951 (139/996). Seria infringir-se a Constituição negar-se a ação rescisória de acórdão do Supremo Tribunal Federal em matéria de legislação do trabalho. Quanto ao argumento de não se prever na Consolidação das Leis do Trabalho, ao se cogitar dos recursos, ação rescisória, é de repelir-se por sua inépcia: ação rescisória não é recurso. Também não importa se a decisão mesma é impugnada, ou somente impugnada quanto ao julgamento de preliminar (Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Apelação de São Paulo, 6 de fevereiro de 1942, RF 90/758). (e) No acórdão de 6 de janeiro de 1943, decidiu o Supremo Tribunal Federal (RF 96/83) que não cabe ação

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rescisória de acórdão que não toma conhecimento de recurso extraordinário. Por que não? Tal decisão passa, formalmente, em julgado; fechou a porta ao exame de questão de inconstitucionalidade; na incognição é possível ter havido violação de regra jurídica processual, inclusive regimental — que é direito — e da própria Constituição. A proposição do acórdão é insustentável. Se o Supremo Tribunal Federal conheceu de recurso extraordinário, fez sua, na parte da matéria versada, a decisão. Naturalmente, nesse ponto, não pode ser rescindida pelo tribunal de cuja decisão se interpusera o recurso, nem outro a que caiba julgamento de ação rescisória. Porém isso não quer dizer que a rescisão não possa ser pedida ao próprio Supremo Tribunal Federal. Se o Supremo Tribunal Federal não conheceu do recurso, pode ser pedida a rescisão desse julgado de não-cognição, se ocorreu algum dos pressupostos legais. Não tendo conhecido do recurso, a matéria julgada continuou na sentença e essa pode ter incorrido em algum dos vícios. Nada obsta a que se proponha a rescisória de tal sentença: o Supremo Tribunal Federal somente faz sua a matéria da sentença de que se interpôs recurso extraordínário quando dele conhece e o julga, dando-lhe, ou não, provimento. Sem razão, o acórdão do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 24 de junho de 1943 (DJ de 29 de setembro, 3.879), que citou trecho nosso que só se refere aos recursos extraordinários de que houve conhecimento. (f) É preciso ter-se muito cuidado em se fixar o momento em que a decisão passa, formalmente, em julgado. A interposição de recurso somente adia esse trânsito em julgado se o recurso a) é cabível, b) foi interposto e c) foi julgado cabível (= dele se conheceu). Se havia a), e não ocorreu b), a decisão transitou em julgado no momento em que expirou o prazo para a interposição do recurso. Se não havia a) e houve b), lendo sido declarado não cabível, a decisão transitou em julgado ao ser proferida ou ao se expirar o prazo para outro recurso, que pudesse interposto eficazmente, ou para o recurso eficazmente interponível de prazo maior. Se havia a) e ocorreu 14, mas a decisão foi não-b), isto é, de não-cognição do recurso, houve infração de direito objetivo e poder-se-á propor a rescisão de tal julgado. Enquanto não se rescinde, tem-se a sentença como trânsita em julgado no momento em que foi publicada, ou na data em que se perfez o prazo para outro recurso cabivel. Se não havia a), mas houve b) e c), o prazo para a ação rescisória começa do trânsito em julgado da decisão que conheceu do recurso. Se propõe a ação rescisória por ter havido c), a despeito de a), pode ocorrer que — rescindida a sentença — se haja de ter de ir contra a sentença que transitou em julgado, por não haver .4. Praticamente, a quem propõe a ação rescisória convém fazer, desde logo, os dois pedidos, porque um depende do outro. (g) Quando se propõe perante Tribunal de Justiça ação rescisória de sentença de que houve recurso extraordinário e a matéria atingida pelo pedido de rescisão foi feita sua pelo Supremo Tribunal Federal, pois que conheceu do recurso extraordinário, o que o Tribunal de Justiça deve fazer é julgar-se incompetente. Se, por erro de técnica, o acórdão do Supremo Tribunal Federal disse que não havia violação de direito expresso, mas usou da frase “não se conhece do recurso extraordinário”, está-se diante de questão de interpretaçâo de sentença: ou houve erro de expressão, e o Supremo Tribunal Federal decidiu o mérito do recurso, caso em que fez sua a decisão do primeiro grau de jurisdição, e a ação rescisória seria da competência do Supremo Tribunal Federal; ou em verdade só não conheceu, e então competente é o tribunal prolator do acórdão rescíndendo. Certo, o acórdão da 2a Turma do Supremo Tribunal Federal, a 27 de julho de 1943 (AJ 68/181; RiB 61/288; 1ff 98/362). As vezes, o Supremo Tribunal Federal encambulha a preliminar de conhecimento do recurso extraordinário e o mérito, o que quasempre acontece ao julgar recursos extraordinários com fundamento no art. 102, III, a), b) e c), da Constituição de 1988. A separação é fácil, e tudo aconselha a que os juizes do Supremo Tribunal Federal não fundam preliminar e mérito. Se o recorrente invocou a regra jurídica constitucional sobre o recurso extraordinário, e apontou o texto violado, tem o Supremo Tribunal Federal de conhecer do recurso; se violação não se deu, é caso de negar-se provimento ao recurso extraordinário. O encambulhamento tem causado graves danos á justiça. Nunca é demais encarecer-se a correção desse grande defeito dos nossos tribunais, federais ou locais. Enquanto pende o recurso extraordinário, entende o Supremo Tribunal Federal que não corre o prazo preclusivo para o cabimento da ação rescisória — interrompe-se, diz o acórdão de 29 de agosto de 1942 (Ai 67/141). A questão é falsa questão: o prazo preclusivo da ação rescisória começa de correr desde que passa em julgado a sentença: se foi interposta apelação, ou embargos infringentes, ou embargos de declaração, ou recurso ordinário, ou recurso especial, ou recurso extraordinário, e o tribunal do recurso decide não conhecer dele, claro está que a sentença “transitou” em julgado e o prazo começou de correr desde aquele momento. Sair daí é infringir principio fundamental de direito processual, o da preclusão. Se o Supremo Tribunal Federal conheceu do recurso e lhe deu, ou não,

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provimento, aí a coisa julgada formal só se estabelece de acordo com esse julgamento, que é o último e fez sua a matéria. Não pode haver, em direito, nem nós os temos, dois conceitos diferentes de coisa julgada formal. O que é preciso é que os membros do Supremo Tribunal Federal e dos outros tribunais do pais pesem bem as suas responsabilidades de juristas quando acolhem preliminares de não-conhecimento do recurso extraordinário, Se não conhecem, quando deviam conhecer, embora negando provimento, fizeram antes do que devera ser o momento da coisa julgada formal. Basta isso para se ver a relevância de tais julgamentos. Todo ato de julgamento, perante a justiça, ainda em caso de concurso para provimento de cargos (Tribunal de Apelação de São Paulo, 28 de fevereiro de 1941, RT 144/252), é suscetível de rescisão, se ocorre um dos pressupostos previstos na lei. Se se julga e há trânsito em julgado, há rescisão. Quando a sentença tem força formal de coisa julgada e não na tem material, também cabe a ação rescisória. A ação rescisória nada tem, aí, com o conceito de coisa julgada material. 4. Rescindibilidade e ineficácia. Outro assunto que merece exame é a diferença entre rescindibilidade e ineficácia. A eficácia da sentença rescindível é completa, como se não fosse rescindível. A impugnação em ação rescisória, aliter em querela de nulidade, nada tem com os limites subjetivos ou objetivos da eficácia da sentença. A legitimação para as ações que dizem respeito á extensão da força ou do efeito da sentença é outra que a legitimação para propor ação rescisória. Não quer dizer isso que as duas legitimações não possam coexistir. 5.Ação e recurso; ação rescisória de sentença e ação de revisão criminal, a) O que caracteriza o recurso é ser impugnativa dentro da mesma relação jurídica processual da resolução judicial que se impugna. A ação rescisória e a revisão criminal não são recursos; são ações contra sentenças: portanto, remédios com que se instaura outra relação juridica processual. A impugnatíva, em vez de ser dentro, como a reclamação do soldado contra o seu cabo, é por fora, como o ataque da outra unidade àquela de que faz parte o cabo. O soldado foi pedir a atuação alienígena. É erro dizer-se que ação rescisória ou revisão criminal é recurso, como falar-se de reabertura extraordinária da lide trancada pela força do caso julgado. A ação rescisória vai, exatamente, contra a força formal da coisa julgada; quebrada essa muralha de eficácia formal, lá está o processado, a relação jurídica processual, que a preclusão fechara e fizera cessar; exsurge, não se reabre; o juízo rescisório não é re-instalação, mas volta à vida, ressurreição. Não se reconstrói a casa, que se fechara; abre-se a porta (= destrói-se a sentença) e re-ocupa a casa. Nesses assuntos, de ciência difícil, como a processualistica, todo cuidado é pouco se lançamos mão de imagens. A cessação da relação jurídica foi ex nunc; não desaparecera. Resultara da sentença. Destruída, rescindida, a sentença, a relação jurídica processual, que lá estava até o momento c), quando cessara (com força formal de coisa julgada), continua o tempo perdido, pois que se eliminou a causa da cessação a sentença e a sua força formal de coisa julgada. As vezes, a rescisão é de resolução concernente à formação da relação jurídica processual, mas, aí, é pelo objeto da impugnação que se desce até lá. A sentença não é rescindivel somente por defeito oriundo da própria sentença, mas por algum defeito de ato processual anterior, inclusive a citação. O corte, a cisão, vai mais longe no pretérito processual, pode alcançar diferente momento na duração da relação jurídica processual. É possível que a apanhe desde todo o começo, nada deixando de todo o procedimento. b) Dentro e não por fora da relação jurídica processual, o julgador do recurso encontra resolução judicial, talvez sentença definitiva, porém não coisa julgada formal. Historicamente, quando se estudam as impugnativas (as ações e as impugnativas-recursos), verifica-se que houve ações que passaram a ser recursos (e. g., só se permitiam as impugnativas se ainda pendente a lide) e recursos que volveram ou se tornaram ações de impugnação de sentenças, isto é, se fizeram impugnativas utilizáveis depois e a despeito da coisa julgada formal. Outra classe é a das ações contra resoluções (de regra, mandamentais) que abstraem da preclusão ou força formal de coisa julgada, como os embargos de terceiro, oponíveis na ação de execução de sentença. A Corte de Apelação do Distrito Federal, a 15 de agosto de 1933 (AJ 30/240), enunciou que o terceiro prejudicado, que tem o direito de apelar ou de opor embargos de terceiro, tem qualidade para propor ação rescisória. O princípio, em sua generalidade, é falso. A legitimação para ação constitutiva negativa, que é a ação rescisória, é diferente da legitimação para se opor, como terceiro, em ação mandamental contra a eficácia

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da sentença. E preciso que o terceiro tenha interesse jurídico, isto é, que seja “juridicamente interessado” (art. 487, III, do Código de 1973). 6. Legitimação ativa e legitimação passiva. O problema da legitimação ativa e da legitima ção passiva tem de ser examinado quanto ao exercicio do remédio e quanto à ação. Cumpre não confundir as duas séries de pressupostos subjetivos da ação rescisória. Todos os que podem ir a juízo, em geral, podem lá ir para usar do remédio processual da “ação rescisória” de sentença passada em julgado. Têm ‘ação” aqueles que têm sentença a rescindir, nos casos apontados pelo direito objetivo. No iudicium rescindens. decidir-se-á se procedente, ou não, a ação intentada. O que entre a sentença a rescindir e a propositura perdeu a personalidade, ou a capacidade de direito, não pode ser chamado a juizo, com direito a prestação jurisdicional. Os que ao tempo da sentença rescindenda não tinham a personalidade ou capacidade de direito e a têm ao tempo da propositura, têm e podem exercer o direito público subjetivo e alegar aquela nulidade ou outros pressupostos objetivos da rescisão. Exemplo: a sentença que foi proferida contra a sociedade ainda sem capacidade. Ao que foi parte, ou pessoa equiparada a parte, em sentença que passou em julgado e subsumível nas que se têm como rescindíveis, cabe a “ação” rescisória. Se é certo que o direito público subjetivo a usar do remédio rescindente não oferece dificuldades, não sucede o mesmo em relação à legitimação ativa e à legitimação passiva para a ação. As leis fixam os pressupostos objetivos da ação rescisória. Não costumam dizer quais os sujeitos da ação. Em primeira plana, são o autor e sucessores, o réu e sucessores, reconvinte e sucessores, reconvindo e sucessores. É útil separar a ação e a reconvenção, porque há sentenças que julgam as duas e o pedido rescindente não vai, necessariamente, às duas partes, separáveis, da sentença, nem a decisão do iudicium res-cindens precisa manter a continência. Cumpre notar que a ação pode ser intentada pelo que já não tem o direito que lhe reconheceram, em parte, na sentença, e contra o que já não tem o que a sentença rescindenda negara ao proponente, a favor do vencedor. Exemplo: O que só em parte ganhou cede tal parte, e vem a juízo pleitear a rescisão da sentença; o que perdeu vem a juízo pedir a rescisão da sentença contra o que já alienou a casa, objeto da reivindicação. Parte da sentença rescindenda e, pois, da rescisória não são só os que litigaram, mas também os herdeiros, os outros sucessores, os credores, os fiadores e todos os que ficam sub-rogados nos direitos de outrem à rescisão. E. g., o sócio de firma falida é parte legítima para pedir a rescisão da sentença decretativa de falência (Corte de Apelação do Distrito Federal, 14 de outubro de 1925). Não é nulo o processo da ação rescisória, cumulada com a reivindicatória, se deixaram de ser citados para ela os possuidores do imóvel reivindicando; o que é preciso éque as partes tenham sido citadas (Tribunal de Justiça de São Paulo, 25 de abril de 1924). Não teria eficácia contra eles a sentença. Os possuidores podem contestar a ação como interessados. O Acórdão do Supremo Tribunal Federal, que só se referiu a parte, foi mal redigido (8 de janeiro de 1916). Sem razão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 10 de fevereiro de 1914 e a 21 de novembro de 1928. A propósito de ação rescisória, convém ter-sempre presente que, se alguém, que teria de ser citado, não no foi, a sentença rescindente somente tem eficácia contra os citados, continuando de correr o prazo preclusivo contra o autor ou contra os autores a favor daquele que não foi citado. Também podem intentá-la e intervir ao lado do réu os terceiros, com interesse jurídico no resultado. Dissemos interesse jurídico. E a tal interesse que se referia a Ordenação do Livro III, Titulo 81, pr., onde se diz “posto que a sentença não aproveita, nem empece mais que as pessoas, entre que é dada, poderá porém, dela apelar, não somente cada um dos litigantes que se dela sentir agravado, mas ainda, qualquer outro a que o feito possa tocar e lhe da sentença possa vir algum prejuízo”. No Reg. n2 737, de 25 de novembro de 1850, art. 738, tinha

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o mesmo sentido a referência a terceiros “prejudicados”. O interesse jurídico do terceiro é (a) na sentença rescindenda e, pois, na rescisória, ou (b) só na rescisória. Por isso não se precisa ter sido parte naquela. A ação rescisória é suscetível de continência própria, como quaisquer outras ações. A fórmula que vem em Jorge Americano (Da Ação Rescisória, 2ª ed., 112) segundo a qual “é parte legitima na ação rescisória aquele para quem ou contra quem a sentença rescindenda faz coisa julgada” não está certa e contradiz o que escreveu antes. A coisa julgada só opera inter partes, mas existe perante todos. Que é que significa “Para quem ou contra quem a sentença rescindenda faz coisa julgada”? Naturalmente, só as partes e os terceiros com direito de apelar, de opor embargos ou de usar de recurso especial ou extraordinário? Trata-se da confusão entre coisa julgada, conceito dependente da relação jurídica processual de que resultou a prestação, e invasão da esfera juridica de outro. Não são rescindíveis somente as sentenças que fazem coisa julgada material, razão maior para se ter de repelir a assimilação da legitimação ativa ao fato de ser a pessoa atingida pelo efeito de coisa julgada material. Exatamente a coisa julgada material é só entre partes. O Ministério Público, sempre que a) não foi ouvido no processo em que lhe era obrigatória a intervenção, ou b) a sentença for efeito de colusão das partes, a fim de fraudar a lei, pode propor a ação rescisória. Finalmente: só o interesse de agir justifica que se proponha a ação rescisória. A falta dele pré-exclui propositura. Assim, ocorrendo que, provido o pedido, não possa aproveitar, juridicamente, ao que a propôs, deve considerar-sem pretensão à rescisão o autor (Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 29 de outubro de 1900 e 5 de agosto de 1901; Câmaras Cíveis Reunidas, 2 de junho de 1902, 10 de dezembro de 1903 e 16 de outubro de 1913). Se houve revéis na ação em que se proferiu a sentença rescindenda, têm de ser citados na ação rescisória. Se de alguém era preciso o assentimento para alguma das partes litigar e a situação perdura, tal assentimento é de exigir-se no processo da ação rescisória. Assim, se assentira o cônjuge, de novo há de assentir ou ser citado, com o outro, na ação rescisória. O Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 18 de maio de 1938, estabeleceu: “Entende PONTES DE MIRANDA que podem usar da ação rescisória, não somente os que foram parte na primeira ação, mas os herdeiros sucessores, sub-rogados nos direitos e os terceiros com interesse jurídico no resultado. Clovis Bevilacqua é de opinião que o terceiro que não interveio no processo pode propor a rescisória, mas é essencial que prove o prejuízo que teve com a sentença que pretende rescindir. Outros, mais radicais, como R. Pothier e F. Laurent, entendem que somente podem usar dessa ação aqueles que foram parte na primitiva ação ... Garsonnet, examinando a espécie, chega à seguinte conclusão — podem propor a rescisória: a) todos os que pessoalmente figuraram na causa, cuja sentença se pretende rescindir, embora no momento da propositura da ação hajam perdido a qualidade em virtude da qual tomaram parte na causa de que se originara a sentença rescindenda; b) todos os que, representados na primeira causa, nela foram partes, por meio de seus mandatários. Assim, não considera parte legitima na rescisória: a) os que se dizem lesados por sentenças proferidas em processo em que não figuraram; b) os que, embora figurassem, invocam para a rescisória qualidade diferente daquela pela qual tomaram parte na ação cuja sentença se deseja rescindir. Esse, ainda, o pensamento de Bartjean, na EnccIopédie Civil Belge. Mas, no direito prático, há prevalecido o sentir de PONTES DE MIRANDA, sem que a doutrina seja levada ao exagero de permitir que o terceiro use dessa ação, sem a prova de legitimo e irrecusável interesse econômico ou moral, ligado à causa ou aos efeitos da decisão rescindenda”. (No mesmo sentido, as Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Apelação de Pernambuco, a 25 de fevereiro de 1946, AF 20/369). § 241. Fundamentos para o pedido de rescisão 1. Distinções. Distinguem-se: a) as sentenças inexistentes; b) as nulas; c) as reformáveis; d) as rescindíveis (reformáveis antes de passar em julgado, isto é, recorríveis; depois de trânsito em julgado, isto é, rescindíveis). A decisão proferida pelo que não é juiz ou não o é no momento, como se o pretor, substituto do juiz de direito,

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ou o juiz de direito, substituto do desembargador, a proferiu quando já não substituia, é inexistente. Dá-se o mesmo, se o pretor a deu como pretor quando já não no era, ou o juiz a deu como tal quando já não era juiz. Bem diferente é o caso da sentença proferida pelo juiz incompetente, isto é, que não era o que devia conhecer do litigio. mas, na sua verdadeira qualidade, dele conheceu. Se a nulidade é insanável, portanto absoluta, ou se há inexistência da sentença e não só nulidade, em qualquer tempo poderá ser alegada e reconhecida. Aqui, sim, a sentença seria “nenhuma”; ali, seria sentença, mas nula. A regra é serem sanáveis as nulidades. Decorridos os termos para os recursos, preclui o direito de se impugnar o ato. A sentença é impugnável pela rescisória quando a infração, que era sanável, não se apagou. Mas ai estamos em terreno tautológico: se a infração era sanável e não se apagou, então foi a lei que determinou isso, permitindo, na espécie, a ação rescisória. A sentença, inexistente, e. g., proferida por pessoa ou corpo julgador que não é juiz, é objeto de ação declarativa de inexistência, sem necessidade de “ação” (cf. 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Pernambuco, 11 de dezembro de 1945, AF 17/647). Ás vezes, a ação a propor-se é declarativa negativa incidental. A sentença nula não precisa ser rescindida. Nula é; e a ação constitutiva negativa pode ser exercida ainda incidenter, cabendo ao juiz a própria desconstituíção de ofício. Tais os exatos princípios. (a) O tractus temporis do prazo preclusivo da rescisória é de direito pré-processual, que se não confunde com o processo em si. Tal diferença é, hoje, profundamente estudada pela processualística científica. Tivemos oportunidade de ver os efeitos sanatórios de tal prazo. Mas as sentenças inexistentes não se fazem sentenças, nem pela preclusão, nem pelo haver decorrido o prazo preclusivo para a ação rescisória. Do nada, nada se tira. Se a sentença proferida pelo que não é juiz (aliás, não seria “sentença”, no sentido técnico), ou que não foi escrita nem publicada, pudesse vir a convalescer, ter-se-ia de extrair ex nibilo o seu afirmado valor. (b) A distinção entre sentenças inexistentes, nulas e rescindiveis, isto é, existentes, válidas, mas atacáveis a despeito do trânsito em coisa julgada, suscita questão a que se há de responder antes de qualquer outra. Porque, se a sentença é inexistente, não é sentença: não cabe rescindir, cindir, o nada. Se a sentença énula ipso iure, existe, porém não vale: se não vale, de pleno direito, não se precisa de “ação” contra ela. Ao ser invocada, opõe-se que é nula ipso iure. Se alguém quer alegá-lo, pode fazê-lo quando entenda, sem esperar a citação na ação iudica ti. De nulidade é de inquinar-se a sentença que se proferiu contra ou a favor de processualmente incapaz. Dissemos “nulidade”, no senso exato; portanto, de sentença nula. Tal decisão, ainda que em tudo mais tenha observado a lei (de acordo com os princípios de direito, com citação inicial, e perfeita disciplina processual), não precisa, nem sequer, de interposição de recursos, nem de proposição de ação rescisória. Sentença ineficaz é a ferida de morte por alguma impossibilidade: cognoscitiva (sentença incompreensível, ilegível, indeterminável), lógica (sentença invencivelmente contraditória), moral (sentença incompatível com a execução ou a eficácia, como a que ordenasse a escravidão ou convertesse a dívida civil em prisão, coisa inconfundível com a detenção civil nos casos especiais da legislação), jurídica (sentença que cria direitos reais além daqueles que o direito permite, como, em direito civil brasileiro, o fideicomisso do terceiro grau). Devemos aditar: materia! (física), científica (se, por exemplo, a sentença ordenar medida que, agora, se verifica ser calamidade pública, segundo descobertas da ciência), estética (se ordenava levantar platibanda e a lei municipal caíra em desuso). E nula ipso iure: a) se o mesmo juiz publicou, no mesmo processo, outra sentença (Adolf Wach, Urteilsnichtigkeit, Rheinische Zeitschrift, III, 389); b) se faltou ou foi nula a citação inicial, tendo corrido à revelia o processo. (c) Os meios para se evitar qualquer investida por parte de quem tenha em mão sentença inexistente, ou nula ipso iure, ou ineficaz, são os seguintes: a) Autor, reconvínte, réu ou reconvindo, ou qualquer pessoa que se ligou subjetivamente à relação jurídica processual, pode volver a juízo, exercer a sua pretensão à tutela jurídica, com os mesmos pressupostos de pessoa, objeto e causa, sem que se lhe possa opor, com proveito, a res iudicata: as sentenças inexistentes e as

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nulas ipso ivre não produzem coisa julgada. A respeito, a terminologia das leis é defeituosissima, como bem se tem advertido e, noutro ramo, dissemo-lo nós (cf. Ciuseppe Chiovenda, Principii, 899, nota 1; nosso, Tratado de Direito Privado, VII, §§ 801, 802 e 807; sobre inexistência, nulidade e anulabilidade de casamento); porém cumpre pôr de parte os termos, e ver as leis em regras entrosadas, em sua compleição. O terceiro que não se ligara à relação jurídica processual não pode propor a ação rescisória. (Assim se há de entender o acórdão do Supremo Tribunal Federal, a 8 de janeiro de 1916: “Admitir a ação rescisória proposta por terceiro fora engendrar estado de inseguridade permanente para o direito. Proferida uma sentença entre A e B, partes únicas interessadas na questão, sempre poderia C, por exclusiva malevolência, tentar a anulação (?) da sentença passada em julgado”). Aliter, o terceiro, que opôs embargos de terceiro, porque esse é autor, ou o que se ligou à relação juridica processual ou o que a sentença atingiu, em sua força ou eficácia. b) Opor-se a qualquer ato de execução, por embargos do devedor, ou por simples petição; porque, ainda que impossível a prestação, há o ingresso à execução: a sentença de prestação impossível não dá, nem tira; mas, como aparência, vai até onde se lhe declare (note-se bem: declare) a impossibilidade cognoscitiva, lógica, moral ou juridica (Sobre ineficácia, Tratado de Direito Privado, Tomo IV, 209 s.). c) Usando-se o remédio juridico rescisório, a corte julgadora ou o juiz singular (se for o caso, segundo a legislação processual), na preliminar do conhecimento, ou, se juntos preliminar e mérito, no julgamento de iudiciuni rescindens, dirá que o autor não tem a ação rescisória, porque essa tende à rescisão das sentenças, e a sentença que se pretende rescindir é inexistente ou nula ipso iure. Aí mesmo pode ele declarar a inexistência de sentença, tendo a sua decisão a natureza de sentença em ação declarativa, ou decretar a nulidade de pleno direito da sentença, tendo eficácia constitutiva negativa a sua decisão. Já se chamou atenção para esse ponto: no pedido mais forte está compreendido o menos forte; se nele cabe. Por isso mesmo, a ineficácia também é declarável. (d) No decidir ação rescisória, o juiz ou tribunal tem de enfrentar certas questões prejudiciais, o que o levará a proferir sentença declarativa, ou constitutiva negativa prejudicial, em ação rescisória, que é ação constitutiva negativa. 2.Eficácia das sentenças rescindíveis. Todas as sentenças sobre as quais se pode propor a rescisória têm eficácia (força e efeitos), se outra razão não milita. Todas as sentenças que, se não for proposta a rescisória, continuarão como estavam, sem serem nulas, pois que não foi intentada a ação no prazo preclusivo, são inimpugnáveis. A sentença proferida à revelia e sem citação inicial da parte continuará suscetível de impugnação em embargos do devedor, sem preclusão possível, porque, esta sim, não é só rescindível — é nula. Se o que foi citado e contra o qual correu, à revelia, o processo, foi citado nulamente, a sentença também é nula. Pode o nulamento citado opor-se a qualquer força ou efeito que se pretenda atribuir a tal sentença. Já vimos que todos os casos de ação rescisória supõem a impugnabilidade; porque, se fosse absoluta a invalidade de tais sentenças, dificilmente se compreenderia que o remédio processual não fosse perpétuo. Se, no fim do prazo preclusivo, nenhum remédio se concede contra a sentença, necessariamente se incolumiza o julgado que antes se eivava de rescindibilidade. Portanto, temos, a priori: rescindibilidade e sanabilidade são paralelas. Não se diga que assim se confere valor a sentenças flagrantemente contrárias aos propósitos da organização e funcionamento da justiça, como as de juiz incompetente ratione materiae. Seria esse, realmente, o caso mais grave, por faltar ou ser defeituoso o pólo da própria relação jurídica processual. 3.Prevaricação, concussão ou corrupção do juiz. (a) O Código de 1939 volveu à tradição das Ordenações Filipinas, que não consideravam a suspeição pressuposto objetivo da ação rescisória (Livro 111, Titulo 75), posto que a incluissem nos casos de sentença nula (Titulo 74). O Reg. 737, art. 680, § 1ª, e as leis processuais dos Estados Federados o haviam contemplado. No art. 185, o Código de Processo Civil de 1939 cogitara da exceção de suspeição. A exceção tinha de ser oposta nos três primeiros dias do prazo para a contestação. Salvo, entenda-se, se ignorada, ou superveniente, caso em que tinha de ser oposta até três dias após a ciência pelo interessado na exceção. A peita, caso de “particular interesse” na decisão da causa (Código de Processo Civil de 1939, art. 185, III), era

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apontada como causa de rescindibilidade (art. 798, 1, a). Mas a lei lhe atribuía ser causa de rescindibilidade, porque ao legislador pareceu mais grave a peita do que as outras causas de afastamento. Suspeição é eiva, que, ainda não sabendo dela a parte e não sendo arguida, se apaga. Mas a peita, ou, hoje, a prevaricação, a concussão ou a corrupção do juiz vicia a sentença, —por imperativo moral. O homem, em quem o Estado depositou a confiança de julgar, traiu-o, traindo a sua função, — ele, que, no seu papel, deve ser indiferente aos grandes e aos pequenos e, até, acostumar-se a ver que o ato de justiça exige dupla coragem, a de ferir a grandes, que estão em faltas, e a pequenos, que também as cometem. À questão de se saber se o preço, a que se referia a Ordenação, é a pecunia data ante sententiom ou post, em sendo árbitro ou juiz estatal o prolator, respondiam, acertadamente, os velhos juristas que a distinção não procedia, desde que se deu corrupção (D. 8. Altimaro, Tractatus de Nullitatibus sententiarum, 510). Também constituia peita: a sentença proferida em sinal de gratidão, ou ambição, ou por ódio (Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugailicie, III, 136): “idem sententia lata per gratiam, seu ambi-tionem, id est, quod index volens parti gratificari pro consequenda aliqua dignitate, vel officio, seu ob amicitiam, vel odium litigatorum, aut quod precibus devictus sententiam tulit, ipso iure teneret”. A terminologia do Código de 1973, art. 485, 1, liga-se àdo Código Penal do seu tempo (concussão, corrupção passiva, prevaricação). No fundo, em tudo isso havia peita. Há alguns pontos que merecem referência especial: não se tem de apreciar se foi justa ou injusta a sentença, nem se a parte a que serviu o juiz foi o autor ou réu, ou litisconsorte, ou assistente equiparado a litisconsorte; nem se há de exigir condenação penal nem, sequer, se havia iniciado ação penal (diferente a Ordenação Processual Civil alemã, §§ 580, 1-5, e 581, pois a chamada revisão do procedimento, cujas espécies são apontadas pelo § 580, se o fundamento é numa das cinco espécies, precisa de ter havido condenação ou se a impossibilidade da incoação e do trânsito do procedimento criminal foi devida a causas que não sejam a falta de provas (§ 581). Há prevaricação, concussão e corrupção. {b) Prevaricação designa inúmeras fraudes em que pode incorrer o julgador. Não se devem definir a priori. Entre elas, acha-se aquela mesma, de que menos culpado é ele que os tempos: o temor de perder o cargo, sob a espada de Dâmocles dos “poderosos”, a que se referiam as Ordenações, de todos os que, nos momentos de crise moral, alvoroçam os tribunais sob as medievais coerções das aposentadorias e das demissões (frases nossas em 1934, A ação rescisória, 159). Tais sentenças são rescindiveis; foram frutos do medo, que pode ir à fraude. A peita, a que se referiam os textos de 1939 e anteriores, é a prevaricação, sem o caráter estrito do suborno. (A traição, a peita do advogado, que J. A. Pimenta Bueno lia no texto das Ordenações: “ou foi dada por peita, ou preço que o juiz houve”, não mais apareceu nas leis. De lege Jerenda, seria preciso que estivesse: a peita do advogado, com o fim de perder prazos, deixar de recorrer, perder documentos, pactuar sobre quesitos, ou deixar de reinquirir testemunhas, lou-var-se em peritos também peitados, precisava ser um dos pressupostos objetivos, autônomos, da rescisória. A peita, a que ai se aludia, seria a de outras pessoas, e não só a do juiz, peita de que pode o juiz não ter sequer ciência, mas que influirá na sentença, porque se lhe alteraram os dados em que se teria de fundar). Desde que se provasse que a peita do advogado, ou de serventuários, ou pessoal dos cartórios influiu no juiz, devia ser julgada procedente a rescisão, e só assim se compreenderia que a Ordenação falasse em peita, devido à qual se deu a sentença, e em preço que o juiz houve. Não era preciso que primeiro se procedesse ao julgamento criminal do juiz. Mas a influência havia de ser subjetiva e seguramente provada. Se houve influência, sem ser consciente disso o juiz, peita não houve. Porque a lei somente aludia ao “juiz peitado”. Peita do advogado, ou de algum serventuário, que influiu na sentença, ou era peita, também, do juiz, ou, de iure condito, não bastaria como causa de rescisão. O Código de 1973, art. 485, 1, fez causas de rescindibilidade o ter-se verificado que a sentença foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz. Prevaricar vem de prae varica ri, cujo étimo está em varicem, tumor, dilatação da veia, variz, donde também procedeu uaricum. que desvia as pernas. Preva ricação é o ato, positivo ou negativo, de desviar-se do seu dever, de enganar a quem confia. Tanto prevarica o juiz que retarda, ou deixa de praticar, contra a lei, ato de eficácia necessária ou útil, ou contra a lei o pratica, qualquer que tenha sido o interesse ou o sentimento (econômico, político, moral, religioso etc.). A concussão é exigência criminosa, direta ou indireta, para si, ou para outrem, fundada em poder que se tem,

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para vantagem ilegal ou imoral. Em vez de discutir, de ir à discussão, à discussio — concutere, concutir, concussão. A corrupção é a rotura, do latim rumpere, a corruptio, o pedir ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ilegal ou imoral. Não se atenha o intérprete do art. 485, 1, a textos de direito penal, posto que possam ser elementos para o conteúdo do conceito, porém, pelo fato de se conhecer o texto penal em vigor, não se diga que basta. Se a decisão é de tribunal, ou de corpo de dois ou mais membros, basta a corrupção de um se o voto entrou na maioria vencedora, sem o qual não se comporia, ou no julgado unânime, se exigida a unanimidade, ou se o número de juizes corruptos não levaria à maioria exigida; aliter, se o voto do corrupto constou apenas da minoria. Não é de exigir-se que as circunstâncias mostrem que, se o voto do corrupto não fosse anterior e pois convincente, outros membros do corpo judicial não teriam votado como votaram. Se a ação rescisória foi proposta por ter havido prevaricação, ou corrupção do juiz, pergunta-se é preciso que tal sentença tenha sido injusta, ou houve alguma preterição. No art. 485, III, o dolo há de ter sido ‘em detrimento da parte vencida”, ou a colusão entre as partes ter tido por fim a fraude à lei. Trata-se de outro pressuposto. Prevaricação é falta do dever, é saída da linha reta, é fazer o que não deve. Se se prova que o juiz cometeu ato de solicitação, ou de recebimento, ou de exigência, ou simples promessa, prevaricou. Concussão há se alguém influi, de modo que é mais do que repercussão, devido ao con (con-cussão). Corrupção é mais do que prevaricar e talvez mesmo do que abalar, tremer, concutir. Por isso, em todas as espécies, não se vai apreciar se a sentença foi injusta. O que está em causa é a relação subjetiva, a atitude do juiz. Devemos, hoje, evitar apego à terminologia do Código de Processo Civil de 1939 (art. 798. 1: “peita”). O Código de 1973, no art. 485, 1 e II, — em vez de falar de “juiz peitado, impedido, ou incompetente ratione materiae”, como o Código de 1939, art. 798, 1, — diz caber a ação rescisória de sentença se houve “prevaricação, concussão ou corrupção do juiz”, ou se a sentença foi” proferida por juiz impedido ou ab-solutamente incompetente”. O étimo de prevaricação não nos bastaria ao conceito (uarix, variz). Nas Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 48, § 7ª, chegara-se ao que desde muito se usava: “E os Advogados que aconselharem contra nossas Ordenações, incorrerão nas penas, em que incorrem os Julgadores, que julgam contra direito expresso. E os que fizerem petição de agravo contra os autos, e não conforme a verdade, que neles se contém, ou a fizerem manifestamente contra Direito expresso, pagarão por cada petição, que assim fizerem, dois mil réis para as despesas da Relação. E outros dois mil réis pagarão quando fizerem embargos a algum despacho, e se julgar, que não são de receber. E não sejam admitidos a servir nos Ofícios, sem mostrarem como os têm pago”. No Livro II, Título 26, § 24, após se tratar da perda dos bens para o Fisco (§ 23), disse-se: “E bem assim os bens do Procurador dei Rei, prevaricou seu feito, e por cuja causa perdeu El Rei seu Direito”. Pergunta-se: a prevaricação no art. 485, 1, do Código de 1973, tem como pressuposto a má-fé? Não pensemos em figura de crime de prevaricação, nem no simples erro do juiz; a culpa para a má solução por falta ao dever de exame e de decisão justa, é elemento necessário. Não é preciso que tenha havido a peito, a que se referiu o Código anterior. A peita é plus, de modo que, se houver peita, prevaricação houve. A definição de praevaricatio está na L. 1 (Ulpiano, D., de praevciricatione, 47, 15): “O prevaricador é como o que de pé se apoia em duas partes, o que ajuda a parte contrária, traindo a própria causa E refere Labeão, que apontou como fonte o apoiar-se alguém numa e na outra parte, e mais na contrária (“quim imo ex altera”). O art. 485, 1, falou de concussão e de corrupção. A concussão no direito romano, a concuss io, era ato do funcionário que, com a simulação de ordem superior, extorquia dinheiro (L. 1, D., de concussione, 47, 13). Porém, Macro, na L. 2, foi adiante: “O juizo de concussão não é público; mas se alguém recebeu dinheiro

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porque ameaçou com a acusação de crime, pode haver juizo público em virtude dos senatus-consultus em que se submete à pena da Lei Cornélia os que houverem levado à acusação de inocentes, ou que houverem recebido dinheiro para acusar, ou não acusar, ou denunciar ou não denunciar testemunha”. Ora, hoje, havemos de entender que é concussionário quem quer que haja como juiz (ou como titular de outro cargo público) para haver proveitos, ou por tê-los auferido. O art. 485, 1, somente cogita da ação rescisória da sentença se trata de juiz ou de membro de tribunal. Não se afaste a hipótese de serem acusados algum ou todos na petição inicial da ação rescisória: se de um só se faz prova suficiente, sem atingir o quanto necessário da votação, a rescisão não ocorre. Fala-se, no art. 485, 1, de corrupção do juiz. Na Idade Média muito se confundiram a concussão e a corrupção. Ora, quem abusa da sua qualidade e da sua função, para haver proveitos ou promessa de proveitos, ou por tê-los havido, comete a concussão. Não importa de quem venham os proveitos, uma vez que há a ligação ao ato de concussão. O que se exige, na corrupção, é o pocturn sceleris, seja explicito, seja implícito, seja expresso, seja tácito, como se o juiz deu a sentença a favor de A porque o irmão de A, ou pai ou sogro de A, tinha de assinar ato de promoção com a escolha, dentre nomes um dos quais éo do juiz, ou se a A ou a algum parente ou íntimo amigo cabia nomear para algum posto o filho do juiz, ou algum parente. A corrupção pode ser ativa (o juiz foi informado pelos extraneus, ou por alguém em vez dele, do que se passaria se a sentença fosse a favor de A), ou passivo (foi o juiz, ou alguém por ele, que informou ou disse o que se passaria). Mas a distinção é sem relevância. O que importa é que tenha havido a causação entre o proferimento da sentença e o que ocorreu, ou teria de ocorrer. Frisemos que a ligação pode ter existido mesmo se o ato, que o juiz esperou e o levou à decisão, não veio a realizar-se. Outro pressuposto para a rescindibilidade é o de ter havido impedimento do juiz, sem que ele se tivesse afastado, ou fosse afastado. O Código de Processo Civil, no art. 485,1, 1ª parte, só se refere ao impedimento, e não à suspeição. Os arts. 134 e 136 são invocáveis; não o art. 135. 4.Impedimento do juiz prolotor do sentença correr impedimento é conceito de lei de organização judiciária, — de direito judiciario material; não de processo. As regras jurídicas a propósito de impedimento escapam às regras jurídicas sobre suspeição, posto que se possa alegar o impedimento com o procedimento da exceção de suspeição (sobre isso, cf. Código de Processo Civil, arts. 134, 135, 304, 312-314). As suspeições dos juizes são apenas as que constam do art. 135; os impedimentos são fixados pela lei do juiz (direito judiciário material), mas o Código de Processo Civil inseriu regras jurídicas. Por exemplo, o de ter figurado na causa como advogado, árbitro ou perito, ou órgão do Ministério Público. Não se falou da função de escrivão, o que estava no Aviso nº 146, de 14 de março de 1837. A incompatibilidade supõe serem contemporâneas as funções; no impedimento, dispensa-se tal elemento de serem simultâneas. A sentença proferida pelo juiz que era suspeito não é nula, nem rescindível; a sentença proferida pelo juiz que era impedido é eivada de rescindibilidade, afastável pela preclusão da pretensão à rescisão (art. 495). Expirado o prazo, a sentença é inatacável. É preciso ter-se toda atenção para a preclusão da exceção e a persistência da causa de rescindibilidade. Ainda que se haja deixado de alegar, dentro do prazo, no processo, há rescindibilidade da sentença. e o mesmo passa-se quanto à exceção de incompetência ratione moteriae ou pela hierarquia (incompetência absoluta) como exceção, a atacabilidade preclui; como causa de rescisão, persiste, somente precluíndo após o biênio. As incompatibilidades em tribunais tratam-se como impedimentos, porque o são; e não como suspeições (e.g., desembargadores parentes ou afins em linha reta ou colateral até o segundo grau inclusive). A fixação dos graus de parentesco para as incompatibilidades e impedimentos pertence ao direito judiciário material ou lei de organização judiciária: a dos graus de parentesco para as suspeições, à lei processual (art. 135). Mas o Código de Processo Civil de 1973, arts. 134 e 136, chamou a si aquele assunto. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 26 de setembro de 1946 (RF 110/411), apreciou a suspeição a despeito de ter havido apreciação, em grau de jurisdição superior, da suspeição, negando-a. Seria grave estender-se a doutrina às outras exceções. Se o juiz se torna impedido, e.g., em vidude de casamento posterior à propositura da ação, a sentença que proferiu é rescindível (2ª Turma do Tribunal de Apelação do Espírito Santo, 28 de agosto de 1946, RTi, 1, 327).

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Se o casamento já estava previsto, por ser notório o noivado, ou mesmo anunciado por meio de convites ou publicações, {há impedimento que leve à rescindibilidade da sentença? A resposta é negativa porque não há, aí, conforme os arts. 134 e 136 do Código de Processo Civil, impedimento, nem houve prevaricação, concussão ou corrupção (o que pode ter havido, com outros elementos para ser rescindível a sentença). Teria havido suspeição, por se tratar de amizade íntima, que o noivado supõe (art. 135, 1), ou por ser interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes (art. 135. V). Mas a suspeição não gera rescindibilidade. Poderia ser oposta, tempestivamente, a exceção. Aliás, a suspeição fica afastada se o juiz profere a sentença contra a noiva, porque aí falta a “parcialidade do juiz” a que se refere o art. 135, pr. Uma vez que ainda não se celebrou o casamento, o art. 135, 1, sobre suspeição do amigo intimo, é que se pode invocar, e não o art. 135, II, que já se refere a cônjuge do juiz, ou parentes do juiz ou do seu cônjuge, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau. Se na composição do tribunal não entraram tantos juizes quantos eram por lei exigidos, ou no julgamento tomou parte quem era impedido, há rescindibilidade da sentença, ali, por infração de lei, e, aqui, com fundamento no art. 485, II. Cf. 2ª Grupo de Câmaras Civis do Tribunal de Apelação de São Paulo, 30 de abril de 1946 (RT 16 5/240). 5.Incompetência absoluto do juízo. A incompetência do juízo ratione materice ou por hierarquia é causa de rescindibilidade da sentença. Cumpre, porém, que se atenda a três conceitos que aí se juntam (incompetência do juizo, ratione materiae ou pela hierarquia), para se limitar pelo segundo e pelo terceiro conceito o primeiro. Na expressão “incompetência do juízo” também há dois conceitos, um positivo, “juizo’, e outro negativo “incompetencia Para que haja incompetência do juízo, é de mister que haja “juízo”, e não haja “competência”. Concretamente: que um juízo se haja obrigado à prestação jurisdicional, ou a tenha entregue, mas que, para uma ou outra coisa, houvesse sido incompetente. Não é pressuposto objetivo da ação rescisória a sentença de quem não é juiz, ou deixara de o ser (o que vale o mesmo), pois tal sentença não é sentença; pelo fato da inexistência do juiz, é inexistente. Também não no é a sentença proferida pelo juiz, no seu “jornal íntimo”, ou publicada em livro, ou revista, e não inserta nos autos; porque, em tais casos, a sentença não existiu. Na sentença, cumpre atender-se a que possa ser sentença por parte de quem a deu e substancialmente (material e formalmente), como ato jurídico processual. Se não a deu juiz, nem a lei a considera sentença (por exemplo, deixou-a o prolator em casa, ou a perdeu antes de, no prazo, entregá-la, escreveu-a e não a assinou, ou sobrevindo-lhe a morte), então sentença não há. As sentenças, de que se trata, não precisam ser rescindidas, porque não são. O que não é não tem necessidade de ser desfeito. Não se lhes pode atribuir eficácia, nem preclusão, nem, a fortiori, coisa julgada. Rescindem-sentenças que sejam, — as que precisam de rescisão para que deixem de ser”. No caso particular da incompetência absoluta de juízo, nulidade ex defectu potestaus, o paralelismo é absoluto: se a sentença é, mas o defeito de incompetência não se abluiu, cabe a rescisória para “rescindila”, isto é, fazê-la deixar de ser. Cinde-se, coda-se o que a sentença, que é, estabeleceu. Após o corte, a cisão, a sentença não é mais, deixou de ser sentença. Na Ordenação Processual Civil alemã, o § 579, 1-111, trata dos pressupostos para a ação de nulidade da sentença (note-se bem: ação de nulidade, Nichtigkeitsklage) se o tribunal não estava legalmente constituído, ou se interveio na votação da sentença algum juiz excluido pela lei para o exercício da função judicial, salvo se isso foi alegado em forma de recusa ou essa foi repelida, ou se interveio na resolução algum juiz contra o qual se alegou suspeita de parcialidade que foi acolhida. Assim, no direito processual civil alemão, foi concebida a ação de nulidade, e não a ação rescisória, que há no direito brasileiro. Aqueles atos judiciais, em vez de serem rescindíveis, são, no direito alemão, nulos, mas dependentes de ação. No sistema juridico brasileiro, há a preclusão no biênio para que se rescinda a sentença trânsita em julgado; portanto, se só após os dois anos se verifica a prevaricação ou a concussão. ou a corrupção do juiz, o seu próprio impedimento ou incompetência absoluta, a parte ou a pessoa juridicamente interessada, ou o Ministério Público, não mais pode pedir a rescisão da sentença. A despeito de se pensar no começo do prazo para a ação rescisória depois da decisão do juiz penal, trânsita em julgado, o que se impôs para a interpretação da regra jurídica sobre o prazo preclusivo (hoje, art. 495), não se pode buscar em direito estrangeiro, ou em doutrina

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estrangeira, solução que busque a data da descoberta como a do inicio do prazo preclusivo. Seria absurdo dizer-se que a incompetência absoluta e a competência ratione materiae são sinônimas sem razão, Gabriel de Rezende Filho, Curso de Direito Processual Civil, 1, 123 s., e Luis Eulálio de Bueno Vidigal, Comentários ao Código de Processo Civil, VI, 74, que se deixaram levar por E. Glasson, (Traitá theórique et pratique d’Organisation judiciaire de Compétence et de Procédure Civile, 3ª ed., 674). A competência rotiane materiae entra no conceito de incompetência absoluta, de que outro elemento é a competência pela hierarquia judiciária. Qualquer tribunal é absolutamente incompetente para julgar, por exemplo, ação da competência originária do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, espécies em que por vezes estão os dois elementos (a competência ratione materiae e a competência pela hierarquia). Nas leis de organização ju-diciária a distribuição pelas matérias depende dos critérios que se adotaram, respeitado, é claro, o que se estabelece na Constituição para as justiças federais. O Código de Processo Civil de 1973 foi feliz em circunscrever a competência absoluta à ratiane materiae e à competência pela hierarquia, em vez de reduzi-la à competência conforme a espécie de Justiça (Justiça Civil, Justiça Criminal, Justiça do Trabalho, Justiça Militar, Justiça Eleitoral). (a) A incompetência a que se refere a lei processual, como fundamento para a ação rescisória, é só a que resulta de regra jurídica sobre incompetência absoluta. Trazer para aqui outros conceitos, firmados para os processos vulgares, e não para os processos sobre sentenças, constitui, sempre, fonte de graves equivocos. Demais, cada lei processual tem ou pode ter o seu sistema, ou por entender que as regras jurídicas da competência sejam absolutas, ou por facilitar a sanação, ou mais prestigiar o direito objetivo da competência ratione materiae. O Código de Processo Civil de 1939, com a referência à incompetência ratione materiae, seguiu a trilha do revogado Código de Processo Civil do Paraná, art. 933, 1ª. O Código de Processo Civil de 1973, art. 485,11, 2ª parte, fala de juiz “absolutamente incompetente”. (b) A referência do art. 485, II, ao impedimento e à incompetência absoluta do juiz, como pressupostos suficientes da rescindibilidade da sentença, não é regra jurídica restringente dos outros pressupostos suficientes (ofensa à coisa julgada, violação de direito em tese, falsidade da prova). As regras jurídicas do art. 485,1. II, 111, são à parte, e dilatantes dos pressupostos da rescindibilidade. Admitem a rescisão a propósito de quaestio-nes Jacti, que são a da prevaricação, concussão, ou corrupção do juiz, a do impedimento, a da incompetência absoluta do juiz, civil, não: tem o prazo preclusivo. Findo o prazo, não mais se poderia atacar a sentença do juízo civil que aplicou pena, invadindo o campo do direito penal e do direito processual penal. Daí a conclusão a que chegamos há quase meio século. Juízo civil que profere sentença criminal violou o direito processual civil e o direito processual penal. Se a violação fosse pelo juiz criminal haveria rescindibilidade, sem qualquer prazo, antes ou após a extinção da pena. Mas propor-se revisão criminal no juízo civil seria absurdo. A sentença não só foi nula; não existiu, nem existe. Juízo criminal que sentencia como se fosse juízo do civel não só lançou sentença revisível, o que a faria dependente da propositura da ação de revisão: tal sentença é inexistente, e não só nula, nem a fortiori, revisível. O mesmo raciocínio que acima fizemos sobre a ação de jurisdição federal julgada no tribunal local, deve fazer-se quanto à de jurisdição local julgada no tribunal federal; não quanto à de jurisdição local A julgada pela justiça local B. A distinção a que por vezes nos reportamos entre sentença inexistente, sentença nula e sentença rescindível é de importância, teórica e praticamente, capital. Basta considerar-se que as sentenças só rescindíveis, passados os dois anos do art. 495 do Código de Processo Civil, não mais podem ser atacadas, o que supõe que as violações inapagadas com a sentença rescindível e a preclusão se apagam com o decurso legal. A processualística contemporânea esclareceu perfeitamente tais pontos Alguns do nossos praxistas chamaram a atenção para a diferença. As Ordenações, em vez de serem interpretadas com tal critério, foram subordinadas a estudos rápidos, muito à flor. As regras jurídicas sobre a legitimação ad causam (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 14 de dezembro de 1948, RT128/67) e sobre legitimação processual podem ser “disposição literal’, no sentido do art. 485, V. A referência do art. 485, II, V parte, à incompetência absoluta não exclui a rescindibilidade das sentenças que

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violem regras jurídicas sobre a competência (e.g., sobre competência ratione Ioci, Tribunal de Justiça do Pará, 25 de abril de 1951, TJP 1951/66). A sentença em processo em que se deu infração de regra jurídica sobre competência ratione valoris não ê rescindível (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 18 de outubro de 1945, i 29/182), salvo se a espécie cabe no art. 485, V. A sentença rescindível, por ter havido incompetência ratione materiae ou pela hierarquia, produz os seus efeitos (Supremo Tribunal Federal, 29 de agosto de 1945, AJ 78/143) e, findo o prazo preclusivo para a sua propositura, não mais se pode atacar. As outras causas de incompetência não operam após o trânsito em julgado, ainda que se trate de incompetência mtione /oci (Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação da Bahia, 20 de dezembro de 1945, RCJB 72/221). Cumpre, porém, observar-se que as regras jurídicas sobre competência interestatal (e.g., competente era o juiz brasileiro, e não o francês ou o alemão) não são rationes loci, mas sim ratione materíae. Finalmente, o que concerne ao juiz e não cabe no art. 485, II, 2ª parte, do Código de Processo Civil, de modo algum fica afastado como pressuposto de rescindibilidade da decisão se houve ofensa a direito em tese, isto é, se é possível invocar-se o art. 485, V. Isso é de grande relevância no tocante à incompetência do juiz: se não houve ofensa a direito tético e o caso é de incompetência ratione materiae, ou pela hierarquia, indu-bitavelmente o art. 485, II, 2ª parte, incide; mas pode o juiz não ser incompetente ratione Ioci, ou não ser incompetente com outro fundamento, e ter havido infração da lei, por se reputar, in casu, incidente alguma regra jurídica sobre competência ratione loci, ou outra, com infração do direito em tese, inclusive por má interpretação da regra jurídica. A incompetência absoluta é a competência ratione materiae ou a incompetência pela hierarquia. As outras são rela tivas: se não apresentada, tempestivamente, a exceção, desaparece o que daria ensejo à invalidade e a ineficácia (arts. 112 e 311). A referência quanto à hierarquia está nos arts. 87, 2ª parte, e 111. 6.Dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida do Dolo está, no art. 485, III do Código de 1973, no sentido de ato ou omissão em que não há apenas culpa: é direção da vontade para contrariar a direito. No suporte fático, estão o ato, positivo ou negativo, a contrariedade a direito e a direção de vontade que liga aquele a essa. O dolo da parte vencedora faz rescindível a sentença porque a parte vencedora infringiu, com a prática ou com a falta do ato, o seu dever de lealdade e de boa-fé e, além disso, teve por fito prejudicar a parte vencida. Se, por exemplo, a parte vencedora obstou a prática de ato processual, ou mesmo extraprocessual, para que não produzisse prova a parte vencida, o que deu causa à desfavorabilidade da sentença, houve dolo. Se não houve relação causal entre ato ou a omissão dolosa e a desfavorabilidade da sentença, não está formado o pressuposto. Se o vencedor sabia que a prova era falsa, a causa de rescindibilidade não pode só ser a do art. 485, III, mas também a do art. 485, VI. O que importa frisar-se é que não se busca, no art. 485, VI, o elemento subjetivo, que é dolo da parte vencedora, pois basta a falsidade da prova. Na espécie do art. 485, III, o que é necessário para a rescindibilidade é que, se não tivesse havido o dolo, a sentença seria diferente (favorável à outra parte), mesmo só em algum ponto ou em alguns pontos. O dolo pode ser da parte vencedora, ou de seu procurador, ou advogado, e — em se tratando de pessoa jurídica — de órgão ou de representante, ou de advogado. O que importa é que tenha havido poderes de presentação ou de representação, outorgados pela parte vencedora (cf. Nicola Giudiceandrea, Le Impugnazioni civili, 11, 408), ou ex lege. Dir-se-á que o art. 485, III, não se referiu a procurador ou a advogado. Só aludiu à parte vencedora. Ora, quem atua no processo, salvo se o autor ou o réu é advogado em causa própria (Código de Processo Civil, art. 36, V parte), é o advogado. Talvez entre a parte e o advogado esteja procurador, pessoa física ou jurídica, com os poderes suficientes. Seria de repelir-se que a rescisão somente pudesse pedida se o dolo foi do autor, que venceu, ou do réu, que venceu, e nunca se partiu do procurador ou do advogado. Bem assim, a colusão para fazer rescindível a sentença tivesse de ser entre autor e réu, e não entre procuradores ou advogados. Sempre que os procuradores. ou os advogados, com fim de fraude à lei, se concluíam, há a rescindibilidade da sentença e pode compor-se suficientemente suporte fático de responsabilidade solidária do advogado e cliente (Lei n2 8.906, de 4 de julho de 1994, art. 32, parágrafo único). Se se trata de pessoa jurídica e de pessoa física ou de pessoas jurídicas, o advogado, ou o procurador e o advogado da pessoa física a representam, o advogado, ou o

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procurador e o advogado da pessoa jurídica a representam, mas o órgão é que a presenta, de modo que a colusão pode ser entre a parte ou seus procuradores ou advogados, ou órgãos da outra parte, e as outras partes, ou seus procuradores, advogados, ou órgãos. O procurador do autor, ou do réu, pode conluiar-se com o advogado, ou o órgão da outra parte, ou com a própria parte contrária. Por exemplo: C, procurador do autor, A entra em colusão com o réu B, ou com D, procurador, ou com B, advogado do réu B, ou com o próprio réu, ou o mesmo se passa com relação a A, D ou B. A pessoa jurídica pode ter orgão com dois ou mais membros, mas aí a colusão tem de ser com a presentação por quem, orgão individual ou coletivo, tem poderes suficientes. Todavia, a colusão pode ser tramada por órgão, ou representante, ou advogado, mas mediante a atividade de outrem, que apenas executa o que é necessário à fraus legis. No art. 485, III, 1ª parte, há dolo unilateral: do vencedor contra o vencido. Se bilateral, não há o pressuposto a que o texto se refere. Não se precisa provar que só após a sentença se descobriu, porque a lei não fala de descobrimento do dolo, ou de obtenção posterior de prova (cf. art. 485, VII). Se foi descoberta prova documental, cuja existência a parte ignorava, ou de que não pode fazer uso, e houve dolo da parte vencedora, dois são os pressupostos para a propositura da ação rescisória. Se o dolo foi bilateral e contra terceiro, inclusive contra o Estado, não se pode invocar o art. 485, 111, 1ª parte (cf. A. Guarnieri Citati, II Dolo processuale bilaterale, 33); o que se pode perfazer é a colusão para fraudar a lei (art. 485, III, 2ª parte). É de exigir-se. na espécie do art. 485, 111, ter havido a causalidade entre o dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou a colusão das partes para fraudar a lei, e a sentença do juiz ou o acórdão. Ali, o vencedor procedeu sem lealdade e boa-fé (cf. art. 14,11), violando principio que lhe deu o dever de lealdade; aqui, o próprio juiz, ou tribunal, tinha de proferir a sentença, ou o julgado coletivo, obstativo aos objetivos das partes (art. 129). A discussão que ocorreu na doutrina italiana sobre ser possível a reuocazione da sentença mesmo se o dolo foi bilateral (pela afirmativa, F. G. Lipari, II Dolo processuale, 36 5.; Appunti sul dolo processuale bilaterale, Rivista di Diritto Processuale Civile, IV, 1928, 285-304; contra, Compagnone, La Reuocazfone dei giudicati dviii, 2ª ed., 85; Gargiulo, II Codice di Procedura Civile, 2ª ed., III, 360 s.; La Rosa, La Revocazione delia sentenza ciuile, 86). Havia quem admitisse a “revocazione’ se há” collusione che due piO litigante formasero per rovinare un terzo” (Borsari, II Codice italiano di Procedura Civile, 3ª ed., 86). Com o Código de Processo Civil italiano de 1940, continuou a falta de texto especial que alguns juristas sugeriam. No Código de Processo Civil brasileiro de 1973, art. 485, 111, 1ª parte, falou-se de dolo da parte vencedora em detrimento da outra parte, e, na 2ª parte, de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei. Advirta-se que, a despeito do art. 485, III, 1ª parte, só se falou de dolo da parte vencedora, em detrimento da outra parte, há a regra jurídica do art. 487,11, que explicitamente fez legitimado ativo para a ação rescisória “o terceiro juridi-camente interessado’. Se há o interesse jurídico do terceiro, não se pode afastar a sua legitimação ativa, nas espécies do art. 485, III, nem nas outras espécies. Para a propositura da ação rescisória com fundamento no art. 485, III, são legitimados ativos a parte no processo, que nâo se inseriu na colusão para fraudar a lei (e.g., foram dois os autores, A e B, e uma pessoa ré, C, tendo sido a colusão entra A e C, o que fez proponível por E a ação rescisória), o terceiro interessado e o Ministério Público, a respeito do qual há regra jurídica especial no art. 487,111: “O Ministério Público; b) quando a sentença é o efeito de colusão das partes, a fim de fraudar a lei”. Não se diga que o dolo cometido por um dos litigantes ou a colusão de partes não pode ser alegado pela parte litisconsode que não cometeu dolo, ou não esteve na colusão. O dolo ou a participação em fraude à lei em que não esteve o autor E, ou o réu D, não pode fazê-los réus na ação rescisória (cf. E. Glasson, Traité théorique et pratique d’Organization judiciaire, de Compétence et de Procédure Civile, 111, 3ª ed., 417 s.). Dolo é a direção da vontade, aí vontade do vencedor, para contrariar direito. Pode ser que se trate de ato imoral, sem que a parte vencedora o haja querido para detrimento da outra parte, o que raramente acontece se foi causa da vitória, total ou parcial, no litígio. Não se pode invocar o art. 485, III, se o vencedor ignorava a ligação entre o seu ato, ou a sua omissão, e a favorabilidade da sentença (cf. Richard Weyl, System der Verschuldensbegriffe, 400). E da máxima importância atender-se a que a contrariedade a direito, elemento do suporte fático, existe, quer a pessoa ignore, quer não, a regra jurídica, que há de incidir ou incidiu, porque a incidência das regras jurídicas se opera em determinação absoluta; portanto, infalível. Falível é a aplicação.

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Se a decisão foi favorável em parte a um dos figurantes e em parte ao outro ou a outros, cada um dos vencedores pode alegar o dolo de quem parcialmente venceu. Cada um pode propor a ação rescisória. A colusâo entre as partes em fraude à lei é o acordo, ou concordância entre as partes, para que, com o processo, se consiga o que a lei não lhe permitiria, ou não permitia o que tem por base simulação, ou outro ato que fraude a lei. No art. 129, o Código de Processo Civil já previu tais hipóteses; daí estatuir, para a missão do juiz: “Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que o autor e réu serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes”. No art. 485, III, 2ª parte, fala-se de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei. Não é preciso que só a utilização do processo pudesse dar às partes o atingimento do fim que elas querem; basta que tenha sido o meio empregado. Nem é de exigir-se que o que se colima sela de interesse das duas partes, — basta que, sendo o interesse de uma (a fartiori, das duas partes), haja a concordância. O art. 485,111, 2ª parte, deu a solução adequada, porque, se ocorreu o que se prevê no art. 129 e o juiz não proferiu a sentença que obstasse aos objetivos das partes, estaria trânsita em julgado a que se publicou, e só a ação rescisória defenderia a própria lei que se fraudou. Se houve conluio, ajuste, entre as partes, inclusive o Ministério Público, quando presenta ou quando representa, ou entendimento entre elas para fraus legis, há rescindibilidade da sentença. Tem-se de alegar e provar. Aí, se há três ou mais partes e o conluio não foi entre todas, há legitimação ativa da parte ou das partes que foram atingidas em seus direitos pela colusão entre as outras. O terceiro juridicamente interessado também é legitimado. O elemento da fraus legis é essencial; mas há fraude à lei mesmo se a combinação dolosa foi a respeito de fatos que seriam elementos de suporte fático de alguma regra jurídica. A colusão, de que se cogita no art. 485, III, 2ª parte, éentre as partes, mas “partes” aí está como “quaisquer pessoas que sejam partes, ou equiparadas às partes”. Pergunta-se: se o procurador, ou advogado da parte A entra em acordo com a parte adversária, B, com prejuízo para a parte representada, ação rescisória? No direito estrangeiro houve opinião que não, como Ulpiano (L. 145, D., de diuersis regulis luris antiqul, 50, 17: Nemo videtur fraudare eos, qul sciunt et consentiunt), para dizer que, ao contrário, a colusão supõe acordo recíproco para fraudar terceiro estranho ao juízo, ou se parte não haja participado do dolo (“nec nunquam voluntibus dolus infetur, cf. L. 34, C., de transactionibus, 2, 4). Outra opinião sustentou que, se uma das partes foi vitima da colusão, haveria fundamento. Mas tudo isso, a despeito da herança recente do que se estabelece no art. 485, 111, 2ª parte, não tem cabimento para discussão no direito brasileiro. O dolo, de que se fala no art. 485,111, 1ª parte, é o que ocorreu em detrimento da parte vencida. A colusão, que é assunto do art. 485, III, 2ª parte, ê com ofensa à lei, ao Direito, e pois ao Estado. Não importa se a parte não conhecia o que estava fazendo o seu procurador com ou sem poderes especiais, ou seu advogado, com tais poderes. O que a parte pode alegar, na falta de poderes, é a ofensa à lei (art. 485, V). Portanto, não nos interessa o que se passou no direito romano. Outrossim, o trato igual do dolo, a que se refere o art. 485, III, 1ª parte, e a colusão que a 2ª parte regula seria contra explícitas regras jurídicas do art. 485 (“em detrimento da parte contrária”; “a fim de fraudar a lei”). Não poderíamos invocar doutrina estrangeira, num texto de Bargaglio (De Dolo, 360) para quem, para ser “nuíla’ a colusão, bastaria ter ocorrido. Quanto aos pressupostos de rescindibilidade que constam do art. 485, VI e VII, de modo nenhum supõem dolo. O falso distingue-se, evidentemente, do dolo. Na falsidade pode ter havido dolo, má-fé, ou culpa de parte, e pode não ter. Terceira pessoa pode ter dado à parte A o documento falso e ela, crendo-o verdadeiro, produziu-o como prova. Não entra em consideração o consilium fraudis. Uma das partes pode juntar documento, alegando que ele é falso, e não no ser, sem que isso obste o julgamento que nele se firme, e tal sentença não é rescindível com base no art. 485. VI. Se a sentença resultou de colusão das partes, a fim de fraudar a lei, legitimado ativo à ação rescisória é o Ministério Público, o que está explícito no Código de Processo Civil, art. 487, III, b), porém não se diga que só ele; se houve pluralidade das partes e uma ou algumas não colaboraram para a fraus legis, é legitimada ou são legitimadas à propositura da ação rescisória. Não se diga, portanto, que, ai, só o Ministério Público é o le-gitimado ativo (sem razão, por influência de Francesco Carnelutti, Studi di Diritto Processuale, III, 118, — Luis Eulálio de Bueno Vidigal, Comentários ao Código de Processo Civil, VI, 188). Só não têm legitimação ativa as partes que concluiaram. Foi erro de Francesco Carnelutti (Sistema di Diritto Pracessuale Civile, 1, 284) reputar a colusão das partes,

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para fraudar a lei, causa de inexistência (a sentença não existiria). Aí, o que ocorre não é, sequer, nulidade, mas sim rescindibilidade. A sentença de que cogita o art. 485, III, 2ª parte, que supõe conluio das partes e fraus legis, é apenas rescindível. Há a legitimação do terceiro juridicamente interessado e do Ministério Público, sem que se exclua, no caso de pluralidade de autores, ou de réus, a legitimação ativa do autor ou do réu que não se inseriu na colusão. Findo o prazo preclusivo para a ação rescisória, a sentença faz-se inatacável. De modo algum se entenda que a colusão das partes, para fraudar a lei, se tudo só se passou dentro do prazo, possa ser regida pelo direito material, a fim de se invocar o prazo prescripcional. 7. Ofensa à coisa julgada. Passemos à ofensa à coisa julgada (Código de Processo Civil, art. 485, IV). Aqui, a coisa julgada é terial ou formal: concerne a outra ação cuja sentença transitara em julgado, e não mais poderia qualquer juiz decidir sobre o mesmo assunto. O juiz não mais pode julgar o que foi julgado, quer para dar a mesma solução, quer para dar outra. O que, noutro processo, se pode dizer é que a questão já fora julgada por outro processo. Mesmo se houve preliminar, que se insere na sentença (e.g., C é filho de A e 8), a ofensa pode ser àquela. A propósito, é conveniente atender-se a que, conforme o art. 469, III, não faz coisa julgada a apreciação de questão prejudicial, que só incidentemente se decidiu no processo. Se a sentença estrangeira já fora homologada no Brasil e transitara em julgado, nenhuma sentença, em processo pendente no Brasil que ainda não transitou em julgado, se pode livrar, após o trânsito em julgado à rescindibilidade. Ofendeu a auctoritos rei iudicata. Se a sentença estrangeira foi homologada depois do trânsito em julgado da sentença proferida no Brasil, rescindível é a sentença homologatória (a sentença estrangeira, essa, não é atingida; apenas perdeu a homologação e, pois, a eficácia perante o direito brasileiro). Adolf Merkl, (Die Lehre von der Rechtkraft, Wien, 1923, 171) pretendeu, como disse, livrar o conceito de res judicata dos seus postulados ético-políticos e de bases de direito natural: para ele, a expressão res judicata, força de lei, é contradição in adiecto, “monstruosidade terminológica’, porque aí apenas se cai na tautologia de se dizer direito o que é direito. Sem razão; a atribuição de coisa julgada póe acima da ordem jurídica, das regras jurídicas, o interesse social de paz, de fim à discussão, mesmo se foi injusta a decisão. Por isso não podemos acolher o raciocínio de Adolf Merkl. Temos de reconhecer que o acolhimento da coisa julgada formal e a da coisa julgada material foi acertadíssimo. Seria fonte de perturbações lamentáveis que se pudesse, sem prazo preclusivo. volver a discutir o que foi julgado sem mais haver recurso, mesmo em outro processo. Salvo a propósito da revisão criminal que não se ligou a prazo, pois pode ser proposta antes ou após a extinção da pena. (a) A coisa julgada é fato formal; o trânsito em julgado, especificamente processual, — dominado, no plano supra-estatal, pelo direito do Estado do juiz. Supõe, portanto, a distribuição supra-estatal ou interestatal da competência para legislar sobre direito processual, competência, nos nossos dias, ligada à competência para a atividade jurisdicional. Na processualística contemporânea, a coisa julgada constitui problema central. Quer se lhe dê a interpretação teleológica. como Wilhelm Sauer, ou a evolucionista, como James Coldschmidt, aí é que vão ter os diferentes fatos processuais. Certamente, a função do processo é a realização do direito objetivo, inclusive do próprio direito processual, e a res iudicata, não constituindo princípio necessário, depende de variações de lugar e de tempo. Isso não lhe tira a importância teórica e prática. Mais uma vez convém frisar-se a) que a ação rescisória ataca a coisa julgada formal; b) um dos pressupostos é ter a sentença, que se quer rescindir, violada a coisa julgada material de outra sentença, ou apenas a coisa julgada formal. As Ordenações Afonsinas, Livro III, Titulo 78, já cominavam rescindibilidade da sentença “contra outra sentença já dada”,texto que passou às Ordenações Manuelinas, Titulo 60, e às Pilipinas, Título 75. “Rescindida”, melhor seria; mas “revogada” já exprimia o que se quisera dizer, e exemplos havia de “revocare”. em vez de “rescindere”. O Reg. 737, de 25 de novembro de 1850, não mencionou a causa de rescisão, que agora estudamos. Constituíra um dos casos de violação de direito expresso. Tal atitude era censurável. Primeiro, porque se a hipótese houvesse de sub-sumir na de violação do ius in thesi, todos os outros também seriam subsumíveis. Segundo, não é certo que a infração da coisa julgada e os outros pressupostos sempre constituíam ofensa ao direito em tese. Quer se trate de pressupostos ligados às partes ou ao juiz, quer às

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formalidades processuais, quer à res iudicata, o direito que se posterga, que se viola não é in thesi, mas in hypothesi. Não há como subsumir o pressuposto do atentado àcoisa julgada no da violação do direito expresso, ou in thesz. Vamos dar uma prova do inconveniente de se não mencionar, entre os pressupostos objetivos da rescisória, a violação da coisa julgada. Propôs-se, no Distrito Federal, ação rescisória com fundamento nas Ordenações Filipinas, Livro III, Titulo 75, por ser contra a res iudicata, na espécie, a sentença rescindenda. As Câmaras Civeis Reunidas decidiram que o direito reinícola não estava em vigor, pois o Decreto nº 763, de 19 de setembro de 1890, mandara aplicar ao processo civil o Reg. 737, de 1850, e concluiu por entender que exceção de coisa julgada, e não ação rescisória, protegeria o interessado. Tambêm não falavam de tal pressuposto o Código de Processo Civil do Rio de Janeiro, art. 2.276, e o da Bahia, art. 1.361. Explícitos, o do Distrito Federal, art. 302, V, o de São Paulo, art. 348, IV, o de Minas Gerais, art. 173, 5% o do Rio Grande do Sul, art. 1.054, c), o de Pernambuco, art. 162, 5, e o de Santa Catarina, art. 1.844, V. Estamos em campo em que toda clareza e toda precisão são indispensáveis. Por isso mesmo, andaram bem o Código de Processo do Distrito Federal, art. 302, V, e o de São Paulo, art. 348, IV, o de Minas Gerais, art. 173, 59, o do Maranhão, art. 1.032, o de Pernambuco, art. 162, 5, o de Santa Catarina, art, 1.844, V, e o do Rio Grande do Sul, art. 1.054, c), em seguirem o exemplo do século XIII, que por sua vez foi o romano. (b) Se há ofensa à coisa julgada, cabe a ação rescisória. Naturalmente, tem-se de precisar sobre quais pontos se operou a preclusão; e aí, tratando-se de sentenças declarativas ou de sentenças com efeito declarativo (de coisa julgada material), intervém a questão do motivo, que é, em verdade, argumento, e do motivo que é decisão (“considerando que constitui fundamento indispensável”, Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 2 de fevereiro de 1942, DJ de 2 de julho de 1778; aliter, se não épremissa necessária, Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 17 de abril de 1941, Ad 59/480). A coisa julgada, a que se refere o art. 485, IV, é a coisa julgada formal. Ou, melhor, basta que ofendida tenha sido a coisa julgada formal. Posto que o mais comum seja tratar-se de infração da coisa julgada material, de que aquela é um dos elementos. Se houve desrespeito à coisa julgada formal, tem-se de exercer a pretensão à rescisão (ação rescisória), não mais a pretensão ao recurso extraordinário. Se, pendente a segunda lide, a propósito de coisa julgada formal ou material, ocorreu um dos pressupostos do art. 102, III, da Constituição de 1988, há pretensão à correção em recurso extraordinário, o que permite que se evite o trânsito em julgado da decisão na segunda ação, isto é, repetida a exceção de coisa julgada (cf. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 21 de abril de 1950, RF 132/118). A decisão das Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 22 de fevereiro de 1946 (RF 107/93, RT 160/779), que julgou incompetente o tribunal local para a rescisão de acórdão seu, por ter havido recurso para o Supremo Tribunal Federal, que dele não conheceu, ofendeu a lei. Outro absurdo está na decisão das Câmaras Civis, a 22 de março de 1946 (RF 108/321), ao negarem cognição à ação rescisória de acórdãos do tribunal local, tendo o Supremo Tribunal Federal confirmado o despacho denegatório do Presidente do Tribunal. Entendiam que se devia, antes, rescindir a decisão do Supremo Tribunal Federal. Mas ja decisão foi de denegação! A ação rescisória para atacar esse julgado seria a ação rescisória em que se discutisse a legalidade do julgado do Supremo Tribunal Federal; não a em que, reconhecendo-se o trânsito em julgado após o tempo da publicação do acórdão da justiça local, se alega haver na decisão um dos pressupostos para a interposição do recurso extraordinário. (c) Quando o autor deduz em juízo o bem da vida, para que o juiz decida, entregando-lhe prestação jurisdicional cujo conteúdo normal é alternativo (“sim” ou “não”), escolhido, pelo juiz, esse bem, — a res ludicium deducta, torna-se, com a entrega, res iudicata. O conceito é esse, e continua de ser esse: “Res iudicata dicitur, quae finem controversiaram pronuntiatione iudicis accipt: quod vel condemnatione vel absolutione contingit”. (L. 1, D., de re iudicatci et de effectu sententiarum et de interlocutionibus, 42, 1). O condenar e o absolver traduzem residuos de tempos ainda mais remotos. Tendo por fim à controvérsia, com a coisa julgada, o espírito romano atribuiu ao estado de res ludicata ceda eficácia de força inibente, impedindo a multiplicação das lides, com o risco de contradição entre sentenças: “ne aliter modus litium multiplicatus summam atque inexplicabilem faciat difficultatem, maxime si diversa pronuntiarentur”. (L. 6, D., de exceptione rei iudicatoe, 44, 2). A essa sinceridade romana se contrapuseram, depois, interpretações diferentes de coisa julgada, como a presunção de verdade, o ato de santidade do Estado, a lei concreta, a vontade da lei no caso concreto e outras justificações econômico-políticas. Observe-se, porém, que o direito brasileiro faz irrescindível, após o biênio, a sentença infratora, o que a

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sobrepôe, portanto à outra. O ponto que acima ferimos não é a primeira vez, nesta obra, que nos interessa. A propósito da coisa julgada material, a sentença posterior, rescindível por violação da res iudicato, irrescindivel torna-se, se preclui o prazo para a propositura da ação rescisória. Os efeitos em que a sentença cuja res iudicata foi ofendida podem ter sido definitivos. Mas, se algum efeito não se produziu, a segunda sentença, que era rescindível por ofende-lo, impede-o, pois quem tinha a pretensão à rescisão não a exerceu e a perdeu, definitivamente. O assunto já foi antes tratado, com fundamentação. A coisa julgada, no art. 485,1V, é a coisa julgada material, isto é, a ofensa a sentença anterior, trânsita em julgado, ou as sentenças anteriores, trânsitas formalmente em julgado (porque isso é elemento essencial e geral para qualquer rescindibilidade), por ter decidido o que já fora objeto de sentença anterior ou de sentenças anteriores. Tudo ou algo da sentença posterior concide, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa petendi, com o que já fora decidido por sentença anterior ou por sentenças anteriores. Dissemos “sentenças anteriores”, porque pode a sentença B, posterior, a) somente ter o mesmo objeto, todo, da sentença A, trânsita em julgado antes dela. b) ou em parte o objeto da sentença A, ou c) em parte o objeto da sentença A, e em parte o objeto da sentença E, d) ou em parte o objeto da sentença A, em parte o objeto da sentença C, e) ou em parte de A, B, C e D. O pedido de rescisão, se houve duplicidade ou pluralidade de infrações da coisa julgada, pode ser numa só ação rescisória da sentença, ou em duas ou mais ações rescisórias. Quanto à identidade de sujeitos, não se diga que somente podem ser as partes, os seus sub-rogados, cessionários e qualquer sucessor a titulo universal ou singular. Também o podem ser os terceiros juridicamente interessados nas duas sentenças, a anterior e a posterior, ou nas sentenças anteriores e nas posteriores. O interesse é o interesse jurídico, e não o de fato. Para se entender o art. 485, quando se refere a sentença “transitada em julgado”, tem-se de dizer que o trânsito formal em julgado é elemento necessário, essencial, para qualquer ação rescisória. Não se acolha, ao cogitar-se do art. 485, IV, o art. 467, que denomina “coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. O erro foi palmar, porque aí se define coisa julgada formal. Os que negam efeito de coisa julgada às sentenças proferidas em processos de jurisdição voluntária estão a dinamitar o sistema jurídico, sem uso da mente. O que importa é saber-se qual é a relação juridica a que se referiu a sentença, para afirmar ou negar a sua existência, a sua validade, ou a sua eficácia, e qual o atingimento subjetivo (partes, terceiro juridicamente interessado e o Ministério Público). O réu ou o autor que foi vencido não pode querer que de novo se julgue a ação em que foi vencedor o autor ou o réu, por ter outro título. Tantum iudicatum quantum disputatum vel dis-putari debebat. O Código de Processo Civil, art. 485, VI-IX, teve de prever a rescindibilidade da sentença que se fundara em prova, cuja falsidade foi apurada em juízo criminal, ou se há de provar na própria ação rescisória (VI), da sentença após a qual o autor obteve documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pode fazer uso, que lhe asseguraria pronunciamento favorável (VII), da sentença que se baseou em confusão inválida, ou desistência inválida, ou transação inválida (VIII), ou da sentença fundada em erro de fato, resultante de atos ou documentos da causa (IX). Tem-se de prestar atenção ao que foi julgado e ao cabimento de recurso, mas, qualquer que seja a resposta, a ação rescisória pode ser proposta, se qualquer dos pressupostos do art. 485, VI-IX, se apresenta. A coisa julgada material, que vai advir da sentença na ação rescisória com os fundamentos que apontamos, não é ofensiva de coisa julgada, mas apenas em ação rescisória, que cinde o que foi julgado. Tem-se, sempre, de se investigar até onde foi a coisa julgada formal e até onde vai a coisa julgada material (cf. Ernst Heinitz. 1 Limiti oggettivi delia Cosa giudicata, 6, 146 e 230). Se a parte apresentara exceção de coisa julgada, ou se o fez terceiro juridicamente interessado, ou o Ministério Público, e não foi acolhida, mesmo que em via recursal, isso de modo nenhum obsta à propositura da ação rescisória por ofensa à coisa julgada (art. 485, IV). Mais ainda: se qualquer dos interessados que têm legitimação à oposição da exceção de coisa julgada não o exerceu, mesmo se, da sentença anterior tinha conhecimento, pode propor a ação rescisória com o fundamento da ofensa àcoisa julgada. Não é assim no direito alemão (Ordenação Processual Civil, §§ 580, 7, a), e 582). Na Ordenação Processual Civil alemã, o § 582, com generalidade a respeito, é explícito.

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A coisa julgada é protegida contra a legislação posterior ou simultânea. Se a sentença transitou em julgado hoje, a lei que se publicou hoje ou depois não a atinge. Tal o que se tira do art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988. Mas tinham de ser evitadas outras ofensas à coisa julgada. A mais simples regra juridica é a da exceção de coisa julgada, que tem de ser oposta na pendência da outra lide. A segunda medida é a da rescindibilidade. Mesmo se opôs a exceção de coisa julgada e não foi acolhida pelo juiz, a sentença pode ser rescindida, dentro do prazo preclusivo, mesmo se o autor da ação rescisória já conhecesse a sentença que existia e não tenha oposto a exceção de coisa julgada. Tudo isso mostra que o sistema jurídico defende, tanto quanto possível, o principio da inofendibilidade da res iudicata. Quanto às violações do direito poderem resultar de erro in procedendo, alegava-se que tal interpretação teria de considerar inúteis as regras jurídicas do art. 485, 1, II e IV (antes, sob o Código de 1939, art. 798,1, a) e b), com os mesmos fitos), uma vez que há o do art. 485, V (antes, art. 798, 1, c), sobre literal disposição de lei). O texto do art. 485, V, somente seria invocável se houvesse erro in iudicando. Temos de repelir tal afirmativa, porque o fato de uma ou duas ou mais regras jurídicas tratarem de um assunto que pode estar entre muitos de uma regra jurídica ampla, de modo algum permitiria que se retirasse de tal regra jurídica tudo em que, entre outras situações, algumas estariam. Se a regra jurídica A é sobre a e c e a regra jurídica B poderia entender-se sobre a, b, c, d, e, f, hi, i, o fato de haver a regra jurídica A não poderia levar à interpretação de que a regra jurídica B somente concerne às situações que não correspondem a vogais de A. A coisa julgada formal é concernente à sentença, mas a sentença posterior pode, embora sobre o mesmo assunto, só se referir a algum ponto sobre o qual se não manifestou o juiz anterior da sentença. O art. 282,111 e IV, do Código de Processo Civil estatui que a petição inicial tem de indicar “o fato e os fundamentos jurídicos do pedido” e “o pedido, com as suas especificações”. Não se há de reduzir a sentença, com a petição inicial, à determinação da relação jurídica a que o autor se refere (e.g., Ernst Heinitz, 1 Limiti oggetti vi delia Cosa giudicata, 146). A ação pode ser para as conclusões o, b e c, por haverem os fundamentos a. b, e c, e a sentença só ser favorável ou desfavorável a a e a b, ou a c, ou a a ou b, ou a b e o, ou a o, b, e c; cf. P. Lacoste, De la Chose jugée en Matiêre civile, criminelie, disciplinaire et odministrative, 127). Quanto aos motivos, não são eles elementos para estabelecer a coisa julgada, razão por que o art. 469, 1, estatui que os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, não fazem coisa julgada. Aí, a lei apenas reconhece que ao conteúdo das conclusões, do decisum, servem os motivos. Eles é que não produzem coisa julgada, mas a coisa julgada é daquilo a que, por vezes, os motivos dão a dimensão e o alcance. Aí, o assunto tanto interessa à coisa julgada formal quanto à coisa julgada material. (a) Os elementos do pressuposto são dois: (1) sentença passada em julgado; (II) outra sentença, com infração da preclusão, posterior, que também haja passado em julgado. Assim, terá havido o fato jurisdicional “reiterante” de outro fato jurisdicional. O conceito de mesmos pontos exige, para que mesmidade se dê, a identidade de sujeitos, de causa e de coisa; portanto, da própria relação jurídica ou suposta relação jurídica, que se levou a exame e sobre a qual se firmou a prestação jurisdicional. Uma vez que são dois os elementos, desde que não se verifique um deles, o pressuposto para a ação não se perfaz. O primeiro elemento não se verifica: o) ou porque não houve sentença passada em julgado, como se não houvessentença, ou se é nula, ou se foi dada sobre matéria em que não cabe coisa julgada formal; b) ou porque a coisa julgada formal foi destruida extraordinariamente (lei retroativa, em caso de revoluções, ou de legalidade que desfaça atos de governos de fato), ou em virtude de haver decorrido o prazo para a rescisão da segunda sentença. O segundo elemento não se verifica: (1) ou porque não houve sentença posterior passada em julgado, como se não houve sentença, ou se é nula, ou se foi dada sobre matéria em que não cabe coisa julgada formal; (2) ou porque a coisa julgada formal foi destruida extraordinariamente, ou em virtude de haver decorrido prazo para a rescisão, ou para a propositura de rescisória de terceira sentença. Figurando-se o caso de ser a sentença em matéria na qual pudesse fazer coisa julgada, temos que o pressuposto não se perfaz sempre que falta o primeiro elemento. (b) Dissemos que falta o segundo elemento “sentença trânsede em julgado, que se quer rescindir”, se precluiu o prazo para a rescisão de tal sentença. Uma vez que se admitiu, de lege lata, com o prazo preclusivo, a

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propositura somente no biênio a respeito da segunda sentença, o direito e a pretensão à rescisão desaparecem, e a segunda sentença, tornada irrescindível, prepondero. Em consequência, desaparece a eficácia de coisa julgada da primeira sentença. Esse é um ponto que não tem sido examinado, a fundo, pelos juristas e juizes: há duas sentenças, ambas passadas em julgado, e uma proferida após a outra, com infração da coisa julgada. Se há o direito e a pretensão à rescisão da segunda sentença, só exercível a ação no biênio, e não foi exercida, direito, pretensão à rescisão e ação rescisória extinguiram-se. A segunda sentença lá está, suplantando a anterior. De fure condendo, poder-se-ia conceber diferentemente a situação, e.g., fazendo-se rescindível, sempre, isto é, sem prazo a segunda sentença. Porém nenhuma solução de imprecluibilidade foi admitida: o biênio é inexoravelmente preclusivo. Assim, há duas decisões que, ex hypothesi, se contradizem e a contradição tem de ser afastada pela superação da sentença ofendida. Salvo, conforme vemos, se a primeira sentença já foi cumprida, ou no que foi cumprida. Pode dar-se que tenha sido cumprida apenas em parte. Então, consumou-se o que se determinava, e a eficácia operada não pode ser desfeita pela sentença posterior, a despeito de, aí, o hoje ser posto à frente do passado. A segunda sentença que se tornou irrescindivel não pode ir solapar o que já se inseriu no mundo jurídico. Pode acontecer que, dentro do prazo para a ação rescisória da segunda sentença, que atingiu a coisa julgada da outra, se proponha tal ação e se rescinda a sentença ofensiva da res fudicato, no todo ou em parte. Onde não foi rescindida, ela persiste acima da sentença que fora em parte ofendida, mas essa nova sentença só se faz irrescindível se extingue o prazo preclusivo, que aí é para a rescisão da terceira sentença. Se tal acontece, essa sentença se põe à frente da que se proferira na segunda ação. No art. 471, 1, do Código de Processo Civil diz-se que nenhum juiz decidirá novamente as questões já decidas, relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que pode a parte pedir a revisão do que foi estatuido na sentença. A lei ainda é dado prever outros casos (art. 471, II). Se a sentença passou em julgado, nada obsta a que a parte interessada proponha outra ação, que aí é modificativa, e de modo algum ofende a coisa julgada, porque a coisa julgada concerne à relação jurídica de direito material e essa tem conteúdo modificável, quer fática, quer juridicamente. A mudança não só é possível, conforme a natureza da relação juridica, como também porque a permanência do estado seria contra direito. Tal modificabilidade tem exemplo na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, em cujo art. 15, segunda parte, se regra que a decisão judicial sobre alimentos “pode a qualquer tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados.” Hoje, o art. 463, 1, merece referência, pois nele se diz que o juiz pode alterar a sentença de mérito para lhe corrigir, de oficio ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo. Mas isso nada tem com o erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa, que dá ensejo à ação rescisória (art. 485, IX, e §§ 1ª e 2ª), nem com o erro essencial que leva à anulabilidade da partilha (art. 1.029). Quanto à Justiça do Trabalho, teve-se de atender ao art. 27 da Lei nº 229, de 28 de fevereiro de 1967, que afastara qualquer opinião que retirasse a rescindibilidade das sentenças da Justiça do Trabalho. Assim, não cabe a ação rescisória por ofensa à coisa julgada: a) Quando a primeira sentença é nula ou não é sentença (Manuel Gonçalves da Silva, Commentona, III, 139). Se for proposta rescisória com fundamento na coisa julgada e uma das duas sentenças for inexistente, ou se for nula, o caso não é de se julgar procedente, mas de se julgar improcedente, por ser inexistente ou nula ipso iure uma das sentenças. Tal conclusão julga a nulidade ipso iure ou a inexistência, de modo que, ainda julgada improcedente, teve o autor, ou o réu, acatada a segunda sentença. Os outros pressupostos objetivos da ação rescisória ficam sem razão de ser e, pois, prejudicados. Se houve reconvenção à ação rescisória, por parte do réu, ou intervenção de pessoa com interesse jurídico, contra a outra sentença, que se supõe não ser inexistente nem nula, julgar-se-á tal pedido de rescisão. Se ambas as sentenças forem inexistentes ou forem nulas, a decisão (só em iudicium rescidens) apenas poderá ser relativa a tais situações, devendo ser proferida na preliminar do conhecimento. 14 Se a primeira sentença, absolutória, foi em matéria em que o processo pode ser renovado, com outras provas. c) Quando a coisa julgada da primeira sentença foi atingida por lei nova, segundo ditame de direito intertemporal. d) Se decorreu o biênio, sem que se propusesse a ação rescisória contra a sentença posterior. O que se disse sobre o primeiro elemento aplicase, mutatis mutantis, ao segundo. Em todo caso, se a primeira foi executado — como as duas sentenças passaram, ex hypothesi, em julgado — prevalece, ainda teoricamente, a primeira. Isso quer dizer que, tratando-se de sentença não cumprida, a segunda

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se põe à frente sempre. Se a primeira sentença deixou para que se apurasse no cível, ou no juízo criminal, algum ponto, ou ressalva, implicita ou explicitamente, outra ação, ou outro remédio jurídico processual (ainda que a ação seja a mesma), e a nova sentença só nesse ponto decide, ou decidiu nesse e noutros pontos que pela primeira não foram decididos, contradição entre elas não se dá. As vezes os juizes deferem, ou indeferem o pedido, por ser obscura ou duvidosa a matéria, ou o direito, sem se considerar entregue a prestação jurisdicional (violação ocorre, em tais espécies, ao Código de Processo Civil, art. 126, que estatui não se eximir de sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei). Outras vezes (não se confunda com os casos acima), é a sentença mesma que é obscura ou duvidosa, e só uma das duas interpretações se chocaria com a posterior. Cabe pedirse declaração, ou interpretação, ao mesmo juiz, ou na própria execução, segundo a lei processual. Volvamos ao exame das duas sentenças em contradição. Se a primeira não foi cumprida, a segunda pode ser cumprida, porque a rescindibilidade não é óbice à execução, e nenhum poder têm os juizes para deixar de cumprir a sentença, que lhes apresenta, por estar em contradição com outra sentença anterior. Tal cognição só lhes cabe no ludicium rescindens. Se foi a primeira que se levou à execução, passa-se o mesmo. Proposta a ação rescisória e sobrevindo a rescisão da segunda sentença, há a volta ao status qua, com as pertinentes restituições. Se transcorrem os dois anos sem se propor a ação rescisória da segunda sentença, tal sentença passa a ser incólume. Apenas, com ela, não se vai desfazer o que, em cumprimento da primeira sentença, se fez. Resta um problema. Se a segunda sentença, já irrescindíuel, absolveu o réu, ao contrário da outra, ou se ambas condenaram, mas em menos a segunda, há a ação de enriquecimento injustificado? Não. Se a primeira absolveu e a segunda condenou, pode ser executada a segunda, tornada, pelo transcurso do prazo preclusivo, irrescindível? Sim. Se duas sentenças forem absolutamente iguais, proferidas pelo mesmo juiz, no mesmo processo, só a primeira vale. Se proferidas em dois processos diferentes, na mesma espécie (identidade de ação), vale a primeira, ou, passados os dois anos, a segunda, se não foi executada, ou não começou a ser executada a primeira. Não sendo iguais, ainda que in minimis, dá-se a ofensa à coisa julgada. A rescindibilidade pende, durante o biênio. e após ele rege a segunda, e não a primeira, salvo se a primeira já se executou, ou começou de executar-se. Se o momento posterior ao prazo bienal da segunda encontra a outra em execução, ainda não precluso o prazo para embargos do devedor, pode o executado, a que a segunda sentença interessa, opor-se á execução, sustentando a irrescindibilidade da segunda sentença. A execução posterior da primeira não pode ofender a irrescindibilidade da segunda. A decisão inconciliável com o julgado anterior, porém que, não obstante, já se tornou irrescindível, prevalece. O fundamento disso não é a renúncia à sentença anterior ou a aquiescência à posterior. Não é, por si, ato jurídico ou de consequências jurídicas interindividuais. A segunda toma lugar da primeira, porque a lei a faz só rescindível no lapso bienal. Não prevalece, porque a primeira se desvaleça, e sim porque convalescendo-se inteiramente, tornando-se inatacável, irrescindível, torna impossível o que Ibe é contrário. O direito moderno repudiou o principio romano da perenidade da exceção à sentença que viola a coisa julgada, o iure nullam esse posteriorem sententiam quae contraria sit priori. A segunda sentença, ou outra, que após ela veio, torna indefectível a segunda, ou outra posterior prestação jurisdicional; e o primeiro julgado é como se não tivesse havido. Assim havia de ser pela descategorização que processualmente ocorreu: o que era inexistente, então dito “nullum’, para o direito romano, passou a ser, nos nossos dias, apenas rescindível. A razão de ser perene a exceção romana de coisa julgada consistia em estarem os povos romanos, como os outros povos antigos, atados à concepção da perpetuidade, do eterno, atribuindo ao passado quase tudo do presente e do futuro. A preclusividade da exceção e da ação, por ofensa à coisa julgada, atende ao relativismo filosófico dos povos contemporâneos. Os nossos dias precisam a distinção entre vícios deduzíveis por via de recursos, vícios deduziveis em qualquer tempo (indiferentes ao prazo para a rescisão) e vícios deduzíveis no biênio. Aliás, não é necessariamente sanável toda a nulidade que precisa ser alegada; posto que, de lege ferenda, fosse útil fazer decretáveis de ofício pelo juiz, até à sentença definitiva, todas as nulidades insanáveis. Há, pois, vícios que, não encobertos por ocasião da sentença, acompanham a coisa julgada, — são os que permitem a rescisão. E defeitos que

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afetam as próprias sentenças em si, impedindo-lhes a existência, ou fazendo-as nuas ipso fure, e a todo tempo. A exceptio judicati não é, em todos os casos, perene. Só onde há nulidade, no sentido de absoluta no tempo, independente de ação, é que se pode falar de perenidade. Fora daí, não. Ora, a exceção de coisa julgada só se pode referir aos processos em andamento. Não assim à sentença posterior que passou em julgado; e essa só se pode rescindir. Não é sententia perpetue nulia: o art. 495 do Código de Processo Civil afasta os que lhe querem opor a res iudicata de outra, após o biênio. Temos, portanto: a) A exceção de coisa julgada só se opõe durante outra lide, portanto até que se possa apresentar segundo as regras jurídicas processuaís. b) A ação rescisória por ofensa à coisa julgada supõe que tenha havido duas coisas julgadas sobre os mesmos pontos, porém há de ser proposta no prazo bienal. Apresenta-se-nos um problema, que pode surgir com freqúência: se na ação proposta foi julgada a exceção de coisa julgada e a decisão a repeliu, após a sentença proferida ou o julgamento no segundo grau de jurisdição pode ser exercida a pretensão à rescisão dentro do biênio? Trata-se de exceção, que suscita questão prejudicial e é incidentalmente decidida no processo (Código de Processo Civil, art. 469, III). Se tivesse sido deferido o pedido constante da oposição da exceção de coisa julgada, estaria extinto o processo sem julgamento do mérito (art. 267, V, última parte). Uma vez que foi indeferido, o assunto integra-se na sentença, razão por que continua alegável a coisa julgada, permitindo a quem opôs na contestação (art. 301, VI), ou mesmo se não a opusera, propor a ação rescisória, porque a sentença é rescindível por ofensa à coisa julgada (art. 485,1V). No Código de Processo Civil, há duas regras jurídicas: uma, que põe na contestação a alegação da coisa julgada (art. 301, VI); outra que não afasta a oposição posterior, uma vez que se trata de assunto que o juiz pode apreciar de oficio (art. 301, § 4Q) e, pois, regido pelo art. 303, onde se diz que, depois da contestação, é licito “deduzir novas alegações quando: 11 — competir ao juiz conhecer delas de ofício”. 8.Infração do direito objetivo. O primeiro elemento a ser explorado, no conceito do art. 485, V, do Código de Processo Civil, é de extensão: que é que cabe na expressão ‘literal disposição de lei”? O segundo, de qualidade: jque é que se entende por direito expresso, constitutum, agora “literal”? Ou o juiz: a) se atém ao texto da lei, ou ao que dele imediatamente resulta, e assim julga secundum legem; ou b) sem a lei, mas junto (imediatamente à lei, praeter legem (cf. nosso Sistema de Ciência Positiva do Direito, II, 275; III, 2ª ed., 2890); ou c) contra o que está escrito na lei, contra legem. O secundum legem pode ser subdividido: aplicação da lei, mecanicamente, ou aplicação auxiliante, do que dela proximamente se tira, adiuvandi gratia. As duas outras espécies correspondem à aplicação que suplementa, que estende, que enche, que dilata e dinamiza, supplendi gra tia, e a que altera a lei, ou a destrói em parte, ou a corrige, corrigendi gratia. Não há extensão escusada se há regra jurídica de interpretação, que a determina. a) O juiz tem o dever de conhecer o direito (lura novit curia), só e “admitindo” que exija prova nos casos do art. 337 do Código de Processo Civil: Ainda nesses casos do art. 337 (estadual, municipal, consuetudinário ou estrangeiro), o impetrante do mandado de segurança pode fazer a prova incontinenti mostrando ser “certo e líquido” o direito. A diferença entre o direito comum e o não-comum (art. 337) não é obstáculo á impetração. b) O juiz tem o dever de obrar (art. 126), não podendo, sob pretexto de lacuna, ou de obscuridade da lei, eximir-se de proferir despachos ou sentenças; de modo que constituiria infração do art. 126 abster-se de conhecer da ação rescisória por haver dúvida ou lacuna da lei. A dúvida está nele, não no mundo das relações jurídicas, e a literalidade da lei a que se refere a regra jurídica sobre ação rescisória independente dela. A quaes tio iuris, em torno da qual há divergência, pode ser examinada em ação declaratória, ou em mandado de segurança, ou em outra ação. A discordância de interpretação pelo próprio Superior Tribunal de Justiça não faz improponivel a ação rescisória. O adjetivo “literal” no art. 485, V, de modo algum permite que se pense em se admitir perplexidade do juiz perante a Iex dubia quae habeat varios inteliectus, porque o art. 126 do Código de Processo Civil foi terminante em proibir ao juiz essa perplexidade. Os séculos passados, com Paulo de Castro, Bento Pinhel e

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Samuel Stryk, foram superados pelo Código, porque durante aqueles tempos existiam o princípio *Ignoran tia iuris obscuri excusat e a sua consequência *Quando Iex habet plures intellectus propter dissentionem Glosa torum, valet sententia propter dubium iuris (Baldo de Uhá ldis, Jasão de Mamo, Bartolomeu Saliceto). Para se obviar a isso, tentou-se em Portugal, adotar a opinião de alguns doutores, de modo que se evitasse a Iex dubia. Foi essa a era de transição entre aqueles princípios e o enunciado do Código de Processo Civil, art. 126, que o direito processual brasileiro herdou, desde muito. A regra jurídica que pode ser violada e tal violação levar à rescindibilidade da sentença tanto é a de direito processual, quanto a de direito material (e.g., Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 5 de maio de 1971, RT 429/230; Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 18 de dezembro de 1971, 441/207). Não importa que a regra jurídica seja de direito privado ou de direito processual civil, ou de direito público, inclusive penal ou processual penal, ou administrativo. Quanto a’ “literal disposição de lei”, que está no art. 485, V, temos sempre mostrado que não se pode acolher opinião apegada ao adjetivo. Letra, literal, está aí, como expresso, revelado. O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil não pode ser postergado: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os principio gerais de direito”. Dizer-se que, ao sentenciar, invocando costume ou principio geral de direito, o juiz, que o ofende, apenas erra in procedendo, é erradíssimo. Sentenças proferidas contra algum costume, que se aponta como existente, escritível ou já escrito (“literal”), ou contra algum principio geral de direito, ou contra o que, por analogia, se havia de considerar regra jurídica, são sentenças rescindíveis. Ao juiz da ação rescisória é que cabe dizer se existe ou não existe a regra de direito consuetudinário, ou o principio geral de direito ou a regra jurídica analógica. Se o juízo rescindente se encontra diante de opiniões divergentes quanto a regra jurídica de costume, ou a interpretação por analogia, ou determinado princípio geral de direito, ele é que tem de dizer qual a opinião que é a verdadeira, salvo se há imposição legal da observância de alguma atitude assumida pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça ou por outro tribunal. Em princípio, a jurisprudência dominante é a que se há de obedecer. Nos arts. 476-479 do Código de Processo Civil tem-se por fito a uniformização da jurisprudência. No julgamento da ação rescisória, como das outras ações, reconhecida a divergência entre os juizes, lavra-se o acórdão, vão os autos ao presidente do tribunal, que designa a sessão de julgamento. O tribunal, reconhecendo a divergência, dá a interpretação a ser observada e cada juiz emite o seu voto em exposição fundamentada. E sempre ouvido o chefe do Ministério Público. O julgamento, por voto da maioria absoluta dos membros, é objeto de súmula e constitui•” precedente” na uniformização da jurisprudência. Os regimentos internos têm de dispor sobre a publicação, no órgão oficial, das súmulas de jurisprudência predominante. Se alguma das partes da ação rescisória entende que foi errada a decisão rescindente, mesmo se consta da súmula, isso não impede que proponha ação rescisória da sentença rescindente, quer tenha sido favorável ou não a decisão. Observe-se que o julgado, aí, foi do juízo rescindente, e não o julgado da ação em que se proferiu a sentença rescindenda. Se, na ação rescisória com fundamento em violação de regra jurídica, a arguição concerne (ou também concerne) a inconstitucionalidade de lei, ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, tem de submeter a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo (Código de Processo Civil, art. 480). Se a alegação é rejeitada, prossegue o julgamento. Se for acolhida, lavra-se o acórdão, mas tem de ser julgada a questão pelo tribunal pleno (art. 481). Todos os juizes têm de receber a cópia do acórdão (art. 482). Se a questão de inconstitucionalidade é apenas uma das questões que têm de ser julgadas no juízo rescisório, às outras arguições não se aplicam os arts. 480-482: regem apenas os arts. 491-494. (a) A expressão erro contra literam, ou violação da regra (ou texto) literal de lei, nenhuma referência contém a ser escrito ou não-escrito o direito. O errar contra líteram legis sempre foi o sucedâneo do errar contra ivris rigorem ou contra maniJesti ivris formam, que aparece no Digesto (L. 19, D., de appellationibus et relationibus, 49, 1) e no Código justinianeu (L. 2, C., quando provocare necesse non est, 7, 64), oposto ao errar contra izis Iitigatoris. A sentença do art. 485, V, é a sentença lata contra legis tenorem, sentença que, já na linguagem de Baldo de Uhá ldis, “non tenet”. Contra lus, contra literam são sinônimos, e mais largos que contra jus expressum. De modo que pode haver a ação rescisória ainda quando a infração do direito concerne àquelas regras jurídicas sujeitas à interpretação, ou quando se trata de costume, ou de direito extravagante, ou

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singular, ainda que não notório. A infração da ratio legis, com infração da regra jurídica (contra literam), não escapa ao art. 485, V. É verdade que, sob a influência do direito canônico, se quis chegar até aí, para separar a ratio legis como pressuposto àparte, com o Abade Panormitano; mas houve repulsa, de que dá testemunho Jasão de Mamo (Commentaria, ad L. 122, § 6ª, D., 45, 1, nº 521), que foi claro: o notável dito, notabile dictum, do abade não é verdadeiro, porque, sendo contra a mens legis a sentença, não se lhe pode ver com os olhos do corpo o erro (‘puto istud notabile dictum abbatis non esse verum, quia, cum sententia iudices est contra mentem legis, ilIe error non potest oculis corporis videri”). Formou-se a doutrina, através de Bartolomeu Socino, Baldo de Uhá ldis, Alexandre Tartagna de Imola e outros, de valer, plenamente (então era de não valer a sentença, e não de se poder rescindir a sentença, que se falava), a sentença contra símile legis. Essa exceção atendia à repugnância à analogia como regra jurídica de interpretação, o que já se não justifica. Foi o jurista português Bento Pinhel (Selectarum luris Interpretation um, cap. 19, nº 33 sã quem edificou, em linhas precisas, a figura da sentença contra símile legi ou contra sirnilitudinem legis. Os problemas, que aí se levantam, tornam-se falsos problemas, se levamos em conta que há povos em que as regras jurídicas de interpretação das leis — inclusive para invocação de princípios gerais do direito e analogia — são regras literais! É difícil torcer-se a vida: pode mais do que o artifício... Regra jurídica de interpretação das leis — direito é. Toda doutrina ou é regra de direito revelada, ou é apenas opinião de lege ferenda, ou literária. Demais, se deixa de revelar a regra jurídica, há o princípio, escrito, “literal”, que manda atender à analogia e aos princípio gerais de direito. Ora, está ai, inserta em lei, norma literal, de modo que também ela é suscetível de ser invocada por ter o tribunal ou juiz, em único ou último grau de jurisdição, violado a sua literalidade. As regras de sobredireito são regras de direito, regras literais, regras de lus scriptum, que podem ser atingidas em sua estrita literalidade. Resolvido o problema no tocante aos casos omissos, resta saber o que é que podemos entender por decisão contra a “letra” da lei. A ação rescisória é ação em que o legitimado ativo conta com o princípio segundo o qual nenhum juiz pode dizer Non liqued. Foi posto o adjetivo “literal”, ao falar-se de “disposição de lei”. Na súmula nº 343, do Supremo Tribunal Federal, foi dito: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Recente acórdão do Supremo Tribunal Federal, a 29 de maio de 1974, repete que “a ofensa à disposição literal de lei é a que envolve contrariedade estridente com o dispositivo, e não a interpretação razoável ou a que diverge de outra interpretação, sem negar o que o legislador consentiu ou consentiu no que ele negou”. O problema não é tão simples como parece a muitos e aos próprios juizes. E verdade que há o recurso especial se o Tribunal cuja sentença se quer rescindir deu à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuido outro Tribunal (Constituição de 1988, art. 105, III, c» e podia ter sido exercida a pretensão recursal. Porém, se a interpretação dada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça ou por outro Tribunal foi posterior ao trânsito em julgado da sentença rescindenda? Mais: como resolver-se ocorreu ter o Senado Federal suspendido a execução da lei que o Supremo Tribunal Federal, em decisão definitiva, decretou ser inconstitucional e tal “literal disposição de lei” foi aplicada? Ainda: se, noutro Tribunal, ou no próprio Tribunal em que se proferiu a sentença rescindenda, foi tomada a medida do art. 476 do Código de Processo Civil e julgado exatamente o contrário do que antes fora aplicado na sentença rescindenda, seria de repelir-se a ação rescisória? A interpretação que havemos de dar a “literal disposição de lei” é a que seja coerente com o próprio significado de literalidade. Literal, littera lis, é o que é formado com letras, o que está escrito. O que teria de apurar-seria se alguma regra jurídica, que não consta de escritos, pode dar ensejo à propositura de ação rescisória. Surgiria o problema mais delicado: se tal regra jurídica consta de súmula, e não de outro escrito, apode ser violada sem possibilidade de se propor ação rescisória? (b) A interpretação ou aplicação da regra de direito, ou, mais largamente, a solução das controvérsias jurídicas,

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pode ser: 1. Secundum legem, quando se atém ao texto da lei, ou ao que dela imediatamente resulta, e julga com tal aderência àliteralidade. Ocorre, porém, muitas vezes, que a própria letra da lei se presta a mais de uma significação e dois ou mais juizes, julgando diferentemente, se crêem a decidir secundum legem. Longe vai o tempo em que se repetia a cada momento, fechando-se podas à pesquisa do conteúdo das regras jurídicas, o aforismo In cio ris non fit interpretatio. As palavras, claras, podem não estar empregadas no sentido que é o da lei; e clara ser a frase e chocar-se com alguma palavra que revele o verdadeiro sentido da regra jurídica. A claridade é exterior, às vezes encandeia. O que se quer é o que se exprimiu com palavras, ou frases obscuras ou claras, e não o com que não se exprimiu, embora claro. II. Praeter legem. Aqui, o juiz decide sem a lei, mas junto (mediatamente) à lei. De antemão, cumpre notar-se que o ius não corresponde, em extensão, à lei. O conhecimento da lei éconhecimento indireto, imperfeito e parcial do direito, porque a lei não é todo o conteúdo efetivo do sistema jurídico ou da ciência jurídica, como o documento constitui simples elemento de cognição indireta, e não o conteúdo efetivo da história. Daí a diferença específica entre os que interpretam a lei e pretendem construir ciência de raciocínio e os que revocam a indagação jurídica à trilha da observação (análise), da indução e da experiência. Leis escritas nada mais são que troços exteriores, mais ou menos acidentais, do conteúdo real do direito objetivo; de maneira que há mister extrair-se toda a soma de realidade que elas representam, sem nos privarmos de buscar, fora das leis, tudo que possa completar a porção, talvez pequena, que dela tirarmos. O direito é sistema lógico, mas tem-se de procurar, com a observação das regras jurídicas, que o compõem, com a indução e a experiência, com o exame do seguimento histórico e evolutivo dos institutos e das próprias regras jurídicas, os conceitos e as proposições, com que se há de trabalhar, explicitando-se o sistema. Pode ocorrer: o) Que a lei, síntese admirável e fecunda, dê toda a realidade, todo o direito objetivo; e caiba ao intérprete a simples adequação do principio aos casos concretos: ius = lex. 14 Que todo o direito e mais do que todo o direito esteja na lei, ou, pelo contrário, que pouco se lhe encontre ou quase tudo esteja noutras fontes e manifestações da realidade e da verdade juridica: Iex ius, ou Iex jus, isto é, no último caso, lei menor, e, no primeiro, o que seria difícil, maior que o direito. c) Que, apesar da existência material (proposição escrita) e espiritual (intenção) da lei, nenhuma verdade possa tirar-se dela; e então não há comparação possível: a lex não é maior, nem menor que o direito, e muito menos igual: trata-se de diferença essencial, que os faz heterogêneos e insuscetíveis de análise conjunta: não pertence ao direito-ciência o estudo da lei, mas ao capítulo da política referente à teratologia. A aplicação de regra jurídica proeter legem é a que resulta de atividade do juiz fora do conteúdo imediato da disposição literal, porém não contra ela. Alguns julgados se aferraram à noção de letra da lei como se pudesse o juiz distinguir onde começa e onde acaba a interpretação não-literal ou a interpretação literal (e.g., 1C Turma do Supremo Tribunal Federal, 27 de junho de 1946, Ai 80/11; Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 23 de agosto de 1945, DJ de 20 de fevereiro de 1946). Outros somente entendem por letra da lei a letra de regra jurídica de direito material, dupla confusão com a distinção entre regra de direito material, que, no Brasil, era e é federal, e regra de direito processual, que não era e hoje é federal. No pressuposto do recurso especial conforme a Constituição, cuja política legislativa ressalta, é que se têm de distinguir as leis em leis federais e leis locais, mas, a propósito da lei processual, deixou de ter pertinência a distinção, desde que se tornou federal a legislação processual. Assim, absolutamente sem razão, as Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 10 de maio de 1946

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(i 28/174), e a Seção Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 23 de agosto de 1946 (RT 164/323, RF 111/157). Certas, as Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a 27 de dezembro de 1946 (i 28/624). Não pararam ai as dúvidas no caso de decisão secundum legem. O secundum leqem divide-se em aplicação da lei, mecanicamente, e aplicação auxiliante, — isto é, do que dela proximamente se tira, adiuvandi gra tia. Não se trata de paridade, nem de invocação de princípios gerais de direito, nem de eqUidade; trata-se, apenas, de exploração lógico-jurídica do texto legal. Tais consequências não são consequências do elemento material da lei, mas da proposição que o elemento exprime. III. Contra legem. Se a atividade praeter legem suplementa, quiçá estende, em todo caso enche, dilata, dinamiza, portanto, — opera supplendi causa, a atividade contra legem é suscetível de distinção mais importante: ou ela elide, posterga, destrói a lei, no todo ou em parte; ou ela opõe a parte da lei ou a toda ela outra lei, que a torna nenhuma; ou ela declara que se lhe tem de corrigir aquilo que a sua letra diria (corrigendi gratia). Se a decisão foi contra a “letra” da lei, mas a regra jurídica há de ser repelida, por absurda, tem o juiz de conhecer da ação rescisória e negar-lhe procedência. Idem, se está revogada, ou derrogada, nela, a lei de que faz parte, ou se é inconstitucional. (a) a) O principio de que o juiz está sujeito à lei é, ainda onde o meteram nas Constituições, algo de “guia de viajantes”, de itinerário, que muito serve, porém não sempre. Equivale a inserir-se, nos regulamentos de fábrica, lei de física, a que se devem subordinar as máquinas: a alteração há de ser nas máquinas. Se entendemos que a palavra “lei” substitui a que lá devera estar — “direito” — já muda de figura. Porque direito é conceito sociológico, a que o juiz se subordina, pelo fato mesmo de ser instrumento da realização dele. Esse é o verdadeiro conteúdo do juramento do juiz, quando promete respeitar e assegurar a lei. Se o conteúdo fosse o de impor a “letra” legal, e só ela, aos fatos, a função judicial não corresponderia àquilo para que foi criada: realizar o direito objetivo, apaziguar. Seria a perfeição, em matéria de braço mecânico do legislador, braço sem cabeça, sem inteligência, sem discernimento; mais: anti-social e — como a lei e a jurisdição servem à sociedade — absurda. Além disso, violaria, eventualmente, todos os processos de adaptação da própria vida social, porque só a eles, fosse a Ética, fosse a Ciência, fosse a Religião, fosse a Arte, respeitaria, se coincidissem com o papel escrito. As regras extralegais (no sentido de não escritas nos textos), com fixidez e inequivocidade, são direito, ao passo que não no é a regra legal, a que a interpretação fez dizer outra coisa, ou substituiu, ou lhe decretou inconstitucionalidade ou ilegalidade. Pouco importa, ou nada importa, que a letra seja clara, que a lei seja clara: a lei pode ser clara, e obscuro o direito que, diante dela, se deve aplicar. Porque a lei é roteiro, itinerário, guia. Toda regra jurídica — de qualquer procedência que seja, tida como convicção jurídica e, na prática (trate-se de doutrina, ou de decisão judicial), realizável, de preferência a outras que a excluiriam, ou modificariam, — é Direito. Mas, (dir-se-á) não é ao Direito que o art. 485, V, se refere: usa ele, insofismavelmente, de expressão que somente poderia corresponder a texto legal, a lei (no sentido estreito), a letra da lei, à literalidade. Fácil dito. Fôssemos nós, por exemplo, tomar à letra o claríssimo “nula” que aparecia no art. 798 do Código de Processo Civil de 1939 (“Será nula a sentença ) e teríamos de interpretar que não se precisaria propor ação rescisória para que se desconstituir qualquer das sentenças que se apontam como rescindível: incidenter, o juiz decretaria a nulidade de qualquer delas. Não se teria tido, no direito brasileiro, seguro de vida, antes da lei especial, ou do Código de Processo Civil de 1973, na esteira das nossas exprobrações ao texto de 1939, retirou-se o errado adjetivo. Mas, no plano da realidade do mundo juridico, o tal adjetivo apesar da “letra” da lei, lá não estava, para todas as proposições e conclusões. b) Em todos os casos em que as justiças decidem contra legem, desde que existia a regra de lei, lato sensu, que se deixou de aplicar, cabe a ação rescisória do art. 485, V; ainda se a decisão deixou de aplicá-la, por entender que nâo tem vigência (está revogada, derrogada, ou ainda não em vigor, ou suspensa, ou não vale), em face da Constituição, a lei federal, ou, se assim procedeu, tratando-se de lei, ou do ato dos governos locais, por então não valer, em face da Constituição ou de lei federal, a lei federal, porque, nos dois casos, respectivamente, se tem de verificar se violou a lei, com tais afirmações.

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Se à letra da lei corresponde o direito objetivo, tem o juiz, de conhecer da ação rescisória, de julgá-la improcedente. Se, em vez disso, a letra da lei, tal como a entende a interpretação literal, diz o que não pode caber no sistema jurídico, tem o juiz, de conhecer da ação rescisória, de julgá-la procedente, para que seja mantida, na aplicação, a integridade do direito objetivo. c) Se a decisão contra a qual se propõe a ação rescisória apenas julgou não-provado o alegado, não há falar-se de violação da literalidade e não se conhece da ação rescisória; aliter, se trata de regra jurídica literal sobre prova, como se a lei estabelece presunção inelidível, ou se, contendo presunção, o julgado lho nega. (b) O direito, o jus, em todas as épocas, é o que se reputa justo, e se realiza, o que se aplica secundum legem, praeter legem e corrigendi gratia. Existe, pois, uma parte secundum legem, que não é direito, como aconteceu, no Brasil, à regra legal que proibia os seguros de vida. Outra, praeter legem, que também não no é. Outra, finalmente, que não se considera direito, nem é direito. Por onde se vê a gravidade de qualquer enunciado absoluto. O Direito, em sua evolução incessante, ou, pelo menos, em sua mutabilidade, porque lhe faltam os fatores de estabilidade, mais características da Moral e da Religião, constitui o que, em cada momento, é tido pelo mais justo e ao mesmo tempo realizável. Ao primeiro elemento servem a lei, a doutrina e a dicção por parte dos juizes; ao segundo, o processo, como realizador do direito objetivo. Seria pouco provável a realizabilidade do direito objetivo, se o elemento só fosse a lei: não apenas pela inevitabilidade das lacunas, como porque a própria realização supõe provimento aos casos omissos e a subordinação das partes imperfeitas aos princípios do próprio direito a ser realizado. É inegável que alguns princípios e regras jurídicas são tidos como cerne, ou, melhor, como núcleo. Uma parte do direito muda com as leis fáceis de serem feitas (alguns princípios são mais estáveis, por motivos que temos estudado, como os ligado a religiões ou a razões morais, tal como ainda acontece com a falta de regra jurídica sobre o divórcio); outra, muda menos com as leis, porém não consegue pôr de acordo os tribunais e constitui aqueles pontos que nos repertórios de jurisprudência estão sempre com dois ou mais partidos de interpretação, o que dá ensejo às medidas de uniformização da jurisprudência e das súmulas (Código de Processo Civil, arts. 477-479); outra, dificilmente muda. Onde o direito persiste controverso, o defeito é menos dele do que da própria sociedade (se defeito é): ou ele, no fundo, reputa irrelevante a regra, e pouco se lhe dá que as opiniões e soluções variem (a decisão definitiva apaziguará, posto que se não realize o direito objetivo), ou a controvérsia demonstra a heterogeneidade mental da sociedade, em que há forças que se opõem, sem que se possa achar a diagonal do paralelogramo. Por isso mesmo, se bem que o direito busque, ou a integração social busque, para ele, a unidade, por vezes fica evidenciado que não há grande inconveniente em que o tribunal de um lugar divirja, em certas matérias, de outro, porque a sua missão é realizar o direito objetivo no âmbito da sua jurisdição territorial. Mas, onde isso não acontece, o direito processual tem por função realizar o direito objetivo, em plenitude e inteireza. Pense-se no recurso extraordinário por ter havido contrariedade à Constituição, ou no recurso especial por ter-se operado violação à lei federal ou divergência de sua interpretação pelos Tribunais, bem como na ação rescisória, por infração de regra jurídica. A regra extralegal (no sentido de não-escrita nos textos), assente como fixidez e inequivocidade, é direito, ao passo que não no é a regra legal, a que a interpretação fez dizer outra coisa, ou substituiu, ou desconstituiu, por inconstitucionalidade ou ilegalidade. Pouco importa, ou nada importa, que a letra seja clara, que a lei seja cloro: a lei pode ser clara, e obscuro o direito que, diante dela, se deve aplicar. Porque a lei é roteiro, itinerário, guia, repitamo-lo. Do que foi dito podemos tirar que o direito, a que se referem as leis processuais, não é a lei; mas aquele cercado, não muito “fino”, em que os textos são estacas; e às vezes, por serem duas ou mais, uma adiante das outras, o arame só por uma passa, porque a outra ou as outras ficaram “fora” do que bastaria ao cercado, ou seria preciso ao cercado. O verbum legis é ínfimo se nós lhe antepomos a vis ac potestas legis. O conteúdo imanente da ordem jurídica obriga a que a lei mesma, que não éprius, sofra a ajustação ao direito fixado, que ela não teve forças para mudar. A opinião de que ao iudicium rescindens não vão somente as sentenças proferidas contra direito “escrito” nunca deixou de ser a dos grandes juristas. Ainda mais: o direito pode não ser escrito, ou, até mesmo, contra o que está escrito. O direito, e não a lei como texto, é o que se teme seja ofendido. Alguns escritores desavisados leram “direito expresso”, como se fosse “lei escrita clara”, “lei escrita

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explícita”. É grave erro. O direito de que se fala é o direito em sua consistência de revelação. Tanto assim que a communis opinio se tinha como direito expresso, desde que fixada (D. E. Altimaro, Tractatus de Nulitatibus .Sententiarum, 1, 511; Antonio de Souza de Macedo, Decisiones, 184 s.; Manuel Gonçalves da Silva, Commentorio, III, 139): “Et licet non desint alii tenentes contrarium, scilicet sententiam latam contra communem opinionem esse nulíam sicut latam contra legem Ao lado do direito que se revela, de texto à vista, embora sem o juiz se ater a ele como exaustivo, está o costume. (c) A boa lição dos jurisconsultos sempre foi no sentido de ser rescindivel a sentença que se proferiu contra consuetudinem. (Não se confunda com os usos e costumes que fazem o direito consuetudinário os usos e costumes que não são “direito”.) Não só os do século XV, como também os dos três séculos seguintes. Aliás, até onde podemos ir para aquém do século XV, nenhuma dúvida nos surge. Os grandes espíritos limitam-se a enfileirar as opiniões concordantes: desde Muscatelo, E. Schader, P. Wesenbeck, D. E. Altimaro e Alexandre Meyer, sobre as sentenças contra ius constitutum. D. E. Altimaro (Tractatus, II, 512), por exemplo, é decisivo: “Nuíla esset sententia, si lata esse contra consuetudinem”, compreendendo-se os costumes notórios, ou de que se dê prova (consuetudinem notoriam, vel exactis probatam). Não menos claro, escrevia Alexander Meyer (De Nuílitate .Sententiarum contra ius constitutum latarum, 31): “Num sententia contra consuetudinem lata nuíla sit, raro quaesitum est; revera intelligi non potest, cur minus sit nuíla, quum generaliter eadem potestas sit iuris quod moribus et iuris quod legibus constitutum est”. Costume e regras jurídicas, para que se interprete a lei por analogia podem ser escritos, literais. (d) Como acontece com o costume, a violação da ratio legis pode constituir pressuposto objetivo da rescisão. É o mesmo que infringir a lei: “Quare ratione legis correcta, dicitur correcta ipsa lex”; “Quia contra legem facit, qui illius mentem offendit”; “Nuíla est sententia lata contra rationem legis, sicut quae profertur contra legem”. Como se vê, os textos de Há rtolo de Saxoferrato, dos seus contemporâneos e dos pósteros não permitiam dúvidas. Toda regra — de qualquer procedência que seja, tida como convicção jurídica e, na prática (trata-se de doutrina ou de decisão judicial), realizável, de preferência a outras que a excluiriam, ou modificariam — é direito. A lei brasileira, no passado e hoje, fala em analogia”, “costumes” e “principios gerais do direito”. Com isso, não se obstaram outras fontes. O juiz diz o direito, o direito que é; por isso não o faz, com o propósito de legislar: a sua atividade criativa é de revelação, de levar o arame de estaca a estaca, compondo o cercado. Nessentido é que do juiz que mais criou, o Pretor romano, se afirma: “Praetor ius dicere, ius facere non potest”. A analogia, para se aplicar, ou para se não aplicar alguma regra jurídica, pode dar ensejo à ação rescisória, Se o juiz ou o tribunal diz que ao fato a corresponde a regra jurídica b, porque falta a regra jurídica a, o juiz ou tribunal ofende o direito constituído, se regra jurídica a existe, ou seria o caso de se aplicar a regra jurídica c, ou não aplicar regra jurídica. Daí não se dever receber o que disse a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 3 de agosto de 1943 (RF 99/73), ao afirmar que “a analogia ante-supõe omissão, caso em que não pode haver erro judicial que justifique o uso da ação rescisória”. Pense-se em que o próprio Supremo Tribunal Federal, mesmo em decisão de recurso extraordinário fundado em texto constitucional do art. 102,111, pode ter assente que a interpretação analógica é que é a verdadeira, e seria absurdo, pela contradição, que se indeferisse pedido de rescisão de sentença que aplicou aquilo que o Supremo Tribunal Federal reputara não ser verdadeiro. Na hipótese, a solução que repelira ou desatendera à analogia. Demais, não se compreende que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal houvesse desprezado a letra da lei que está, gritante, no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), com explicitude decisiva: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Cf. Código de Processo Civil, art. 126 (antes, Código de 1939, art. 113); Decreto-Lei n0 5.452, de 1ª de maio de 1943, art. 8ª Para que se não tivesse de rescindir a sentença, seria preciso que não houvesse omissão da lei escrita, ou que, havendo-a, outra fonte de direito tivesse de passar à frente da analogia. Tampouco só se infringe o texto legal que é “claro”, como insinuou o Supremo Tribunal Federal, a 22 de novembro de 1944 (RF 105/67): a existência da carga jurídica e, pois, a sua infringibilidade independem de ser clara, ou obscura; o sistema jurídico existe em todo os seus enunciados, independente do trabalho de revelação

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deles. O velho aforismo *In claris non fit interpretatio não mais se leva a sério. A regra jurídica escrita pode ser clara, mas não corresponder ao que se poderia enquadrar no sistema jurídico. Era clara a expressão “nula”, no art. 798 do Código de Processo Civil de 1939, mas seria fora de toda ciência que se dissesse que sentença “nula” é rescindível. A jurisprudência jogou fora o adjetivo, literalmente posto, e hoje se riscou. Alguns prazos que se fixam no art. 178 do Código Civil como prazos de prescrição (e.g., os do arE 178, §§ 2ª e 5ª, IV, do Código Civil) são prazos preclusivos, embora a lei os diga, claramente, prazos de prescrição. Sobre o art. 798, 1, c), do Código de Processo Civil de 1939, escreveu Álvaro Mendes Pimentel (Observações, 136 s.): “Empregou o projeto a expressão literal disposição de lei, usada pelo nosso Código Penal no art. 207, § 1ª, e também na antiga Constituição Federal de 1934, quando cogitou do recurso extraordinário, ao invés de direito expresso. Não vamos demonstrar a grande distância que vai de uma a outra. Para se ter certeza do erro grosseiro em que incorreu o autor do Projeto basta que se leia o que, a respeito, com uma profundeza germânica e uma clareza latina, escreveu PONTES DE MIRANDA, na sua notável monografia A Ação Rescisória, 169”. Desde que existem regras escritas de interpretação, são literais como outra qualquer. Se a letra é clara e o sentido não corresponde a ela, a infração da regra jurídica tal como se interpreta é que é violação do direito expresso, e não a infração do texto claro porém infiel à tradução que tinha por fito. Se acórdão reputasse “nula” qualquer sentença do art. 798 do Código de Processo Civil de 1939, tal decisão, a despeito do claríssimo “nula” que havia no art. 798, violaria a lei e era rescindível. O homem ganha em corrigir-se. (e) Ainda quando o juiz decide contra legem scriptam, não viola o direito, se a sua decisão corresponde ao que “se reputa” o direito. (No direito romano, a interpretatio ficava entre o direito e a aequitas: ao aequum ius opunha-se o ius iniquum; cf. Gaio, III, 25: íuris iniquitates. Vale a pena lerem-se as notas de Theodor Kípp, Geschichte, 83; no direito brasileiro, nosso Sistema de Ciência Positiva do Direito, II, 2ª ed., 276 s., sobre alguns casos, típicos, de aplicação contra legem scriptam, absolutamente justos, por parte da justiça brasileira. O absolutismo da correlação necessária entre texto e direito, que o Estado despótico pregara, o Estado constitucional herdou e as chamadas escolas positivistas receberam como realidade social permanente, por falta de conhecimento sociológico, foi aspecto de momento histórico. Felizmente, em torno da expressão “direito expresso , as mentalidades jurídicas dos séculos XVI e XVII, que tiveram a missão de interpretá-las, livraram-nos da dogmática oficial dos séculos XVIII a XIX (a que só alguns filósofos católicos, ou de formação sociológica se contrapunham). O juiz tem de decidir. Diante de lei que contradiz a ela mesma, ou a outra lei em vigor e por ela não revogada, cabe-lhe dizer o que é o direito: não o faz, revela-o. (Também ao legislador deveria tocar, posto que, com mais liberdade, a revelação. Resquícios de despotismo fazem com que se creia mais destinado a fabricar as leis que a revelá-las. Por outro lado, fazê-las é fácil; adotar a que, no momento, a ciência aponta como a melhor, supõe que seja um técnico e que esteja em dia com a ciência). Tudo que se fixou, segundo o método de interpretação e fontes do sistema jurídico a que pertence a matéria, é ius cons titutum. Não é verdade que o direito interpretado, a regra jurídica que se adquiriu pelos meios interpretativos, mesmo analógicos, ou de princípios gerais, ou, até, a contrário senso (argumento que não é dos melhores), não possa constituir-se, não possa exprimir-se, não possa ser jus constitutum, ius expressum. Hoje, afirmá-lo seria absurdo, dadas as convicções da ciência vigente. Outrora, assim não se entendeu, e só a obra da ignorânda mete distinções onde não as há. Todos sabem a enorme autoridade de D. E. Altimaro para o direito lusitano, de que houvemos a expressão; pois bem: o jurista itálico grafou, mais uma vez, a persuasiva frase dos seus antecessores, e nas suas citações inclui a dois Portugueses: a Antonio da Gama e a Agostinho Barbosa. Esses só excetuavam o caso de ser a afirmação a contrario sensu, contrária, por sua vez, a tus expressum. D. B. Altimaro, depois de dizer ser nula a sentença contra o costume notório ou provado, ensinava: Idem dicimus de sententia lata contra legem, sumpto argumento a contrario sensu” o que se há de entender “quando contrarium non est in iure expressum”. Por outro lado, há regras escritas de interpretação e fontes, suscetíveis, como as outras, de violação in thesi. E há regras jurídicas de exegese que são escritas, mas constam do sistema jurídico. (No livro Da Açâo Rescisória, 2ª ed., 149, Jorge Americano falou de tese da lei, em vez de dizer direito de tese, Uis in thesi. O acórdão do Supremo Tribunal Federal, que citou, não lho permitia. Engano, entenda-se, de expressão). Na matéria do art. 485, V, o juiz tem de dizer o direito, tal como entende que é e foi violado, sem se preocupar com o fato de existir, ou não, interpretação divergente, salvo se houve uniformização da jurisprudência (Código

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de Processo Civil, arts. 476-479) e ficou assente no Superior Tribunal de Justiça, ou pela medida da Constituição de 1988, art. 52, X, sobre suspensão da aplicação da lei pelo Senado Federal. As diferenças de exegese passam-se no sujeito, nos juizes, e não no ordenamento jurídico. São subjetivas. Seria bem frágil o sistema jurídico se ao simples fato do erro, da meia-ciência, ou da ignorância de aplicadores e intérpretes, as suas regras jurídicas pudessem empanar-se, encobrir-se, a ponto de não se poder corrigir a violação da lei. Assim, quando as Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a 3 de dezembro de 1952, deixaram de rescindir julgado que infringira regra jurídica, com o simples argumento de que havia duas diferentes interpretações da lei, reinfringiram o direito, porque o atacaram em sua própria integridade e o reduziram a algo de só existente nas mentes dos juizes. Aqui, fazem-se mister algumas precisões. a) Questão de interpretação é questão de se saber qual a regra jurídica, ou qual a configuração da regra jurídica, que está no sistema jurídico e deve ser, portanto, explicitada. b) Questão de escolha, entre interpretações dadas é questão que somente surge se há duas ou mais interpretações e tem o tribunal de fixar qual a certa, de assentar a melhor. Quando se infringe a interpretação, que écerta, e se adota a não-certa, quer ocorrendo a), quer ocorrendo b), infringe-se a lei, no sentido de elemento proposicional do sistema jurídico. O esforço que possa custar ao juiz para obter a interpretação certa não importa. lura novit curia. O juiz tem de saber e de dizer a lei: se o não diz, ou se entende que lhe vai custar muito encontrar o senso da lei, não interessa à ordem jurídica. O defeito, a deficiência, a defecção, é dele. Ás vezes, a jurisprudência muda entre o proferimento da sentença e o último dia do biênio. Outras vezes, depois de proposta a ação. De modo que, no momento em que se vai julgar a ação rescisória, o direito já se acha diferentemente revelado. Dois acórdãos do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (8 de junho de 1926 e U de junho de 1928) pretenderam que, sendo outra a revelação ao tempo da sentença rescindenda, não pode ser julgada procedente a ação rescisória. Estavam em erro. Não só é rescindível tal sentença, como o são quaisquer outras sentenças que tenham revelado erradamente o direito. A nova jurisprudência faz suscetíveis de rescisão a todas e só o biênio pode cobri-las contra o exame rescindente. Pensemos em três momentos: a) foi decidido que o sentido de regra jurídica era a (ou que não existia regra jurídica); b) foi decidido que o sentido da regra jurídica era b (ou que existia a regra jurídica b, revelável pela interpretação); c) foi decidido que o sentido da regra jurídica era c (ou que existia a regra jurídica c, revelável pela interpretação). A solução a) foi a que se adotou no julgamento do caso X; a solução b), a que saiu vencedora no caso Y; a solução c), a da decisão no caso Z. As três sentenças transitaram em julgado e foram propostas três ações rescisórias. Se o juiz ou tribunal que tem de julgá-las é o mesmo, pode ele deferir dois pedidos de rescisão e indeferir um, ou entender que a solução verdadeira não fora dada: seria a solução d). Teria de rescindir as três sentenças. Para só indeferir um dos pedidos de rescisão, um dos fundamentos maiores para o juiz seria o de estar firmada a jurisprudência no sentido do que a ação se decidira, principalmente se constante de decisão em recurso especial que examinou a discordância de interpretações (Constituição de 1988, art. 105, III, c)). Não há, porém, a adstrição absoluta à jurisprudência, salvo se houve a suspensão de execução da regra jurídica a que se referiam os arts. 64 da Constituição de 1946, 42, VII, da Constituição de 1967, com Emenda nº 1, e a que se refere, hoje, o art. 52, X, da Constituição de 1988. De qualquer modo, diante das discordâncias de julgados é fácil caber o recurso especial, com base no art. 105,111, c), da Constituição de 1988. Os acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo. de 21 de fevereiro e de 6 de junho de 1919, decidiram que a sentença que julga contrária à Constituição regra jurídica de decreto ou de lei não é suscetível de rescisão. Escusado é argUir-se a improcedência palmar de tal conclusão: o direito constitucional é direito, como os outros ramos; não no é menos; em certo sentido, é ainda mais. Rescindíveis são as sentenças que o violam, quer se trate de sentenças das Justiças locais, quer de sentenças dos tribunais federais, inclusive as decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal. Se em ação, ou em recurso, o Supremo Tribunal Federal disse que é contrária à Constituição alguma regra de lei, ou de decreto, ou de regulamento, ou de regimento, ou de aviso, ou de circular, ou de portaria, ou de ordem, e errou, cabe a ação rescisória. Se o Supremo Tribunal Federal, em ação ou em recurso interposto no correr da ação, decidiu que não é contrária à Constituição alguma regra de lei, ou de decreto, ou de regulamento, ou de aviso, ou de circular, ou de portaria, ou de ordem, e errou, cabe a ação rescisória com fundamento no art. 485, V, do Código de Processo Civil. Temos aqui de enfrentar problemas delicadíssimos. Houve julgado em tribunal, pelo voto da maioria absoluta

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dos membros que integram o tribunal, o que foi objeto de súmula, para a uniformização da jurisprudência. Para bem examinarmos o assunto, partamos da suposição de diferentes atitudes do julgador ou dos julgadores: a) de atender à última interpretação que foi dada pelo juiz, ou pelo tribunal, ou por tribunal superior; b) de continuar a escolher a que lhe parece a mais acertada, tendo havido, ou não, julgamento em grau superior, que adotou uma delas; c) de aplicar aquilo que consta de súmula, seja do tribunal, ou de tribunal superior; d) de procurar a observância de o), ou no tocante a súmulas, mas diante delas ter a mesma atitude de b); e) de apegar-se à súmula se o regimento interno a tornou imperativa. A atitude b) só se justifica se o juiz ou o tribunal tem razões profundas para assumi-la, devendo apontar, rigorosa-mente. os fundamentos que o levaram à escolha. Quanto à atitude d) e e), pode-se dizer o mesmo que acima dissemos quanto a pois a súmula tem em si algo mais, de modo que para se decidir contra ele é de mister fundamentação convincente, pois houve, no Código de Processo Civil, a ratio Iegis de uniformização da jurisprudência (arts. 477-479) e a súmula, lê-se no art. 479, “constituirá precedente na uniformização da jurisprudência”. A atitude e) é admissível, tanto mais quanto o julgamento, para se chegar à feitura da súmula, tem de ser por maioria absoluta dos membros do tribunal e há” a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante” (art. 479, parágrafo único). Quanto à absoluta observância, seria ela limitação violenta à liberdade de julgar e daria à súmula mais poder, mais imperatividade, do que aos textos legais e aos próprios textos constitucionais suscetíveis de interpretações dife- rentes e divergentes. O Tribunal que redija o seu Regimento Interno não pode fazer mais do que poderia o Poder Legislativo. Tem-se de pensar no trato igual quanto à elaboração de regras jurídicas. Passemos a outro plano. Na Constituição de 1988, art. 52, X, estatui-se que compete privativamente ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal” (cp., antes, a Constituição de 1934, art. 91, IV; Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, art. 42, VII). Se o Senado Federal suspende a execução da lei (aliás, qualquer regra jurídica), e o Poder Judiciário volve a considerá-lo de acordo com o Constituição, jjcomo se há de entender a atitude do Poder Judiciário? Suspensa a lei não mais pode o Supremo Tribunal Federal, ou qualquer tribunal, ou juízo, aplicá-la: não é eficaz; portanto, não incide. Não há suspensão de suspensão. Se nova lei se faz, essa, e não a suspensa, é que se há de aplicar. Mas pode advir a suspensão da nova lei. (Evite-se, no caso de suspensão, falar-se, como fez o jurista norte-americano. Allen Smith, The Spirit ol American Government, 95, de veto judicial). (f) Todo direito extralegal (fora dos textos) precisa de certos elementos de fixação, porém não depende ela, somente, da reiterada jurisprudência. Nada obstaria a que, no juízo rescindente, a corte julgadora ferreteasse como contra direito literal toda uma série inexcetuada de julgados; toca-lhe, aí, a missão de velar pela realização relativamente perfeita do direito objetivo, e falharia a ela se tivesse de se submeter aos julgados dos outros corpos. Constitui um dos poucos argumentos a favor da competência das câmaras mais altas e plenas para o conhecimento da ação rescisória, em vez da atribuição ao mesmo juiz. (g) Muitas vezes, o proponente da ação rescisória invoca princípio que não está na lei, ou que colide com a literalidade de algum texto. Será devido, por exemplo, à derrogação pelo costume, quando a regra jurídica já não corresponde à convicção da sociedade ou à sua função adaptativa, como acontece a uma porção de posturas municipais inaplicáveis, de que se esqueceram os artigos derrogatórios das leis novas. Ainda onde um Código diz que a lei só se derroga por outra, o que ocorre é a confusão do legislador: pretendeu legislar sobre o direito intertemporal, ou sobre fontes e interpretação das leis (dois ramos de sobredireito), e invadiu a mecânica social; como se uma repartição, encarregada de punir os atentados às árvores, decretasse que “não fossem mais suscetíveis de ser cortadas”, atribuindo-lhes, assim, a dureza do aço. Algo parecido com aquela Constituição espanhola em que se postulava que “todos os Espanhóis serão bons”. (h) A atuação dos outros processos adaptativos cria direito, sustenta direito e derroga direito. Cria direito, como, por exemplo, e a cada momento vemos, suscitando os projetos, todos ligados, em grande parte, a interesses econômicos, morais, religiosos, artísticos, científicos, políticos. Sustenta, como ocorre com a indissolubilidade do vinculo matrimonial, regra jurídica com escoras religiosas. Derroga, como sucede com os regulamentos sobre altura das casas, materiais de construção, transportes, na medida que a economia muda. Se o juiz tiver de aplicar a lei que ordena algum ato de que a ciência haja descoberto a nocividade pública, deixará de aplicá-la, porque a convicção pública, confiante na técnica dos investigadores, se opõe ao ius iniquum, à iníqua (ex. Com a Religião e a Ciência, a Moral, a Política e outros processos, acontece o mesmo. Quasempre o juiz traz à balha as vagas alusões à cultura, à civilização, ou à evolução social. Mas, fatos sociais, eles cortam o

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direito, no sentido progressivo, ou no regressivo, desde que erradamente se prossiga ou que volva sobre as pegadas. (i)Algumas vezes, o juiz atende à mudança dos próprios fatos que sugeriram a lei: Cessante ratione legis, cessat (ex ipsa; à semelhança do que ocorre, nos atos juridicos, com a cláusula rebus Mc stantibus. No juízo rescidente, o tribunal tem de verificar se a aplicação seria perniciosa, tola, extemporãnea. No caso de corresponder a parte da convicção pública, a própria decisão do Tribunal mostrará, por seus votos, se é suficiente, ou não, para sustentar a lei. Essa noção de suficiência na sustentação da lei constitui a pedra-de-toque para os juizes e, para os de fora, quanto aos juizes. O ideal de cada momento seria o direito em que tudo estivesse claro e preciso; mas ofenderia a outro ideal, dentro do tempo, que é o da própria função adaptativa do direito. Por isso, o juiz deve afastar-se do texto legal quando, deixando de aplicá-lo, serve ao direito do seu momento, porque, com tal procedimento, atende aos dois ideais aparentemente inconciliáveis: o da fixidez e o de mutação. Afastamento consciente, motivado; ou, como acontece com os velhos textos esquecidos, inconsciente. Na ocasião de julgar contra legem, o juiz deve ter em vista se outro juiz, igual ou superior a ele, julgaria assim. (Ponhamos de parte as outras fórmulas: colega médio, juiz normal, outro juiz, prudente colega, que são vagas e inexatas.) Principalmente, deve evitar a infração hipócrita. Chama-se infração hipocrítica àquela em que o juiz, embora pareça atender à lei, em verdade lhe deu sentido que não é o dela. As vezes, elogia-a, e ofende-a; ou diz que a aplica em todo o seu rigor, e a nega em seus limites ou em sua típica abrangência. Tudo o que é direito é suscetível de ser violado; portanto, de dar ensanchas à rescisão. O que se entende por ius constitutum, passemos a ver. É costume invocar-Se, contra ou para as decisões, a parêmia Lege non distinguente nec nobis est distinquendum, regra estreita da escolástica, a que se substituiu, com vantagem, o Bene iudicat, qui bene distinguit. Ao juízo rescindente cabe verificar se era o caso, ou não, de distinguir. Quando a lei ordena que se apliquem princípios gerais de direito encampa todo o direito não-escrito e o direito escrito mas esparso. (j) Por outro lado, é de grande importância fixar-se a natureza das regras jurídicas: se cogentes (ius cogens), compreendendo as imperativas positivas e as negativas, também chamadas imperativas e proibitivas; se dispositivas, que abrangem as dispositivas em sentido estreito e as supletívas; se, finalmente, interpretativas. Direito é qualquer delas. Se uma regra jurídica cogente foi violada — negada, invertida, adulterada, destruída em parte, deformada, a ponto de desaparecer ou dizer outra coisa que o que diz — temos o pressuposto suficiente para a rescisão. Dar-se-á o mesmo, se dispositiva a regra jurídica (Corte de Apelação do Distrito Federal, 12 de abril de 1933, violação do art. 1.092, alínea 1ª do Código Civil, que é dispositivo), porque a violação de tais regras jurídicas também modifica o direito objetivo. Se interpretativa, também: as regras legais, com que se interpretam os atos juridicos, são parte integrante do direito objetivo, e a função delas interessa profundamente aos fins da justiça: apaziguar e realizar o direito objetivo. Além disso, constitui ofensa ao direito aplicar o juiz a regra jurídica interpretativa, que só seria de invocar-se na dúvida, como dispositiva, ou a dispositiva como cogente (imperativa, proibitiva), fazendo dizer como imposto o que só se devia enunciar na falta de vontade dos figurantes, ou do figurante, ou a cogente como dispositiva, ou a dispositiva como interpretativa, ou a interpretativa como cogente, ou a co-gente como interpretativa. A regra jurídica interpretativa do art. 85 do Código Civil, por exemplo, não tendo sido aplicada, dá ensejo à ação rescisória, o que obriga a exame do ato jurídico, para se verificar se foi atendido o princípio legal. Tal foi o que fez, na Ação rescisória nº 86, a Corte de Apelação do Distrito Federal, a 14 de dezembro de 1932, se bem que pareça ter pretendido seja expressa (? 1) a violação. Não é preciso que o juiz diga: “Deve-se atender mais à letra que à intenção”, basta que, invocado o art. 85 explícito ou implicitamente, o juiz deixe de levá-lo em conta. Também não é certo que a ação rescisória tenha por fito, como o recurso especial, manter a unidade do direito federal. O remédio da rescisão nunca possuiu tal função. O seu intuito é estranho à distinção “direito federal, direitos locais”. O direito constituído, que pode ser ofendido, é qualquer direito: o federal do Brasil, o local de algum Estado brasileiro, o municipal, o direito consuetudinário, o próprio direito estrangeiro, o direito interestatal, o direito supra-estatal. Se existe regra jurídica interpretativa, que foi infringida ao se interpretar negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu, cabe ação rescisória: a regra jurídica interpretativa, ius interpretativum, é regra de direito, como qualquer outra. Se o erro é na interpretação sem se infringir ius cogens, ius dispositivum ou ius interpretatiuum, então sim, — não há rescindibilidade, segundo o art. 485, V, nem segundo o art. 486. Sem razão, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, a 20 de setembro de 1951 (RTCJES VI! 315), afastou a rescindibilidade das sentenças

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se interpretam contratos. Tinha o tribunal de distinguir: estava o juiz, ou não, adstrito a aplicar regra jurídica cogente, dispositiva ou interpretativa. A simples injustiça da sentença e a má apreciação da prova, ou errônea interpretação do contrato, não autorizam o exercício da ação rescisória. A má apreciação da prova consiste em má solução de quaestio facti, ou de quaestiones facti. O deixar de atender ou interpretar erradamente a regra jurídica interpretativa não é mal apreciar a prova, — é infringir ius interpretativurn. O deixar de atender, ou o interpretar, erradamente, regra jurídica que estatua sobre produção e valor de prova, não é mal apreciar prova, — é infringir regra legal sobre prova. Assim, se foi admitido uso ou costume, sem observância do art. 49 da Lei de Introdução ao Código Civil, houve infração, e não só má interpretação da prova. Se o juiz, a despeito do demandado, na contestação, ter negado o fato que o autor alegou, entendeu que o ônus da prova incumbia ao demandado, infringiu o art. 333, 1, do Código de Processo Civil, se bem que, com isso, possa ter mal apreciado a prova. Se o juiz permitiu prova alhures, sem que precedesse carta precatória ou rogatória, fora dos casos em que o direito, excepcionalmente, o admite cautelosamente, infringiu o art. 202, § 2ª do Código de Processo Civil, tenha ou não havido má apreciação da prova. Se o juiz dispensa a conferência, pelo escrivão, da conformidade entre a cópia do documento particular e o original, intimadas as partes, viola o art. 385, caput, do Código de Processo Civil, tenha havido, ou não, má apreciação da prova. Se o juiz atende, no apreciar as provas, a documento escrito em língua estrangeira, que não foi traduzido oficialmente, não só aprecia mal as provas, — infringe o art. 156 do Código de Processo Civil, que exige, em todos os atos e termos do processo, o uso do vernáculo. Se o juiz não admitiu, ou não exigiu, outorga de poderes especiais para confessar, violou o art. 349, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Os arts. 400-419 são regras jurídicas sobre testemunhas, que podem dar ensejo à ação rescisória. Se não foi admitida prova em contrário a presunção legal, iuris tantum, pode caber ação rescisória. Se o juiz não podia, in casu, negar a perícia, e a nega, cabe a ação rescisória. O Supremo Tribunal Federal, no acórdão de 25 de junho de 1924, disse que, excutida a hipoteca, a ação rescisória da sentença não pode ter por objeto nulidades do contrato hipotecário que se reputou por válido, mas, tão-só, a nulidade da sentença. Cumpre atender-se a que a sentença pode ser válida (de regra, só sentenças válidas se rescindem), e o fundamento da ação rescisória ser exatamente a violação de direito objetivo em se tratando de lei sobre nulidade do contrato hipotecário. Não é pressuposto da ação rescisória ser defeituosa a sentença como tal; nem, a fortiori, ser nula. A sentença pode ser rescindida porque houve algum dos fatos do art. 485 do Código de Processo Civil, prevaricação, concussão ou corrupção do juiz, impedimento, incompetência absoluta, ou ofensa à coisa julgada, ou violação de direito expresso ou em tese (“contra literal disposição de lei’), ou por falsidade do que serviu de fundamento, a aparição de documento ignorado, ou não apresentável, invalidação de confissão, desistência ou transação, erro de fato. A sentença ou é defeituosa em si, ou porque nela se dá um dos pressupostos. (k) Chama-se direito subsidiário àquele a que se reportaram as leis, como suficiente para subsidiar, completar, integrar o ius scriptum autóctone, ou que, mesmo sem alusão expressa, tem tal função. Aliás, a subsidiariedade pode ser entre dois domínios jurídicos do mesmo país. Seja como for, o direito subsidiário, desde que se dê a subsidiação, direito é, como a communís opinio, a que se referiam os velhos jurisconsultos. A propósito do recurso extraordinário, Pedro Lessa sustentou que se não entendia com ele a função controladora do Supremo Tribunal Federal. Daí, terem procurado aplicar tal restrição à ação rescisória (Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, 113; Jorge Americano, Da Ação Rescisória, 2ª ed, 149). Sem razão; porque, se a communis opinio é direito cuja violação permite a rescisão, nada justificaria que se excluisse o direito subsidiário. Hoje, de regra, a lei não se reporta a fontes estrangeiras ou religiosas, mas pode dar-se subsidiariedade interna. De qualquer modo, o direito é um só, seja escrito, seja não-escrito. Cp. Código de Processo Civil, art. 337. A decisão da Corte de Apelação, de 13 de setembro de 1933, nos fundamentos, excluira o direito subsidiário. Errou palmarmente. Para se ver a que ponto erraram os que excluiram o direito subsidiário, basta lerem-se os velhos textos, que seria longo transcrever, dos séculos XIV, XV e XVI, isto é, dos tempos em que se formaram a legislação e a doutrina portuguesas, pré-história e história comuns à nossa, e dos séculos posteriores, em que as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas se aplicaram. Os estatutos só se não consideravam ius constitutum quando repugnavam ao direito comum; e o direito canônico (Consiiio Tridentino, por exemplo) era bis constitutum onde fosse de seguir-se. Quando se fala de sentença contra direito expresso, é a “sententia contra legem, vel statutum, vel extravagantem, in corpore iuris clausam”. Ia-se até aos estilos, à com suetudo iudiciária, inclusive os costumes da Cúria. Depois, todas as fontes segundo a lei pombalina.

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E assim é que se há de entender. Se o decreto ou o regulamento tinha de ser aplicado e foi infringida, como bis constitutum, daí decorrendo violação de direito em tese, a ação rescisória cabe. Não só a lei é fonte do direito. No art. 485, V, do Código de Processo Civil, “literal disposição de lei” é “literal disposição de qualquer fonte do direito”. O que importa, previa-mente, é saber-se o Poder Executivo ou o Poder Judiciário podia, em decreto, ou regulamento, ou em aviso, ou em portaria, ou em regimento, edictar a regra jurídica que edictou e foi infringida, como direito em tese, Não se pode recusar ao demandado alegar que, com o decreto, ou o regulamento, ou o aviso, ou a portaria, ou o regimento, se ofendeu a Constituição federal, ou a Constituição estadual, ou a lei orgânica do Município, ou a lei federal, estadual ou municipal. Assente que a regra jurídica pode ser imposta pela entidade que a impôs e não feriu Constituição ou lei, trata-se de lei, em sentido amplo, e o art. 485, V, é invocável em caso de ofensa a ela. (1)O direito, que a rescisória protege, é só o direito material, ou também o processual Qualquer resposta simplista pecaria desastradamente. Primeiro, porque o direito processual é tanto direito quanto o direito material, e fora arbitrário distingui-los, considerando-se, a um, digno de vigilância e de retomada da prestação jurisdicional, e ao outro, não. É falso que o processo só tenha por fim realizar o direito material; ele procura realizar o direito objetivo, material ou formal. Direito processual e processo são coisas diferentes: aquele é norma; esse, foto. Poderíamos invocar os grandes reformadores do direito processual —aqueles a respeito dos quais disse Wilhelm Sauer que o processo é velho e jovem a ciência do direito processual — para com eles fundamentar o que acima dissemos quanto à possibilidade de constituir violação do direito expresso a ofensa do direito processual. Mas, de lege lata, jque melhores autoridades poderíamos invocar se temos as que escreveram ao tempo em que se redigiram as leis portuguesas? J. Menochio e D. E. Altimaro (Tractatus, III, 519) falavam de stylus iudiciorum circo processus ordinationem et iudiciorum usum. Segundo, se é certo que as nulidades do processo são atendidas no rol dos atos e termos processilais substanciais, não é impossível pensar-se em nulidades da sentença, à parte dos atos e termos. Aliás, a falta ou defeito de qualquer dos figurantes da relação jurídica processual, a nulidade da sentença definitiva, não são propriamente nulidades do processo, tal a importância de tais fatos, que dizem respeito, imediatamente, à formação ou à terminação da relação jurídica processual. Tem-se de repelir a esporádica jurisprudência que pretendia afastar a violação do direito processual em tese como pressuposto da ação rescisória (Corte de Apelação do Distrito Federal, 28 de setembro de 1916. Viola-se o direito, deixando-se de aplicar princípios que dele fazem parte, escritos ou não, ou aplicando-se outro que lhe seja contrário, modificatiuo ou excludente. A contrariedade, a subcontrariedade ou oposição de duas proposições particulares, a contradição, a subalternação (diferença de quantidade, ou inferência imediata, em virtude da qual se conclui da verdade da subalternante à da subalternada) e a exclusão, cada uma é suficiente para que se componha a violação. Não importa se violado é o direito material, ou o processual, ou, até, o constitucional. A violação do próprio direito constitucional em tese não é mais suficiente como pressuposto da ação rescisória do que a violação do direito ordinário, processual ou material, público ou privado. Os recursos extraordinário e especial dos arts. 102, 111, e 105,111, da Constituição de 1988, selecionam direito; a ação rescisória, não. A propósito, há certo ponto, que é novo e de grande relevância. Ainda quando a ação rescisória se funda em que se violou a Constituição, por ter o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, repelido alegação de inconstitucionalidade de lei, apura-se a violação da Constituição, em tese. O Supremo Tribunal Federal, não acolhendo, indevidamente, a preliminar, violou, com a sua atitude de abstenção, o direito constitucional. Aliás, em matéria constitucional, como em todo outro ramo do direito, lura nouit curia. Se o juiz viola a regra de direito pré-processual, processual, material, constitucional, administrativo, judiciário interno, sobre-direito no tempo ou no espaço, ou no espaço-tempo, a ação rescisória cabe. O que interessa ao Estado e ao povo é a integridade, a observância, o respeito de todo o seu sistema jurídico. Alguns acórdãos insinuam que, não havendo mais, no Código de Processo Civil, regra jurídica explícita que faça nula a sentença proferida em processo nulo (e.g., o das Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 6 de agosto de 1942, DJ de 12 de fevereiro de 1943, 894), não se rescinde a sentença que infringiu a lei processual. Mas o sofisma ressaltou, pois o art. 485, V, do Código de 1973, como o art. 798, 1, c), do Código de 1939, não distingue: se há a infração, ainda que não seja causa de nulidade de processo, pode ser rescindível a sentença. Se, por exemplo, foi decidido, com força de coisa julgada, que o procurador não tinha poderes para o recurso e assim passou em julgado a sentença, pede-se a rescisão da sentença, sobre os poderes de procura judicial, e não a da sentença, pois, rescindida aquela, o prazo corre depois de passar em julgado a sentença proferida na ação rescisória. Só se hão de cumular os pedidos de

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rescisão se a decisão no incidente, já influiu na sentença posterior (certo, em parte, o Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 29 de dezembro de 1941, RF 91/186). Se não se cumularam, após a rescisória da sentença no incidente, pode ser proposta a da sentença em que a decisão daquele ou dessa influira (sem razão, o acórdão acima citado). Se, sem algum julgado (o rescindendo), atos posteriores poderiam ser diferentes, ou não se teria dado preclusão recursal quanto a eles, esses atos caem (art. 249). Alguns julgados exigiram que tenha havido discussão sobre violação da lei. De modo algum. Pode A ter discutido a aplicação da regra jurídica a), afirmando que incidiu, ou é de incidir, e E negá-lo, por entender que incidiu ou é de incidir b), aplicando o juiz a regra jurídica c), porque Jura nouit curio. Seria absurdo repelir-se a ação rescisória, se o juiz errou juridicamente. Pode A ter pedido a aplicação de a e E nada ter oposto, aplicando o juiz a, infringindo o direito expresso, que seria b. Cabe a ação rescisória. Idem, se aplicou c, erradamente. Na apreciação do pressuposto do art. 485, V, não pode o juiz ou tribunal entrar em verificação de concordâncias ou de discordância (mente das partes), nem de interpretações da lei (mente dos juizes e dos juristas): o que lhe há de importar é o direito em tese; e a regra jurídica, que é, somente pode ser urna. A investigação que lhe toca é puramente objetiva: qual a regra jurídica que existe no sistema jurídico que rege a espécie? E lamentável que tenha havido deslizes dos julgadores, entrando em averiguações sobre a conduta das partes, pendente a lide (e.g., 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 18 de janeiro de 1949, RF 126/124; Tribunal de Justiça do Ceará, 9 de abril de 1952, JD VI, 148). Ou tais erros provêm de ignorância do assunto, ou do propósito hostil de afastar as rescisões. É preciso, portanto, que se não confundam o erro de direito e o erro de fato. Se foi alegada violação de regra jurídica, acoima-se de error iuris a sentença. Pode não ter sido discutido, nem sequer, apontado, durante o processo, tal erro. A infração basta. Se o erro foi de fato, então o trato é diferente: quer o juiz tenha admitido fato inexistente, quer tenha considerado o ocorrido fato que não ocorreu, é indispensável que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre isso (art. 485, IX, e §§ e 2ª) O que se exige para a ação rescisória por ofensa a regra jurídica é que o juiz a tenha aplicado, e o não devia, ou não a tenha aplicado, se o devia. E rescindivel a sentença em que o juiz aplicou regra jurídica, que não cabia ser aplicada, mesmo se nenhuma das partes a invocara: é na aplicação ou na ausência de aplicação que se revela o pressuposto do art. 485, V (“violar literal disposição de lei”). A Corte de Apelação do Distrito Federal, a 16 de dezembro de 1936, julgou caso de violação de direito processual expresso, mandando que se julgasse o recurso cabível, do qual o acórdão não conhecera, desprezando o texto da lei então vigente. A 25 de maio de 1938, o Tribunal de Apelação do Distrito Federal assentou: em conhecer da ação rescisória, se bem que se não houvesse invocado, no processo da sentença rescindenda, a lei que se diz violada, desde que é aplicável de oficio (PONTES DE MIRANDA, A Ação rescisória contra as sentenças, 197, s.’). O julgado foi certissimo. Não se precisa ter invocado lei, para que se viole lei: a lei está implicitamente invocada quando se expôs o fato e o fundamento juridico do pedido, ou quando se especificou o que se pedia, ou quando se disse o juízo a que se pedia, ou quando se contou com a observância de alguma regra juriclica sobre formalidade, prazo ou procedimento. lura novit curio. (m)Modestino, na L. 19, D., de appellotionibus et relationibus, 49, 1, falou de sentença “expressim contra juris rigorem data”, e “specioliter contra leges vel senatus consultum vel constitutionem prolata”. Duas correntes explicavam as palavras “expressim” e “specialiter” de Modestino. Uma entendia ser necessária a violação expressa; outra, vitoriosa, com F. C. Gesterding, M. Bardeleben e G. M. Schaffrath, Alexander Meyer (De Nullitate sententiarurn contra lus constituturn lotaram, 9 s.) resumiu a opinião deles: “Modestinum enim eo tantum consilio verba expressim et specialiter adiecisse, ut sententias quibus lus solum litigatoris laedatur seiungat ah iis, quibus iudex contra constitutionem decidens et quasi deroget”. E, acrescentou, traduzindo a opinião (o que para nós vale mais, como parte do direito comum): “Idem Modestinum verbis expressim et specialiter hoc tantum significare aiunt, iniustam sententiam non utique etiam contra ius datam videri, sed distinguendum, utrum is tantum litigatoris laedatur (a iudice puta in facto errante) an verso falsa iuris ratio subsit, qua iudex legibus aut constitutionibus quase deroget”. Primeiramente, convêm advertir-se em que a parte do fragmento, em que aparece o “specialiter”, é interpolação. Segundo, o “expressim”, não está, ai, por violação expressa, mas sim por expressamente dada a sentença, isto é, se a sentença se exprimir do jeito que ofenda a lei, ou a ser contra o rigor do direito.

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Demais, é preciso que se não confundam a necessidade de indicação, na petição da ação rescisória, da regra jurídica violada, e a exigência de ser expressa a violação pela sentença rescindenda. A sentença rescindenda pode ofender, até por omissão, o direito. Pode até ofendê-lo sem dizer que o ofende, ou com os protestos de acatá-lo. Não há por onde reputar-se pressuposto que se diga violar o direito, ser “contra iuris rigorem”. Outra coisa é a fundamentação da petição na ação rescisória. Porém, ainda ai, a fundamentação pode ser tal que satisfaça os requisitos apontados na lei para as petições em geral, sem se citar o texto ou número do artigo de lei, ou parágrafo, em que está a regra jurídica violada. Não é preciso que a parte, que pretende a rescisão, haja expressamente referido, na ação em que a sentença rescindenda foi proferida, a lei que foi violada; nem que o juiz expressamente a tenha ofendido, ou, sequer, discutido, citado ou mencionado. Não é preciso que na petição inicial da ação rescisória se haja apontado o artigo de lei, que se infringiu, se bem que seja necessário que se saiba qual a regra jurídica que se tem como infringida. O que se há de satisfazer é o pressuposto de indicar a petição o fato e os fundamentos jurídicos do pedido (Código de Processo Civil, art. 282, III). Certamente, é de não se admitir a ação rescisória em cujo processo o autor não indica o princípio ofendido ou a regra jurídica violada (Corte de Apelação do Distrito Federal, 1ª de dezembro de 1930); mas isso não quer dizer que não possa invocar direito assente, desde que seja direito, segundo foi definido. Na petição, explícita ou implicitamente, ou na defesa, autor e réu podiam ter exposto a sua situação, ou o que pensavam ser ou pretendiam fosse, de modo a invocarem jus in thesi. Tal invocação, ou resulta de citação de regras jurídicas, ou de alusão a instituto, ou de referência à doutrina, ou dos fatos mesmos, narrados ou aduzidos por eles. Só petição inepta poderia encobrir pretensão, e só defesa ineficiente, inconsistente, encadearia acontecimentos e argumentações, que não estivessem em correlação implícita com o direito objetivo. O julgamento existencial, a respeito desse, é elemento de tal modo essencial, que a sua falta importaria a inépcia da petitio, ou da resposta do chamado àcontenda. Por isso mesmo, ao ter de decidir, o prolator da sentença necessariamente se reporta àquele julgamento, ou à simples inexistência dele. Aí, é que se dará, possivelmente, a violação. Convém separar os dois assuntos: forma e lugar da violação; violação de direito não-alegado. Se houve violação, é preciso que, na ação rescisória, se diga qual foi. Por exemplo: admitiu-se que marido pleiteasse, sem assentimento da mulher, a respeito de bens imóveis. Não é mister que se cite o artigo de lei. lura novit curta. O tribunal negou qualquer exame judicial do ato administrativo. Pede-se, por isso, a rescisão do acórdão. Não é preciso que se cite o art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988. Se o direito é de tal natureza que a parte teria de alegá-lo, ou de opô-lo, como se dá, de regra, com as exceções, não poderia o juiz aplicar a lei. Muda de figura. Outrossim, quando se trata de direito formativo e não o exerceu a parte. Demos exemplos. Se a parte não alegou, em tempo, a prescrição, não mais pode argUir estar prescrita a pretensão. Se propõe ação rescisória porque não foi julgada prescrita a pretensão, tal ação é improcedente, porque não se deixou de respeitar o direito: a prescrição teria de ser alegada, não se declara de oficio (Supremo Tribunal Federal, 22 de novembro de 1946, RF 109/370). Se a parte não alegara compensação, não pode o juiz, em principio, aplicar a regra juridica sobre compensação. (n) A violação pode ser expressa, consciente, confessada, declarada, ou inexpressa, inconsciente, dissimulada (cf. Tribunal de Justiça de São Paulo, a 20 de outubro de 1933), ocultada, velada, disfarçada. Não importa como seja ela. O que é preciso, para que se componha o pressuposto da rescisão, é a violação em si, a negação do direito, conforme foi definido. O direito éque há de ser expresso, disse a Corte de Apelação do Distrito Federal (17 de julho de 1925); não a violação, que pode ser implícita. Quase sempre a infração do direito não se opera de frente, abertamente: o juiz ou tribunal recorre a livros estrangeiros, ou nacionais, tecendo a sua argumentação; ou lança mão de exegese capciosa (Tribunal de Apelação da Paraíba, 26 de março de 1940, RF 82/713). Os erros ontológicos do juiz, erros de falta ou defeito de observação, não podem ser causa de se rescindir a sentença. A lei entregou a depuração deles à técnica dos recursos. Nesses, é que se apura se houve, ou não,

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equívoco dos sentidos, má apreciação das provas, ou falha de inteligência no exame dos fatos. Quantos aos erros nomológicos, nem todos foram versados no mesmo plano; porém, sempre que se trata de violação do direito em tese, cabem a pretensão à rescisão e a ação rescisória. Há, porém, quanto a erro ontológico, o caso do art. 485, VI (falsidade da prova). Se o erro foi erro de fato, resultante de ato ou de documento da causa, ou de atos ou de documentos da causa (admitiu-se como existente o que não era, ou vice-versa), sem ter havido controvérsia, nem pronunciamento do juiz, a espécie entra no art. 485, IX e §§ W e 2ª do Código de Processo Civil, e não no art. 485, V. Isso não quer dizer que não haja casos em que o juiz, ao dar, erradamente, por existente, ou inexistente algum fato, também haja violado regra juridica. Aí, dois pressupostos podem estar satisfeitos. Mais: o não ter havido controvérsia, ou pronunciamento pelo juiz, é requisito para a ação rescisória com fundamento no art. 485, IX; não para a ação rescisória de que se cogita no art. 485. V. Dizia o art. 118 de Processo Civil de 1939: “Na apreciação da prova, o juiz formará livremente o seu convencimento, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pela parte. Mas, quando a lei considerar determinada forma como da substância do ato, o juiz não lhe admitirá a prova por outro meio”. A interpretação do então art. 800, verbis “má apreciação da prova”, tinha de levar em conta o art. 118. O art. 118, 1ª parte (sem dúvida, a essa 1ª parte se referiu, desacertadamente, aliás, o acórdão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 10 de abril de 1942, RF 91/482), dificilmente poderia ser invocado como tendo sido objeto de erro nomológico do juiz: o erro, proveniente de sua má aplicação, ou inaplicação, seria ontológico. Não assim, a 2ª parte do art. 118, que era regra juridica cogente, de outra natureza: a 1ª parte pertencia ao princípio da prova racional, a despeito da aparência de regra jurídica de julgar; a 2ª parte, ao princípio da prova legal. Não era de excluir-se, porém, a hipótese de sentença que infrinja o art. 118, e.g., a que reconhecesse certo fato, que estava provado, inclusive pela notoriedade, e o excluiu no julgamento, “porque não foi alegado pela parte”. Passemos aos textos de hoje. No Código de Processo Civil de 1973, art. 131, está claro: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”. Não se pôs no art. 131 o que corresponderia à parte final do art. 118 do Código de Processo Civil de 1939 (“Mas, quando a lei considerar determinada forma como da substância do ato, o juiz não lhe admitirá a prova por outro meio”). Não se precisava pôr isso no art. 131. O que o direito material estabelece tem de ser estritamente respeitado pelo direito formal. Não se poderia admitir que os pressupostos que o direito material estatui para os documentos ou outros meios de prova pudessem ser postos fora pelo Código de Processo Civil (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo II, 409). Lia-se no art. 280 do Código de Processo Civil de 1939: “A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá: 1, o relatório; II, os fundamentos de fato e de direito; III, a decisão”. No parágrafo único: “O relatório mencionará o nome das partes, o pedido, a defesa e o resumo dos respectivos fundamentos”. Está hoje no art. 458 do Código de Processo Civil de 1973: “São requisitos essenciais da sentença: i — o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma de pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II — os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III — o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem Foi errado o acórdão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul (10 de abril de 1942). Sentença que não tem relatório é sentença que infringiu “literal disposição de lei”. Sentença que não traz em si os fundamentos de fato e de direito, também a infringe. Sentença que não contém decisão, é como as duas anteriores, rescindivel. Também é rescindível a sentença em cujo relatório não se menciona o nome das partes, o pedido, a defesa ou o resumo dos respectivos fundamentos, salvo se noutra parte da sentença, fora do relatório, se satisfaz o requisito que ao relatório faltou. Não há rescindir-se a sentença se da omissão não resultou qualquer prejuízo à parte (arg. ao art. 458 do Código de Processo Civil). Má apreciação da prova não basta para justificar a rescisão da sentença. Aí, só se daria ferimento do direito em hipótese (Supremo Tribunal de Justiça, 30 de agosto de 1873; Corte de Apelação do Distrito Federal, 24 de maio de 1901, 1ª de setembro de 1930 e 14 de julho de 1932; Tribunal de Justiça de São Paulo, 6 de abril e 23

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de novembro de 1904, lº de agosto de 1908, 11 de maio de 1910, 1ª de fevereiro de 1918, 14 de abril, 19 de setembro e 27 de outubro de 1931; Superior Tribunal de Justiça do Amazonas, 25 de setembro de 1919; Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 14 de março de 1872 e 27 de março de 1873). A violação há de ser a “literal disposição de lei”, ao direito em tese (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 13 de março de 1946; Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 13 de junho de 1947, J 29/384). O fato de haver divergência de interpretações não pré-exclui a ofensa à lei (sem razão, as Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 8 de outubro de 1947, RT 17 1/334). Também não a pré-exclui o ter errado a sentença em considerar cogente a regra jurídica dispositiva, ou vice-versa, ou em tê-la como interpretativa, em vez de cogente ou dispositiva, ou vice-versa (sem razão, as Câmaras Civis Conjuntas do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 28 de janeiro de 1948, 173/450, a respeito da regra jurídica Locus regi t actum). Em vez disso, tal qualificação indevida contém, de si só, infração, se o julgado, sem ela, seria diferente. Para cabimento da ação rescisória, o que importa é que tenha havido infração da regra jurídica, ofensa ao direito em tese. Quais os degraus que subiu o juiz para a conclusão, qual o caminho tortuoso que tomou, mesmo se reproduz a regra jurídica, se lhe acentua os conceitos, se põe em relevo os seus dizeres, há rescindibilidade da sentença se não atendeu ao preciso sentido da regra jurídica, tal como ela se insere no sistema jurídico. Infringe regra jurídica quem a interpreta erradamente. Ao juízo rescindente cabe a missão de apurá-lo. Assim, se o juiz nega que os pedidos possam ser alternativos, infrínge o Código de Processo Civil, art. 288. Se o juiz diz que o pedido, que foi feito, há de ter interpretação extensiva, infringe o art. 293. Se decide que não precisam ser do mesmo rito processual as ações, para que haja cumulação, razão por que é de admitir que se exerça a pretensão de cognição quanto ao pedido a e a de execução quanto ao pedido b, infringe o art. 292, § 1ª, 111. Se o juiz julga que o acréscimo ao pedido podia ser feito em audiência, infringe o art. 294. Em todos esses casos, há rescindibilidade da decisão. (o) Tem-se pretendido que a conclusão da sentença, e não os seus fundamentos, é que deve conter a violação (Tribunal de Relação de Minas Gerais, 15 de dezembro de 1914, RF 23/340). Noutros termos: se algum dos considerandos ou dos raciocínios intercalares do julgado ofende o direito, sem que, na conclusão, haja ofensa, caso não é de ação rescisória. Observe-se, desde logo, a arbitrariedade de tal exigência tópica. Se o juiz armou o raciocínio com perfeição, o final da sentença conterá as duas premissas, a de fato e a de direito. Poderá ser que isso não se dê e, constituiria regra juridica defeituosa a que apurasse onde ele pôs o seu julgamento tétíco. É interessante notar-se que os críticos de tal procedimento caíram no excesso oposto: sustentaram que a violação do direito expresso está sempre nos fundamentos, nas argumentações anteriores à conclusão. Não há solução a priori. A infração pode estar no fundamento, como se o juiz aludiu, no considerando da sentença, à inexistência de certo princípio, ou à inatendibilidade de alguma lei, e o decisum só se mesclar com argumento de fato. Em tudo isso, distinguem-se, formalmente, fundamento e decisão, como se fosse possível, sempre, a separação. Quase sempre o fundamento está implícito no decísum, ou o decisum apenas aparece como conclusão, incindivel dos considerandos. É evidente haver certa desatenção pelos caracteres lógicos de toda sentença. O juiz necessariamente considera o fato, depois do direito objetivo (julgamento existencial), finalmente conclui. A conclusão contém um e outro: o fato e o direito. Se, teratologicamente, a conclusão não confere com o desenvolvimento lógico, nada importa. A sentença, ou afirmará a existência de um direito objetivo, ou negá-la-á, ou dissimulará uma e outra das atitudes. De qualquer maneira, violará direito, desde que, sem razão, foi posto de lado, pela afirmativa do julgamento oposto. ou pela negação direta, ou pela omissão, o julgamento existencial contido na petição ou na defesa. As Ordenações Filipinas falavam em “sendo-lhes alegadas”, o que fez supor que a violação da lei não alegada não constituía violação. Dois textos são expressivos: um, de D. B. Altimaro, e outro, de Manuel Gonçalves da Silva. Dizia o jurista napolitano (Tractatus de Nullitatibus II, 513): “Secus esset, si probabiliter ignoravi potest, puta, quod esset lex nova, aut statutum, seu localis constitutio, et causa vereteretur in alio foro, quam statuentium, et in quo statuta, seu leges huiusmodi extravagantes non querint, neque sint publicatae, nec notoriae, quia his casibus cum possuit talia a iudice probabiliter ignorari”. Insistia o jurista português (Comrnentaria, III, 139): “Intellige iterum de sententia lata contra legem in corpore iuris clausam quae probabíliter ignorari possuit, puta, quod esset lex nova, et non notoria; quia tunc a partibus aliegari, ac produci

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debet”. Tudo isso precisa, hoje, de revisão. O juiz é obrigado a conhecer o direito. Desde que houve invocação, de qualquer espécie que haja sido, deve decidir o juiz, aplicando, ou deixando de aplicar o princípio ou sistema invocado. Dissemos “sistema”, porque existem as ordens jurídicas dos diferentes Estados, segundo a distribuição interestatal das competências, e as dos Estados Federados, nas federações, conforme se dá no Brasil. Dentro do mesmo Estado (no sentido próprio, de direito das gentes), o juiz é obrigado, pela sua função, a conhecer as leis do pais. Quanto às leis de outros Estados, foi assunto de que tratamos em nossa obra sobre direito internacional privado, bem como nos Comentários ao Código de Processo Civil, a que nos reportamos. Posto de lado o problema da obrigação, e suposto que o juiz haja omitido a aplicação do sistema jurídico estrangeiro, ou de Estado, examinaremos o problema pelo ângulo que agora nos interessa: a ação rescisória. Se as partes invocaram texto preciso, a questão por si mesma se resolve. Se disseram, ou se só uma delas disse que dominante era a lei estrangeira, sem precisar quais os textos, a verificação da ofensa ao direito estrangeiro autoriza o remédio juridico rescindente. Resta o caso do direito estrangeiro não invocado e dominante, segundo os princípios. O juiz pode e deve aplicá-lo de ofício. Se não o aplicou, em assunto imperativo das competências, que é de direito da gentes, a rescindibilidade é evidente. Estabelece o art. 337 do Código de Processo Civil: “A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”. Já o Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 25 de maio de 1938, na esteira do que expusemos na 1ª e na edição, de A Ação rescisória, proclamara que o juiz tem de aplicar o direito, ainda que não citado, nem referido. Dir-se-á que o art. 337 cogita da prova do direito estadual, municipal, costumeiro ou estrangeiro. Mas o juiz pode exigi-lo. Juiz que aplicou direito nacional, ou direito do Estado 8, em vez de aplicar o direito do Estado A, que incidira contra o que se pediu, dispensou a prova, e resolveu. Para não dispensar a prova, tem ele de exigi-la, ou, em tempo, dizer que não basta a que foi feita. Não nos esqueça que o princípio geral é lura novit curta. Às vezes, o direito ou a pretensão somente podem ser atendidos se foram alegados. As exceções, essas, têm de ser opostas, para que possa o juiz apreciá-las. Em tais espécies, o juiz não pode aplicar, de ofício, o direito; mas a razao está em que apenas se permitiu opor, exercer o direito. Há. na base, regra juridica que passa à frente, regra jurídica que se poderia formular de modo seguinte: “Nas espécies a, b, e c, regidas pelas regras jurídicas A, B e C, somente pode o juiz aplicar tais regras jurídicas, se o interessado as invocar-se Alguns juristas trazem à discussão trechos de autores portugueses em que, comentando-se os Títulos 60 das Ordenações Manuelinas, Livro 111, e 75 das Ordenações Filipinas, Livro III, só se falava de leis pátrios. Nenhuma pertinência possuem, nos nossos dias, porquanto pertencem a época enormemente diversa da hodierna, em matéria de direito internacional privado, e ao auge do absolutismo estatalista, em reação aos períodos anteriores. Se o juiz brasileiro aplica à sucessão do estrangeiro a lei brasileira quando não devia, tal sentença é rescindivel. Dá-se o mesmo se decreta nulidade ou anulação de testamento, por ter sido feito por estrangeiro de acordo com a forma da lei competente. Tal juiz deu à regra Locus regit actum o caráter de regra jurídica imperativa, ao mesmo tempo que deixou de atender à do Estado competente que permite aos seus adstritos, a forma da Iex patriae ou a do lugar. Duas violações, se quisermos olhar para os textos de dois países. A regra jurídica brasileira poderia ser imperativa, mas sê-lo-ia somente para os atos subordinados à lei brasileira. A lei dominadora de um ato é que lhe dá a forma, ou decide quanto à lei-conteúdo que lhe deva ser aplicada: dirá, em consequência, se a lex loci cabe, se é imperativa, alternativa, ou qual deva ser o seu caráter. Se houve violação do direito objetivo, qualquer que seja, a ação rescisória é de propor-se. O que há de ser nacional é a decisão rescindenda. (q) A sentença de eficácia impossível e as outras em que alguma impossibilidade absoluta as fere não são rescindíveis; são decisões ineficazes. E o que acontece ao julgado impossível, quanto ao objeto, ou quanto á causa. A impossibilidade pode existir ao tempo da sentença, ou sobrevir. Sobrevém, por exemplo: a) se personalíssima a prestação, passiva ou ativamente, e falece o obrigado, ou o credor; b) se perece o objeto, nos casos raríssimos em que não subsiste a obrigação; c) se a relação juridica se extingue sem ser por execução, novação, ou outro modo convencional, e.g., por lei nova, que proiba. Nos casos de superveniência da impossibilidade, é a relação jurídica que ela atinge, e não a sentença. Nos de contemporaneidade, a sentença existe, mas é decisão ineficaz. Proposta a ação rescisória, devem os juizes, decretando, explícita ou implicitamente, a ineficácia, julgar na preliminar, ser caso dela, ou, se por acaso passou a preliminar do

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conhecimento, ser improcedente a ação, mas julgar a ineficácia. (Cumpre separar o assunto da sentença de eficácia impossível, o da sentença cognoscitiva, lógica ou moralmente impossível, e o da sentença que resolveu sobre impossibilidade da prestação. Essa, se violou direito tético, como se infringiu o art. 865, ou 866. ou 867, ou o art. 869, ou art. 870, ou outra regra jurídica do Código Civil, ou de outra lei, é rescindível). A sentença cuja eficácia era possível, mas se tornou impossível, é também decisão ineficaz. Por isso mesmo, pode ocorrer que a causa da impossibilidade cesse e volte a eficacia. A sentença impossível, cognoscitiva, lógica ou moralmente não é só rescindível, mas decisão ineficaz. Passado o biênio, não se torna sã, imune à alegação da ineficácia. J. A. Pimenta Bueno (Apontamentos sobre as Formalidades do Processo Civil, 112) falou do seguinte caso: sentença que declara ser de direito, na espécie, a ação ordinária, e com razão; porém a julga sumariamente. Aí, diz ele, há ofensa a direito. Está cedo. A complicação do exemplo foi escusada, a contradição é meramente cênica; porque haveria ofensa, ainda que o juiz não reconhecesse. Em qualquer assunto em que o juiz reconheça o direito, porém o viole, violação há. A violação independe das simulações e dissimulações dos juizes, das suas tiradas eruditas, das suas referências e louva minhas ao próprio texto que vai violar, ou já violou. A violação aprecia-se in concreto. O julgamento ultra petita, ou ci tra petita, constitui violação de direito processual, que é direito objetivo como qualquer outro. As Ordenações Filipínas, Livro III, Titulo 76, § 1ª, previram a hipótese das duas rescisões, a da sentença ‘extra petita” e a da sentença “ultra petita”: a que decide, fora do que estava em causa, prestação jurisdicional mal executada, porque se presta o que não estava para ser prestado, se resolve o que não se tinha de resolver; e a que decide além do pedido (Tribunal Superior do Amazonas, 29 de setembro de 1910), mais do que se devia decidir. Nem precisaria tê-lo dito a lei. No § 4º, estatuiu-se que o juiz não se pode pronunciar sobre o que não constitua objeto do pedido, nem considerar exceções não propostas, para as quais a lei exija a iniciativa da parte. O julgamento extra petita — seja ultra peNte ou citra petita — violava o § 4º. No Código de Processo Civil, o art. 286 estabelece que o pedido há de ser certo ou determinado, podendo ser genérico. No art. 293, explicitou-se que os pedidos hão de ser interpretados restritivamente, compreendidos no principal os juros. No art. 292 e § lº, permitiu-se a cumulação de pedidos, mesmo se não são conexos, se da competência do juiz e adequado o rito processual. Sendo diferente, o rito processual ordinário pode ser adotado para a cumulação (art. 292, § 2ª). No art. 291, cogitou-se da cumulação subjetiva. O art. 294 estabeleceu que, antes da citação, o autor poderá aditar o pedido, correndo á sua conta as custas acrescidas em razão dessa iniciativa. A infração das regras de direito processual, errores in procedendo, desde que fira norma de lei não puramente instrucional (se as há!) e sempre que a parte poderia ter mais exata apreciação judicial e mais justa decisão se infração não tivesse havido, é pressuposto suficiente do art. 485, V. O que importa, aí, é ser imaginável a relevância prática da regra legal como processo técnico para se chegar à decisão justa. Não há, pois, separação de valor entre a regra de direito processual e a de direito material, se a lei mesma, excepcionalissimamente, não concebeu a regra como “recomendação” (erro de técnica do legislador), ou de ‘arbítrio puro” - Aliás, as regras jurídicas de arbítrio puro são raríssimas; e as próprias regras jurídicas de arbítrio judicial permitem que se veja se a lei foi atendida em tese. Quem propõe ação rescisória de sentença com invocação do art. 485, V, somente pode levantar quaestiones iuris. Toda a matéria de fato está definitiva e irrescindivelmente julgada. No Código de 1973, art. 504, diz-se que “dos despachos de mero expediente não cabe recurso . Esses despachos não podem dar causa à propositura de ação rescisória, salvo se o juiz teve como despacho de mero expediente decisão que não o era. Aí, houve violação de regra jurídica concernente à natureza da decisão, e cabe a ação rescisória se tal decisão foi sentença, impugnável, portanto, no todo, ou em parte. 9. Falsidade da prova. No Codex lustinianus si ex falsis instrumentis vel testimonús iudicatum erit, 7, 58, quatro leis, de diferente épocas, se inseriram, concernentes aos casos de julgados ex Jalsis instrumentis vel

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testimoniis: “1. Si tabulas testamenti, quas secutus proconsul vir clarissimus sententiam dixit, falsas dicere vis, praebebit notionem suam non obstante praescriptíone rei iudicatae, quia nondum de falso quaesitum est. 2. Et qui non provocaverunt, si instrumentis falsis se victos esse probare possunt. cum de crimine docuerint, ex integro de causa audiuntur. 3. Falsam quidem testationem, qua diversa pars in iudicio adversus te usa est, ut proponis, solito more arguere non prohiberis, sed causa iudicati in irritum non devocatur, nisi si probare poteris eum qui iudicaverat secutum eius instrumenti fidem, quod falsum esse constiterit, adversus te pronuntiasse. 4. ludicati executio solet suspendi et soluti dari repetitio, si falsis instrumentis circumventam esse religionem iudicantis crimine postea falsi ilíato manifestis probationibus fuerit ostensum”. Tirando em vernáculo: “1. Se as tábuas do testamento, atendendo às quais o procônsul, varão esclarecido, proferiu sentença, queres tu dizer falsas, cabe-lhe conhecê-lo, não obstante a exceção de coisa julgada, porquanto ainda se não questionou do falso. 2. E os que não apelaram, se podem provar terem sido vencidos por instrumentos falsos, quando houverem documentado o delito, são ouvidos de novo (ex integro) sobre a questão. 3. Falsa, como pretendes, a contestação, de que se valeu em juízo, contra ti, a outra parte, não se te proibe, na forma acostumada, argúi-la. Mas a causa do julgado não será considerada irrita, salvo se puderes provar que aquele que julgou, se pronunciou contra ti, atendo-se à fé daquele instrumento, que se verifica falso. 4. Sói-se suspender a execução do julgado e dar-se repetição do pago se, havendo-se deduzido, depois, a acusação de falsidade, foi demonstrado, com provas evidentes, que com falsos instrumentos se enganou a consciência do julgador”. É instrutivo, evitando longos comentários, sublinhar, no texto latino de imperadores diferentes, algumas expressões que muito elucidam: o procônsul conhecia da nova arguição, a despeito da coisa julgada, non obstante praescriptione rei iudicatae: a causa do julgado podia tornar-se irrita, in irritum devocatur; em sendo falsos os instrumentos, manifestis probationibus, suspendia-se a execução do julgado. Quando se julga a decisão, contra a qual se propôs a ação rescisória, de certo modo não se vai contra a coisa julgada, porque não se ataca o que foi julgado, mas sim o julgamento. O texto já acentuava, até certo ponto, que se não examina o que foi examinado, examina-se o exame, a decisão como tal. Há julgamento de julgamento, e não recurso. As Ordenações Filipinas, Livro III, Título 75, pr., falavam da rescisão “por falsa prova”. Mas isso já estava nas Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 78, pr: “dada por falsa prova”. O Reg. nº 737, art. 680, § 3º, estatuiu, na esteira das três velhas Ordenações, que a sentença é rescindível, “sendo fundada em instrumento ou depoimentos falsos em juízo competente”. No antigo Código de Processo Civil do Distrito Federal, art. 302, III, só se falava de sentença fundada em prova falsa, e no paranaense, art. 933, 5º, em prova falsa ou nula. No de São Paulo, art. 348, III, em instrumento ou depoimento falso. No de Minas Gerais, art. 173, 3º, em instrumento ou depoimento falso, como tal já julgado em juizo competente. Como o de São Paulo, o do Espírito Santo, art. 271, II. Como o de Minas Gerais e o velho Reg. nº 737, o da Bahia, art. 1.361, 3º, o de Estado do Rio de Janeiro, art. 2.273, c), o de Pernambuco, art. 162, 3º, e o de Santa Catarina, art. 1.844,111. Um tanto ambíguo, o do Rio Grande do Sul, art. 504, c): “sendo fundada em instrumentos ou depoimentos julgados falsos”. Conforme o Reg. nº 737, art. 680, § 3º, só após o julgamento em “juízo competente” é que se podia, com o docu mento ou depoimento julgado falso, propor a ação rescisória. No Distrito Federal e nas outras regiões de igual regra jurídica de pressuposto, como em São Paulo, a falsidade podia ser demonstrada na própria ação rescisória, ou resultar de sentença criminal que a tivesse apreciado, posto que a sentença absolutória não obstasse à reapreciação da falsidade para as consequências de direito privado. O Código de Processo Civil do Distrito Federal ainda permitia que a prova se fizesse por via do incidente de falsidade, processado na pendência da lide rescindente. Assim, se não houvesse decisão do juiz competente, tinha de ser feita a prova do falso no incidente. O Código de Processo Civil de 1939. art. 798, II, não se satisfazia com a falsidade provada em incidente cível, ainda que em incidente da ação em que se proferiu a sentença rescindenda, nem com a falsidade provada durante o processo da ação rescisória, como assunto da instrução. Exigia que já existisse, para a propositura, sentença de juízo criminal, incidental ou não. A Lei nº 70, de 20 de agosto de 1947, art. 1ª (publicada no dia 27 de agosto de 1947, DO 11467), só referente a sentenças proferidas, pelo menos, nesse dia, manteve o fundamento da prova julgada falsa no juízo criminal, e admitiu a falsidade mequivocamente apurada na própria

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ação rescisória. Quanto àquela espécie, está claro que nada se mudou, e em verdade a Lei n0 70 criou, apenas, outro pressuposto ainda concernente à falsidade da prova. Foi sugestão nossa. Antes de quaisquer outras considerações, observemos que, de iure condendo, a solução foi acertada. Não seria de admitir-se, que se precisasse de propor a ação penal para que se pudesse propor a ação rescisória. Poder-se-ia admitir a eficácia da decisão penal ou da decisão cível, ou, como fez a Lei nº 70, art. 1ª. que emendou o texto do Código de Processo Civil de 1939, e como sugeríramos. a alegação e a prova na própria ação rescisória. Com essa limitação, atendeu-se ao princípio de economia. No Código de Processo Civil de 1939, art. 798, II, disse-se, pois, que há rescindibilidade da decisão “quando o seu principal fundamento for prova declarada falsa em juízo criminal, ou de falsidade inequivocamente apurada na própria ação rescisória”. No Código de Processo Civil de 1973, art. 485, VI, está explícito que, transitada em julgado a sentença, pode ser rescindida se fundada ‘em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória”. As duas espécies merecem trato separado: a) se há a sentença criminal, ainda que incidental, trânsita em julgado; b) se a prova se faz na ação rescisória. Há, porém, princípios comuns. Naturalmente, supõe-se que não tenha havido revisão criminal. Porém, nada obsta a incidência do art. 485, VI, que tenha havido qualquer outra exclusão da eficácia da sentença (anistia, indulto etc.). Prova houve, e sentença penal. (a) Para que haja o pressuposto da prova falsa, é preciso: 1) Que se apresente, com a petição inicial, a sentença criminal sobre a falsidade do documento ou de outra prova (Código de Processo Civil, art. 283), ou que se faça a prova inequívoca na própria ação rescisória. 11) Que só na prova falsa, ou, pelo menos, nela, sem ser possível eliminá-la, permanecendo a sentença, se haja apoiado a decisão. A falsa prova, ou prova falsa, de que falam as Ordenações e o Código de Processo Civil, que lhe seguiu os passos, tanto pode ser a prova pessoal quanto a instrumental. E a velha lição de Agostinho Barbosa, de Antonio Cardoso do Amaral e de Inácio Pereira de Souza. Que a falsidade tenha sido alegada, durante a ação primitiva, cuja sentença se quer rescindir, ou que tenha sido descoberta após a prolação da sentença, não importa para a rescisão. Nenhuma lei cogita disso. Sem razão, in abstrato, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 18 de março e a 23 de julho de 1908, que, em prestação de contas de depositários de bens penhorados, não admitiu ação rescisória, por não ter havido reclamação, nem recurso. O acórdão ignorou o que estava assente, havia séculos, e de modo algum se justificaria que assente não estivesse. O vencido na ação poderia ter sido surpreendido pela juntada do documento falso, ou dos depoimentos falsos, ou pela falsidade de qualquer outra prova, e não poder, então, adicular contra a prova. Mais: poderia ignorar a falsidade, como aconteceu, ceda vez, com herdeiros, em cuja ação de condenação de devedor do decujo foi junta quitação falsa. O Tribunal de Justiça de São Paulo disse não se considerar falsa prova a em que se baseou a sentença se consiste em certidão parcial produzida pelo autor e, não impugnada pelo réu (6 de junho de 1934). Sim, se não foi feita a prova da falsidade de acordo com o art. 485, VI; porquanto o réu revel pode propor ação rescisória e poderia propô-la ainda quando, comparecendo, não a tivesse impugnado e, até, admitido. Nenhuma distinção se faz sobre o fato de haver sido levantada, ou não, a questão a que se liga o pressuposto da rescisória. Pretender-se que “o fundamento do pedido deve consistir em matéria não alegada e, conseguintemente, não apreciada pelo tribunal”, constitui erro grave; e pena é que apareça em julgado, aliás de nenhuma base jurídica (e.g., 3ª Câmara Civel da Corte de Apelação do Distrito Federal, 13 de junho de 1928). A decisão foi de grande infelicidade. Prescindamos das lições doutrinárias, de outrora e de hoje, em Portugal e nos países estrangeiros do direito comum. Limitemo-nos às leis. As Ordenações Afonsinas, Livro 111. Titulo 108, § 6, já resolviam com lucidez: “a qual falsidade nunqua fosse aleguada até tempo em esses feitos, ou se foi aleguada, nom foi recebida” - Nas Ordenações Manuelinas, Livro III, Título 78, pr., reproduz-se o texto: “especificando a falsidade, a qual nom fosse antes aleguada nesses feitos, ou se foi aleguada nom foi recebida”. Também nas Ordenações Filipinas, Livro III, Titulo 95, pr.: “especificando a falsidade, a qual não fosse antes

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alegada nesses feitos, ou se foi alegada, não foi recebida”). O autor da ação rescisória pode só ter tido conhe-cimento da falsidade no momento imediatamente anterior à propositura da ação rescisória; portanto, mesmo já ao começar o juízo rescindente no último dia do biênio. Também seria preocupação perigosa, mas, principalmente, sem finalidade plausível, estar-se a inquirir do que deve ter pesado no espírito da parte, levando-a a guardar os elementos para o iudicium rescindens. A jurisprudência nem sempre tem sido no mesmo sentido. Alguns julgados, inspirando-se em J. A. Pimenta Bueno e em M. 1. Carvalho de Mendonça, repeliam a ação rescisória quando, ao tempo da sentença, já a parte conhecia a falsidade, dizendo-se que aquiesceu no vício da prova. Não reparavam tais julgadores em que interpretavam o silêncio como assentimento ao ato criminoso de outrem. Que coisa extraordinária seria negar-se a rescisão de uma sentença, se passou em julgado a que se deu no crime contra o responsável pela prova! Basta pensar-se em que o autor, ciente da falsidade, pode ter pretendido munir-se de melhores elementos, aguardar o julgamento criminal, evitando a leviandade de imputação tão grave quanto seria a do falso. Demais, tem ele a pretensão à rescisão e o prazo preclusivo de dois anos. Não há outro pressuposto quanto ao tempo. Trata-se de prazo preclusivo. A rescindibilidade pode ser devida à prevaricação, concussão ou corrupção, impedimento ou incompetência absoluta do juiz, e não convir no momento ao titular da pretensão à rescisão exercê-la (e.g., ser poderoso no primeiro ano o juiz, ou ser poderoso, momentaneamente, quem o peitou, ou ser indecisa a jurisprudência quanto ao impedimento ou à incompetência absoluta). Pode ser devida a rescindibilidade à ofensa à coisa julgada, e não ter o autor vencedor tentado executar a sentença. Pode a rescindibilidade ser devida a falso que está sendo objeto de ação penal. Seja como for, não se tem de apurar qualquer elemento subjetivo do titular da pretensão à rescisão. Pode ter sido causa da rescindibilidade infração de direito em tese que somente após a sentença rescindenda se revelou, firmemente, na jurisprudência. Na espécie do art. 485, VI, 1ª parte, do Código de Processo Civil, não há ofensa à coisa julgada na ação cível por parte da sentença criminal: apenas a lei exigiu como um dos fundamentos e julgou bastante como elemento do suporte fático da regra jurídica sobre rescisão da sentença cível, por falsa prova, o existir ou sobrevir a sentença criminal sobre o elemento principal, de fato, do julgamento cível. A pretensão, para essa espécie, é diferente da que surge ao trânsito em julgado da sentença cível, se o fundamento é o do art. 485, VI, 2ª parte. Antes do trânsito em julgado da sentença criminal não há a pretensão do art. 485, VI, 1ª parte, posto que já haja a do art. 485, VI, 2ª parte. O art. 485, VI, 1ª parte, do Código de Processo Civil dá à declaração de falsidade em sentença criminal ser pressuposto da ação rescisória da sentença em que tal prova falsa foi o elemento principal do julgamento, — elemento probatório, entende-se, porque não há compararem-se elementos de direito e elementos de fato, nem se pode cogitar, a respeito de falsidade, de outro elemento que elemento de fato. Tem-se, pois, que a rescisão é causada pela fundamentação em elemento, falso, de fato, — prova falsa, quer na espécie no art. 485, VI, 1ª parte (“se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal”) quer na espécie do art. 485, VI, 2ª parte (“ou seja provada na própria ação rescisória”). Enquanto corre (ou não se iniciou) o processo criminal, não pode correr o prazo para se propor a ação rescisória da sentença com invocação do art. 485, VI, 1ª parte: o sistema jurídico teve de acolher tal fundamento exatamente para evitar a contradição (incompossibilidade lógico-jurídica) entre a sentença rescindenda e o julgado criminal, que lhe infirma o principal fundamento. Seria contra os principios que se desse ao tempo tal importância que a eficácia declarativa do julgado criminal não se exercesse o trânsito em julgado foi após os dois anos da coisa julgada da sentença rescindenda. Tem-se de atender a que se completa, depois do trânsito em julgado da sentença criminal, o suporte fático do art. 485, VI, 1ª parte, antes, dentro ou após o biênio: então, se o trânsito em julgado da sentença criminal foi dentro do biênio, esse biênio não correu para a espécie, pois, ex hypothesi, só sobreveio a sentença criminal que declarou a falsidade da prova; se depois, o não se atender à superveniência importaria manter-se a contradição no sistema jurídico, pela divergência entre o julgado criminal e o julgado civel, o que o art. 485, VI, 1ª parte, tentou evitar. Temos, pois, de admitir que, na espécie, somente se começa de contar o prazo do dia em que transitou em julgado a decisão criminal declarativa da falsidade, salvo —entenda-se — se ocorreu antes do trânsito em julgado da sentença civel. A sentença cível que declare a falsidade da prova, essa, não tem a consequência de abertura do prazo preclusivo, porque a ela não se referiu o art. 485, VI: trata-se a decisão cível como elemento de prova para a ação rescisória dentro do biênio. Seria argumento contra isso que a contradição se estabelece, como se estabeleceria se a sentença posterior fosse criminal; mas a lei tem a sua razão: quem tem provas para a ação

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cível tem-nas para propor a ação rescisória com base no art. 485, VI, 2ª parte, o que não se dá a propósito das provas em processo criminal, às vezes estranhas ao conhecimento do que tem como rescindível a sentença. Por outro lado, é preciso atender-se a que alusão do art. 485, VI, 1ª parte, à sentença criminal, introduziu elemento a mais no suporte fático da regra jurídica sobre a rescisão de sentenças, de modo que a pretensão — antes dele — é nodum nata: ao passo que, tratando-se de decisão cível, por não se ter referido a ela o art. 485, VI, seria criar o intérprete outro caso de rescisão por faltar prova, fora, portanto, da própria letra do art. 485, VI, 1ª parte, ou de falsidade provada na própria ação rescisória (2ª parte). Para que a sentença penal possa dar ensejo à propositura da ação rescisória com fundamento em falsidade da prova, e preciso que a sentença penal haja transitado em julgado. Não se há de ter dúvida no sistema jurídico brasileiro; no sistema jurídico italiano, já se podia citar a App. Cagliari, de 17 de março de 1902 (Foro Italiano. 1902, 1, 714). De então é que começa a correr o prazo preclusivo (“ . . .il termine decorre daí giorno in cui la sentenza, che ebbe a dichiarare Ia falsità deI documento, sia passata in giudicato”). Nenhuma pendência de ação declaratória da falsidade basta para que se inicie o prazo preclusivo, nem sequer, a sentença que declarou falsa a prova. O art. 485, VI, só se referiu à falsidade apurada em processo criminal; de modo que só há o caminho da propositura da ação rescisória da sentença que se firmou em tal prova falsa. A sentença, na ação declaratória, simultânea ou posterior à sentença rescindenda, apenas dá ensejo à apresentação de tal sentença como prova que vai ser levada em consideração na ação rescisória (fundada em prova cuja falsidade “seja provada na própria ação rescisória”). Se aconteceu que o juízo da ação rescisória julgou verdadeira a prova, há o choque entre tal sentença e a que fora proferida na ação declaratória de falsidade, o que perfaz o pressuposto para a ação rescisória da sentença que na ação rescisória se lançou (art. 485, VI), pois que houve ofensa à coisa julgada. Quanto à ação rescisória com o fundamento de ser provar na causa a falsidade da prova, o prazo preclusivo começa do trânsito em julgado da sentença rescindenda. Dá-se o mesmo com a ação rescisória que se baseie na obtenção de documento, que o autor ignorava, ou dele não pudera fazer uso, porque só se há de abrir exceção para a ação rescisória em que se alegue a sentença criminal, trânsita em julgado, em que julgou ser falsa a prova. A absolvição no juízo criminal obsta à propositura da ação rescisória com fundamento no art. 485, VI, 2a parte (verbis “falsidade provada na própria ação rescisória”)? É a questão da coisa julgada material da sentença penal em relação à ação cível ou à sentença cível. Os textos sedes materiae são os ads. 65-67 do Código de Processo Penal. Diz o art. 65: “Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Nenhuma repercussão tem, no tocante à ação rescisória, o art. 65: O falso dificilmente poderia ser praticado em estado de necessidade, — se o tivesse sido, não deixaria de ser falso e produzir a rescindibilidade; a legítima defesa, com a prática de falso, seria de mais rara ocorrência e de modo nenhum retiraria ao falso o ser causa de rescindibilidade; quanto ao cumprimento de dever legal e ao exercício regular de direito, não se compreende que existam em matéria de falso. No art. 66 lê-se: “Não obstante a sentença absolutória no juizo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”. A despeito da regra jurídica do art. 66, se a sentença afirma que não foi usado o documento, ou produzida outra prova, ou não foi prestado o testemunho (inexistência material do fato) e o documento ou o testemunho ou outra prova foi fundamento da sentença cível, não se pode negar a ação rescisória. No art. 67 está dito: “Não impedirão igualmente a proposítura da ação civil: 1, o despacho do arquivamento do inquérito ou das peças de informação; II, a decisão que julgar extinta a punibilidade; III, a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime”. O art. 67, em sua explícitude, tem de ser atendido: a ação rescisória, a despeito de qualquer dos atos judiciais apontados no art. 67, pode ser proposta. Temos de examinar duas hipóteses, que concernem ao assunto de que estamos a tratar: a) no art. 485, VI, fala-se de falsidade da prova, portanto de prova de fato,é invocável tal regra jurídica se, por exemplo, a parte alegou direito municipal, estadual, estrangeiro, ou consuetudinário e o juiz determinou que ela provasse o teor e a vigência da regra jurídica ou das regras jurídicas que foram alegadas?; h) se houve homologação de sentença estrangeira e, na ação em que se proferiu a sentença que se quer rescindir, a certidão de tal sentença foi junta aos autos como prova de algum ou de alguns dos fatos e, há prova de que foi falso o documento que consta da sentença estrangeira que obteve homologação, apode isso ser fundamento para a ação rescisória conforme o art. 485, VI?

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Quanto a a), houve prova feita pela parte, e não seria admissível que se deixasse incólume à rescindibilidade a sentença, que se apoiara em documento falso. Quanto a b), a ação rescisória teria de ser baseada no art. 485, VI, porém contra a sentença homologatória de sentença estrangeira. Após tal rescisão é que se teria de propor a ação rescisória que se baseou no documento falso, que fora homologada. Haveria o problema do prazo pre-clusívo, pois a ação rescisória da sentença, que se firmara em sentença homologada, teria de esperar a rescisão da sentença homologatória. A parte interessada em propor a ação rescisória haveria de propô-la dentro do biênio. Também dentro do prazo preclusivo correspondente, a rescisão da sentença homologatória. O juízo de alguma ação rescisória teria de aguardar o julgamento da ação rescisória da sentença homologatória. A espécie cabe, indiscutivelmente, no art. 265, IV, a), do Código de Processo Civil onde se diz que se suspende o processo quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação juridica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente. Se a sentença de homologação da sentença estrangeira já não pode ser rescindida, porque expirou o prazo preclusivo, nada mais se pode fazer, salvo entenda-se, se o fato ou o documento estrangeiro entra na classe daqueles que podem ser produzidos sem que, na Justiça brasileira, se precise de homologação. Ai, mesmo se não houve a preclusão, a rescisão da sentença homologatória não seria necessária, devido a não haver dependência entre o fato ou o documento e a homologação. (b) Ás vezes o fundamento do art. 485, V, é ligado ao do art. 485, VI. Então, devem-se cumular os pedidos. (e) APode a parte que produziu o documento pedir a rescisão da sentença com fundamento no art. 485. VI? Se no documento que foi apresentado pela parte se firmou o juiz para dar ganho de causa à parte contrária, claro que sim. Igualmente, se trata de processo inquisitivo ou de processo em juízo dúplice. Restam os processos de caráter dispositivo em que não foi vencido o que produziu o documento ou outra prova. Desde logo se há de pré-excluir a ação do que a apresentou de má-fé: falta-lhe, aí, mais do que a legítimaçâo, porque lhe falta a pretensão à tutela jurídica, ainda que interesse tivesse em ver julgado, de novo, o processo. Se má-fé não houve na produção, muda de figura: o interessado não está privado de pedir outro contraditório, para que a causa seja bem julgada, inclusive para se defender na ação de perdas e danos, fundada no uso de prova falsa. (cl) Se a ação penal está prescrita, ou se está prescrita a condenação (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 19 de setembro de 1950, RT 215/468); a ação rescisória pode ser proposta. Ali, se ainda não precluiu o prazo para a propositura da ação rescisória, a prova da falsidade pode ser feita no processo da ação rescisória, conforme o art. 485, VI, 2ª parte. Se está prescrita a ação de condenação, a sentença penal pode servir de base à ação rescisória, uma vez que o prazo preclusivo começa do trânsito em julgado da sentença penal. (e) A prova há de ser o fundamento em que se apoiou o juiz para decidir como decidiu. O juiz da rescisão pode verificar qual foi ele, examinando o encadeamento lógico da sentença. Se há dos fundamentos, somente não cabe a rescisão se o outro bastaria para se decidir como se decidiu, isto é, se, admitindo-se a falsidade, a decisão rescindenda teria sido a mesma que se deu. Não se exige que tenha sido o fundamento único (Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, 19 de fevereiro de 1951, RT 192/350). Se, afastados quaisquer dos fundamentos, seria diferente a decisão rescindenda, qualquer deles pode ser matéria para a rescisão, inclusive poderiam ser cumulados os pedidos. (f) Pode ocorrer que a falsidade da prova só atinja o fundamento principal para um dos pedidos. Então, a rescisão é rescisão parcial. O que foi julgado, sem se apoiar na prova falsa, fica incólume à eficácia da sentença rescindente. Cumpre, ainda, observar-se que a rescisão da sentença, por ter sido falsa a prova, de modo nenhum declara que o réu na ação rescisória não tinha direito, pretensão ou ação. A eficácia preponderante é desconstitutiva. O elemento declarativo somente concerne à prova, não ao direito, à pretensão ou à ação, ou àexceção. Por isso mesmo, nada obsta a que, com outras provas, o demandado e perdente, na ação rescisória, proponha de novo a

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ação, se ainda não prescreveu. Aliás, o último ato no processo por ele promovido foi a sentença mesma. Não importa se a sentença rescindida só o foi em parte, ou no todo. A sentença rescindente, em se tratando de falsidade da prova. Como em se tratando de qualquer sentença que não contenha julgamento explícito ou implícito do rescisório, somente desfazendo o processo, ou parte dele, não contêm eficácia de coisa julgada material sobre o ponto rescindido. A sentença rescindente, que se baseou na falsidade da prova, apenas tem a eficácia declarativa da falsidade da prova, — e aí está toda a sua eficácia de coisa julgada material se além desse julgamento não foi. (g) Se a ação cível, que se propôs, foi com fundamento no art. 4ª, II, do código de Processo Civil (“autenticidade ou falsidade de documento”), e a sentença a julgou improcedente, ja sentença criminal, que sobrevenha, em contradição à sentença cível, por declarar, na condenação, a falsidade, basta como pressuposto para se rescindir a sentença civel? À primeira vista, pode-se pensar que se trata de choque entre coisas julgadas: a sentença criminal ofenderia a coisa julgada material da sentença civel. Em verdade, porém, a sentença criminal apenas vai servir de elemento para a ação rescisória da sentença cível. Essa examinou elementos a que outros, desconhecidos pelo juiz do cível, se podem ter juntado. Surgem alguns problemas: a) O perdente da ação ou o interessado na rescisão da sentença propôs a ação rescisória com o intuito de nela provar a inautenticidade ou a falsidade do documento e está a correr a respeito da ação penal. O autor vem a saber que no processo penal há elementos a mais, que podem ser confirmativas da sua alegação, e requer ao juiz da ação rescisória que peça no juízo criminal a prova dos elementos. Se o juízo criminal alega que há segredo de justiça, a solução é aguardar-se o julgamento da ação penal, se não bastam ao seu convencimento para julgar procedente a ação rescisória os elementos constantes dos autos. A sentença penal que se profere pendente a ação rescisória é suficiente para que, a despeito de a ela não se ter aludido na petição, o juiz julgue procedente a ação rescisória com base no art. 485, VI, de Processo Civil italiano, art. 395; Código de Processo Civil português, art. 771; diferente da Ordenação Processual Civil alemã, §§ 580 e 581. Basta que a sentença se haja fundado na prova falsa. Se foi um dos fundamentos, a ação rescisória só atinge a sentença que, sem tal fundamento, não seria a mesma. Se a conclusão teria de ser diferente se tivesse sido declarada a falsidade, há de ser rescindida a sentença. Falso é o que se diz existir e não existe, razão por que a falsidade se declara, não se decreta. Qualquer prova que se deu como existente e não existia e deu fundamento à sentença fez rescindível tal sentença. Se, por exemplo, a confissão, em que se baseou a sentença, não existiu, a ação rescisória é a do art. 485, VI; se inválida, invocável é o art. 485, VIII. O mesmo ocorre com a desistência ou a transação, que pode ser falsa ou ser nula. Na sentença que extingue o processo pela desistência ou pela transação, o ato de desistência ou de transação foi prova para a sentença, de jeito que tanto o art. 485, VIII, como art. 485, VI, pode ser invocado, conforme o que se passou: invalidade, ou falsidade (inexistência). a) A sentença rescindente que atendeu ao art. 485, VI, primeiro declara a falsidade (3 de declaratividade), depois rescinde (5 de desconstitutividade). b) A sentença rescindente que atende ao art. 485, VIII, primeiro decreta a invalidade (5 de desconstitutividade). Se já houvera a declaração de falsidade, em juízo penal (5 de declaratividade), esse elemento é importado no processo civil e dá ensejo a desconstituição da sentença rescindenda: rescinde-se tal sentença. Na espécie a)), o peso 5 de declaratividade que veio da sentença criminal, ou se produz na própria ação rescisória, passa a ter, na sentença rescindente, 3 de declaratividade. Na espécie b)), a desconstitutividade se embute na desconst4tutividade da sentença rescindente: ela desfaz a prova e rescinde a sentença, isto é, ao mesmo tempo desconstitui prova e sentença. No Código de Processo Civil italiano, art. 395, 2), fala-se de julgado com base em provas “riconosciute o comunque dichiarate false dopo la sentenza oppure che la parte soccombente ignorava essere state riconosciute o dichiarate tali prima della sentenza’. No Código de Processo Civil francês, o art. 480, 9e, revogado com o advento do Nouveau Code instituído pelo Decreto nº 75-1123, de 5 de dezembro de 1975, apontava como causa para a requête “si lon a jugé sur piêces reconflues ou déclarées fausses depuis le jugement’. No Código de Processo Civil brasileiro de 1973, art. 485, VI, mais simplesmente se estatui que cabe a ação rescisória da sentença que “se fundar em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória”. Quanto ao documento novo, ignorado, ou de que não se pode fazer uso, há outra regra

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jurídica sobre pressuposto, que é a do art. 485. VII. Não se exige, no art. 485, VI, que já se tenha declarado a falsidade da prova: ou se declarou em juízo criminal, ou pode ser prova da própria ação rescisória. Se houve sentença, trânsita em julgado, que declarou falso o elemento probatório que servia a outra ação, o que a pessoa juridicamente interessada na declaração de falsidade de tal ação pode fazer é propor a ação rescisória com fundamento no art. 485, VI, 2ª parte, a fim de que se rescinda a sentença. Os dados e conclusão da sentença que declara a falsidade apenas podem servir de base para a ação rescisória da outra sentença. Não se pode aí alegar eficácia de coisa julgada material da sentença, antes, simultânea ou posterior à que se quer rescindir. O Código de 1973 podia ter falado de julgado em juízo criminal ou em juízo civel, porém não o fez: apenas dá ensejo a que, na ação rescisória, se prove a falsidade. A prova, na espécie do art. 485, VI, não é só a prova escrita, o documento, o que também se passa no direito processual italiano, com o advento do Código de Processo Civil de 1940 (cf. Renzo Provinciali, Sistema dei/e Irnpugnazionh Civil, 422; Nicola Giudiceandrea, Le Impugnazioni dviii, 422; Marco Tuílio Zanzucchi, Diríto Processuale Civile, II, 190 S.; Ugo Rocco, Trattato di Diritto Processuaie Givíle, III, 293 s. e 431). A sentença penal há de ser anterior, com a coisa julgada quanto à declaração da falsidade. O art. 485, VI, reputou suficiente a sentença penal, porém não dispensou a propositura da ação rescisória, que há de referir-se ao julgado, posto que se tenha de observar o procedimento da ação rescisória. O Código de modo algum afastou que a ação rescisória seja proposta pela parte vencedora (aLter, na espécie do art. 485, II, 1ª parte). Não se importam, portanto, discussão e conclusões da doutrina e da jurisprudência italianas (eg., Giovanni Verde, Decorrenza dei termine per proporre domanda di Revocazione straordinaria, Rivista Ti-irnestrale di Diritto e Procedura Civile, 1962, 1341 s.). O que importa, no direito brasileiro, é que tenha havido sentença penal, ou se vá provar a falsidade na própria ação rescisória, porque de modo algum, mesmo se trata de ação de outros sistemas jurídicos (e.g., no direito alemão, onde a Restitutionesk/age é tida como subsidiária, o que não está certo por ser contra a res iudica te), se antes da coisa julgada, como no direito italiano e no francês, não há subsidiariedade. A autonomia é evidente. (Sem razão, além de Stein-Jonas, Kornrnen ter zur Zivilprozessordnung, II, sob o § 582), Adolf Schõnke, Lehrbuch des Zivi/prozessrechts, 8ª ed., 424, e outros). Pode acontecer que a falsidade da prova só se possa apurar no juízo penal, de modo que cabe ao interessado promover tal ação e sentença, respeitados os principios de legitimação processual penal. Não se importe a discussão que houve na doutrina alemã sobre ser necessário ou não a ação penal, ou a sentença penal, trânsita ou não em julgado (cf. Adolf Schónke, Lehrbuch des Zivilprozessrechts, 8ª ed., 424; Gaul, Die Grundlagen des WiedereuJnahrnegrúnde, 87). Se ocorrer que, durante o processo de ação civil, haja sentença penal que passe em julgado e tenha o juiz de atender a que houve condenação, uma vez que tal titulo é sentença executiva, há ensejo à execução civil de que cogita o Código de Processo Civil, art. 584, II. A sentença civil que não respeitasse a coisa julgada da sentença penal poderia dar causa a recursos, bem como, trânsita em julgado, à ação rescisória com base no art. 485, IV. Se a coisa julgada da sentença penal foi posterior à da sentença civil, a solução é contar-se da data daquela o prazo preclusivo para a ação rescisória da sentença civil. A falsidade apurada em juízo criminal, ou provada na própria ação rescisória, é pressuposto para a rescisão, mas legitimada ativa é apenas a parte que ignorava a falsidade, ou, se o autor da falsidade foi terceiro, qualquer das partes (cf. Sérgio Costa, Revocazione della Sentenza per falsitá di Documenti e Legittimazione aí Gravame, Riviste di Diritto Processuale Civile, 1934, II). Se o vencedor a ignorava, ele mesmo pode propor a ação rescisória (E. G. Lipari, Appunti sul dolo processuale bilaterale, Riviste di Diritto Processuale Civile, 1928, 285; porém, afastemos o autor que conhecia a falsidade). Não se precisa de ter havido impugnação quanto à falsidade do documento, nem qualquer apreciação (cf. James Goldschmidt, Zivi Iprozessrech t, 158). Fala-se, no art. 485, VI, da sentença que se fundou em prova, cuja falsidade foi apurada em processo criminal, ou se prova na própria ação rescisória. Pergunta-se: se o fundamento foi numa ou duas ou mais provas, porém alguma ou algumas não são falsas, é rescindível a sentença? Tudo se há de resolver segundo princípio de suficiência probatória: se há provas que não se argúem de falsas e elas não bastariam ao julgamento que ocorreu, há a rescindibilidade; se a prova ou as provas em que não houve falsidadde são suficientes para se julgar tal como se julgou, não cabe pensar-se em ação rescisória. Se há duas conclusões separadas (independentes entre si) e a falsidade somente concerne a uma delas, de modo que pode persistir a parte ina-tingida, a rescindibilidade só atinge a parte que se fundou em falsa prova. Demos um exemplo: o autor pedira a

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decretação da nulidade ou da anulação de dois negócios jurídicos por incapacidade de um dos signatários, e o documento correspondente ao negócio jurídico a foi verdadeiro, porém não o documento do negócio jurídico b, assinado já em idade era que havia cessado a incapacidade, a despeito da falsa certidão de idade. A regra jurídica do art. 485. VII, supõe que, depois da sentença, o autor haja obtido documento cuja existência ignorava, ou de que não pode fazer uso, e esse documento basta para que se dê pronunciamento favorável. O “autor” é o titular da ação rescisória, que pode ter sido o autor o réu, ou litisconsorte, ou assistente equiparado a litisconsorte, na ação de cuja sentença pede a rescisão. A referência a ser novo o documento é um tanto ambígua, porque, no tempo, tal documento pode ter sido anterior a algum, ou a alguns, ou a todos os documentos que serviram à produção de prova. Ou o documento era ignorado, ou não no era mas não pudera ser usado no processo. A novidade, portanto, é apenas a posterioridade da produção, resultante de causa que a lei prevê (ser ignorado pela parte, autora da ação rescisória, ou não produzido como prova por ter sido impossível fazê-lo). De modo algum cabe pensar-se em acontecimento novo, em fato novo. O art. 485, VII, fala de quando, depois da sentença, o autor, obtiver documento novo cuja existência ignorava, ou de que não pode fazer uso. Autor, aí, é o titular da pretensão à ação rescisória, e não o autor da ação em que se proferiu a sentença rescindenda. Pode ser autor de tal ação quem foi parte no processo, ou o seu sucessor a titulo universal ou singular, ou o terceiro juridicamente interessado, ou o Ministério Público. O que importa é ser o documento capaz, por si só. de lhe assegurar pronunciamento favorável’. No direito processual civil brasileiro, não se tem de alegar que houve má-fé da parte contrária, nem, a fortiori. dolo, nem que a falta do documento tenha de ser imputável à outra parte. O documento tem de ser capaz de, por si só, assegurar pronunciamento favorável. “Por si só.” Está, aí, em vez de “bastante’, “suficiente”. (Não quer dizer isso) que não se possa propor ação rescisória se era ignorada a existência de dois ou mais documentos, que depois da sentença se obtiveram, se eles bastam (= são capazes) para assegurar pronunciamento favorável sobre todos os pontos da sentença. Ou um ou dois ou mais sobre um ponto, ou um ou dois ou mais sobre outro ponto ou sobre outros pontos. Um documento, por exemplo, pode ser quanto à interrupção da prescrição; e outro ser sobre a dívida. O que se exige é que o documento ou os documentos apresentados sejam suficientes para o pronunciamento favorável. Se havia as provas e, b e c, que o juiz reputou insuficientes, e o documento d, que se invoca e se apresenta na ação rescisória, tem de levar o juiz favoravelmente o rescisório, por serem a, 6, c e d bastantes, a ação rescisória é de propor-se. O aparecimento de documento após a sentença, ou a sua usabilidade, se antes conhecido, não era fundamento para a ação rescisória, antes do Código de Processo Civil de 1973. Ao tempo do Reg. 737. de 25 de novembro de 1850, art. 577, § 32, 3, e 579, § 4º, 3, era assunto para embargos infringentes do julgado. Idem, sob o Decreto n2 3.084, de 5 de novembro de 1898, Parte III, art. 604, 14. O Código de Processo Civil de 1939 nada dissera. No Código de Processo Civil francês promulgado em 1806, art. 480, lª, era base para a requête chile, “si, depuis le jugement, il a été recouvrê des piêces décisives, et qui avaient êtê retenues par le fait de la partie”. Na Ordenação Processual Civil alemã, § 580, 7, 5), cabe a demanda de restituição quando a parte encontra outro documento ou está em situação de usá-lo, e com o qual teria podido obter resolução mais favorável (“eine andere Urkunde auffindet oder zu benutzen in den herbeigefohrt haben wúrde”). E o texto a que mais se aproxima o Código de Processo Civil brasileiro, art, 485, VII. O Código de Processo Civil italiano, art. 395, 3), apenas se refere a um ou mais documentos decisivos que a parte não pudera produzir em juízo por causa de força maior ou por fato do adversário. No Código de Processo Civil português, art. 771, c), fala-se de “quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”. Temos, assim, de evitar imputação de afirmativas doutrinárias e judiciais desses dois Estados. Quanto ao adjetivo “novo”, que está no texto português, apareceu no texto brasileiro; porém “novo”, aí, é apenas o que não constou dos autos cuja existência se ignorava, ou de que não se pode fazer uso. Não é própria, aí, a referência à novidade; riscando-se o adjetivo, nada se perde. Pergunta-se: uma vez que o art. 485, VII, diz “depois da sentença”, somente se depois dela foi obtido o documento é que se pode propor a ação rescisória, e somente depois dela se pode fazer uso? Se o documento foi obtido antes de encerrado o debate na audiência e oferecidos os memoriais, a parte que está com ele, ou seu advogado, pode apresentá-lo ao juiz, pois desde logo profere a sentença, ou no prazo de dez dias (art. 456). Se, na sentença, a despeito da apresentação, o juiz de modo algum a ele se refere, pode a parte invocá-lo no

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recurso. Na via recursal, o assunto é objeto de apreciação e julgamento (cf. art. 515, § 1v). Se o documento só foi encontrado, ou dele só se pode usar depois da sentença recorrível, pode ser apresentado na apelação (cf. art. 517), ou noutro recurso que foi interposto e cabe. Se somente se obteve ou do documento só se pode usar quando já em julgamento no superior grau de jurisdição, aí pode ser apresentado antes de o Presidente anunciar o resultado do julgamento. A votação só se encerra quando anunciado o resultado (art. 556). Qualquer votante, antes disso, pode pedir a correção do seu voto. Somente quando a sentença é com eficácia de coisa julgada, seja proferida por juiz singular, ou por algum corpo coletivo, com a apresentação do documento, cuja existência se ignorava, ou de que não se pudera usar, é que se precisa da propositura da ação rescisória. 10. Obtenção de documento novo. Estatui o Código de Processo Civil de 1973, art. 485, VII, que a sentença, trânsita em julgado, pode ser rescindida quando, “depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pode fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”. Ou ele prova a ignorância ao tempo em que propôs a ação ou durante a lide, ou já, no momento do processo, não o poderia apresentar, ou prova que o conhecia, mas dele não podia aproveitar-se (por exemplo, o documento estava em cofre que fora roubado e só tardiamente, com a descoberta do local em que se pusera o cofre, pode o autor saber da existência do documento; o tabelião não lhe podia dar certidão, devido a incêndio do arquivo, e, só mais tarde, alguém encontrou o traslado ou a certidão). O art. 485, VII, fala de obtenção “depois da sentença”, mas havemos de entender quando não mais podia apresentá-lo para julgamento. O documento que se obteve, sem que dele tivesse notícia ou não tivesse podido usar o autor da ação rescisória, que foi vencido na ação em que se proferiu a sentença rescindenda, tem de ser bastente para que se julgasse procedente a ação. Ser bastante, ai, é ser necessário, mas não é de exigir-se que só ele bastasse, excluido outro ou excluidos outros que foram apresentados. O que se exige é que sozinho ou ao lado de outros, que constaram dos autos, seja suficiente. Também pode ser que não se trate de um só documento dito novo, mas de dois ou mais documentos novos, que eram ignorados, ou dos quais não pode fazer uso. Surge o problema de ser necessária ou não a cumulação do juízo rescindente e do juízo rescisório. A resposta é negativa, porque, de ordinário, tendo sido vencido na ação em que se proferiu a sentença rescindenda, basta o documento para que se julgue improcedente o pedido que contra ele fora feito, ou procedente o pedido que le se fizera. Não significa isso que, in cesu, não seja conveniente a cumulação dos dois juízos. Se a ação rescisória foi com fundamento na existência de novo documento, antes ignorado ou inusável, pode acontecer que a outra parte também tenha obtido documento ou documentos, que ignorava, ou que não se pudera usar. Nada obsta a que os apresente na ação rescisória e até mesmo que proponha reconvenção à ação rescisória que o autor vencido na ação intentou. Qualquer que tem legitimação à ação rescisória em geral também a tem na espécie do art. 485, VII, e a eficácia da sentença que na ação rescisória se proferiu tem a eficácia que teria qualquer sentença no tocante aos litisconsortes, aos assistentes, aos nomeados à autoria, aos litisdenunciados e aos chamados ao processo. A parte ou interessado na propositura da ação rescisória tem legitimação ativa para a exibição judicial, preparatória, conforme os arts. 844 e 845 do Código de Processo Civil. Bem assim, para a produção antecipada de provas (arts. 846-851), se, por exemplo, o depoimento de alguém, inclusive de outra parte, se prender ao documento. Durante o processo da ação rescisória é-lhe facultado pedir a exibição de que cogitam os arts. 355-363. Também são invocáveis os arts. 381 e 382. 11. Invalidade de confissão, de desistência ou de transação. Diante da técnica e das precisões conceptuais, o Código de Processo Civil de 1973, no art. 485, VIII, sob influência de legislação estrangeira, deu como causa de rescindibilidade haver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação em que se baseou a sentença. Ora, a desistência não faz, segundo o próprio Código de 1973, extinguir-se com julgamento do mérito (?) o processo (cf. art. 267, VIII), mas o art. 485, VIII, abstraiu disso. A transação, sim (cf. art. 269, III). Quanto à transação, ela é ato subordinado à homologação, de modo que a ação rescisória teria de ser a do art. 486, e não só a do art. 485. Mas, temos de dar solução e explicação, porque essa é a função da doutrina e do

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método de interpretação das leis. Pode ter sido proposta contra o ato homologado a ação rescisória da sentença de homologação, por ser atingida de invalidade a transação; e assim se apagam os dois atos, o das partes e o do juiz, ato transparente. Diante de tal coisa julgada, poder-se-ia ir contra a eficácia da transação. O Código de 1973 entendeu que seria caso para se ir, desde logo, com a ação rescisória do art. 485, abstraindo-se do art. 486, a despeito de ter havido homologação. Mas temos de entender que a sentença homologatória pode ser rescindida com outros fundamentos do art. 485, como os dos incisos 1, II e III, V, VI, VII e IX. A confissão é declaração unilateral de conhecimento, não de vontade. Vontade há na desistência e na transação e na conciliação. A sentença, que fez ser sua base o que foi confessado, nada tem com os atos homologáveis. O juiz não verifica a existência, a validade e a eficácia da confissão para a homologar; dela serve como dado probatório, e rescisão da sentença somente há se o defeito é dela mesma, como se impedido ou absolutamente incompetente o juiz (art. 485, II), ou nos outros casos do art. 485, 1,111-VIl, VIII, 2ª e 3ª partes, e IX. O defeito ou os defeitos da confissão, que foi base para o julgamento, a fazem causa para a rescisão da sentença. Quanto à confissão, tem-se de verificar se a confissão, ou algumas das confissões que levaram ao julgamento foi o fundamento da sentença. E possível que a um só dos pedidos ela se refira e outras provas também tenham levado a decisão favorável. A eficácia rescisória só atinge o que serviu de base à sentença na parte rescindível. Se a parte não tivesse confessado e a sentença seria a mesma, não há rescindibilidade (cf. art. 352, II). Quanto à espécie do art. 352, II, a lei exigiu dois pressupostos: ter havido erro, dolo, ou coação, e ser a confissão o único fundamento da sentença. Todavia, devemos atender que a confissão, no art. 352, II, tem de ser a base única para a decisão quanto ao pedido a que ela corresponde, e não aos outros, que nela não se basearam, ou ao outro que nela não se baseou. A confissão foi assunto dos arts. 348-354 e 343, §§ 1ª e 2ª. Tem ela de atender às regras jurídicas processuais que lhe são concernentes, para que exista e valha, quer se trate de confissão judicial (espontânea ou provocada), quer de confissão extrajudicial. Um dos exemplos de invalidação da confissão é o de não ter tido os poderes suficientes o representante da parte. Outro, o de ser exigida, na espécie, a prova literal (art. 353, parágrafo único). Se não houve erro, dolo ou coação, a confissão pode ser atacada em ação rescisória se foi ela o “único fundamento” da sentença (art. 352,11). Legitimado ativo é o confitente, mas, proposta por ele a ação rescisória, passa a seus herdeiros (art. 352, parágrafo único). Se há fundamento para a parte pedir a invalidação da desistência, em que se baseou a sentença, pode ser proposta a ação rescisória. A desistência da ação somente produz efeitos depois de homologada por sentença (art. 158, parágrafo único); de jeito que a sentença há de existir, ser válida e eficaz. A desistência por procurador é necessária a entrega de poderes especiais a despeito de não se falar no art. 38 de desistência. A desistência, uma vez homologada, extingue o processo. As causas de invalidade são as do art. 243 e todas as que atingem as declarações unilaterais de vontade, o que também ocorre com a confissão (e.g., coação). Quanto à transação, é negócio juridico bilateral. As eivas são só as que a lei processual e a lei de direito natural apontam. Pode a sentença ter-se baseado em confissão, ou em desistência, ou em transação, três espécies em que na sentença há fundamento em ter a parte confessado (arts. 348-354), ou extinguir o processo sem julgamento do mérito, por ter havido desistência (art. 267, VIII), ou com julgamento do mérito, por terem as pades transigido (art. 269,111). Em qualquer delas, pode haver fundamento para se alegar e provar a invalidade da confissão, da desistência ou da transação, e qualquer dessas invalidades dá ensejo à ação rescisória. A desistência não obsta a propositura de outra ação (art. 268), mas a parte a que se atribuiu, invalidamente, ter desistido, pode preferir a essa propositura a de ação rescisória, que vai desfazer a declaração inválida e, em consequência, dar ensejo ao prosseguimento do processo. Para que a confissão seja pressuposto suficiente da ação rescisória, é de mister e basta que tenha havido causalidade entre a sentença e a confissão. Todavia, se alega que houve erro, dolo, ou coação, há de ter sido o único fundamento da sentença (art. 352, II). Pergunta-se: afora das hipóteses de erro, dolo ou coação, tem-se de exigir que a confissão haja sido o único fundamento? A resposta é negativa: a confissão pode ter sido um dos elementos probatórios e não o único que levou ao julgado. Se houve outras provas e a confissão foi levada em consideração, sem ser mais do que confirmação, não se pode subordinar a sentença a uma das provas de que se valeu. A confissão, essa, é um dos elementos que pode levar à extinção do processo com julgamento do mérito. A

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parte admitiu a verdade do fato contrário ao seu interesse, seja julgada, seja extrajudicial (Código de Processo Civil, arts. 348-350 e 353). Enquanto pende o processo em que ela foi feita (art. 352, 1), se houve erro, dolo, ou coação, pode ser revogada (?), mediante ação anulatória (confusão entre anulação, que é resultado de propositura de ação, e a revogação, que não precisaria dos elementos de erro, dolo, ou coação, se de revogabilidade se tratasse, pois revogar é retirar a voz). A eficácia da sentença favorável impediria o julgamento, ou serviria de base para a rescisão da sentença, que estaria fundada em confissão invalidada. Se a sentença já fora proferida e trânsita em julgado, o que se estatui no art. 485, VIII, atende ao que antes se dissera no art. 352, II; em caso de confissão emanada de erro, dolo, ou coação, há a proponibilidade da ação rescisória da sentença, se a confissão foi o fundamento. O art. 485, VIII, tem antecedente no Código de Processo Civil português, art. 771. A confissão é meio de prova. Os comentadores, que dizem não haver invalidade de prova, não atendem a que se trata de ato jurídico, que pode ser fora ou dentro do processo. A desistência da ação é ato juridico processual que leva à extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267, VIII), no que se distingue da renúncia do direito, da pretensão ou da ação, que é o direito material, de que resulta a extinção do processo com julgamento do mérito (art. 269, V) e do reconhecimento (acolhimento) do pedido do autor, que é outra causa de extinção do processo com julgamento do mérito (art. 269, 1). O que se diz no art. 485, VIII, quanto à ação rescisória quando há fundamento para se invalidar a confissão, em que se baseou a sentença, atende ao que já constava do art. 352, II, onde se estatui que pode ser anulada (a expressão “revogada” foi imprópria) quando emanar de erro, dolo ou coação, “por ação rescisória, depois de transitada em julgado a sentença, da qual constituir o único fundamento”. Advirta-se que pode haver outro fundamento: o que se exige é que a sentença nela se haja baseado e. com a sua decretação de invalidade, desapareça. Há um problema: ja invalidade da confissão, a que se refere o art. 485, VIII, é apenas a anulabilidade por erro, dolo ou coação? De início advirta-se que a confissão é prova e pode ser falsa, o que dá ensejo a declaração de falsidade (art. 485, VI) e que pode ter havido colusão das partes, a fim de fraudar a lei (art. 485, III, V parte). Fora daí, há a invalidade da confissão se o confitente era absolutamente incapaz, ou relativamente incapaz, e não houve, respectivamente, representação ou assistência. Seria absurdo que se interpretasse o art. 485, VIII, como adstrito ao art. 352, II. Não só. Em caso de simulação, não se pode negar a legitimação ativa do terceiro juridicamente interessado (Código de Processo Civil, art. 487, II; Código Civil, art. 105: “Poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros lesados pela simulação, ou os representantes do poder público, a bem da lei, ou da fazenda”). Assim, temos de entender que a decretação de invalidade a que se refere o art. 352 é apenas a que se faz em ação incidental, se pendente o processo em que foi feita a confissão, ou em ação autônoma, cuja eficácia sentencial, com o trânsito em julgado, seja recebida no processo pendente. A ação rescisória é, portanto, nas espécies que o art. 352 aponta (erro, dolo ou coação) e nas outras que cabem no art. 485, VIII (“houver fun-damento para invalidar”). Qualquer causa de invalidade é alegável na ação rescisória. O Ministério Público em muitos casos é de intervenção obrigatória nos processos. Além disso, exerce o direito de ação, a que se refere o Código de Processo Civil, art. 81, sempre que a lei o prevê, e então tem os mesmos poderes e ônus que as partes. Aí, a sua legitimação ativa para a ação rescisória cabe no art. 487, 1, como é possível que seja legitimado ativo com invocação do art. 487, II (“terceiro juridicamente interessado”), se lhe tocaria o direito de ação a que alude o art. 81, ou como orgão da entidade estatal. Quanto à intervenção obrigatória, o art. 82 atribui-lhe competência: “1 — nas causas em que há interesses de incapazes; II — nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; III — nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte”. No art. 84 acrescenta-se: “Quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público, a parte promover-lhe-á a intimação sob pena de nulidade do processo”. A nulidade é do processo. Se advém a sentença e transita em julgado, o que pode haver é a ação rescisória. Tratando-se de ação executiva, se na ação de conhecimento não foi citado e não houve comparência no processo, podem ser opostos embargos do devedor (art. 741, 1). O Ministério Público é legitimado ativo se houve colusão das partes para a fraude à lei (art. 487, III, b), o que

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é assunto do art. 485, III. O fato de terem os magistrados o dever de fazer ser ouvido, quando é obrigação do Ministério Público, o órgão competente, de modo algum torna supérflua a regra jurídica do art. 487, III, a), que legitima à ação rescisória o Ministério Público se não foi ouvido no processo em que lhe era obrigatória a intervenção. Não basta a missão judicial de exame dos autos, de fiscalização, pois omissão houve da própria Justiça. No Código de Processo Civil, art. 82, 1-111, fala-se de dever de intervenção do Ministério Público, nas causas em que há interesse de incapazes (qualquer que seja a incapacidade), nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposição de última vontade, nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e em todas as demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte. Na ação rescisória, para se saber se o Ministério Público tem legitimação ativa, tem-se de verificar se ocorreu algum dos casos do art. 82. Não se diga que tais regras jurídicas dilataram, demasiadamente, o âmbito da pretensão do Ministério Público à ação rescisória. No art. 84 estatui-se que, quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público, a parte promover-lhe-á a intimação sob pena de nulidade de processo. Mas, com o trânsito em julgado da sentença, nada mais se pode pretender no tocante à nulidade do processo; razão por que a solução óbvia de ser a da rescindibilidade, legitimado, para isso, o Ministério Público, que não foi ouvido no processo em que deveria ter sido. A outra causa para a ação rescisória proponível pelo Ministério Público é a de ter havido colusão das partes, a fim de fraudar a lei. Não se poderia afastar tal legitimação ativa porque a Jraus Iegis ofende o interesse público, o interesse do Estado, e a colusão entre as partes mostra que elas exerceram a pretensão à tutela jurídica e do exercício da pretensão processual se valeram para fins ilícitos. A ilicitude foi de ato contra o juiz, pois o houve a decidir como não devia decidir. Conforme antes dissemos, a propósito do art. 485, III, 2ª parte, a colusão, se há pluralidade de partes, pode ser entre os autores, A e B e entre os réus C e D, ou só entre A e C ou A e D, ou B e C ou B e D. Não se diga, portanto, como fez Francesco Carnelutti (Studi di Diritto Processuele, III, 118), que em nenhum caso a colusão se pode dirigir contra a parte adversária. Se alguma parte foi vítima da colusão, há a legitimação da parte e a do Ministério Público. Evite-se confundir a desistência da ação processual e a renúncia ao direito, à pretensão e à ação, ou só a pretensão e à ação, ou só a ação (no sentido do direito material). Porém advirta-se que, se houve a renúncia, nela se baseou a sentença; apesar de ser inválida, só se pode pensar em invocação do art. 485, VIII, a despeito da expressão infeliz (“desistência”), tanto mas quanto, no art. 269, V, está explicito que se extingue o processo, “com julgamento do mérito”, “quando o autor renunciar ao direito sobre que se funda a ação”. Aliás, caberia a rescindibilidade, com a própria invocação do art. 485, V. Na interpretação do art. 485, VIII, de modo algum havemos de entender que a “desistência”, a que se refere, apenas é a desistência da ação processual, o que se chocaria com os princípios; nem, tampouco, que a “desistência” do art. 485, VIII, nada tem com a do art. 267, VIII. Havemos de entender que a “desistência” do art. 485, VIII, está em sentido largo (renúncia e desistência). Basta qualquer fundamento de invalidade, desde que seja básico (“em que se baseou a sentença”). Quando alguém renuncia à ação no sentido material, ou, a fortiori, à pretensão e à ação ou ao direito, à pretensão e à ação, a sentença julga mérito, tal como está no art. 269, V, e a invalidade da renúncia (dita “desistência”, no art. 485, VIII) serve de fundamento para a ação rescisória. A renúncia pode ter sido apenas a um dos direitos, que se alegaram no pedido, ou só a alguns deles, e a ação rescisória pela invalidade somente apanha o direito ou os direitos a que se renunciou. Se só se renunciou à ação (no sentido de direito material), é de entender-se que se continua com o direito e a pretensão. Pergunta-se: a expressão “desistência”, no art. 485, VIII, está em sentido errado, porque o art. 485, VIII, só concerne a julgamento do mérito (renúncia ao direito sobre que se funda ação, art. 269, V, e acolhimento do pedido pelo réu, art. 269. 1)? Não podemos acolher tal interpretação, porque, se o termo foi impróprio, o que temos de seguir é o caminho de estender o sentido às três hipóteses, e não o de dizer que a palavra “desistência”, aí, nada tem com a desistência (sem razão, Luis Eulálio de Bueno Vidigal, Comentários ao Código de Processo Civil, VI, 146 s.) A transação, no tocante a litígio, pode ser para evitar a lide, ou para lhe pôr fim. Ou não se inicia o processo, ou se põe termo a ele. Se ainda não transitou em julgado a decisão proferida, a transação encerra o processo, e a

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relação jurídica processual extingue-se. Daí, ser lícito aos interessados prevenirem, ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas. Se a sentença já transitara em julgado, a transação é extrajudicial. Se pendia recurso, qualquer que fosse, que poderia ser admitido, a transação é judicial, e apanha o processo, o litigio. Quando a transação extrajudicial se conclui e se eficaciza, para prevenir litígio, a propositura da ação, a que ela se referia, é sem fundamento, porque se retirara o conteúdo da possível petição. Quando a transação judicial é feita, com a homologação, para dar termo ao processo, a relação jurídica processual foi desfeita ex tunc, e de modo algum se pode invocar a existência de qualquer julgado que ocorrera. Tudo foi apagado, porque a transação, com a homologação judicial, tudo retirou do mundo processual, a partir da petição. A transação, homologada em juízo, depois de ter havido sentença, ou antes dela, põe fim ao processo, mas ex tunc. O processo, a relação jurídico processual, que existia, deixou de existir. Há o conteúdo do negócio jurídico da transação, que é de direito material, e o revestimento homologatório que tem a mesma eficácia que teria a homologação de desistência. Quem desiste de “ação” (= demanda, litígio) retira tudo que deu ensejo à propositura. e a relação juricida processual desaparece, ficando nenhuns todos os atos processuais. Quem figura em transação, referente a litigio em que foi autor, obtém, com a homologação, a destruição de toda a relação jurídica, de jeito que os figurantes do processo deixaram de ser figurantes porque processo houve, porém não mais há. O que persiste — no terreno do direito material — é a transação, negócio jurídico. O processo, que está correndo, não persistiu: desapareceu totalmente. A decisão, que existe e não existia, é a decisão homologatória, que, transparente, fica por cima do negócio jurídico da transação. Se, no processo desfeito, alguma decisão fora proferida, qualquer que tenha sido o grau de jurisdição, deixou de ser. Não se pode atribuir qualquer sentido a qualquer dos pontos que a transação atingiu e a homologação judicial pôs fora do mundo juridico qualquer ato do processo extinto ex tunc. A homologação dos negócios jurídicos é uma das espécies de atividade da jurisdição voluntária. Ai, há a participação do Estado para a integração dos negócios jurídicos, como existe nas funções registrárias e certificativas. A homologação de negócios jurídicos serve, quase sempre, à solução de contendas, porém, aí, não há sentença que decida a questão ou as questões. Um dos pontos principais, a respeito de jurisdição voluntária, é aquele em que se há de evitar a classificação de todos os atos de jurisdição voluntária como se fossem só homologatórios de negócios jurídicos. Se a transação foi nula, nula continua de ser. Qualquer juiz pode decretar, se competente para a ação proposta, a nulidade do negócio jurídico. A nulidade de transação, que foi homologada, implica o esvaziamento do conteúdo da homologação. Se a transação foi feita “por termo nos autos”, o negócio jurídico consta do processo, pela forma escolhida, ou em instrumento público ou particular, juntado aos autos. A diferença não afasta, na primeira espécie, a apreciação da validade do negócio juridico, que se rege pelos princípios de direito material, por outros juizes ou tribunais, que tenham, de verificar se é nula ou anulável, a transação. Quanto ao ato processual da homologação, a decretação da invalidade, ou a rescisão, tem de obedecer ao que se estatui no direito processual civil. Assim, se algum juiz ou tribunal examinou o negócio jurídico da transação e decretou a nulidade, tal decisão é base para que se decrete a nulidade da homologação, o que há de ser feito pelo juiz que homologou, ou pelo tribunal, de competência originária ou recursal, onde ocorrera a homologação, ou se repeliu qualquer recurso contra ela. Somente se preexclui a decretabilidade, mesmo de ofício, da nulidade da homologação por ser nula a transação, se o assunto foi, por exemplo, conteúdo de atitude processual de terceiro e houve coisa julgada formal e material sobre a validade. Se foi decretada a nulidade (o que pode ser mesmo de ofício) noutro processo e noutro juízo, com o trânsito em julgado da decisão, para que se reviva a relação juridico processual que a transação homologada extinguira, é preciso que se peça ao juiz, ou tribunal, onde se homologou a transação, que se volva ao invocamento processual, no estado em que se achava ao tempo da sentença de homologação trânsita em julgado. Aí, surgem alguns problemas. Se a eficácia desconstitutiva ex time, que tem, quanto ao processo, a homologação da transação, começou quando ainda pendia algum recurso, ou fora apenas interposto, à data em que passar em julgado a decisão de restauração da relação jurídica processual é que se vai ter como reiniciado

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qualquer prazo, respeitado o princípio Dies a quo non computatur in termino. A data, que importa, não é a da decisão, mesmo se de ofício a desconstituição, mas sim a do trânsito em julgado. Ainda quando a decretação da nulidade do negócio jurídico homologado não tenha sido de ofício, mas em ação adequada, nada obsta a que o juiz ou tribunal homologante, diante da decisão trânsita em julgado, desconstitua de oficio a homologação. Uma vez que foi decretada a nulidade da transação e transitou em julgado a decisão, quaisquer efeitos que se atribuíram à transação, negócio jurídico de direito material, não podem ser invocados. Apenas se tem de cogitar da volta à relação jurídica processual, se é conveniente a todos, ou a alguns, ou a algum dos transatores. A relação jurídica processual somente se restaura depois de transitar em julgado a decisão relativa à desconstituíção da decisão que homologou a transação. Pode acontecer que não haja interesse em promover a decisão constitutiva negativa. Porém o suscítamento por outrem pode levar o figurante da transação, que a decretação de invalidade favorece, a ter de atuar para que o incoamento, ou alguma irrecorríbilidade, ou mesmo res ludicata, não aconteça. Tem-se criticado o conteúdo do art. 269 do Código de Processo Civil de 1973 por ter equiparado às sentenças de mérito as sentenças homologatórias de reconhecimento da procedência do pedido (art. 269, II), de transação (art. 269,111) e de renúncia ao direito sobre que se funda a ação (art. 269, IV). Em todas essas espécies, o juiz declara extinto o processo com julgamento do mérito (art, 329), porque a decisão do juiz atende ao re-conhecimento, ou à transação, ou à renúncia, o que concerne ao direito, à pretensão e à ação de direito material, à causa petendi. Também se exproba que se haja introduzido nos pressupostos objetivos para ação rescisória a invalidade da confissão, da desistência ou da transação (art. 485, VIII). A referência não se limita a julgamento de mérito (art. 269, II, 111 e IV), pois vai além, por aludir à desistência, cuja homologação produz a extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, VIII). De qualquer modo, quem homologa faz algo simétrico a si como sentencíante: a sentença homologatória é sentença em que o juiz judicializou o que consta dos autos. O que era diferente passou a ser similar. Sentença homologatória sentença é. Se o ato, a que ela se refere, era de direito material, não se pode dizer que a sentença, que o homologa, não julga matéria, mérito. Se o ato é de direito processual tão-só, então a sentença não contém julgamento de mérito, tal como se passa com a homologação de desistência. Passemos agora a cogitar apenas da rescindibilidade da transação a que se refere o art. 485, VIII. Nela foi que se baseou a sentença. Se só se referiu a algum ou a alguns pedidos, a sentença contra o outro ou contra os outros não está sujeita ao art. 485, VIII. Se a transação foi apenas atendida como ato extrajudicial eficaz, trata-se de fato ou de documento que foi posto nos autos. Aqui, o que nos interessa é a transação que extingue o processo com julgamento do mérito, tal como se preve no art. 269, III. Aí, a transação foi base da sentença, elemento probatório, e, então, ou a) se trata de sentença que somente pode ser atingida por algum pedido de ação rescisória se nela se fundou e o negócio jurídico processual da transação foi falso e tal falsidade se apurou em processo criminal ou se prova na própria ação rescisória (art. 485, VI); ou b) se depois da sentença o autor obteve documento não apresentado ao processo cuja existência ignorava, ou de que não pode fazer uso, e bastaria a lhe assegurar pronunciamento favorável (art. 485, VII); ou c) se a sentença se fundou em erro de fato, resultante de tal transação que não existia (art. 485, IX), sem ter havido controvérsia, nem pronunciamento judicial a respeito (§ 2ª). Qualquer dos outros pressupostos para a rescisão da sentença concerne à sentença sem ligação com o elemento probatório da transação, mesmo se ocorreu ao tratar-se dela (prevaricação, concussão ou corrupção, impedimento ou incompetência absoluta do juiz, art. 485, 1 e II; dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei, art. 485, III; ofensa à coisa julgada, art. 485, IV; violação de regra jurídica, art. 485, V). O art. 485, VIII, cogita da transação em que se baseou a sentença, isto é, sem ela seria diferente contenutisticamente a sentença da ação rescisória, a invalidade da transação. Ai, pode dar-se que nem sequer seja válida a transação, como poderia acontecer com a confissão, ou com a desistência, e mais adequada para a rescisão é a invocação do art. 485, IX, e §§ 1ª e 2ª, que alude a erro de fato, resultante de atos ou documentos da causa (o documento pode inexistir, como pode ter sido o próprio negócio jurídico da transação). Todavia, o juiz há de atender ao pedido mesmo se, em vez do art. 485, IX, o autor da ação rescisória da transação referiu o art. 485, VIII, porque inexistência é mais do que invalidade.

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Surge um problema: no art. 269, V, a respeito de extinção do processo com julgamento do mérito, fala-se do autor que renuncia ao direito sobre que se funda a ação. No art. 485, VIII, cogita-se da ação rescisória da sentença se há fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se basear a sentença. Nada se disse, aí, quanto à sentença que se fundou em renúncia do direito sobre que se funda a ação. Seria de repelir-se que se desse tratamento desigual à sentença fundação ou em transação, a fortiori, em desistência, e à sentença que se baseou na renúncia e por isso julgou extinto o processo (art. 329, que alude, explicitamente, ao art. 269, V). Temos, pois, de admitir a ação rescisória de sentença que se fundou na renúncia, ou com invocação, por analogia, do art. 485, VIII, se o caso não cabe no art. 485, III ou V (irrenunciabilidade por força da lei), ou no art. 485, VI (falsidade apurada em processo criminal ou provada na própria ação rescisória). Aliás, quem, no processo em andamento, renuncia ao direito em que se funda a ação implícita ou explicitamente se demitiu da “ação” (remédio jurídico processual). 12. Erro de fato. A generalidade do conceito, que é o conteúdo do erro de “fato” em boa terminologia, seria nociva: razão por que o art. 485, IX, além de se referir à causa do erro de fato, limitando, portanto, a dimensão conceptual, teve após si os §§ e 2ª, que mais longe levam a limitação. Em torno do conceito houve grandes discussões, até que se chegou a frisar-se a situação humana diante do erro, que, nos sistemas jurídicos, é um dos motivos da vontade manifestada em atos jurídicos, extrajudicial ou judicialmente. O que se revela, com o erro de fato, é a falta de coincidência entre a idéia e o estado verdadeiro da coisa ou do fato. O erro ou é erro em senso estrito (idéia falsa, em lugar de idéia verdadeira), ou falta de idéia (o erro apenas é ignorância). Mesmo em caso de idéia errônea, não deixa de existir a manifestação de vontade. Sem o erro de fato, a manifestação de vontade seria outra; mas houve, e pois existe. Ou a técnica legislativa a faz anulável, ou nula, ou atende a que o trânsito em julgado da sentença, que nela se fundou, não há de preexcluir a rescindibilidade da sentença. Os textos romanos, a cada momento, diziam que o erro exclui a vontade (e.g., L. 15, D., de lurisdictione, 2, 1; L.2, pr., D., de ludiçis: ubi quisque agere vel conueniri debeat, 5, 1; L. 20, D., de aqua et aquae pluviale arcendae, 39, 3). Não mais assim se pode pensar. A distinção entre erro escusável e erro inescusável éestranha ao erro de que tratamos como causa de rescindibilidade. A sentença, e não qualquer litigante, foi que admitiu o fato inexistente, ou negou o fato existente. O erro é do juiz. Não se traga à balha o que concerne a erro do negócio jurídico, ou de outro ato jurídico dos figurantes. O juiz pode ter ignorado a existência do fato como pode ter dito que existiu ou existe o que não existia ou não existe (sobre erro-ignorância, Ernest Zitelmann, Irrtum und Rechtsgeschâft, 319 s.). O erro no art. 485, IX, não é error iurfs, mas so error facti. Todavia, se o juiz teve de fundar a sentença no que a parte produziu como prova do teor e da vigência de direito municipal, estadual, estrangeiro, ou consuetudínário, e se verifica que houve erro do juiz, por ser falsa a prova, aí o erro do juiz foi error iuris, a despeito de se ter produzido prova (falsa) de fato. Temos de admitir que se possa propor a ação rescisória da sentença, porque considerou existente um fato (embora “lei”) que não existia. O fundamento ha de ser no art. 485, IX. Porém não se exclua a invocabilidade do art. 5º. Se alguma parte ou pessoa interessada ignorava a lei estrangeira e nela se baseou para a aplicação pelo juiz e o juiz admitiu o texto que a parte ou a pessoa interessada citara, pergunta-se: qual a ação rescisória proponível, — a do art. 485, V, a do art. 485. VII, ou a do art. 485, IX? A ação rescisória pode ser a do art. 485, V (“violar literal disposição de lei”), ou a do art. 485, VII (“depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pode fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”), ou a do art. 485, IX (“fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa”). Se a sentença se fundou em erro de fato, ligado a ato da causa ou a documento que nela se apresentou, há rescindibilidade. O juiz pode ter sido levado ao erro devido à apreciação de algum documento, ou de qualquer ato praticado no processo, e não só ato de produção de prova. Tem-se de dar a “ato” conceito largo, que abranja qualquer ato processual, ou mesmo ato extraprocessual, que se haja trazido ao processo. O § 1ª frisa que há erro quando a sentença admite como existente fato que não ocorreu (não existiu), ou como inexistente o que ocorreu. Se já se havia discutido o assunto, isto é, se já se dera controvérsia quanto à existência, ou a inexistência, e o juiz já se havia pronunciado a respeito (§ 29, não incide o art. 485, IX. Note-se a referência à controvérsia e ao pronunciamento do juiz, que pode ter sido antes da sentença, ou na sentença. Se não houve controvérsia e o juiz cometeu o erro, há proponibilidade da ação rescisória. O legislador de 1973 inspirou-se no Código de Processo Civil italiano, art. 395, 4), porém com algumas diferenças, e devemos evitar importação de

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interpretações. Não se exige, por exemplo, no direito brasileiro, que o pronunciamento do juiz quanto à controvérsia tenha sido na sentença (“un punto controverso sul quale Ia sentenza ebbe a pronunciare’). No Código de Processo Civil italiano, art. 395, estatui-se: Le sentenze pronunziate in grado d’appelo o in único grado possono essere impugnate per revocazione: 4) se la sentenza él’effett o di un errore di fatto risultante dagli atti o documenti delia causa”. Ai foi que se inspirou o Código de Processo Civil de 1973. No art. 485, § lº, acrescenta-se: “Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido”. No Código de Processo Civil italiano, o art. 395, 4), ainda diz: “Vi é questo errore quando la decisione é fondata suíla supposizione di un fatt o la cui verità é incontrastabilmente escusa, oppure quando é suposta linesistenza di un fatto la cui verità é positivamente stabilita, e tanto nelIuno quando nell’altro caso se il fatto non costitul un punto controverso sul quale la sentenza ebbe a pronunciare”. Da parte final o legislador brasileiro tivera o § 2ª do art. 485: “E indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato”. Na redação do § 2ª há diferença em comparação com o texto italiano: no § 2ª, exige-se que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento do juiz: no Código de Processo Civil italiano, art. 395, 4), in fine, fala-se de não se tratar de ponto controverso sobre o qual se pronunciou a sentença. Tem-se de atender à diferença que não é só de redação. Evite-se, portanto, importação de textos italianos, como o de ter existido o debate contraditório entre as partes (e.g., Francesco Ricci, Comento ai Codice di Procedura Se o juiz, na sentença, disse que constam dos autos documentos ou outra prova que não existe, ou que deles não consta documento ou outra prova que foi produzida, há, evidentemente, erro de fato. Idem, se, na sentença, cita trecho de documento que nele não está, ou que é diferente (cf. Francesco Saverio Gargiulo, II Codice di Proceduro Civile, III, 367); ou se a sentença se funda em ter havido perícia ou testemunho, que não foi feito, ou em ser pai ou mãe da parte a pessoa que não permitiu o depoimento. O art. 485, IX, cogita da ação rescisória que se funde em erro de foto, oriundo de atos ou documentos da causa. O erro foi do juiz, posto que a sua culpa possa ter sido mínima, devido a atos, que constavam do processo, ou de documentos apresentados. Pode ser que se tenha admitido fato que não ocorreu, e para isso haja contribuído a atitude de alguma das partes, de assistentes, de peritos, de técnicos, ou de testemunhas, ou algum documento; ou que se haja repelido a inexistência — ou a continuidade — de fato que não se dera, ou que cessara. Se o juiz, diante da prova que se fez, decidiu conforme o que se apresentou como prova, e errou (por exemplo, a lei constante do jornal oficial estrangeiro ou de coleção de leis estrangeiras já fora abrogada ou derrogada), a parte ou interessado que foi ofendido com o julgado pode propor a ação rescisória. Idem, se o juiz, crendo conhecer a legislação estrangeira, dispensou a prova. Surge o problema de se saber se pode ser proposta a ação rescisória pela parte que apresentou a prova errada, ou já impertinente. A afirmativa de certo modo cobre o erro da parte, ou de seu advogado. A negativa deixaria aberta a porta para se não corrigir a má aplicação da regra juridica (municipal, estadual, estrangeira, ou consuetudinária), ao mesmo tempo que desatemderia ao dever do juiz de bem examinar a espécie (exame da prova feita). Nunca encontramos discussão do assunto, e não podemos refutar a propanibilidade da ação rescisôria, se não houve dolo do probante. O erro pode consistir em se ter afirmado que o fato acontecera, ou que não acontecera, ou que acontecera no momento b, que interessa a causa, ou que não acontecera em tal momento, e a afirmação se referiu, erradamente, ao momento b, em vez de só admitir ter existido ou não ter existido no momento o, ou c ou a e c. Além disso, pode ser que ao ato existente fosse estranho o elemento subjetivo (ato praticado pelo autor, ou pelo réu). O que importa é tratar-se do ato ou fato que seja ponto de exame para o juiz. Quem o levou ao processo, mesmo se não o devia fazer, ou não o podia, não se precisa indagar, porque o juiz se baseou no que consta dos autos, e errou. No art. 352 do Código de Processo Civil diz-se que a confissão, quando emanar erro, dolo, ou coacão, pode ser revogada: 1 — por ação anulatória, se pendente o processo em que foi feita; li — por ação rescisória, depois de transitada em julgado a sentença, da qual constituir o único fundamento’. Ora, quando se anula, não se revoga, o que põe ao vivo o erro de redação; e, quando se rescinde, nem se revoga, nem se anula. A anulabilidade é do ato; a rescisão é da sentença. Cumpre ainda advertir-se que as menções das causas foram insuficientes, porque pode ter faltado poder ao procurador (art. 38, verbo “confessar”), ou a confissão do outro cônjuge, se a ação é sobre imóvel (art. 350, parágrafo único), ou tratar-se de algum direito indisponível. Não obstante a referência

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estrita do art. 352 a erro, dolo, ou coação, tem-se de admitir a ação rescisória em todas as outras espécies de invalidade da confissão. O art. 485, VIII, foi mais acertado, porque cogita da rescindibilidade se há” fundamento para invalidar confissão”. Havemos de entender que, pendente o processo, é proponível a ação decretativa de nulidade ou anulidade, qualquer que seja o fundamento, a despeito da limitação do art. 352 ao erro, dolo ou coação. Uma vez que a parte teme que o juiz não atenda à sua argúição, é aconselhável a propositura da ação do art. 352, 1. Após o trânsito em julgado, o art. 352, II, tem de ser interpretado sem ofensa ao art. 485, VIII. 13. Rescindibilidade de sentenças e de acórdãos. Costuma-se invocar a opinião do antigo Tribunal do Comércio da Corte (14 de março de 1872, 27 de março de 1875), para se dizer que a rescisão pode ser pedida, não só da sentença, mas também dos acórdãos que a confirmam. É fácil perceber-se a confusão. A sentença, de que cabe recurso e de que ainda pode ser interposto, apenas constitui apresentação da prestação jurisdicional, e não entrega. Essa só sucede quando dela não cabe mais recurso, ou quando já não cabe, ou a lei não o dá, de decisão que a confirmou ou a reformou. A entrega, portanto, da prestação jurisdicional somente ocorre na última decisão. Não há rescisória de uma sentença e dos acórdãos que a confirmaram, ou que a reformaram. O que é rescindível é a última sentença, ou, se houve recurso, o último acórdão que conheceu da matéria cujo reexame se pede. Algumas vezes, o recurso, que se interpôs (o que acontece, freqúentemente, com os recursos extraordinários), não versava sobre o ponto cujo julgamento se quer rescindir. Então, é a rescisão da sentença, ou do acórdão anterior, que se pretende em juízo, caracterizando-se o objeto da rescisória e a competência para dela se conhecer. Se há causa para a rescisão, o que se tem de procurar saber, antes de tudo, é qual o momento em que o ponto da decisão, em que a causa se deu, passou, formalmente, em julgado. Pode tratar-se de acórdão no correr do processo, sobre preliminar ou questão prévia; pode ser ponto da sentença, ou sobre a sentença, em si mesma; pode ser assunto de remédio estrito, como a revista, o prejulgado, ou o recurso extraordinário. Decisão sobre recurso de que se não conhece somente pode ser rescindida no que toca a ela mesma ou à não-cognição. Se há causa para a rescisão, o que se tem de procurar ao mérito — a sentença. idem, quanto a preliminares da sentença. Não quer isso dizer que o próprio acórdão no recurso não seja suscetível de rescisão per se. São julgados diferentes e inconfundíveis, pela diversidade do objeto de um e de outro. A decisão do juízo rescindente, que desconstitui o acórdão que não admitiu embargos a uma sentença, ou a outro acórdão, reabre o processo desde ele. Por isso mesmo, não foi exato o raciocinio da antiga Corte de Apelação do Distrito Federal, há alguns anos, quando entendeu que, decretada a rescisão de acórdão que julgara não serem admissíveis os embargos, não aproveitaria. Aí, a espécie permite e aconselha que se cumulem os dois pedidos, o de rescisão do segundo e o de rescisão do primeiro acórdão. O tribunal da ação rescisória, conhecendo de ambos, rescindirá o segundo e, julgando-se os embargos, decidirá quanto à matéria destes e quanto à do outro pedido, que pode ser a mesma. A cumulação não é, porém, necessária. O fato de se pedir a rescisão da sentença, em vez dos acórdãos que a confirmaram, não constitui nulidade, nem causa para não-provimento (Corte de Apelação do Distrito Federal, 2 de maio de 1934; errado, o acórdão do Tribunal do Comércio da Corte, a 14 de março de 1872, OD 1, 276). Entende-se que houve, da parte do advogado, apenas lapso, ou falta de técnica processual suficiente. O vulgo pensa que a decisão confirmada é que é a decisão. Daí erros de advogados e de tribunais. Em todo caso, há o problema da competência para cognição da ação rescisoria. Quando o acórdão rescindendo se firmou em alguma sentença, atribuindo-lhe coisa julgada, ou se tem de provar que não houve coisa julgada, nesse caso, o fundamento somente pode ser o da falsa prova; ou se mostra que o acórdão rescindendo deu à sentença que constituiu res iudicata efeitos que de direito não lhe cabiam (extensão da coisa julgada), então o fundamento é a violação de direito objetivo (Corte de Apelação do Distrito Federal, 13 de outubro de 1937). 14. Sentença estrangeira e homologação de sentença estrangeira. A sentença estrangeira não é suscetível de ser rescindida pelos juizes do Brasil. A sentença de homologação da sentença estrangeira, que é prestação

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jurisdicional do Estado brasileiro pode ser objeto de ação rescisória perante o Supremo Tribunal Federal. Revogada ou rescindida a sentença estrangeira, periclita a de homologação, ainda que já se haja decidido desfavoravelmente a rescisória dessa; mas a rescisão ou revogação da sentença estrangeira precisa, a seu turno, ser homologada. Não há dificuldades se atender aos princípios. Rescindida a sentença estrangeira, homologada a sentença rescindente, caem a anterior e sua homologação. Idem, quanto à declaração de inexistência e á decretação de nulidade. 15. Prazo para a propositura da ação rescisória de sentença. Os velhos jurisconsultos muito discutiam o prazo de propositura das ações rescisórias, sendo de citar-se Baldo de Uhá ldis Há rtolo de Saxoferrato; 3. H. Render e Cravett. Fizeram-se, depois, extinguíveis em trinta anos, sobrevindo leis especiais; D. B. Altimaro (Tractatus de Nullitcitibus, 1, 8) já afirmava ser trintenal: “per viam actiones. durat triginta annis”. Manuel Gonçalves da Silva esclareceu, no seu tempo, o direito português (Commentaria, III, 130): “Si per viam actionis agatur, poteste dici de nuilitate usque ad triginta annos, quia tunc competit officium iudicis nobile, quod eatenus durat, quatenus durant reliquae actiones personales, videlicet triginta annis’. O fato de não se poder, após o prazo, pleitear a rescisão da sentença é de extrema importância. Qualquer que haja sido o seu vicio, nenhum remédio resta. Por isso, é imprescindível saber-se quais são as sentenças rescindíveis e quais as que o não são. No direito anterior ao Código Civil (Supremo Tribunal Federal, 21 de setembro de 1912), o texto de Manuel Gonçalves da Silva foi” direito”. Exemplo eloquente de direito fora da lei. Era a communis opinio. 1Lá se foi o “em todo tempo” da Ordenação[ Se o direito só fosse o texto legal, melhor exemplo não teríamos de violação do direito. O Código Civil de 1916, art. 178, § 10, VIII, fixou-o em cinco anos, em vez de trinta. Restava saber se o prazo era de prescrição e, pois, suscetivel de interrupção e suspensão, ou preclusivo e, assim, como tais prazos, de ordinário, indefectivelmente contínuo. A questão só assumia aspecto mais interessante porque se meteu no direito material o que concerne essencial-mente a instituto de direito processual. A desatenção de Rui Barbosa continua a causar dúvidas e dificuldades. Após as nossas argumentações sobre se tratar do prazo preclusivo, o Supremo Tribunal Federal, a 17 de abril (2ª Turma, AJ 62/337) e a 12 de setembro de 1942 (1ª Turma, DJ de 15 de abril de 1943). Naturalmente, havemos de comparar os fatos, semelhantes, da preclusão para o mandado de segurança e os embargos de terceiro e do executado. O prazo preclusivo para a propositura da ação rescisória, dois anos — se não incide a Medida Provisória nº

1.577, art. 4º—, conta-se do trânsito em julgado da sentença rescindenda. Não importa se sobreveio ação executiva de sentença (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 6 de janeiro de 1947, RF 118/442), que tem as suas decisões suscetíveis de rescisória, conforme os princípios. Se, por acaso, sobrevém pátrio poder, tutela, ou curatela, nos casos em que a ação devia ser proposta pelo incapaz e não no foi, responde por perdas e danos o representante do incapaz. Se a rescisão se funda em pressuposto objetivo concernente a pressuposto subjetivo da ação cuja sentença se pretende rescindir, o prazo para a propositura começa a contar-se da data em que trânsita em julgado a sentença. Tal é o caso das decisões rescindíveis por incompetência do juízo ou vicio quanto à parte. Tal força formal supõe ciência. Outrossim, se o pedido concerne à violação do direito (ius constituturn), ou à falsa prova. Se foi julgada a falsidade da prova, em juízo criminal, o prazo preclusivo somente começa de correr com o trânsito em julgado da sentença penal. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a 30 de maio de 1951 (Jurisprudência, 1952, 343), entendeu que o prazo preclusivo (chamado por ele, erradamente, prescricional) começa de ser contado da data da publicação do acórdão no recurso extraordinário, ainda se desse recurso não conheceu o Supremo Tribunal Federal. Sem razão. Se se conheceu do recurso extraordinário, como de qualquer recurso que se interpôs da sentença que, portanto, ainda não transitou em julgado, o que vai transitar em julgado é a decisão no acórdão que examine a sentença: o prazo preclusivo é para a rescisão desse acórdão, que confirmou ou reformou a sentença. Se não se conheceu do recurso extraordinário, como de qualquer recurso, é que a sentença transitou em julgado, uma vez que dela não cabia o recurso interposto, a sentença trânsita em julgado é a sentença de que não cabe ou de que

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já não cabe recurso. A ação rescisória é proponível desde que transitou em julgado a decisão que se quer rescindir. A relação jurídica processual pode ainda estar pendente de sentença que a faça cessar. A afirmativa de que, pendendo a lide, ainda não há coisa julgada formal, é falsa. Se transitou em julgado decisão que não foi a final, coisa julgada formal estabeleceu-se para o ponto ou os pontos dessa decisão. Se, na execução de sentença, o executado apresenta embargos, por falta ou nulidade da citação inicial e por ter corrido à revelia a ação, primeiro hão de ser julgados esses embargos do devedor, por se tratar de ação de nulidade, incidental, e ser subsidiária a rescisória (= não ser remedium ordinarium), e não haver eletividade entre ela e ação de nulidade. O juiz, que encontra o nulo, desconstitui o ato jurídico, ou a parte do ato jurídico em que ele ocorre. Tem-se, primeiro, de julgar os embargos do devedor, que são suspensivos; mas ainda que o não fossem. Proposta a ação rescisória, processa-se; o julgamento da ação rescisória é que tem de ser após o julgamento dos embargos do devedor. A regra Quae ad agendum temporalia, ad excipiendum perpetua sunt não se aplica, hoje, à rescisória. Só temos a ação; não temos a exceção. E é bem que assim seja. Porque havia de ser perpétuo o que se quer que se peça no prazo preclusivo? G.Chr. Burchardi (Die Lebre von der Wiedereinsetzung, 496; sobre o direito romano e a observação de G. Chr. Burchardi, ver Marco Vita Levi, De restitutione in integrum, 118) desenvolveu as razões para que os nossos tempos repelissem, aí, o princípio romano. Quem proporia a ação, se tivesse a exceção? Que significaria o remédio, com as suas garantias e cautelas, se mais fácil fosse a via da exceção? O elemento canônico atuou no instituto. A actio de nullitate vel querela nullitatis, ação pessoal, passou a prescrever em trinta ou quarenta anos. A noção da sanatio interveio: “Sanatio autem intelligebatur, si assensa adversarii vel tractu temporis vel aliis rebus supervenientibus ius infirmum convalescebat”. Se a nulidade ipso iure teve, em parte, esse tratamento, não se entenderia a perpetuidade da pretensão à rescisão. Mais: a exceção não é pretensão. O seu caráter defensivo, em contraposição à pretensão, à ação, não permite à ciência moderna que se incida em erro de tê-la como contraprestação. contra-ação. (Ainda nisso incidiram Konrad Cosack, Lebrbuch des deutschen búrgerlichem Rechts, 1, 255; Wilhelm Abbeg, Die Verjàhrung der Einreden nach rómischem, gemeinem und búrgerlichem Recht. 66). A pretensão e a ação definem-se por certa agressividade (Otto Hoffmann, Die Verjàhrung der Eireden, 66). A ação rescisória, por exemplo, ataca o julgado. Se pudessem ser alegados, em exceção, os pressupostos objetivos da rescisão, teríamos a exceção agressiva, a ação dentro da exceção, a ação dissimulada em exceção. Ora, se há exceções inatingíveis pela prescrição (as verdadeiras exceções), não se dá o mesmo com as exceções concorrentes, como seria o caso, e a exceção correspondente à rescisão, se hoje existisse, cairia com a prescrição da ação. * Tant dure l’action, tant dure l’exception. Não se pode dizer que prescreva, ou preclua: extingue-se. A prescrição da pretensão acarreta-lhe o apagamento (Paul Langheineken, Anspruch und Einrede, 183 e 287; Max Flegel, Der Begriffder Em rede im BG&, 48; Kurt Geier, Der Begr ii! der Em rede, 25 e 26); do outro lado, nasce outra exceção, que é a da prescrição (Otto Hoffmann, Die Verjãhrung, 28). As interrupções e suspensões, que concernem à prescrição, não se aplicam à exceção (Paul Langheineken, Anspruch, 287; Rudolf Leonhard, Der Allgerneine TeU, 231), o que bem prova não prescrever com a ação: extinguir-se. (Sem razão o parecer de R. Salmann, Uber den Satz: Quae ad agendum sunt temporalia, ad excepiendum sunt perpetua, 19 s., que sustentava a prescrição das exceções concorrentes). Sobre as exceções puras nenhum influxo tem a prescrição, bem assim sobre as exceções concorrentes reais; as concorrentes pessoais extinguem-se com a prescrição da pretensão ou direito com que concorrem; as autônomas verdadeiramente não constituem classe à parte (Otto Hoffman, Die Verjàhrung, 34; cp. H. Berent, die Vernichtung der sogen, konkurrierenden Einreden, 72 s.). 16.Influência da coisa julgada no decisão de outra ação. Ocorre às vezes que a coisa julgada de um processo serve de base ao julgamento de outro, e. g., foi vencido o autor da ação de despejo na ação que contra ele se propusera de reivindicação, e foi julgado nulo o título creditório em que o réu era coobrigado; em tais casos, na ação rescisória contra a segunda sentença, não se pode pretender a rescisão da coisa julgada da outra: ou pre-viamente se propõe a ação rescisória da primeira (a parte da segunda ação é interessado para propô-la. posto que não seja parte na primeira, como no exemplo que demos em segundo lugar), ou se propõe a ação rescisória da segunda, se o que se lhe quer rescindir é o seu próprio julgamento. independentemente da subsistência da primeira sentença.

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17. Embargos de terceiro e rescisão. A propositura da ação rescisória da decisão que julgou provados os embargos de terceiro, ou que os julgou não provados, ou os rejeitou in limmne, pode ser dependente e pode não no ser. De regra, se os julgou provados, não é preciso que se rescinda, antes, a sentença proferida na ação principal (Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1933: Tribunal de Justiça de São Paulo, 23 de novembro de 1931). Se os julgou não provados e a ação principal foi julgada improcedente, ou nulo o processo, ou inutilizada por alguma preliminar, não é de mister que se proponha a ação rescisória da sentença proferida na ação principal. Tem-se de rescindir o que seria incompatível com o julgado na rescisória da decisão sobre os embargos. 18.Rescindibilidade total e rescindibilidade parcial. (a) A rescisão da sentença por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz, ou impedimento ou incompetência absoluta do juiz, apanha a sentença toda; salvo, quanto à incompetência ratione materiae, ou por hierarquia, se há duas ou mais sentenças numa só (cumulação de pedidos) e para uma ou mais era competente ratione materiae, ou por hierarquia, o juiz proferidor da sentença. (b) A ofensa à coisa julgada (art. 485, IV) pode não ser em todos os pontos da sentença, só ser em algum ou alguns pontos separáveis, ou, em caso de pluralidade de sentenças numa só, só numa, ou só em algum ou alguns deles haver a ofensa. (c) A ofensa à lei, segundo o conceito de “literal disposição de lei”, que é o do art. 485, V, pode ser só em um ou alguns pontos separáveis, ou, em caso de pluralidade de sentenças numa só, só numa, ou em algumas delas, ou em pontos ou em pontos haver a ofensa. O princípio da incalum idade do separável intervêm, de modo que a rescisão, dentro do que acima se expôs, pode ser total ou parcial. Cd) Se o fundamento principio da sentença foi prova declarada falsa em juízo criminal, ou de falsidade apurada na própria ação rescisória (art. 485, VI), a rescisão abrange toda a sentença. Se houve pluralidade de sentenças numa só, somente se rescinde a sentença ou somente se rescindem as sentenças a que serviu de fundamento principal a prova falsa. (e) Se a rescisão concerne a sentença proferida em ação rescisória, cumpre saber-se tal sentença se compõe de sentença única, ou se em verdade houve pluralidade de sentenças numa só (cumulação de pedidos de rescisão). Se pluralidade houve, nada obsta a que só se peça, ou que só se defira o pedido de rescisão de uma ou de algumas delas. (f) Tratando-se de atos processuais que não dependem de sentença, ou em que essa foi simplesmente homologatória (art. 486), a desconstituição é deles, nos casos em que se pode decretar a invalidade dos atos jurídicos em geral. (g) A rescindibilidade pode somente existir a propósito de um ou de alguns pontos da sentença, ou ser apenas de alguma decisão anterior à sentença final, devendo-se pedir a rescisão desde aquela até essa, uma vez que essa só se conceberia subsistindo àquela. É raro, mas pode ocorrer, que não haja necessidade de se atingir o que se processou após a decisão anterior à sentença final, nem, sequer, de se refazer o que a rescisão desfaz. Muitos atos juridicos são elimináveis sem repercussão no que após ele se constituiu, ou se julgou. Aliás, o ato jurídico que é pressuposto necessário implica o pedido de rescisão da sentença final se essa foi proferida. O que importa é verificar-se, sem ele, podia. ou não, ser proferida a sentença. A rescisão só apanha o ponto em que era rescindível a sentença, ou os pontos em que o era, Se algum ato processual ocorreu que pode ser rescindido segundo o art. 486, e a sentença também o é, há dois pedidos de rescisão, com diferentes pressupostos. As Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 15 de outubro de 1947 (RT 171/323; RF 116/506), sustentaram, sem qualquer razão, que a rescisão da sentença há de ser de toda ela, ou não pode haver

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rescisão. Não haveria rescindibilidade parcial. Nada mais aberrante dos princípios. Pode dar-se que tenha havido violação de direito, no tocante a certo ponto, separável dos outros; e nada impediria que só se rescin-disse, em parte, a sentença. 19.Ação rescisória de sentença proferida em ação rescisória. Em 1934, propositadamente ( ed., 257 s.), levantamos a questão da ação rescisória de sentença proferida em ação rescisória, frisando a contradição moral em que incidiria a opinião contrária: “Para que a sentença rescindente não seja sujeita à rescisão, é preciso que o diga a lei processual. No Brasil, nenhuma lei processual excluiu de tal exame as sentenças proferidas em juízo rescindente ou em ambos os iudicia. Os tribunais devem evitar que se excluam da rescisão sentenças suas ou das câmaras ou juizes, sem que o diga a lei, explícita ou implicitamente, mas cio ris verbis, porque é preciso que não pairem dúvidas sobre quais sejam, ou não, as sentença rescindíveis. Aqui, se o texto não é claro, tudo aconselha a que se não corte, cerce, por precipitado “Não conhecemos, ação de tão alto interesse público”. O Código de Processo Civil de 1939, no art. 799, que foi explícito e minudente, atendeu à nossa argumentação, sem permitir, todavia, erradamente, a rescisão da sentença proferida em ação rescisória pelo fundamento de nova infração do direito. De lege ferenda, não estaria certo. Se a rescisão admitira ação (reconvenção, embargos do devedor ou de terceiro), a violação nessa escaparia à limitação do art. 799: há outra ação. Mas tivemos de interpretar o art. 799. É admissível terceira ação rescisória por ofensa à coisa julgada, ou por outro fundamento, se não fora o da segunda (cp. Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, 4 de junho de 1947, RT 169/309). A ação rescisória contra a sentença que foi objeto de outra ação rescisória, por outro fundamento, não é ação rescisória de sentença em ação rescisória. A mesma sentença pode dar ensejo a pluralidade de ações rescisórias, cujos pedidos podem ser cumulados, ou feitos separada-mente. Nada obsta a que se proponham duas ou mais ações rescisórias, cumuladas ou não, simultânea ou sucessivamente, contra a mesma decisão. Por exemplo: uma, por prevaricação, ou concussão, ou corrupção do juiz; outra, por impedimento do juiz; outra, por incompetência ratione nia teriae, ou pela hierarquia; outra, por ofensa à coisa julgada; outra ou outras, por violação de direito em tese; outra, por falsidade de prova. A sentença rescindente pode rescindir duas ou mais partes da sentença. As ações contra a mesma sentença são cumuláveis. Não há limite ao número de sentenças sucessivas rescindiveis. Se há duas ou mais sentenças rescindentes, relativas a questões conexas, nada obsta a que se cumulem os pedidos. Idem, se há relação de consequência entre as duas ou mais sentenças. Segundo os princípios, qualquer sentença que caiba em algum dos incisos do art. 485 do Código é rescindivel. Não importa se foi sentença que rescindiu outra sentença, ou sentença que resultou de rescisão. Escreveu Luís Eulálio de Bueno Vidigal (Ação rescisória dos julgados, 17) que a ação rescisória é a única, dentre os remédios jurídicos destinados à correção das sentenças, que, repelida, pode ser renovada. Absolutamente não. A confusão ressaltava. Quando, no art. 799, o Código de Processo Civil de 1939 falou de ação rescisória de sentença proferida em outra ação rescisória, de modo algum aquiesceu em que se renovasse o pedido de rescisão que tenha sido repelido. A sentença dada na ação rescisória, quer se tenha julgado inadmissível (preliminar), quer procedente, quer improcedente (no sentido técnico português e brasileiro, e não no sentido a técnico de outros povos) a ação, é outra sentença, inconfundível com a sentença rescindenda. Se autor ou réu na ação rescisória, ou outro legitimado ativo, propõe ação rescisória contra a sentença que se proferiu na ação rescisória, não renova pedido: o pedido, que se faz, é outro pedido. Não poderia renovar o que fez. A ação rescisória, que então se lhe permite, é por algum dos fatos mencionados no art. 485 ou no art. 486 do Código de Processo Civil, ocorrido na relação jurídica processual da ação rescisória. A sentença na primeira ação rescisória foi julgamento de julgamento; a segunda é julgamento do ‘julgamento de julgamento’, e não outro julgamento do julgamento de que se pedira, antes, rescisão. 20. Direito em tese e ação rescisória de sentença rescisória. Do art. 799 do Código de Processo Civil de 1939 resultava que se não admitia nova ação rescisória de sentença quando se atribui à decisão na ação rescisória violação do direito em tese. Em todos os outros casos, existia a pretensão a rescindir. O Código de Processo Civil lançou o dogma da infalibilidade dos juizes rescinden Les quanto á tese do direito, à existência ou inexistência da regra jurídica. Erradíssimo.

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O Código de 1973 afastou, totalmente, qualquer distinção, no tocante a fundamentos entre ações rescisórias de sentença e ação rescisória de sentença proferida em ação rescisória. Volveuse ao que coincidia com os princípios, porque sentença, com que se extingue relação jurídica processual em ação rescisória, de modo algum há de ter tratamento diferente daquele que se dá às sentenças proferidas em quaisquer outras ações. As regras jurídicas dos arts. 485-495 do Código de Processo Civil incidem. O prazo preclusivo é o mesmo. Portanto, cabe, se houve: a) prevaricação, concussão ou corrupção do juiz rescindente; b) impedimento ou incompetência ratione materiae ou pela hierarquia do juiz rescindente; c) dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; d) ofensa à coisa julgada por parte da sentença na ação rescisória (em qualquer dos iudicia, rescindente ou rescisório); e) fundamentação em prova cuja falsidade se tenha apurado no juízo criminal, ou se apurar inequivoa camente, na própria ação rescisória; f) ter ocorrido o que se prevê no art. 485, VIII; g) ter havido na sentença rescindente erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa. Se o rescissorium foi separado e ou o juiz desse infringe o julgado do iudicium rescindens, cabe a rescisão por ofensa à coisa julgada. Se o rescissorium foi separado e se deu nova violação de lei, isto é, estranha à rescisória, cabe outra rescisória. Se o rescissorium se procedeu em juízo incompetente ratione materiae, ou nele houve outra razão para pressuposto de nova rescisória, é inegável o remédio jurídico processual. A vedação da segunda rescisória (ação rescisória de sentença em ação rescisória), se o fundamento era infração de regra jurídica procurava estabilizar as relações jurídicas examinadas e firmar o respeito às decisões (Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, 11 de outubro de 1943, EX! de 17 de dezembro, 4887; RF 98/357). Mas a verdade é que a infração poderia ser diferente; e esse erro ex novo mereceria ser tratado com a regra jurídica adequada. Daí as criticas que fizemos ao Código de 1939, art. 799. Cumpre advertir-se em que a rescisão tinha os seus limites; mas, se ela deixava ao juízo inferior julgar porque só se rescindiu a sentença. ou desde outro ponto processual de que se possa prosseguir e sentenciar de novo, cabia ação rescisória do que for julgado, no rescisório, com base no art. 798, 1, c), pois o art. 799 só proibia a segunda ação rescisória, com fundamento no art. 798, 1, c), e — ex hypothesi — não houve sentença rescindente quanto ao julgado no rescisório. O rescisório deixado ao julgamento de outrem não é parte do julgado rescindente, de modo que a espécie escapava ao art. 799, que pré-excluia a rescisória de rescisória com base no art. 798. 1, c), isto é, a ação rescisória, com tal fundamento contra sentença rescindente, Procuramos, sob o Código de 1939, livrar o sistema jurídico do erro do então art. 799. Hoje, não mais interessa a discussão porque a ação rescisória de sentença em ação rescisória tem o mesmo trato que a ação rescisória inicial. Qualquer dos fundamentos do art. 485 é bastante, como, aliás, qualquer dos fundamentos do art. 486. Se o pedido, na ação rescisória de sentença proferida em ação rescisória, é o mesmo que se fizera nessa, não cabe tal ação. O autor, na ação rescisória A, alegara que a sentença rescindenda ofendera coisa julgada de outra sentença, ou que violara a regra jurídica a, ou que cometera erro de fato, apode, na ação rescisória B, em que se pede a rescisão da sentença proferida na ação rescisória A, ser o mesmo fundamento? De modo algum. Seria repetição de ação rescisória A, e não ação rescisória B, de sentença que consta da ação rescisória A. Se fosse admissível tal renovação, ter-se-iam, em verdade, as proposituras sucessivas (duas, três, ou mais vezes) da mesma ação rescisória A. O pressuposto para a rescisão da sentença que rescindira a anterior há de constar dela mesma, e não da sentença que fora rescindida. Por isso, não se pode dizer, por exemplo, que é falsa a prova que a sentença que rescindira a outra sentença não considerara falsa, apesar da arguição. A falsidade alegável pode ser de outra prova de que serviu a sentença rescindente. Quanto aos pressupostos subjetivos do art. 485, 1 e II, mesmo se o juízo foi o mesmo, há dois momentos em que se tem de apreciar: se a sentença rescindente disse que não ocorrera prevaricação, concussão, ou impedimento, ou incompetência absoluta, isso não impede que se peça a rescisão da sentença rescindente porque, quanto a ela, algum desses pressupostos ocorre. Dá-se o mesmo se parte vencedora na ação rescindente conseguiu vencer com o dolo em detrimento da outra parte, ou se terceiro juridicamente interessado, ou outra parte, se houve pluralidade, funda a ação rescisória da sentença rescindente em ter havido colusão das partes a fim de fraudar a lei. São exemplos. 2. Rescisão de atos judiciais que não dependem de sentença, ou em que essa seja meramente homologatória. A lei processual assenta que os atos judiciais, que não dependerem de sentença, ou em que essa for meramente homologatória, podem ser rescindidos como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil. O art. 486 obriga à precisão de vários conceitos: (a)”Atos judiciais” é expressão que aí está por “atos processuais”, como

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acontece em todo o Código: porém, livremo-nos de entender que “todos” os atos processuais que não dependem de sentença. ou em que a sentença seja meramente homologatória, se rescindam segundo a lei civil; (b) Os atos processuais que não dependem de sentença são os atos jurídicos das partes, ou em lugar das partes, que sejam regidos pelo direito material; (c) Os atos processuais que exigem mera homologação são os atos jurídicos das partes, ou em lugar das partes, que sejam regidos pelo direito material, porém cuja eficácia processual dependa de sentença, sendo essa simplesmente homologatória, (d) A referência a’”lei civil” foi feita brevitatis causa: entenda-se “lei material”, porque o ato jurídico inserto no processo, ou tomado por termo, pode ser regido pelo direito público, ou pelo direito comercial, ou pela legislação do trabalho, ou outra legislação especial, ou, até, por direito estrangeiro (e g., renúncia a direito oriundo de negócio jurídico regido por lei estrangeira, homologação de partilha em que há incapazes sujeitos à lei pessoal estrangeira). O art. 1.030, 2ª parte, do Código Civil é invocável a respeito das transações que não se fazem em juizo e das transações que se fazem em juízo. Numa e noutra espécie invalida-se, por exemplo, por dolo, ou por violência, ou por erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa. Como há a homologação judicial, se a transação foi levada aos autos, ou se foi por termo nos autos, a lei processual, sob cujo regime se faz a homologação, viu — de cima — o ato jurídico em seu conjunto (primeiro, vista de cima, a homologação; depois, o negócio jurídico da transação) e referiu-se a ‘rescisão”, que, de ordinário, somente se entenderia se atinente ao ato processual. Mas, ai, apenas se desceu ao plano do direito material, para a referência. Temos, portanto: Os negócios jurídicos de direito material, levados aos autos processuais ou por termo nos autos, são negócios jurídicos sujeitos, quanto à sua desconstituição, às regras de direito material. Os atos processuais, envolventes desses negócios jurídicos, regem-se pelo direito processual. Vendo de cima, o legislador processual abstraiu da ordem cronológica (negócio jurídico da transação; depois, homologação) e falou da “rescisão” (da homologação e do negócio jurídico), em vez de se referir a nulidade ou anulação do negócio jurídico e sua repercussão na sentença de homologação, que em verdade é “rescindida” por efeito que vem de baixo (da desconstituição do negócio juridico envolvido). A terminologia é acertada e feliz. Ai, a ação rescisória, instituto de que o direito brasileiro se pode orgulhar, porque nenhum país o tem, e os símiles, que se encontram na França, na Alemanha, na Itália e em todos os outros Estados, de modo algum estão à altura do remédio jurídico brasileiro, que foi herança melhorada e corrigida pelo sistema jurídico brasileiro. Homologar é tornar o ato, que se examina, semelhante, adequado, ao ato que devia ser. Quem cataloga classifica; quem homologa identifica. Ser homólogo é ter a mesma razão de ser, o que é mais do que ser análogo e menos do que ser o mesmo. A homologação pode ser simples julgamento sobre estarem satisfeitos os pressupostos de forma, ou sobre estarem satisfeitos pressupostos de fundo e de forma, ou sobre simples autenticidade. A escala vai da simples resolução com apreciação dos requisitos exteriores até a homologação que desce ao exame dos pressupostos de fundo, como se dá com homologação do suplemento de idade. Há homologações integrativas da forma, ou simplesmente verificativas, e homologações integrativas de fundo. Homologação há de atos jurídicos de particulares e de atos juridicos do Estado. Homologam-se desistências e transações em processo. Homologam-se partilhas. Homologam-sentenças estrangeiras. A homologação é sempre julgamento sobre o que até então se passou. Examina-se o pretérito, para se atribuir certo efeito, ou se atribuírem certos efeitos, ou se marcar a terminação de certa fase, nos procedimentos que precisam de exame do que ocorreu. Dai haver em toda homologação preclusão, que só a admissão de recurso ou de remédio infringente pode romper. Ato judicial, ou ato administrativo, a homologação apanha o que se produziu para a declaração de estar homólogo ao que devera ser, ao modelo abstrato. É essencial à homologação ser em certo momento, a respeito de certo ato e por determinada autoridade judicial, ou administrativa, que tenha competência quanto à matéria em exame e diga a última palavra, só atacável em via recursal, ou em impugnativa à resolução. Ai intervêm os princípios de hierarquia. Quando se homologa algum ato reputa-se esse ato o homólogo do ato in abstracto, que se tem por modelo, ou

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idéia. Não se pode homologar o que, no momento da homologação, não corresponde ao que, na instância, no grau, na fase, não é definitivo, ou pode ser alterado, sem ser por deliberação ulterior de quem homologa (reconsideração de despacho administrativo, decisão de procedência de embargos infringentes do julgado ou de nulidade, decisão de procedência de ação rescisória) ou de autoridade superior (decisão de provimento do recurso, ou de procedência de ação de nulidade ou de ação rescisória). Não se concebe que a autoridade A, subalterna de 8, possa alterar a resolução ou o julgamento, depois que A o homologou — infringir-se-iam princípios de hierarquia e deturpar-se-ia, até a contradição, o conceito de homologação. O superior diria que está homólogo ao que seria o ato in abstracto, decisão declaratória, com maior ou menor elemento constitutivo; e o inferior, retirando sustentáculos ao julgamento, faria ruir o que a autoridade superior afirmara. A lei processual distinguiu o ato jurídico e a sua processualização, ou o ato jurídico e a sua processualização seguida de homologação. O que se rescinde é o ato processual, e não só o ato de direito material, que está dentro dele. Brevitatis causa, disse-se — ‘poderão ser rescindidos os atos processuais que não dependem de sentença, ou em que essa for simplesmente homologatória’. A elipse ressalta: “Os atos judiciais (de inserção de atos de direito material) que não dependerem de sentença, ou em que esta for simplesmente homologatória, poderão ser rescindidos (nos casos em que os atos insertos ou homologados podem ser anulados) como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil’. Há dois atos juridicos, quer se trate de simples processualização por inserção, quer se trate de processualização com homologação: a) O ato jurídico da parte, suscetível de desconstituição segundo os princípios do direito que o rege, seja material (e. g., renúncia à res deducta, isto é. à pretensão de direito material, transação), ou processual (e. g., desistência da ação proposta), ou ato do juiz em lugar da parte (e. g., se as partes acordaram em que o juiz determinasse alguma prestação). b) O ato juridico processual do juiz, pelo qual ele manda inserir, ou tomar por termo nos autos o que declara a parte, ou declaram as partes, ou pelo qual homologa simplesmente o que foi inserto ou tomado por termo nos autos. A processualização por inserção e a em tomada por termo distinguem-se em que, naquela, o ato jurídico precedeu ao ato judicial e, nessa, há simultaneidade entre a declaração e a processualização. Espécie intermédia é aquela em que, a despeito de se apresentar o que poderia ser inserto no processo, o juiz manda que se tome por termo. A processualização com homologação sobrevém, necessariamente, à inserção ou juntada. E momento a mais, que a lei exige para a eficácia processual de certos atos das partes. O ato de inserção, se trata de decisão que trânsita, formalmente, em julgado, pode ser atacado, em si, como decisão judicial que é; bem assim o de tomada por termo. Se no processo que corria perante autoridade competente ratione rnaterioe e não-impedida, foi junta escritura pública de cessão de direitos por despacho de juiz incompetente ratione matericle e, a despeito disso, foi atendido o negócio jurídico, tal despacho é atacável como as decisões em geral, e atacável é a cessão mesma. Se houve partilha amigável e homologação por juiz impedido, há duas impugnações: uma, contra a decisão, e outra, contra o negócio jurídico da partilha. Se a homologação foi sem vício, permite-se — por sua transparência — que se ataque o negócio juridico da partilha e, só em consequência, a decisao simplesmente homologatória, que, ex hypothesi, cobrira o atacável, mas só transparentemente. A regra jurídica deixa ver-se, sob a decisão simplesmente homologatória, o ato jurídico que se processualizou” (= se inseriu no processo), ou processual. Tal transparência da decisão homologatória de modo nenhum a exclui: também se vê o ato judicial, a despeito de ser transparente. Dai poderem ser atacadas, conforme a natureza do ato rescindendo, as decisões e o ato jurídico envolvido. A sentença de homologação é ato jurídico processual transparente. Se é anulado o negócio jurídico da transação, ou outro metido no processo, por alguma das causas que o direito material prevê, cai a homologação, porque a eficácia anulatória, por dentro do ato jurídico global (homologação e negócio jurídico homologado),

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cinde (rescinde) o ato jurídico envolvente. Temos, pois, anulação interior e consequência rescindente exterior. O direito material diz qual a causa de anulação; o direito processual civil aludiu a isso, porque a ele cabe reger o ato jurídico processual envolvente. Também pode dar-se que não se trate de anulabilidade, e sim, por exemplo, de nulidade da transação. Qualquer juiz pode decretar, se competente para a ação proposta, a nulidade da transação. Com a eficácia de coisa julgada, a sentença homologatória fica sem conteúdo. oca; para se pensar conforme se teve de raciocinar, a ablação do efeito extintivo tem de ser requerida no próprio juízo em que se fez a homologação. Porque, se é certo que qualquer juízo, no exercício da função que lhe compete, pode decretar nulidade da transação, ou de outro negócio jurídico levado aos autos de processo em que se atribui à transação homologada o efeito extintivo da relação jurídica processual, a decisão sobre esse efeito extintivo toca ao juízo da relação jurídica que se teve por extinta e não está. Aqui surge problema de classificação de decisão judicial, que não é de somenos importância. A decisão do juiz do processo extinto, ao atender à alegação de nulidade da transação homologada, se não foi ele mesmo que a proferira, é declarativa ou é constitutiva? Frisemos a espécie. Outro juiz decretou a nulidade da transação, negócio jurídico de direito material; e vem o interessado requerer que se continue o processo, porque a transação era nula. A decisão que o juiz do processo tem de proferir é desconstitutiva da homologação esvaziada pela decretação de nulidade, se ele reputa nula a transação. Portanto, constitutiva negativa. Dir-se-á que, ao ser proferida a decisão de anulação do negócio jurídico da transação, também esvaziada fica a homologação. Não tem acolhida o argumento. O juiz que pode pronunciar a anulação do negócio jurídico da transação, se há referência à homologação, somente pode ser o juiz do processo em que tal homologação ocorreu. O pedido de decretação de nulidade é pedido de desconstituição de negócio jurídico, e da homologação, porque o efeito, que se tem, é a continuação do processo, e a decisão desconstitui o negócio jurídico envolvido e o ato processual envolvente. Se acaso foi pedida, fora, a decretação da nulidade, sem qualquer alusão à homologação, por se tratar de negócio jurídico instrumentado fora dos autos, a decisão do juiz do processo que se tivera por extinto, ainda que de simples “cumpra-se”, contém desconstituição da homologação. Não seria o cumpra-se puramente mandamental que se dá às decisões dos juízos superiores, em caso de recurso, ou de decisão desconstitutiva do segundo grau de jurisdição. Na terminologia, é que se pode discutir acerca do nome que há de ter essa desconstituição da homologação, sem ser por anulação do negócio jurídico homologado: {“decretação de nulidade” ou “rescisão da homologação”? Se se tratasse de nulidade da homologação, dir-se-á, o juiz de outro juízo poderia decretá-la quando decretasse a nulidade do negócio jurídico. O argumento seria sem valor, porque há as nulidades processuais que nenhum juiz de fora poderia decretar. Outro argumento é o de não haver anulabilidades processuais, no sistema do direito processual vigente, e ter-se de considerar nula a decisão. Mas trata-se de sentença trânsita em julgado. A solução mais acorde com os princípios científicos e o sistema da lei processual é a de se ter a decisão desconstitutiva da homologação como rescisória consequente, à semelhança do que ocorre com a homologação de negócios juridicos concluídos no processo. se tem de decretar a nulidade. O acórdão da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 28 de abril de 1943 (i 23/439), que negou ação rescisória, com base em texto da decisão de venda de bens e da decisão de arrematação, revelou completo desconhecimento de direito processual: primeiro, negou coisa julgada formal a tais decisões; segundo, reputou-as atos de direito material, em vez de atos processuais, chegando a ponto de reputar a arrematação “homologação” da venda (!). A relação entre o adquirente e o dono ou os donos, na arrematação, é ato de direito civil, ou comercial, ou público (administrativo), em qualquer caso de direito material; a decisão de alienar e a de entregar o bem, por parte do juiz, é de direito processual, sem qualquer caráter homologatório se a venda dependia de autorização ou julgamento judicial. Também sem razão, a propósito de adjudicação, a Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 3 de agosto de 1950 (RF 143/319).

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A afirmação do relator do acórdão da Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Apelação de São Paulo. a 23 de agosto de 1943 (RF 95/370), de que prescinde de ação rescisória de sentença todo ato de jurisdição voluntária (, é completamente destituída de razão. Por outro lado, o acórdão, em vez de se ater ao conceito de eficácia de coisa julgada formal, foi buscar o de coisa julgada material. Contra direito, todo o acórdão. Nomeação de tutor ou de curador, destituição ou remoção, homologação de partilha amigável em que se tenha feito mais do que integrar forma, e muitos outros atos que o acórdão considera de jurisdição voluntária, passam formal-mente em julgado e são suscetíveis de rescisão. De modo nenhum se há de estar a discutir, a respeito de ação rescisória, se a decisão foi proferida em jurisdição contenciosa, ou em jurisdição voluntária. Nada nos adiantariam a invocação e a consequente pesquisa do que não é contencioso. E pena verem-se emaranhar em tais conceitos, que a lei evita, a propósito de ação rescisória, alguns tribunais (e. g., Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 9 de maio de 1947, J 29/377). Quanto às decisões simplesmente homologatórias, não há perguntar-se o processo é de jurisdição administrativa ou voluntária, ou não. A simples homologação de ato jurídico pode dar-se em processo de jurisdição administrativa ou voluntária, ou em processo de jurisdição contenciosa, e a sentença não simplesmente homologatória numa e noutra (sem razão, as Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação da Bahia, a 20 de dezembro de 1945, RT, da Bahia, 37/513; 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1945ª certos, o Tribunal de Apelação de Goiás, a 7 de agosto de 1946; e a 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 19 de dezembro de 1945, RT 164/236). A ação que ataca o ato envolvido, é ação sobre invalidade. O que se faz sujeito à decretação de invalidade é o ato processual, praticado pelas partes, e não o ato do juiz, que pode não ter existido, ou ser transparente (= “meramente homologatória” a sentença). Na separação consensual, por exemplo, a cláusula de acordo sobre bem é atacável por erro (Conselho de Justiça do Distrito Federal. 25 de setembro de 1947, OD 50/259), violência, dolo, simulação e fraude contra credores. Idem, se, tratando-se de partilha, ou divisão, a decisão foi simplesmente homologatória (Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 30 de outubro de 1947). A anulação é do ato homologado (Seção Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 9 de abril de 1947, RT 115/137). Reflete-se, rescindentemente, no ato judicial. Não se pode dizer, a priori, que a sentença é simplesmente homologatória: a sentença de separação consensual, por exemplo, é, de regra, simplesmente homologatória, mas, no que o juiz intervém, de oficio, ou a requerimento do Ministério Público, deixa de ser simplesmente homologatória, e cabe, nesse ponto, ou nesses pontos, a ação rescisória. Também aqui qualquer apego aos conceitos de jurisdição voluntária e de jurisdição contenciosa é nocivo à doutrina e à jurisprudência. 22.Eficácia sentencial. Quando alguma sentença, acórdão ou outra decisão judicial é rescindida e trânsita em julgado, a sentença rescindente, tem-se de saber o que se cindiu, porque a apreciação, na ação rescisória, pode ser restrita à anulação processual, ou ter-se estendido ao mérito. Se a invalidade de ato do processo foi inicial, ou somente do julgamento final, ou de algum ato intercalar, é da maior relevância apurar-se qual o momento de que começou a cisão, porque o que não foi atingido continua existente e não foi rescindido. Se a sentença foi rescindida porque não foi proferida pelo juiz ou tribunal competente, ou o foi fora do prazo, ou com impedimento, ou feita de julgador ou de julgadores, ou ofensa à coisa julgada, ou violação de alguma regra jurídica relativa ao proferimento, só a sentença se rescinde, e não desce a rescisão a outros atos e momentos processuais. Se a sentença, como ato processual não infringiu regra jurídica, mas a infração ocorreu no inicio do processo, de modo que a rescisão baixou até a petição inepta, ou sem os pressupostos necessários, não houve, sequer, o petitum. Se foi até a citação, a eficácia da sentença rescisória elimina a relação jurídica processual. Para os efeitos sentenciais, nada se salva exceto se à sentença lex specialis atribuiu efeito que seja erga omnes. ou à parte da permanência do ato sentencial. Se a causa da rescindibilidade fora a falta de citação, de jeito nenhum se corta direito, pretensão, obrigação, ação, ou exceção, que teria de ser assunto do mérito. O que pode acontecer é que, pela falta de citação tenha

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precluido ou tenha prescrito a pretensão, ou a ação, porém isso é assunto para se apreciar noutra “ação” (de direito processual), isto é, quando, de outra vez proponha a mesma ação (de direito material). Se a ação, que se intentara e na qual se lavrou a sentença, que veio a ser rescindida, era a ação declarativa típica, ou outra ação declarativa ou simplesmente de eficácia imediata ou mediata de declaratividade, seria absurdo sustentar-se que a rescisão da sentença extinguiria direito, dever, pretensão, ação, ou exceçao de quem fora autor. No tocante à rescisão por falta de citação, ou de invalidade de citação, o mesmo se passa com as outras espécies de ações, (constitutivas, condenatórias, mandamentais, executivas).

Capítulo XVI

Ação de revisão de sentença criminal § 242. Dado histórico e natureza da ação1. Dado histórico. Criara a Constituição de 1891 o direito á revisão dos processos criminais findos e dera ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgá-la. Não se trata, como se verá, de recurso. Recurso, disseram-no todos os comentadores da Constituição de 1891 (e. g., João Barbalho, Comentários, 348; Pedro Lessa. Do Judiciário, 85; Carlos Maximiliano, Comentários, 645). Bastaria isso para se documentar quanto distanciados se achavam do conhecimento do instituto e até que ponto ia a ignorância deles, com respeito ao direito processual penal brasileiro. A revisão criminal é, disse o Tribunal Federal de Recursos, a 30 de agosto de 1951, como adverte PONTES DE MIRANDA, ação de direito constitucional”. 2.Natureza da ação. A revisão criminal é ação, e é remédio jurídico processual, e não recurso. Não se confundia com a revista, no direito anterior; há ação do réu — ação, no Brasil, de direito constitucional, para a revisão do processo findo. E há o remédio processual específico, a “ação” de revisão criminal. Não se trata, pois, de simples recurso. A ação rescisória contra sentenças não se aplica a decisões criminais. Mas a revisão faz-lhe as vezes. Já alhures dissemos nós (A Ação Rescisória, 1ª ed., 52, nota): “A revisão criminal é remédio jurídico processual da mesma natureza, mutadis rnutantis, que a ação rescisória; todavia, em seus pressupostos, prazo e consequências, é inconfundivel com essa. A ação rescisória não se aplica às sentenças criminais. Tampouco, às decisões proferidas em processos de habeas corpus (Supremo Tribunal Federal, 24 de dezembro de 1919). Não se diga, porém, que somente as sentenças, nas quais se julgou sobre relação de direito privado, são suscetíveis de rescisão. Não há nenhum paralelismo. Os que inadvertidamente o afirmam são vitimas da confusão entre direito civil e processo civil: não só o direito civil, nem só, sequer, todo o direito privado, constituem objeto do processo civil. Toda sentença civil pode ser, desde que definitiva e preenchidos os pressupostos legais da ação rescisória, rescindida por essa”. Definitiva isto é. dotada de coisa julgada formal. As sentenças em matéria fiscal são rescindíveis: são sentenças que aplicam direito público, mas rescindíveis. A razão para que se admitam remédios jurídicos processuais contra a sentença (note-se que dissemos “remédios”, e não “recursos”, nem remédios juridicos processuais recursais) está em que o Estado considera alguns casos de nulidade ou de injustiça como perigosos, seja para a paz pública, seja para a respeitabilidade e realização do direito objetivo. O tom das leis sobre ação rescisória é o tom de textos que procuram cortar, cerce, os motivos de escândalo e de desprestígio do direito. Os termos com os quais se criou a revisão criminal mostram que se adotava atitude da escola clássica e com ela se abria válvula ao medo da injustiça. O temor ao escândalo da condenação do inocente levou os legisladores constituintes de 1891 à adoção da nova ação e do novo remédio jurídico processual, que se substituiu ao recurso de revista, interposto, no Império, para o Supremo Tribunal de Justiça. Toda sentença (favorável) de revisão criminal, que rescinde a sentença e absolve, à semelhança do que se passa nas ações rescisórias de sentenças cíveis, com os juízos rescindente e rescisório, tem eficácia contrária à que teria a sentença que condenara. Com a revisão, a decisão, que condenara, é totalmente desconstituída; a condenação, portanto, desaparece, ex

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tunc; a própria eficácia declarativa estabelece-se em sentido contrário; em vez de se dizer que o crime existiu, diz-se que o crime não existiu. Ou que algo dele não existiu. Se alguém foi condenado, tendo havido a revisão, com eficácia constitutiva negativa ex tunc, como é próprio das sentenças de revisão criminal, condenação nunca houve, tal como, se, decretada invalidade de algum negócio juridico, passa em julgado a sentença: após a eficácia dessa, nunca houve o negócio jurídico. Acrescente-se que não é a mesma — juridicamente — a situação de alguém antes e depois de sentença declarativa ou de condenação, com efeito declarativo ou condenatório. Se A propõe ação declarativa típica, contra B, e vence, há um plus, a seu favor, em comparação com o tempo em que ainda não transitara em julgado a sentença declarativa. Tem A, agora, a força de coisa julgada, formal e material, de uma sentença favorável. Se A dá queixa crime contra B e vence, o plus funciona a seu favor; se perde, a favor de B. Se vence e, depois, B propõe revisão e ganha, o plus, que beneficiava a A, desaparece, e esponta a favor de B. § 243. Eficácia da sentença na ação de revisão criminal1. Constitutividade negativa. A ação de revisão criminal é ação constitutiva negativa. Por ela, exerce-se a pretensão à desconstituição da sentença criminal, pelos fundamentos que a lei ordinária estabelece e não podem ser tais que elidam o direito e a pretensão a que as sentenças criminais injustas, ou, pelo menos, as de injustiça mais gritante, sejam corrigidas. Nos resultados, rescinde-se a sentença, como se passa com a ação rescisória, O termo ‘revisão” alude à reapreciação da prova, sem os óbices que se criam a tal apreciação, em se tratando de sentenças civeis, inclusive de direito público. A ação de revisão criminal pode ser requerida em qualquer tempo, antes da extinção da pena, ou após. Se, no curso da revisão, falece a pessoa, cuja condenação há de ser revista, nomeia-se curador para a defesa; de modo que a ação passa a ser ativamente exercida pelo Estado contra o Estado. Se foi promovida pelo ascendente, descendente, ou irmão, é esse o autor e continua de o ser, ainda se falece o réu; mas a nomeação do curador é indispensável. 2. Extensão do eficácia. A revisão criminal nem sempre se dirige à completa eficácia sentencial (e. g., não é crime, não houve crime, não foi A o autor, estava prescrita a ação); pode-se, por exemplo, apenas pretender menor pena, outra classificação do crime. A sentença somente desconstitui a sentença anterior, no ponto atingido, ou nos pontos atingidos por ela.