TRANSPOSIÇÃO DO SABER E CULTURA DIGITAL · de cultura, e dessa forma pode-se entender o conceito...

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TRANSPOSIÇÃO DO SABER E CULTURA DIGITAL Gisele Cristina de Boucherville 1 , Eliane Medeiros Borges 2 1 UFRR/NEaD/[email protected] 2 UFJF/CEaD/[email protected] Resumo As tecnologias digitais de comunicação e informação, extrapolam espaços convencionais de uso e adentram os muros do espaço educacional gerando aos professores e suas práticas oportunidades e enfrentamentos. A relação do ensino com as tecnologias digitais necessita ser entendidas dentro de uma cultura que se instituiu a partir do uso das tecnologias digitais. O objetivo deste artigo é demonstrar que a transposição didática pode ser de valia ao ensino e à aprendizagem que, hoje, estão presentes nas instituições escolares, cujos espaços dos saberes se dá de modo presencial, mas que se unido ao espaço virtual e a inteligência coletiva (Levy) valoriza competências e habilidades criando oportunidades cognitivas para os sujeitos que vivem na cultura digital. Palavras-chave: Transposição, Saber, Cultura digital, TDIC Abstract – The digital technologies of communication and information, extrapolate conventional spaces of use and penetrate the walls of the educational space generating to the teachers and its didactics opportunities and confrontations. The relationship between didactics and digital technologies needs to be understood within a culture that has been established through the use of digital technologies. The purpose of this article is to demonstrate that didactic transposition can be of value to the teaching and learning that today is done in school institutions, whose spaces of physical knowledge have joined the virtual space and collective intelligence (Levy) valuing skills and skills for digital culture Keywords: Tranification, Knowledge, Digital Culture, TDIC Introdução O fato de estar-se envolvido globalmente e culturalmente com as Tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) revela a importância da compreensão desta questão no âmbito educativo. Sendo a escola parte da estrutura social onde o sujeito desenvolve suas competências para viver em sociedade preocupa-se entender nesse espaço de informação e formação as relações e correlações da educação com as TDIC. Quando se fala em Educação percebe-se todos os atores que a compõem e fazem parte de uma estrutura educacional que não pode ser minimizada, mas nosso olhar se volta para um nível mais restrito, mas não menos importante e fundamental, o ensino. A relação do ensino, saber e tecnologia, em se tratando de esclarecer

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TRANSPOSIÇÃO DO SABER E CULTURA DIGITAL

Gisele Cristina de Boucherville1, Eliane Medeiros Borges2 1UFRR/NEaD/[email protected]

2UFJF/CEaD/[email protected]

Resumo – As tecnologias digitais de comunicação e informação, extrapolam espaços convencionais de uso e adentram os muros do espaço educacional gerando aos professores e suas práticas oportunidades e enfrentamentos. A relação do ensino com as tecnologias digitais necessita ser entendidas dentro de uma cultura que se instituiu a partir do uso das tecnologias digitais. O objetivo deste artigo é demonstrar que a transposição didática pode ser de valia ao ensino e à aprendizagem que, hoje, estão presentes nas instituições escolares, cujos espaços dos saberes se dá de modo presencial, mas que se unido ao espaço virtual e a inteligência coletiva (Levy) valoriza competências e habilidades criando oportunidades cognitivas para os sujeitos que vivem na cultura digital.

Palavras-chave: Transposição, Saber, Cultura digital, TDIC

Abstract – The digital technologies of communication and information, extrapolate conventional spaces of use and penetrate the walls of the educational space generating to the teachers and its didactics opportunities and confrontations. The relationship between didactics and digital technologies needs to be understood within a culture that has been established through the use of digital technologies. The purpose of this article is to demonstrate that didactic transposition can be of value to the teaching and learning that today is done in school institutions, whose spaces of physical knowledge have joined the virtual space and collective intelligence (Levy) valuing skills and skills for digital culture

Keywords: Tranification, Knowledge, Digital Culture, TDIC

Introdução O fato de estar-se envolvido globalmente e culturalmente com as Tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) revela a importância da compreensão desta questão no âmbito educativo. Sendo a escola parte da estrutura social onde o sujeito desenvolve suas competências para viver em sociedade preocupa-se entender nesse espaço de informação e formação as relações e correlações da educação com as TDIC.

Quando se fala em Educação percebe-se todos os atores que a compõem e fazem parte de uma estrutura educacional que não pode ser minimizada, mas nosso olhar se volta para um nível mais restrito, mas não menos importante e fundamental, o ensino.

A relação do ensino, saber e tecnologia, em se tratando de esclarecer

tecnologias, pois há uma amplidão de recursos que adentraram os muros do espaço educacional, se dá mais propriamente ao uso de tecnologias digitais como recurso de ensino.

Dessa forma é objetivo desse artigo oferecer entendimento a respeito da transposição do saber que está contido na rede de dados mundiais, que se encontra acessível, hoje, por meio das TDIC, cuja complexidade, linguagem e variedade de informações deva ser transportado pelo professor para a linguagem que se dá nos limites de sala de aula, a partir da transposição didática divulgada por Chevalard (1991).

Para tal propósito surge a necessidade dos entendimentos de cultura digital e do conceito de sistema aberto de educação. Para esclarecer o conceito de cultura digital parte-se do conceito de cultura de Geertz e Bakhtin, e também de McLuhan (1964), que lança o conceito de “aldeia global” e a ideia do glocal de Robertson (2000) que é o pensar local e global ao mesmo tempo, sugerindo o mix das culturas globais (modernas) com as locais (tradicionais), se faz necessário. O conceito de sistema aberto de educação é proporcionado por Moraes (2010), cujo o entendimento vem colaborar com a visão de transposição didática de Chavelard (1991)

O método de investigação proposto baseia-se nos estudos de Gamboa (2007) e suas proposições, em que foi utilizada a pesquisa qualitativa bibliográfica e estudos teóricos necessários para compormos um material cientifico denso. Para a análise do ensino, mais especificamente usamos os estudos de Daniels (2003), que fizeram importantes no entendimento do processo do ensino como atividade prática e especifica do professor. E pesquisa com entrevista semiestruturada Carlomagno (2016) desenvolvida com doze sujeitos professores do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Superior, cujas perguntas relacionavam-se com o uso das TDIC em sala de aula.

Nesse sentido o foco desse artigo desenvolve-se na percepção que de a inserção das TDIC no espaço educativo formal requer do professor o uso da Transposição didática do saber, que permitirá a indicação de caminhos seguros para o aluno na construção de seu conhecimento na cultura digital.

1. Contexto da Cultura Digital

Ao se falar em cultura se traz Geertz (1989) para elucidar o conceito, quando ele diz que cultura é um fenômeno histórico e social. Segundo Geertz “A cultura de um povo é um conjunto de textos que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem”. Para ser mais precisos diante desse conceito a visão de Bakhtin (1992) é necessário, quando diz “A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. ” Bakhtin e Geertz interpretam o conceito de cultura, e dessa forma pode-se entender o conceito de Cultura Digital.

As últimas pesquisas sobre o uso de celulares no Brasil informam que a maioria da população, mais de 87% dos brasileiros, conectam-se à rede de dados móveis. Basta caminhar alguns minutos pelas vias públicas para verificar o resultado desta pesquisa, os transeuntes, na sua maioria, caminham e falam ao telefone celular, nos

restaurantes, nos aeroportos, no trabalho (quando permitido), nas escolas (quando permitido) observamos as pessoas se comunicando através da tecnologia. Por ter um custo acessível à todas as classes sociais seu uso se democratizou estando presente em todos os lugares.

Inicialmente, a comunicação e a informação que deram origem a uma nova linguagem que emerge da relação entre a sociedade, a cultura e as tecnologias, que surgiram com a convergência das telecomunicações e da informática a partir da década de 70, foi denominada por Levy (1999) de Cibercultura.

A Cibercultura se caracterizou pelo uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), que se inseriam em todos os sistemas, não apenas na utilização dos computadores. Dessa forma, apropria-se da Cibercultura para viver de forma colaborativa e integrada, propiciando a cooperação entre os seres e ambientes, permitindo uma nova configuração de sociedade, em que a informação tem rapidez e eficiência. Segundo Vieira (2005) “as fronteiras erigidas pela localização geográfica são ultrapassadas e, com elas, as limitações impostas pelo tempo.”.

Hoje, a mobilidade do saber, que se deu a partir dos recursos criados para comunicação e principalmente as TDIC, ganha forca quando o celular se liga as redes de internet e aos acessos wifi criando possibilidade de pesquisa e de conhecimento, interconectando o mundo, ligando pessoas, quebrando as barreiras do tempo e do espaço, designando uma nova cultura.

Que teve seu start no bojo do Capitalismos e nos eventos concomitantes como a Segunda Guerra, a Guerra Fria, a descoberta do Sistema Binário, os computadores, a Contracultura, a Globalização que, por sua vez, desencadearam uma série de fenômenos dando origem a realidade virtual, criando a comunicação instantânea, a inteligência artificial, a World Wide Web, a internet, a conectividade global, a música eletrônica, a televisão digital, os jogos de computador, o celular e a comunicação digital, o quadro digital da sala de aula, o cyberpunk, o tecno, a new typography, a net.art e, ainda hoje, continua criando novos fenômenos que se apoiam em duas convicções: na ideia de cultura ruptura e na crença da cultura digital gerada pela tecnologia digital e afirmada como marca de uma cultura distinta.

O antropólogo Canevacci (2015), aponta que a Cultura Digital desafia a clássica distinção entre espaço e tempo, pois rompe com o pensamento dualista hegemônico e cria a noção de "ubiquitempo", neologismo que defini, do ponto de vista etnográfico de Canevacci, "as experiências descentradas e não-lineares de espaço-tempo, favorecidas pela comunicação digital contemporânea”.

Além de Canevacci (2015) o conceito de Aldeia Global de Mcluhan (1964), de Glocalização, dimensão local na produção de uma cultura global interpretado por Robertson (1992 e 2000) e o Conectivismo de Siemens (2004), que vê a cultura digital como recurso de aprendizagem com as barreiras e fronteiras ultrapassadas, surge a necessidade de pensarmos a educação de outra maneira, rever conceitos e elaborar pensamentos que possam nos adequar à nova situação.

Maria Cândida Moraes explicita a respeito do paradigma educacional emergente (2010) e a teia de interações e relações existentes entre os fenômenos educacionais e as teorias cientificas desenvolvida ao longo das épocas e que

marcaram o modo de ver o mundo, de ensinar e de aprender, que faz-se necessário a busca de um novo referencial para educação e de novos ambientes de aprendizagem, que possam de certa forma, incorporar avanços científicos e a participação do sujeito holístico na construção do conhecimento, em que os atores da educação professor e aluno, o mundo ao redor e as tecnologias se envolvam sem fragmentações em sistema aberto. Isso tem sido foco de preocupação de vários cientistas como Levy (1999) que percebe a comunicação tem que ter uma nova linguagem que emerge da relação convergente entre a sociedade, a cultura e as tecnologias; Perrenoud (2002) que avalia os desafios e as competências para o ensinar no século XXI, Charlot (2005)a relação com o saber, formação de professores e a globalização de um ponto de vista reformulado e reproblematizado; e Coll (2010) que cuida de olhar os processos psicológicos envolvidos na aprendizagem virtual.

Todo esse arcabouço teórico se faz necessário na interpretação do mundo globalizado, em que a maior parte dos sujeitos se conectam constantemente sem prejuízo de tempo e de espaço, proporcionando ao ensino e a aprendizagem algo nunca visto anteriormente, mas que necessita de elementos que possam transportar o saber da cultura digital para o espaço educativo.

1.1 Educação em sistema aberto

O saber da rede mundial de dados se encontra, muitas vezes, de forma diferente do modo com que é apresentado em sala de aula. Nesse caso surge a necessidade de o professor analisar o conteúdo disponível e traduzi-lo para a linguagem escolar. A escola também deve ter uma visão mais ampla, tendo como referência o “Sistema aberto de educação”. Para Moraes (2010) o sistema aberto de educação visa e requer entendimento do “paradigma educacional emergente”.

Para Moraes (2010, p. 99)

Um sistema aberto significa que tudo está em movimento, é algo que não tem fim, em que início e fim não são predeterminados. Cada final significa um novo começo, um recomeço, e cada início pressupõe a existência de um final anterior, o que faz com que o crescimento ocorra em espiral. Um sistema aberto exige um movimento continuo e cada ação completa é insumo para um novo começo.

Toma-se esse termo como base para evidenciar uma ruptura com o sistema de educação tradicional, acreditamos que na vanguarda do pensamento emergente para a educação tenha-se que superar modelos e pensamentos que, de certa forma, ancoram a educação.

Visto que, as preocupações na esfera educacional atingiram seu ápice quando o sistema educativo moderno encontrara barreiras intransponíveis examinadas pelo

espectro positivista. O colapso e as barreiras se intensificaram quando a tecnologia tomou conta das novas gerações que entraram no ambiente escolar com seus celulares, laptops, iphones e ipads (TDIC).

O sistema aberto de educação requer que os conhecimentos construídos devam partir de uma rede de colaboração em que a aprendizagem ocorra mediante um currículo flexível que se liga a cultura digital, que por sua vez é traduzida a partir

da transposição do saber, que segundo (Chevallard, (1991) estabelece a relação entre o saber e o ensino reformulando os termos primitivos do aprender e do saber.

Vale frisar, especialmente, que o conceito de saber não abre um novo setor a ser explorado, mas permite reformular e reproblematizar inúmeras questões e suscita, além disso, questões até agora inéditas, uma vez que não eram formuláveis dentro de um conceito em que o saber era produto imóvel e o sujeito se comportava de maneira passiva diante dele. A problemática e o conjunto de questões do saber remetem a uma concepção de sujeito ativo, que deverá ser o foco de qualquer pesquisa. Visto que houve uma mudança na posição do sujeito que interpreta o mundo. O sentido, hoje, que o sujeito estabelece para o mundo, para os outros e para si mesmo se faz na imersão da cultura na qual está sendo forjados. Esse ser antropológico aprende, pois ninguém pode fazê-lo em seu lugar mediado pelo outro e em atividade. Seguindo esse raciocino Bernard Charlot esclarece que “a relação com osaber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo” de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender.

A relação com o saber é o conjunto das relações que o sujeito estabelece com um objeto, um conteúdo de pensamento, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, que relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber – consequentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo e o modo como mais ou menos é capaz de aprender tal coisa, em tal situação. (CHARLOT, 1996)

Segundo Charlot (2005) a relação com o saber dentro da escola está interligada com a relação do saber fora da escola. A representação social do saber na escola e do saber fora da escola passam por estágios, desenvolvimentos e rupturas que possa construir competências cognitivas, mas para que o sujeito se mobilize em uma situação de aprendizagem é preciso que ela corresponda a algum desejo, produzindo prazer. Para que a aprendizagem tenha sentido para o aluno, é preciso que ele tenha “desejo de saber e o desejo de aprender”.

Entende-se com isso que a escola deva ter sintonia com a vida, para que o processo de aprendizagem flua de maneira natural. O mundo no qual se vive, que incluem as tecnologias, a internet, as tecnologias digitais causam impacto na vida das pessoas tornando essa experiência de viver e ensinar nova e ímpar.

Como diz Castells (2002) a internet não é apenas uma ferramenta de comunicação e de busca, processamento e de transmissão é além disso um novo complexo global para o aprendizado e para a ação educativa, fazendo do saber a forma de comunicação que aproxima as pessoas em comunidades de aprendizagem ou de prática. Para Coll at Monereo (2010, p. 271) a comunidade de pratica “distingue-se como lugar de compromisso com a ação. (...) O compromisso traduz na preeminência dada à aprendizagem. ”

A comunidade de prática, quando associada a projetos educacionais, permite aproximar a vida cotidiana e escolar em três dimensões – interna da escola ou sala de aula, que permite criar experiências comuns de aprendizagem; relação escola ambiente - permitindo vincular experiência extra escola; relação com as necessidades

de aprendizagem – fora dos períodos escolares. Para que as comunidades de pratica ou de aprendizagem se desenvolvam no bojo das práticas escolares alguns fatores necessitam ser favoráveis, como por exemplo o uso permitido das tecnologias móveis dentro de sala de aula, a participação e o envolvimento de alunos e professor e o objeto de aprendizagem. Para isso novos valores, políticas de uso e referenciais deverão participar do contexto educacional.

A UNESCO (2014) lança Diretrizes de políticas para a aprendizagem móvel, que foram redigidas por Mark West e Steven Voslco, bem como especialistas de todo mundo, membros do comitê de assessoria que contribuíram para a produção dessas diretrizes, que se definem no

Presente conjunto de diretrizes da UNESCO visa auxiliar os formadores de políticas a entender melhor o que é aprendizagem móvel e como seus benefícios, tão particulares, podem ser usados como alavanca para fazer avançar o progresso em direção à Educação para Todos.

Essas diretrizes definem aprendizagem móvel como sendo o uso de tecnologias moveis, isoladamente ou em combinação com outras tecnologias de informação e comunicação a fim de permitir a aprendizagem a qualquer hora em qualquer lugar. Também define tecnologias moveis como onipresente e muito ampla, reconhecendo simplesmente que são digitais, facilmente portáteis, de propriedade e controle de um indivíduo e não de uma instituição, com capacidade de acesso à internet e aspectos multimídia, e que podem facilitar um grande número de tarefas, principalmente aquelas relacionadas a comunicação.

UNESCO (2014) reconhece os benefícios da aprendizagem móvel e elucida que,

Embora a tecnologia móvel não seja e nunca venha ser uma panaceia educacional, ela é uma ferramenta poderosa e frequentemente esquecida - entre outras ferramentas – que pode dar apoio a educação de formas impossíveis anteriormente.

Quando se fala em tecnologia móvel e seu uso em sala de aula percebemos uma nova configuração de Educação. Como o professor poderá trazer o saber do mundo digital para dentro de sala de aula?

1.2 Transposição do saber

A instituição escolar e os agentes educacionais, também o professor, cumprem o papel primordial de transmissão da cultura e do saber estabelecido. Mas, não se pode negar que entre o saber estabelecido e o saber ensinado na sala de aula, existem diferenças que passam a ser significativas. Uma possibilidade para compreender este processo é entender o conceito de transposição didática utilizado inicialmente por Chevalard (1991) na didática francesa. Com a entrada das tecnologias móveis no espaço educativo, em que o mundo do conhecimento passa estar disponível no mundo virtual situado na nuvem que é acessada constantemente pelo aluno e pelo professor em suas vidas pessoais. Percebe-se que esse conhecimento se encontra em forma bruta, muitas vezes sem formato adequado para a compreensão do aluno, ou mesmo desqualificado. Assim urge a necessidade de o professor traduzir esse conhecimento.

A partir das TDIC o acesso ao conhecimento é rápido e fácil, mas nem sempre é assimilável. Em entrevista semiestruturada com 12 sujeitos professores, que lecionavam do ensino fundamental à Educação Superior, ficou evidente a preocupação de que a ação do aluno mudou com o uso do celular, mas dizem não perceberem que os alunos usam para buscar o conhecimento. Consideram que o uso se dá na maior parte para comunicação e rede social. Para a maioria dos professores a presença das tecnologias móveis na escola é vista com tranquilidade e procuram lidar bem com ela. Mas alertam que os alunos ainda são imaturos necessitando de atenção quanto a isso.

A pesquisa foi realizada da seguinte forma:

No ensino superior De 2 docentes de IES privada (diferentes IES)

De 2 docentes de IES pública (diferentes IES)

No ensino médio De 2 docentes de escola privada (diferentes escolas)

De 2 docentes de escola pública (diferentes escolas)

No ensino fundamental De 2 docentes de escola privada (diferentes escolas)

De 2 docentes de IES pública (diferentes IES)

Quadro 1 – Relação de entrevistados

A entrevista partiu de questões sobre a realidade do professor para chegar em um cenário futuro, onde se encontra a questão que direciona esse artigo. Buscou-se perceber nessa entrevista entendimento a respeito da transposição do saber que hoje, além dos meios convencionais de divulgação, se encontra imerso na rede mundial de dados, que se encontram acessíveis por meio das TDIC e as práticas pedagógicas adotadas para oferecer oportunidades de aprendizagem que ultrapassam o lugar da escola e o seu tempo das aulas presenciais.

Algumas categorias como aluno, conhecimento, TDIC e didática lançaram perguntas que direcionaram a entrevista. Essas perguntas foram fomentadoras de conversas que tinham como resultado o recolhimento de dados a respeito do saber na cultura digital e sua relação com a escola e a prática do professor.

Aluno

Relação aluno x Tecnologias digitais

Você vê modificação da ação do aluno na busca ao conhecimento a partir da entrada das TDIC na vida dele?

Como vê a presença das tecnologias móveis na escola? Como lida com isto?

Conhecimento

Relação Tecnologias digitais X conhecimento

Como você percebe o papel das TDIC para a aquisição de informações e do conhecimento ?

Didática

Relação TDIC x conhecimento X didática X suposição

Como você consegue perceber uma nova didática a partir dessa construção do conhecimento oferecidos pelas TDIC?

Quadro 2 – Relação de perguntas semiestruturadas

O professor 7 responde à pergunta sobre Relação aluno x Tecnologias digitais dessa forma:

“Nem sempre o aluno lida bem com a rede, são imaturos, não sabem filtrar as informações, colhem informações erradas e trazem para discussão equivocadamente. A proibição desse recurso só faz adiar algo que não tem mais retorno”

A maioria dos professores tiveram uma opinião similar a opinião do professor 7 a respeito da imaturidade do aluno com relação à busca de seu saber, revelando-se como preocupação.

A preocupação apontada pela pesquisa desponta-se na incorporação de um novo papel de orientador para o professor, que deverá examinar o saber bruto das redes de dados no ciberespaço e traduzindo –o à linguagem do aluno, permitindo o uso do mesmo.

Chevalard (1991) indica que o conhecimento está sujeito a transformações. Sendo assim a análise que se faz do processo de transformação do saber evidencia a transposição do saber em processo que reconhece três estatutos para o saber:

(a) o saber sábio (savoir savant) produto do processo de construção do homem, desenvolvido por cientistas, aceito pela comunidade intelectual que deve ser apresentado como objeto limpo de detalhes em linguagem impessoal, descontextualizado e despersonificado;

(b) saber a ensinar (savoir à enseigner) produto organizado e decomposto em grau de dificuldade, que degrada o saber sábio. Faz-se por meio dos livros-textos e manuais de ensino, que são conteúdos prontos, acabados, ordenados e linearizado. Este saber se baseia no saber sábio, mas é totalmente diferente. Ele é tomado pelo professor como objeto de trabalho, que através de uma nova transposição didática transforma-o em saber ensinado; e

(c) saber ensinado (savoir enseigné) produto extremamente instável, sofre influência de todo ambiente escolar (alunos, pais, agentes educacionais e meio social) que pressiona o professor interferindo em suas atitudes desde o preparo de sua aula até o ato de lecionar.

Esses saberes são influenciadores e coexistentes, é através da transposição que o saber sábio é transformado em saber a ensinar, e o saber a ensinar em saber ensinado. A transposição fraciona o saber bruto que passa a ser analisado pelo professor, verificando e potencializado o para a entrega ao aluno em linguagem acadêmica acessível, mediando saber e conhecimento do aluno.

A mediação do professor se dá entre a informação ou saber bruto das redes de dados adquiridas a partir das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC), onde ocorrem a distribuição e a divulgação dos saberes vinda do ciberespaço e o mundo educativo, onde se encontram os alunos. Entende se por ciberespaço, um ambiente no qual não é apenas composto por tecnologias e instrumentos de infraestrutura, mas também é habitado pelos indivíduos que possuem todos os tipos de saberes, dando mobilidade a esse conhecimento. (LÉVY, 2000).

O saber encontrado no ciberespaço relaciona-se com os indivíduos, que dividem esse espaço, mantendo-os interligados independentemente da localização geográfica em que se encontra no momento de sua inserção nesse ambiente, isso permite uma flexibilidade e mobilidade do saber jamais vista em outras épocas. Possibilitando maior acesso ao saber e com isso desconstrói a noção de territorialidade do saber criando uma inteligência coletiva, que passa a fluir em direção a todos os que dele precisam, dependem e querem.

O projeto da inteligência coletiva, cunhado por Lévy (2003), não está ligado somente à cognição, mas ao projeto global que pressupõe ações práticas que se destinem à mobilização das competências dos indivíduos e que busquem, de fato, a base e o objetivo da inteligência coletiva, que é o reconhecimento e o enriquecimento mútuo daqueles que se envolvem nessa proposta.

O caminho apontado por Lévy (2003) é a construção do laço social baseado no saber. Esse saber deveria ser o mote do encontro dos indivíduos, tirando foco anterior que incidia na política, na religião, na etnia e na nacionalidade, passando a criar identidades relacionadas e conectadas ao saber coo extensivo à vida, sendo assim relacionado aos conceitos savoir-vivre ou vivre-savoir, que quer dizer saber viver e viver saber. (LÉVY,2003, p. 32, 33).

O Espaço do saber e o espaço virtual da inteligência coletiva que visam tornar o saber a base principal para a infraestrutura das relações humanas baseadas na

valorização dos sujeitos e de suas habilidades que se encontra em construção é um espaço mutante e móvel necessitando mais do amadurecimento dos sujeitos que o manipulam do que das mudanças nas esferas política, social e educacional, como proposto por Lévy (2003).

2 Resultados

A cultura digital oferece à sociedade e à escola um mar de informações que estão disponíveis quando conectados a web. Os estudos teóricos que foram feitos apresentaram se na direção de novas inserções didáticas e novos entendimentos a respeito do ensino que se dão a partir do saber disponibilizado pela rede mundial de dados acessíveis ao uso das TDIC.

As entrevistas relatam uma preocupação dos professores para com a imaturidade do aluno em relação à busca de seu saber proveniente da rede mundial de dados. Esta preocupação requer pensar um novo papel para o professor que possa leva-lo a atender as especificidades do momento educativo que, hoje esbarram-se na utilização das TDIC. Sendo assim, a transposição do saber é sugerida e requer do professor uma atitude de observação das informações contidas na rede de dados e de indicação das informações previamente analisados por ele.

Conclusão A partir do desenvolvimento científico, das Tecnologias digitais de informação e

comunicação (TDIC) e do envolvimento social do compartilhamento do saber cientifico acessível a partir das TDIC revela-se a importância da compreensão desta questão no âmbito educativo. Pois, sendo a escola parte da estrutura social e espaço formal de aquisição da informação e do saber torna-se as relações e correlações da educação com as TDIC são imprescindíveis para traçar-se diretrizes, modos e métodos para a construção da comunicação entre saber, escola e mundo.

Vive se um momento na educação cujos indivíduos, alunos, pais, professores e escolas marcham sem saber como lidar com a tecnologia, a mobilidade do conhecimento, o saber disponível em rede. Percebemos que esse impacto tem gerado animosidades na ação de alunos e professores que se enfrentam para defender seus interesses e posições.

A sociedade e principalmente a escola necessita de uma dose de coragem para dar um novo passo com relação a futura escola. Aos professores resta o desenvolvimento de seu papel como vetores de conhecimento, atuando como agentes de soluções locais para os problemas enfrentados pelo novo momento em que tecnologia desfazem as fronteiras do saber e reexamina papeis, confirmando que “O grupo de profissionais da escola pode criar, reinventar a instituição, os objetivos e as metas mais compatíveis com os interesses dela e da comunidade. ” (LIBÂNEO, 2005, p. 360.)

Percebe-se que a função do professor como orientador na busca de conhecimentos acessíveis a partir das TDIC torna-se fundamental, examinando o saber bruto das redes e traduzindo-o à linguagem do aluno, permitindo com isso o uso do mesmo a nível acadêmico.

Será somente no exercício do bom senso que as questões trazidas quanto ao uso das TDIC e o saber institucionalizado podem ser esclarecidas e atendidas na medida em que os professores e a escola percebam que, hoje, não se trata mais de deter o saber, mas de transforma-lo em conhecimento que incorporaos podem se

manifestar em atitude para o bem-estar coletivo.

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