TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS HUMANOS, E … · scientifica, neppure un metodo isolato. Ma,...

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1 ELIANA DA SILVA ARAUJO TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS HUMANOS, E SEUS LIMITES ÉTICO-JURÍDICOS EM DEFESA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA MESTRADO EM DIREITO UNIFIEO CENTRO UNIVERSITÁRIO FIEO Osasco 2006

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    ELIANA DA SILVA ARAUJO

    TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS HUMANOS, E SEUS LIMITES TICO-JURDICOS EM DEFESA DA

    DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    MESTRADO EM DIREITO

    UNIFIEO CENTRO UNIVERSITRIO FIEO

    Osasco

    2006

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    ELIANA DA SILVA ARAUJO

    TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS HUMANOS, E SEUS LIMITES TICO-JURDICOS EM DEFESA DA

    DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    Dissertao apresentada banca examinadora do Centro Universitrio FIEO, para obteno do ttulo de mestre em Direito, tendo como rea de concentrao Positivao e Concretizao Jurdica dos Direitos Humanos, dentro do projeto A Tutela da Dignidade da Pessoa Humana perante a Ordem Pblica, Social e Econmica, inserido na linha de pesquisa Direitos Fundamentais em sua Dimenso Material, sob orientao do Professor Doutor Eduardo Carlos Bianca Bittar.

    UNIFIEO CENTRO UNIVERSITRIO FIEO

    Osasco

    2006

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    Dedico este trabalho ao meu orientador, o magnfico

    mestre Doutor Eduardo Carlos B ianca B ittar, por seu

    grande saber jurdico, pela intensa dedicao ao Direito e

    compromisso com a Justia.

    AGRADECIMENTOS

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    Agradeo a Deus pela oportunidade de conquistar mais esse ideal.

    minha irm Nice pela riqussima sensibilidade, e incentivo.

    minha me, expresso de coragem e abnegao.

    Ao Leonardo e Nia pessoas que amo.

    Presto ainda, meus agradecimentos especiais ao

    ilustre mestre Doutor Domingos Svio Zainaghi pelo

    incentivo e convivncia to enrequicedora.

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    Banca Examinadora:

    _______________________

    ________________________

    _______________________

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    RESUMO

    Esta dissertao tem por finalidade examinar a importncia dos transplantes de rgos e tecidos humanos na atualidade, e demonstrar sua relevncia como mtodo cirrgico indispensvel a salvar vidas.

    Nos ltimos tempos o milagre dos transplantes pode ser considerado como um dos avanos mais considerveis da medicina, porm, este tema sempre provocou inmeros questionamentos tico-jurdicos, perdurando at hoje.

    Pode-se afirmar que atualmente os transplantes no so apenas curiosidade cientfica, nem mtodo isolado. Consistem, na maior parte do mundo, numa rotina cirrgica que salva milhares de vidas. Os transplantes tm como caracterstica nica, sendo este o seu maior diferencial, no tocante a outros mtodos cirrgicos, o fato de necessitar da existncia de rgos e tecidos provenientes de doadores vivos ou mortos.

    Quando os tratamentos mdico-cirrgicos convencionais j no so mais eficazes para atender aos casos de doenas que ocasionem falncia completa de um rgo ou tecido, h como ultimo recurso o emprego do transplante. Entretanto, persiste a questo que os transplantes necessitam de doadores.

    O emprego desta teraputica somente pode ser adotado quando no houver outros meios alternativos previstos pela medicina para o prolongamento ou melhora na condio de vida do indivduo.

    O transplante de rgos, tecidos e partes do corpo humano, no um problema eminentemente tcnico-mdico, na medida que traz em si aspectos sociais de ordem tica e jurdica. Circundam dentro desses aspectos, entre outros: vedao de comercializao, estabelecimento de critrios seguros para determinao de morte, consentimento prvio e esclarecido do doador e receptor.

    Ademais, toda interveno ou investigao mdica, como o caso dos transplantes, que envolve a vida e a dignidade humana primordial que a cincia jurdica se manifeste e regule o seu procedimento. O Legislador brasileiro cuidou do tema por meio de diversas Leis. Atualmente se encontra em vigor a Lei n. 9.434/97 regulamentada pelo Decreto n. 2.268 de 30 de junho de 1.997.

    Enfim, grande o nmero de brasileiros que necessitam de transplantes. Todavia, preciso colocar esse avano mdico em favor da populao. Embora, em matria de transplantes a nossa legislao atual procure caminhar lado ao lado com a cincia-mdica, para uma melhor aceitao e eficcia devero existir campanhas de esclarecimentos para populao, e em conseqncia ampliar as perspectivas para o tratamento de diversas doenas.

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    S O M M A R I O

    La presente tesi ha per oggetto esaminare limportanza raggiunta odiernamente dai

    trapianti di organi e tessuti del corpo umano, nonch dismostrare la sua rilevanza come

    metodo chirurgico indispensabile per salvare vite.

    Negli ultimi tempi il miracolo dei trapianti pu essere considerato uno degli sviluppi

    pi notevoli della medicina, nonostante abbia suscitato innumerevoli discussioni etico-

    giuridiche che perdurano a tuttoggi.

    Attualmente si pu affermare che i trapianti non rappresentano soltanto una curiosit

    scientifica, neppure un metodo isolato. Ma, bens, che nella maggior parte del mondo

    divennero una pratica chirurgica consueta che salva migliaia di vite. I trapianti hanno come

    caratteristica unica - essendo questo il maggior differenziale che li distingue dagli altri

    metodi chirurgici - , il fatto che dipendono dalla disponibilit di organi e tessuti provenienti da

    donatori vivi o morti.

    Quando le cure medico-chirurgiche convenzionali non sono pi efficaci per far fronte

    a malattie che portano al fallimento di un organo o tessuto, lultimo ricorso il trapianto.

    Persiste, per, la questione: i trapianti necessitano di donatori.

    Luso di questa terapeutica pu essere adottato soltando quando non esistono altri

    mezzi alternativi previsti dalla medicina per migliorare le condizioni di vita dellindividuo,

    prolungandone lesistenza.

    Il trapianto di organi, tessuti e parti del copo umano non si riduce ad un problema

    tecnico-medico, poich porta con s aspetti sociali di ordine etica e giuridica, tra i quali: il

    divieto di commercializzazione, lo stabilire criteri sicuri per certificare la morte, i

    consentimenti previ del donatore e del recettore.

    Inoltre, in ogni intervento o indagine medica, come nel caso dei trapianti che

    coinvolgono la vita e la dignit umana, primordiale che la scienza giuridica ne regoli i

    procedimenti. Il legislatore brasiliano disciplin il tema tramite diverse leggi. Attualmente in

    vigore la Legge n. 9434 del 04 febbraio 1997, regolata dal Decreto n. 2268 del 30 giugno

    dello stesso anno.

    Finalmente, grande il numero di brasiliani che necessitano di trapianti.

    Tuttavia, necessario far s che ci favorisca la popolazione. Malgrado la nostra

    attuale legislazione cerchi di accompagnare gli sviluppi della scienza medica,

    palese la necessit di promuovere campagne per chiarire la popolazione rendendo,

    cos, pi ampie le prospettive di cura di molte infermit.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................ 11

    1. MEDICINA E SADE...................................................................................

    13

    1.1. A influncia dos mitos e crenas no desenvolvimento da medicina..... 19

    1.1.1. A medicina corretiva, preventiva e preditiva e seus aspectos

    sociais e jurdicos.............................................................................................

    25

    1.2. A sade e a responsabilidade do Estado..............................................

    29

    1.2.1. O direito fundamental vida e a sade......................................

    30

    1.2.2. O direito integridade fsica como fundamento da sade e da

    vida...................................................................................................................

    34

    1.2.3. A atuao do mdico como promotor da vida e da sade..........

    36

    1.3. Sade Pblica.......................................................................................

    38

    2. DA BIOTICA AO BIODIREITO...................................................................

    40

    2.2. tica.......................................................................................................

    40

    2.2.1. tica e moral............................................. ..................................

    43

    2.2.2. tica e normas jurdicas..............................................................

    45

    2.2.3. tica e normas deontolgicas.....................................................

    46

    2.3. Biotica..................................................................................................

    49

    2.3.1. Conceito de Biotica e seus aspectos histricos........................

    51

    2.3.2. Biotica e medicina.....................................................................

    54

    2.3.3. Princpios da Biotica .................................................................

    56

    2.4. Biodireito.............................................................................................. 61

    2.4.1. Princpios do Biodireito...............................................................

    63

    2.4.2. Biodireito e os limites da cincia................................................

    64

    3. PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA..................................

    72

    3.3. A dignidade da pessoa humana frente aos direitos humanos...............

    72

    3.3.1. Dignidade da pessoa humana: Conceito e parte histrico-

    filosfica............................................................................................................

    81

  • 10

    3.3.2. O princpio da dignidade da pessoa humana na ordem jurdica..

    89

    3.3.3. O princpio da dignidade da pessoa humana como princpio

    conformador.....................................................................................................

    91

    3.4. A dignidade da pessoa humana na Constituio Brasileira..................

    92

    3.5. Do princpio em questo........................................................................

    94

    4. TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS HUMANOS..........................

    97

    4.1. Perodo mitolgico.................................................................................

    98

    4.4.1. Perodo cientfico.........................................................................

    101

    4.2. Conceito de Transplante.......................................................................

    105

    4.2.1. Definies: Transplante, enxerto e implante...............................

    107

    4.2.2. Classificaes dos transplantes de rgos e tecidos..................

    108

    4.2.3. Conceito de rgo.......................................................................

    110

    4.2.4. Conceito de tecido.......................................................................

    111

    4.3. Breve histrico dos transplantes no Brasil...........................................

    113

    4.4. Evoluo legislativa sobre transplantes e anlise crtica de sua

    normatizao no Direito Brasileiro....................................................................

    115

    4.4.1. Lei n. 4.280/63............................................................................

    116

    4.4.2. Lei n. 5.479/68............................................................................

    119

    4.4.3. Constituio Federal de 1988.....................................................

    125

    4.4.4. Lei n. 8.489/92............................................................................

    134

    4.4.5. Lei n. 9.434/97............................................................................

    139

    4.5. Doao de rgos e as religies.......................................................... 159

    4.6. Doao de rgos e tecidos humanos no direito francs e alemo..... 161

    CONCLUSO................................................................................................... 171

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................................

    175

  • 11

    INTRODUO

    Buscaremos por meio desta pesquisa, focalizar o tema de transplantes de

    rgos e tecidos humanos, nos seus aspectos tico-jurdicos, cujo objeto est

    intimamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, e os direitos

    fundamentais da sade e da vida.

    Procuraremos demonstrar que os transplantes so uma tcnica mdica

    valiosa na atualidade, por permitir que pessoas com doenas crnicas possam na

    medida do possvel recuperar o irrenuncivel direito de viver.

    sobre este tema to instigante que vamos tratar, por refletir tambm a

    dinmica do ordenamento jurdico, revelando que as normas de direito se encontram

    em constante mutao, para satisfazerem as diversas relaes sociais num dado

    momento histrico, que se alteram no tempo e no espao em que esto inseridas.

    O primeiro captulo dedicado ao estudo da histria da medicina, e da

    definio do conceito de sade e da sua importncia no contexto social.

    No segundo captulo faremos uma abordagem sobre a disciplina Biodireito,

    ocasio em que salientaremos primeiramente que a Biotica tem como fundamento

    cuidar dos aspectos mdico-cientficos na esfera da tica e da moral, no que se

    refere a toda interveno e manipulao com seres humanos.

    Por outro lado, demonstraremos que o Biodireito, em face dos avanos, cuida

    de tutelar as relaes desencadeadas pelas novidades tecnolgicas com o objetivo

    de evitar e controlar eventuais abusos, buscando com isso o equilbrio entre direito e

    realidade social, tendo como pressuposto garantir a proteo do ser humano desde

    a concepo at a morte.

  • 12

    Considerando que o tema de transplantes vincula-se dignidade da pessoa,

    direcionaremos o terceiro captulo para fazer consideraes sobre esse princpio.

    A acelerao alcanada pela cincia tem impulsionado o Direito a manter

    igual estgio de desenvolvimento. Assim, para tornar vivel a realizao de

    transplante de rgos e tecidos, e acompanhar o avano da medicina, o legislador

    ptrio criou vrias leis, decretos, e medidas provisrias, sobre as quais

    discorreremos no captulo quarto.

    Porm, iniciaremos o captulo quarto, tratando dos aspectos histricos e

    cientficos, conceitos e definies bsicas para a compreenso do tema, e ainda

    procuraremos demonstrar a evoluo mdico-cientfica, e todas as suas tentativas,

    para salvar vidas e prolongar a sade por meio dos transplantes.

    E, num segundo momento, analisaremos a evoluo histrica e legislativa, e

    os pontos mais relevantes e crticos de todos os diplomas que trataram da questo

    sobre os transplantes de rgos e tecidos no Brasil.

    Por fim, procuraremos, na medida do possvel, demonstrar que o emprego

    dos transplantes constitui uma interveno mdica de grande importncia, por

    propiciar a expectativa de que aqueles que se encontram quase sem vida possam

    renascer.

  • 13

    1. MEDICINA E SADE

    A medicina uma profisso de tempos longnquos. A histria registra que sua

    origem remonta ao incio do sofrimento e luta do homem no combate s doenas.

    Sua importncia indubitvel como fonte de valorizao da pessoa. Ao mdico

    sempre coube o papel de ajudar a combater as doenas, minorando as dores da

    espcie humana.

    Para Jlio Csar Meirelles Gomes: A medicina uma profisso erudita

    comprometida com a busca da verdade, sendo o ato mdico um consrcio de

    atitudes, tcnicas e conhecimentos/habilidades voltados para a promoo da sade

    em carter individual ou coletivo at o limite das prticas invasivas de alto risco ou

    aes sanitrias de grande envergadura, com graves responsabilidades sobre a vida

    e a sade pblica.1

    E continua:

    A medicina a nica entre as profisses de sade capaz de invadir o

    templo da vida emergente, desvendar os segredos da concepo e abrir as

    portas do universo, violar os limites da vida, promover estados de morte

    virtual em defesa da vida natural. Enfim, uma profisso que vai do

    nascimento morte e s vezes, numa ousadia capaz de afrontar os deuses,

    em sentido inverso.2

    Os primeiros praticantes da medicina foram os feiticeiros-curandeiros. Era

    baseada em supersties e mitos. A medicina fundamentada na racionalidade

    atribuda aos gregos. Por volta da metade do sculo V os mdicos gregos j haviam

    desenvolvido teorias para explicar o funcionamento do corpo humano e o

    1 GOMES, Conceito de ato mdico luz da Biotica, In: Medicina, Conselho Federal, Braslia: ano XVI, n. 130, setembro de 2001, p. 9. 2 Idem.

  • 14

    mecanismo das doenas. Suas idias eram erradas, porm extremamente

    consistentes com os conhecimentos cientficos da poca. Os princpios de higiene,

    alimentao e exerccios que utilizavam no tratamento dos doentes, no entanto,

    eram corretos em grande parte e so vlidos at o presente.3

    Porm a medicina s comeou a sair da esfera da magia e a entrar no

    domnio da cincia no final do sculo VI, quando surgiram os primeiros indivduos

    dedicados exclusivamente arte da cura. A Medicina j era uma profisso

    respeitada, todos os sofrimentos do corpo eram da alada do mdico, inclusive os

    problemas odontolgicos; alm de tratamentos clnicos, geralmente base de

    plantas e laxativos, cirurgias rudimentares j eram praticadas com relativo sucesso.4

    A medicina posta a servio do homem, como quando se empenha a utilizar

    os meios necessrios para o alvio e cura das doenas.5 No h como falar em vida

    digna sem sade. Conseqentemente a sade um requisito mnimo para uma vida

    satisfatria.6

    Neste aspecto esclarecem James Drane e Leo Pessini: Da perspectiva da

    pessoa que sofre, a doena uma deficincia que faz a pessoa inteira clamar por

    ajuda. E ainda: A doena fere o mago dos seres humanos e diminui a vida no que

    3 http://pt.wikipedia.org./wiki> Acessado em: 16.01.2006 4 Idem. 5 Artigo 1 A medicina uma profisso a servio da sade do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminao de qualquer natureza Art. 2 O alvo de toda a ateno do mdico a sade do ser humano, em benefcio da qual dever agir com o mximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional (Cdigo de tica Mdica, Resoluo n. 1246/88, do Conselho Federal de Medicina). 6 Declarao Universal dos Direitos Humanos, 1948 Artigo XXV: Toda pessoa tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem-estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos (...)

    http://pt.wikipedia.org./wiki>

  • 15

    essa tem de peculiarmente espiritual, tico e social. A doena grave um grande

    insulto prpria integridade do ser humano.7

    Desde os primrdios da humanidade houve a busca pela sade. A sua

    valorizao externa uma preocupao com a vida. Atravs da medicina sempre

    vislumbrou-se amenizar os males que afligiam e afligem o ser humano. Contudo, ao

    homem no foi dado o dom de suplantar a morte, mesmo com todo o

    desenvolvimento mdico-cientfico. Porm, fato, que prolongou a vida humana,

    alcanou a cura de doenas tidas como incurveis, mas ainda h muito que fazer

    nesta seara.

    A doena compromete o bem estar fsico e emocional do homem. Na maioria

    das vezes invadido por sentimentos de medo e tristeza. As pessoas doentes

    tornam-se assustadas e impotentes, em razo das sbitas mudanas em seu

    trabalho e em todas as suas atividades.

    Como conseqncia da doena as pessoas ficam desmotivadas em buscar

    seus objetivos, perdem o humor, o desejo de brincar, e at amar. Em sntese a

    dignidade humana fica na sua essncia comprometida e diminuda.

    Hodiernamente os transplantes de rgos e tecidos humanos podem ser

    considerados como a mais notvel conquista da medicina. Sua tcnica pode salvar

    vidas e restaurar a sade de muitas pessoas. um procedimento mdico-cirrgico

    empregado em casos de doenas graves e irreversveis que atingem o

    funcionamento normal do organismo. Assim, visa recuperao da sade, e

    preservao da vida.

    7 DRANE & PESSINI, Biotica, Medicina e Tecnologia: Desafios ticos na fronteira do conhecimento humano, 2005, pp. 56-57.

  • 16

    Os transplantes de rgos apresentam-se como uma alternativa para eliminar

    a doena, recuperar a qualidade de vida e a longevidade do homem. Como j

    colocamos, os problemas crnicos de sade levam solido, insegurana, ao

    medo e morte.

    Na Constituio de 1988 encontramos que a sade um direito social (artigo

    6), direito de todos e dever do Estado (artigo 196). Na Constituio, sade significa

    polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doenas e de

    outros agravos e ao acesso universal igualitrio s aes e servios para sua

    promoo, proteo e recuperao" (artigo 196). Para a efetivao desse preceito,

    entende-se por necessrio que haja "atendimento integral, com prioridade para as

    atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais" com "participao

    da comunidade" (artigo 198, incisos II e III).

    Assim, de uma forma mais atual e dinmica, a questo da sade abandona o

    critrio curativo em prol do preventivo. No se atm a minorar o sofrimento, mas

    busca evit-lo. Nesse sentido so de grande valia as explicaes de Germano

    Schwartz:

    Quando fala em recuperao, a CF/88 est conectada ao que se

    convencionou chamar de sade curativa; os termos reduo do risco de

    doena e proteo esto claramente ligados sade preventiva, e a

    promoo a qualidade de vida, posteriormente explicitada pelo artigo

    225 da Carta Magna.8

    Nota-se que, de acordo com a Carta Magna e os novos conceitos doutrinrios

    adotados, a qualidade de vida faz parte da sade. Em torno dessa idia

    apresentamos a elaborada por Francisco Carlos Duarte:

    8 SCHWARTZ, Direito Sade: Efetivao em uma Perspectiva Sistmica, 2001, p. 27.

  • 17

    O direito sade integra o conceito de qualidade de vida, porque as

    pessoas em bom estado de sade no so as que recebem bons cuidados

    mdicos, mas sim aquelas que moram em casas salubres, comem comida

    sadia, em um meio que lhes permite dar luz, crescer, trabalhar e morrer.9

    Nos dizeres de Germano Schwartz: a sade condio de desenvolvimento

    de um povo, assim como a educao. Qualquer plano de desenvolvimento estatal

    tem na sade um de seus pontos bsicos, (...). At por esse motivo que se fala

    que um Estado mnimo deve garantir to somente educao e sade (...).10

    A sade compreendida como direito humano de segunda gerao, assim

    como a educao. Entretanto, simples declaraes de direitos tornam-se

    insuficientes perante a realidade da vida.

    Referente ao direito sade, leciona Elida Sguin que:

    A sade um direito bsico do homem includo no rol dos Direitos Humanos

    e dos Direitos Fundamentais agasalhados na Constituio, como forma de

    atender aos princpios densificadores do Estado Democrtico.11

    No se pode restringir as questes de sade e seus efeitos ao campo do

    saber e atuao dos profissionais de medicina. Trata-se de uma questo de

    preservao de dignidade da pessoa humana, e isso compete ao Direito tambm.

    Nos ensinamentos de Celso Antonio Pacheco Fiorillo existe o que denominou

    de piso vital mnimo. Pelo seu sentido entendemos que sem a sua observncia no

    h como falar que o homem possua vida digna, encontrando-se inserido neste

    conceito o direito sade, colocando:

    9 DUARTE, Qualidade de Vida: A Funo Social do Estado, Revista da Procuradoria do Estado de So Paulo, n. 41, junho/1994, p. 173. 10 SCHWARTZ, op. cit., p. 193. 11 SGUIN, Biodireito, 4 edio, Revista e Atualizada, 2005, p. 60.

  • 18

    Uma vida com dignidade reclama a satisfao dos valores (mnimos)

    fundamentais descritos no art 6 da Constituio Federal, de forma a exigir

    do Estado que sejam assegurados, mediante o recolhimento dos tributos,

    educao, sade, trabalho, moradia, segurana, lazer, entre outros direitos

    bsicos, indispensveis ao desfrute de uma vida digna12.

    Em concordncia com a posio alinhavada, encontramos a do

    constitucionalista Manoel Gonalves Ferreira Filho, que a este respeito assim se

    manifesta:

    Como da tradio de nosso direito desde 1934, a Constituio consagra

    direitos sociais. So estes direitos a prestaes positivas por parte do

    Estado, vistos como necessrios para o estabelecimento de condies

    mnimas de vida digna para todos os seres humanos. Costumam ser

    apontados como a segunda gerao dos direitos fundamentais. So eles

    enunciados no art. 6. Tal enunciao , porm, de carter exemplificativo.

    Entre os direitos sociais enumerados, j estavam na redao primitiva da

    Constituio o direito educao, sade, ao trabalho, ao lazer,

    segurana e previdncia social, proteo maternidade e infncia,

    assistncia aos desamparados. A eles a Emenda n. 26/2000 acrescentou o

    direito moradia.13

    No mesmo sentido, e de forma elucidativa assinala Eduardo Carlos Bianca

    Bittar:

    A quebra da dignidade corresponde violao da pauta de reivindicaes

    calcadas nos direitos humanos, pois, em verdade, qualquer plano poltico,

    qualquer meta governamental, qualquer sistema poltico tem ampla

    liberdade de ao, desde que respeitados certos patamares mnimos de

    condies que faam a mquina governamental e estatal proteger valores

    mnimos ao desenvolvimento da pessoa humana com dignidade, o que

    importa dizer, com sade, trabalho, estrutura social etc.14

    12 FIORILLO, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 5 edio-ampliada, 2004, pp. 55-56. 13 FERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional, 30 edio, revista e atualizada, 2003, p. 310. 14 BITTAR, tica, Educao, Cidadania e Direitos Humanos, 2004, p. 123.

  • 19

    No entanto, se em questes bsicas de sade pblica, demonstra-se a

    insuficincia de nossa legislao para contra-atacar as afrontas dignidade de

    cidados que tm direito ao amparo da sociedade num momento de grande

    dificuldade - como ocorre em caso de doenas, pior ainda quando nos referimos a

    questes mais novas, face s descobertas cientficas e tecnolgicas de nosso

    tempo.

    No Brasil, apesar de termos uma Constituio bastante avanada no tocante

    preservao da dignidade humana, ainda ocorrem muitos casos de desrespeito

    aos direitos fundamentais mais bsicos, como o direito vida e sade.

    Quanto sade, no entanto, no se trata de um direito individual apenas, mas

    tambm de um direito difuso, pois quando uma pessoa adquire uma doena infecto-

    contagiosa, por exemplo, poder transmit-la a um incontvel nmero de pessoas.

    Dada a sua importncia, o direito sade pode ser considerado como elemento

    bsico para um desenvolvimento harmonioso e uma ordem social mais justa e

    solidria.

    1.1. A influncia dos mitos e das crenas no desenvolvimento da Medicina

    A cada dia surgem novas doenas que desafiam os profissionais da sade,

    que se vm, muitas vezes, diante do desconhecido, do mistrio. Volta-se a um

    sentimento que h muito vigia, denotando um carter mstico s doenas, como uma

    manifestao do sobrenatural, chegando a serem consideradas uma punio por

    pecados cometidos.

    Na lio de Elida Sguin:

  • 20

    A tarefa de curar, sob esta tica, primeiro foi atribuda a sacerdotes,

    feiticeiros, xams, pajs, que cuidavam dos males do corpo atravs do

    merecimento da alma, dependendo a cura das culpas do doente ou de seus

    familiares, bem como da boa vontade dos deuses, nunca da competncia

    daquele agente de sade.15

    Temos como realidade a busca pela sade. Nas sociedades primitivas, como

    vimos a cura dos males que afetavam os seres humanos era realizada por

    invocaes mgicas. Consideravam que a doena era fruto de pecados.

    No livro do Deuteronmio (Bblia Sagrada), captulo 28, versculos 58-59,

    encontra-se uma clara relao de causa e efeito das enfermidades: Se no

    guardares e no cumprires as palavras da Lei e se no tiveres temor ao nome

    glorioso e terrvel do Senhor teu Deus, Ele te castigar, e a teus filhos, com a praga,

    demonstrando que a doena uma punio pelo mau comportamento.16

    Embora muito tempo tenha passado at aqui, ainda permanece, mesmo de

    uma forma mais sutil, este pensamento, quando se depara com os males do

    presente sculo. Nota-se que permanecem os preconceitos, apesar da evoluo da

    humanidade, desencadeando, tambm questes jurdicas e ticas.

    A evoluo cientfica deu lugar tambm relatividade e temporalidade das

    verdades cientficas. Tais questes so rotineiramente publicadas pelos meios de

    comunicao, gerando ainda maior confuso na mente da populao. Um dia se

    ouve que correr faz bem sade, noutro que a caminhada muito melhor ao

    corao. Outro exemplo referente aos hormnios, quando os mdicos receitam

    para mulheres em fase de menopausa, depois passam a defender que tal

    15 SGUIN, op. cit. p. 08. 16 Idem.

  • 21

    medicao cancergena. Nas questes alimentares tambm ocorrem essas

    inconstantes posies.

    como se a medicina fosse movida por modismos, fato bem ilustrado por

    Paulo Coelho em sua Breve Histria da Medicina.17 No mais novidade o fato de

    certas verdades mdicas serem rapidamente modificadas e, o que pior, depois de

    trazer conseqncias muitas vezes irreparveis.

    Hoje sabemos que a medicina j era praticada desde a antiguidade. No

    entanto, foram os gregos os pioneiros no estudo dos sintomas das doenas.

    Eles tiveram como mestre Hipcrates (considerado at hoje o pai da

    medicina).

    Ficou clebre o discurso do juramento de Hipcrates quanto prtica da

    medicina, que demonstra uma preocupao com a tica e a dignidade do ser

    humano. O Juramento de Hipcrates traa um caminho tico a ser adotado pelo

    mdico, que se depara com questes para as quais a cincia no fornece respostas.

    Hipcrates entendia que a doena estava ligada realidade e ao cotidiano do

    indivduo. Com sua racionalidade, trocou os preceitos religiosos pela tica. Essa

    concepo aplicada modernamente.

    A propsito vale trazer a baila os ensinamentos de Germano Schwartz:

    Hipcrates referia que a cidade e o tipo de vida influenciavam a sade dos

    17 COELHO, Jornal O Globo, 26.07.98, p. 18: 500 d.C. Venha at aqui e coma esta raiz ; 1000 Esta raiz coisa de ateu, faa esta orao ao Deus que est no cu; 1792 O Deus no est no cu, quem reina a razo. Venha at aqui e beba esta poo; 1917 Esta poo para enganar o oprimido, sugiro que voc tome um comprimido; - 1960 Este comprimido antigo e extico. Chegou o momento de tomar antibitico; 1998 Antibitico te deixa fraco e infeliz. Eis um ovo tratamento: coma esta raiz.

  • 22

    habitantes. Para ele, as doenas deveriam ser tratadas de acordo com as

    particularidades locais.18

    Atravessou os sculos o pensamento de Hipcrates, sendo observado

    inclusive na atualidade. Confirmando a sentena posta, nos valeremos da lio de

    Elida Sguin:

    A medicina hipocrtica, considerada a primeira a buscar uma conotao de

    cincia, teve como grande divulgador Galeno, da cidade de Prgamo na

    sia Menor, famosa pelo templo ao deus Esculpio, por sua escola de

    Medicina e pela sua biblioteca. Aquele saber mdico estava baseado em

    trs princpios bsicos: 1) favorecer ou, pelo menos, no prejudicar o

    doente; 2) abster-se do impossvel, portanto, no atuar, quando a doena

    letal; e, 3) atacar a causa do dano.19

    No perodo da idade mdia, intitulada era das trevas, sabe-se que os

    conhecimentos mdicos tiveram pouco ou quase nenhum avano, em razo de

    diversos fatores, entre os quais a forte influncia exercida pela igreja, que

    condenava as pesquisas cientficas. Somente aps este tempo que a medicina

    buscou explicar as doenas por meio de estudos cientficos.

    No sculo XVII, Willian Harvey fez uma descoberta importante: o sistema

    circulatrio do sangue. A partir da, os homens passaram a compreender melhor a

    anatomia e a fisiologia.20 .

    Aps a inveno do microscpio acromtico, no sculo XIX todo

    conhecimento ficou mais apurado. Com esta inveno, Louis Pasteur conseguiu um

    18 SCHWARTZ, op. cit. p. 30. 19 SGUIN, op.cit. p. 13. 20 McGALLIAN, Dante, A (re) humanizao da medicina. www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm. Acessado em 06.01.2006.

    http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm

  • 23

    enorme avano para a medicina, ao descobrir que as bactrias so as responsveis

    por grande parte das doenas.21

    Assim, com o passar dos sculos a medicina foi marcada por uma atuao

    mais segura e eficaz. Passou por profundas transformaes desencadeadas por

    importantes descobertas. Dentre as quais a penicilina, e diversas vacinas,

    acarretando uma verdadeira revoluo nesta rea, em prol da humanidade.

    A formao e a prtica mdica foi se modificando, de forma a acompanhar

    todos os avanos tecnolgicos que emergem no tempo. Com o desenvolvimento

    tecnolgico ocorrido nas ltimas dcadas, principalmente na rea da biologia celular

    e molecular, e com as pesquisas do genoma humano, nos leva a uma concepo

    errnea ou correta, de que definitivamente o grande mistrio foi desvendado, e que

    a chave de todo o conhecimento mdico est nas cincias experimentais.

    H uma expectativa geral quanto ao descobrimento das verdadeiras causas

    de todas ou pelo menos quase todas as doenas que assolam a humanidade.

    Espera-se que, com o desenvolvimento das anlises laboratoriais, em nvel gentico,

    microbiolgico e outros mtodos, possibilite mais precisos e eficazes diagnsticos e

    tratamentos, podendo antever, reverter e principalmente prevenir grande parte das

    doenas existentes.

    Por este prisma, a preocupao humanstica se torna intrnseca, uma vez que

    se busca a melhoria das condies de sade do homem. Esse processo fica ainda

    mais reforado por outros aspectos que foram surgindo com as novas descobertas

    da medicina, especialmente aquelas ligadas tica.

    21 McGALLIAN, Dante, A (re) humanizao da medicina. www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm. Acessado em 06.01.2006.

    http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm

  • 24

    Mediante o panorama atual em que se encontra a medicina, volta-se a

    questionar se as cincias humanas a histria, a filosofia, e a psicologia realmente

    no tm mais nada a dizer no campo do diagnstico e do tratamento mdico.

    Quando se trata de sade pblica, por exemplo, os enfoques sociolgicos e

    antropolgicos so vistos como essenciais e indiscutveis, pois tais conhecimentos

    ajudam na compreenso e soluo de muitos males.

    Com a transformao da medicina em arte e tcnica, passa-se a exigir do

    mdico a responsabilidade profissional, passando a fazer parte da histria da

    medicina legislaes e punies aplicadas queles que no obtiverem um resultado

    satisfatrio junto aos seus pacientes.

    Dentro dessa perspectiva, a histria da medicina demonstra que as carncias,

    erros e absurdos das teorias e procedimentos mdicos do passado, devido a

    conhecimentos equivocados, passaram por uma lenta e difcil evoluo, para se

    chegar verdade cientfica atual. O problema, entretanto, a falta de reflexo

    crtica de tais verdades, no tocante s suas conseqncias ticas, sociais, culturais e

    existenciais.

    certo que a cincia e a tecnologia no podem resolver todos os problemas

    da humanidade. A crena nas descobertas cientfico-tecnolgicas da atualidade por

    um lado estimula a evoluo do conhecimento, mas por outro o bloqueia,

    distorcendo certas dimenses da verdade em detrimento de outras. Tanto assim,

    que, como j mencionamos, a cada dia surgem novas informaes, contradizendo

    conceitos anteriores. As verdades acabam se tornando relativas.

    Mesmo havendo o total desvendamento do cdigo gentico e com o

    desenvolvimento das mais sofisticadas tcnicas de diagnstico e prognstico clnico,

  • 25

    os mdicos continuaro enfrentando limitaes e dificuldades, exigindo mais do que

    o conhecimento cientfico-tecnolgico para serem superadas.

    Felizmente, a medicina atual dispe de inmeras drogas capazes de curar,

    controlar e at mesmo de evitar diversas doenas. Aparelhos eletrnicos sofisticados

    so capazes de fazer um diagnstico apurado, passando informaes importantes

    sobre o paciente. Os avanos nesta rea so rpidos e possibilitam uma vida cada

    vez melhor para as pessoas. Porm, nunca como hoje se faz to necessrio

    reflexo histrico-filosfica para que se possa reumanizar a medicina e as cincias

    da sade em geral.

    1.1.1. A medicina corretiva, preventiva e preditiva e seus aspectos sociais e

    jurdicos

    Atualmente, no se pensa somente na cura das doenas mas tambm, e

    principalmente, na sua preveno, atravs da adoo de medidas promotoras da

    boa sade. Assim, o conhecimento mdico adquirido no decorrer dos tempos, cada

    vez mais, vem sendo transmitido populao, fornecendo recursos para que se

    efetive um bom nvel de qualidade de vida, abrangendo o bem-estar fsico e mental

    do ser humano.

    Pensando nesse aspecto, a Constituio Federal de 1988, assim prev em

    seu artigo 196:

    A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas

    sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros

    agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua

    promoo, proteo e recuperao.

  • 26

    Quando trata da reduo do risco de doenas, o citado artigo se refere s

    medidas preventivas necessrias para tal, enquanto a recuperao se refere a uma

    medida corretiva.

    A Medicina Corretiva ocorre quando o problema j foi observado pelo

    paciente, que, ento, procura o atendimento mdico, para diagnstico e tratamento.

    A Medicina Preventiva refere-se s aes que possibilitem prevenir o

    aparecimento ou evoluo das doenas. Nesse sentido, o Direito Internacional

    Ambiental elevou categoria de princpios a preveno e a cautela, pois, tanto do

    ponto de vista econmico, para o Estado e para o cidado, a medicina preventiva

    vem ocupando lugar de destaque nas intervenes mdicas.

    A medicina preventiva atua de diferentes formas: noes bsicas de higiene e

    nutrio; realizao de exames para diagnosticar doenas enquanto as mesmas

    possam ser tratadas e curadas; vacinao em massa; conscientizao sobre a

    necessidade de prtica de exerccios fsicos e outros.

    Esses aspectos da medicina preventiva tm como principal finalidade a

    manuteno da boa qualidade de vida, atravs da adoo de hbitos saudveis.

    Conforme Elida Sguin, possui trs classificaes:

    1) primrios - educao da populao em relao sade, hbitos de vida

    saudveis, influncia no desenvolvimento de determinada doena e

    rastreamento populacional, 2) secundrios: aes destinadas fase inicial

    da doena, para evitar ou diminuir a recorrncia e/ou complicaes e,

    tercirios: procedimentos destinados s doenas crnicas, de tratamento e

    reabilitao.22

    E, ainda de acordo com Elida Sguin:

    22 SGUIN, op cit. p. 16.

  • 27

    A sade do paciente precisa ser encarada na sua globalidade, ou seja,

    fsica, psquica e social aplicando-se o Princpio Biotico da Beneficncia.

    Qualquer procedimento preventivo deve ter a capacidade de melhorar a

    qualidade de vida do indivduo. O diagnstico precoce implica

    necessariamente em que o paciente seja informado e possa optar por um

    tratamento antecipado. Muitas doenas cardiovasculares podem ser

    evitadas pela preveno.23

    Certamente no sculo XXI se buscar uma medicina mais personalizada e

    especialmente mais preventiva. Os mdicos, ao que tudo indica, tero sua

    disposio notveis tratamentos para diversos males, revolucionando a histria da

    medicina.

    J a Medicina Preditiva tem a marca do nosso tempo, por recorrer a

    diagnsticos muito mais avanados, de forma a avaliar a predisposio biolgica do

    indivduo para desenvolver doenas, formulando probabilidades. Tem como

    finalidade antever o surgimento de patologias de acordo com predisposies

    genticas individuais, recomendando as melhores formas de preveno e

    tratamento, sempre que possvel.

    Entretanto, a medicina preditiva tem sido muito contestada, por ter maior

    margem de erro, podendo levar a falsas idias de doena, alm de suscitar questes

    ticas. O indivduo muitas vezes encontra dificuldades de avaliar se o diagnstico

    que lhe dado aceitvel, ficando sem possibilidade de questionar os meios de

    preveno propostos, limitando-se ao exerccio de sua autonomia e o seu direito de

    ser informado.

    Observa Elida Sguin, que:

    23 SGUIN, op. cit. p. 16.

  • 28

    A medicina preditiva carrega consigo um potencial iatrognico importante

    que merece cuidadosa avaliao para se determinar o saldo, positivo ou

    negativo, da sua aplicao. Ser possvel, com a evoluo da gentica,

    tratar os embries em tero de sndromes de hipercolesterolemia gentica e

    prevenir um infarto aos cinqenta anos, poupando-se pessoas de muita

    morbidade e sofrimento, mas tambm surgiro problemas de discriminao

    e preconceito com os que forem portadores assintomticos de propenso a

    doenas.24

    Questes que surgem a respeito da medicina preditiva, se referem tica no

    tocante discriminao e ao preconceito. Seria possvel at mesmo que empresas

    exigissem testes genticos para admisso de seus funcionrios, assim como as

    companhias seguradoras tambm procurariam se beneficiar desse conhecimento.

    Necessrio uma educao pblica eficaz evitando-se a formao de preconceitos

    em prejuzo do ser humano.

    Um trabalho de ampla divulgao e conscientizao, alm de medidas

    preventivas contra abusos, tendo como fundamento a tica, so de crucial

    importncia nesse novo sculo que, sem dvida, tem novas marcas, atravs da

    medicina genmica.

    No se deve impedir o desenvolvimento tecnolgico nesta rea, que tem

    como objetivo encontrar a cura para diversas enfermidades, at aqui consideradas

    incurveis. Uma possibilidade parece despontar como uma luz no final do tnel,

    gerando esperana para muitos que padecem com enfermidades incurveis, sendo

    necessrio que sejam preservados os direitos dessas pessoas. Como exemplo

    citamos o daqueles que esperam por anos na fila para conseguirem um transplante

    de rgos e tecidos, almejando a to sonhada cura, para que tenham uma vida

    normal no trabalho, no seio familiar e na sociedade como um todo.

    24 SGUIN, op. cit. p. 18.

  • 29

    Como j mencionado, a medicina vem sendo exercida desde os tempos mais

    remotos, embora de forma bastante distinta, mas sempre buscando minimizar o

    sofrimento humano. A profisso de mdico deve ser exercida conforme os preceitos

    ticos inerentes a funo, e com observncia das cautelas necessrias ao bem estar

    da populao.

    1.2. A sade e a responsabilidade do Estado

    A sade insere-se no rol dos Direitos Humanos a serem preservados pelo

    Poder Pblico. Ao Estado cabe prestar servios de sade de forma satisfatria,

    facilitando o acesso aos meios que garantam uma condio de bem-estar coletivo.

    seu dever zelar preventivamente pela sade pblica.

    cedio que sade direito pblico subjetivo, integrante dos direitos

    fundamentais. Representa bem jurdico constitucionalmente tutelado e inerente ao

    princpio da dignidade humana.

    A Constituio de 1988 reconhece que o indivduo credor desse direito e o

    Estado o seu devedor. Diante do enunciado dos seus artigos 6 e 196, presume-se

    que ao Estado cabe garantir no somente servios pblicos de promoo, proteo

    e recuperao da sade, mas compete-lhe tambm, adotar critrios que garantam a

    melhoria nas condies de vida do indivduo, evitando-se, assim, o risco de adoecer.

    Portanto, o direito sade deve ser assegurado mediante polticas pblicas,

    sociais e econmicas, de forma a minimizar o risco de doenas e de outros agravos,

    e garantir o acesso igualitrio e universal s aes e aos servios, para sua

    promoo, proteo e recuperao.

    Assim, no tocante ao Estado, o atendimento deve ocorrer junto comunidade,

    abrangendo critrios mdicos e sociais. O atendimento deve democratizar-se,

  • 30

    garantindo populao servios de sade, preventivos e curativos. Educao para

    a sade e polticas de incentivo solidariedade, so medidas importantes esperadas

    nas aes governamentais.

    Vivenciamos um novo tempo na rea do Direito, quando a defesa social

    requer o reconhecimento dos direitos individuais, sociais e difusos. Ao Estado cabe

    preservar a sade e a vida da populao.

    1.2.1. O direito fundamental vida e a sade

    O direito vida o mais importante dos direitos fundamentais previstos pela

    Carta Magna, sendo papel do Estado promov-lo, assegurando, ainda, a dignidade e

    subsistncia do ser humano. A Constituio Federal proclama no caput do artigo 5,

    que o direito vida inviolvel.25

    A palavra vida, do latim vita, de vivere (viver, existir), designa propriamente a

    fora interna substancial, que anima, ou d ao prpria aos seres organizados,

    revelando o estado de atividade dos mesmos seres.26

    Por entendermos importante definir o sentido da palavra vida no contexto

    mdico-biolgico, nos valeremos para este aspecto do conceito que nos oferece

    Daisy Gogliano27, extrado da lio do Professor Wasserman, Chefe do

    25 Embora afirmado na sua maior amplitude pela Constituio Federal, o direito vida tambm foi consagrado na Conveno Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jos da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, e que preconiza no seu artigo 4 o direito vida, estabelecendo no inciso I: Toda pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepo. Ningum pode ser privado da vida arbitrariamente. 26 SILVA, De Plcido e. Vocabulrio Jurdico, v. 4, 7 edio, 1982, p. 490. 27 GOGLIANO, O Direito ao Transplante de rgos e Tecidos Humanos, Tese de Doutorado defendida na Universidade de So Paulo, 1986 (no publicada), p. 311.

  • 31

    Departamento de Medicina interna do Karl Brener Hospital da Universidade de

    Stellenbosch da frica do Sul:

    (...) vida a atividade biolgica, sociolgica e psicolgica, manifestada por

    um dinamismo mantido por processos intrnsecos ao organismo

    elementos naturais e sustentada por outros fatores extrnsecos adquiridos

    pelo prprio homem cultura.

    De acordo com Jos Afonso da Silva, pode-se conceituar o vocbulo vida,

    como: ser que objeto de direito fundamental. Quanto questo do direito vida,

    reconhecendo a dificuldade de apresentar uma definio abrangente, observa que:

    "No intentaremos dar uma definio disto que se chama vida, porque aqui que se

    corre o risco de ingressar no campo da metafsica supra-real, que no nos levar a

    nada".28

    Mesmo assim, o autor apresenta a seguinte definio:

    Vida, no texto constitucional (art. 5o, caput) no ser considerada apenas no

    seu sentido biolgico de incessante auto-atividade funcional, peculiar

    matria orgnica, mas na sua acepo biogrfica mais compreensiva. Sua

    riqueza significativa de difcil apreenso porque algo dinmico, que se

    transforma incessantemente sem perder sua prpria identidade. mais um

    processo (processo vital), que se instaura com a concepo (ou germinao

    vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, at que muda

    de qualidade, deixando ento de ser vida para ser morte. Tudo que interfere

    em prejuzo deste fluir espontneo e incessante contraria a vida. 29

    Desta forma, existindo vida, automaticamente existir a necessidade de

    regul-la e proteg-la, afirmando Jos Afonso da Silva que a vida a "fonte primria

    de todos os outros bens jurdicos".30

    28 SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 23 edio, revista e atualizada, 2004, p. 196. 29 Idem. 30 Ibidem, p. 197.

  • 32

    Independentemente de uma definio, inegvel que o primeiro e mais

    importante de todos os direitos fundamentais o direito vida. Condiciona todos os

    demais direitos. Deve ser respeitado e rigorosamente tutelado. Como sabemos o

    direito vida inato e absoluto, bem maior no criado por lei, mas apenas

    reconhecido pelo Estado.31

    Sendo o direito vida considerado como o mais fundamental dos direitos,

    dele derivando todos os demais direitos, pressupe-se, ento, que regido pelas

    premissas constitucionais da inviolabilidade e irrenunciabilidade. Assim sendo, o

    direito vida no pode ser desrespeitado por terceiros, tampouco pelo Estado.

    A sade tem verdadeira correspondncia com o direito vida. Neste aspecto

    so de grande valia os ensinamentos de Germano Schwartz:

    A sade faz parte do sistema social sobre o qual nos encontramos, e, se

    quisermos ir mais adiante, faz parte do sistema da vida que tambm um

    sistema social. Ela (sade) um sistema dentro de um sistema maior (a

    vida), e com tal sistema interage.32

    Nos seus dizeres: A sade , seno o primeiro, um dos principais

    componentes da vida, seja como pressuposto indispensvel para a sua existncia,

    seja como elemento agregado sua qualidade. Assim, a sade se conecta ao direito

    vida.33

    31 Como bem esclarece Antnio Chaves, em lio lapidar: Existe um conjunto de normas que podem ser rastreadas em todas as legislaes, quando no explcitas, nelas contidas implicitamente e que so to essenciais que mal concebem separadas do prprio conceito de civilizao e de acatamento pessoa humana. O respeito vida e aos demais direitos correlatos, decorre de um dever absoluto, por sua prpria natureza, ao qual a ningum lcito desobedecer. (Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Vol. I, tomo I, 1 edio, 1982, p. 435.) 32 SCHWARTZ, op. cit. p. 37. 33 Idem.

  • 33

    Ao Poder Pblico incumbe proteger a pessoa humana, especialmente o

    hipossuficiente, alm da prestao de servios de sade adequados e eficientes,

    deve garantir atendimento digno.

    A questo concernente vida, tambm tutelada no mbito do Direito Penal,

    no captulo que trata dos crimes contra a vida, previsto no artigo 121, sob diversos

    aspectos e graduao (homicdio simples e qualificado); o induzimento, instigao

    ou auxlio ao suicdio, cuja previso encontra-se no artigo 122; o infanticdio (artigo

    123); e o aborto, nas suas diversas verses (artigos 124 a 128). E ainda no contexto

    da conservao da vida, h que se fazer referncia ao ponto de vista do Direito Civil,

    que prev nos artigos 944 a 951 do Cdigo de 2002, indenizao no caso de dano e

    homicdio, resultante de atos ilcitos.

    Os direitos sade e vida, so fundamentais do homem, so intrnsecos um

    ao outro, podendo assim ser entendido: vida-sade, sade-vida. A vida um direito

    absoluto em nossa cultura jurdica, portanto, deve o direito a sade ter tratamento

    igualitrio, pois para existncia de um h de ser observado o outro. inequvoca a

    idia de que o direito vida indissocivel do direito sade.

    Devemos entender que esse direito no se encontra restrito aos atos de

    agresso fsica ou psquica pessoa. Trata-se de um processo mais abrangente,

    entre eles, a preservao da sade por meio de terapias empregadas pela medicina.

    Dentro dessas terapias, convm enfatizar a questo dos transplantes de rgos e

    tecidos humanos. uma interveno mdico-cirrgica utilizada quando o tratamento

    convencional para algumas doenas no surte mais efeito. Pode ser considerado

    como mtodo empregado em prol da proteo da sade, e garantia da vida, como

    veremos no transcorrer desta pesquisa.

  • 34

    1.2.2. O Direito integridade fsica como fundamento da sade e da vida

    O direito integridade corporal interliga-se ao direito vida e sade, e

    destes faz parte integrante. O direito vida, consoante j vimos, diz respeito

    prpria existncia do indivduo, sendo indissocivel do direito sade. Por sua vez a

    integridade fsica consiste na incolumidade fsica e psquica da pessoa.

    Integridade, que significa caracterstica do que est inteiro, e ainda, estado do

    que no foi atingido ou agredido.34 Ainda, integridade fsica uma expresso

    sinnima do termo incolumidade fsica, pois inclume quer dizer sem leso ou

    ferimento, que permanece igual; inalterado.35 Em resumo representa o que est

    ntegro, sem reduo, comprometimento ou diminuio.

    A integridade fsica encontra-se pari passu com o bem mais sublime, a vida.

    Por seu turno, a vida consiste na existncia do ser e a integridade fsica irradia

    efeitos sobre a mesma, na medida em que sobrevenha um infortnio que retire da

    pessoa a sua condio de ileso, o que a rigor, gerar agravos na sua sade e muitas

    vezes ceifar a sua vida.

    Como no poderia deixar de ser, a integridade fsica encontra-se agasalhada

    em nossa Constituio, dentre os direitos fundamentais, junto aos incisos III e XLVII

    do artigo 5, com a finalidade de impedir a tortura, o tratamento desumano ou

    degradante, e abolir as penas cruis e excessivas.

    A lei brasileira categrica no sentido de preservar a integridade fsica do ser

    humano. As agresses, que eventualmente possam ocorrer, so passveis de

    punio na esfera penal e de indenizaes na cvel. Destarte, a proteo jurdica

    34 HOUAISS, Dicionrio da Lngua Portuguesa, 2 edio revista e aumentada, 2004, p.422. 35 Ibidem, p. 408.

  • 35

    tem como objetivo precpuo, evitar o prejuzo sade e vida, caracterizado por

    dano fsico ou perturbaes mentais.

    Como figura delituosa principal na legislao penal, encontramos a de leses

    corporais. Este delito consolida-se por meio de aes que causam ofensa

    integridade corporal ou sade de outrem, cuja previso se d no artigo 129.

    Destacamos tambm, como crimes que expem ao perigo a vida ou a sade

    de outrem, os tipificados nos artigos 130 a 136 do Cdigo Penal, a saber: contgio

    de molstia venrea ou grave; abandono de incapaz; omisso de socorro. De igual

    modo, pune-se tambm a participao ao delito intitulado por rixa (artigo 137 do CP),

    com agravo das sanes em caso de leso ou morte.

    imprescindvel apontar que a proteo da integridade ou incolumidade fsica

    da pessoa humana, alm de dar-se na esfera penal e cvel, como j vimos, no

    exceo na seara mdica.36

    A sua preservao deve ser observada pelo Estado, Sociedade Civil e

    Mdica. Em sntese, automaticamente, quando se ocasiona um mal ao corpo

    humano, se est agredindo ao mesmo tempo a sade e a vida. So situaes

    intrnsecas em todos os sentidos.

    Ressaltamos que no aprofundaremos muito este tema, considerando que o

    campo de abrangncia do direito integridade fsica muito mais amplo do que o

    36 O Cdigo de tica Mdica (Resoluo n. 1.246/88) veda ao mdico a prtica de qualquer ato atentatrio incolumidade fsica do ser humano, conforme previso nos seguintes artigos: 49. defeso ao mdico participar da prtica de tortura, ou outras formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruis, ser conivente com tais prticas e no as denunciar quando delas tiver conhecimento, 50. proibido ao mdico fornecer meios, instrumentos, substncias ou conhecimentos que facilitem a prtica de tortura ou outras formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruis, em relao pessoa; 53. Desrespeitar o interesse e a integridade de paciente, ao exercer a profisso em qualquer instituio na qual o mesmo esteja recolhido independentemente da prpria vontade.

  • 36

    apresentado. Mas a inteno primordial apresentar de forma sinttica a ntima

    ligao do direito integridade fsica com o direito sade e vida.

    Por sua vez, de suma importncia no que tange matria relativa aos

    transplantes, em especial quando realizados com doador vivo. Os transplantes de

    rgos e tecidos humanos constituem ato mdico considerado de carter

    excepcional. Contudo, o mdico deve agir com cautela e prudncia. Suas atitudes

    devem estar embasadas dentro dos mais altos critrios humanos, tico-mdicos e

    legais, sob pena de responder pela integridade fsica e morte do paciente.

    1.2.3. A atuao do mdico como promotor da vida e da sade

    A garantia individual do direito sade inicia-se na atuao do mdico,

    cabendo ao operador do direito, junto com o jurista, fornecer o arcabouo legal desta

    proteo. Porm, o descaso de alguns profissionais agravado pelas pssimas

    condies de trabalho, acaba por gerar diversos problemas na rea de sade que,

    infelizmente, tm sido enfrentados pela populao desde remotas eras, como

    observa Elida Sguin:

    Acredita-se que o ser humano esteja sobre a terra h aproximadamente

    70.000.000 a.C., tendo surgido na era mesozica. A histria surge por volta

    do ano 3.500 de anos, quando, entre os rios Tigre e Eufrates, ele se tornou

    citadino. Com a histria do homem surge o registro de sua peregrinao em

    busca da sade.37

    Como visto, o ser humano sempre se preocupou com sua vida, isto

    demonstrado por sua intensa ateno com a prpria sade. Infelizmente, incontveis

    so os exemplos de descaso dos governos, em diversas partes do mundo, com

    relao sade da populao.

    37 SGUIN, op. cit. p. 05.

  • 37

    Independentemente deste cenrio h necessidade de que o mdico pratique

    o seu mister com autenticidade, virtude e respeito que a profisso requer. Deve

    embasar os seus atos nos preceitos morais e ticos, assegurando o respeito

    dignidade do homem, repudiando-se qualquer possibilidade de trat-lo como um

    objeto material que possa trazer vantagens para finalidades obscuras.

    A atividade mdica na maioria das vezes ocorre em situaes que envolvem

    risco para a vida humana, devendo ser realizada com o mximo de segurana. de

    sua competncia, entre outras, transplantar rgos e tecidos humanos, questo cuja

    anlise ser abordada no decorrer desta pesquisa.

    Conforme ressalta Matilde Carone Slaibi Conti: Cuida o mdico dos

    momentos extremos e dramticos da vida como nascer e morrer.38

    Nos seus dizeres:

    O ato mdico mais enaltecedor do profissional que reconhece as suas

    prprias limitaes ou a dos equipamentos de que dispe para a conduo

    do caso e encaminha o paciente para um servio mais bem aparelhado em

    recursos humanos e tcnicos, que possa proporcionar-lhe o que de melhor

    a medicina possa oferecer-lhe.39

    Entende que: O mdico um ser humano, por vezes impotente diante da

    doena, todavia, obriga-se a agir com o mximo de zelo e o melhor de sua

    capacidade profissional.40

    O ato mdico s se justifica quando representa, em sua plenitude, um gesto

    de solidariedade e de apreo vida e sade. A profisso de mdico deve ser

    38 CONTI, Biodireito: a norma da vida, 1 edio, 2004, p. 10. 39 Ibidem, p. 11. 40 Ibidem, p. 9.

  • 38

    exercida conforme os preceitos ticos inerentes funo, e com observncia das

    cautelas necessrias ao bem-estar das pessoas.

    1.3. Sade Pblica

    Na definio da Organizao Mundial de Sade (OMS), sade se refere ao

    completo bem-estar fsico, mental, social e poltico, e no apenas ausncia de

    doena.

    A fim de viabilizar as condies plenas do direito sade, destacamos nesse

    sentido a Lei n. 8.080/90 organiza e estrutura o funcionamento dos servios de

    sade, denominada Lei Orgnica da Sade, em seu art. 3, assim diz:

    A sade tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a

    alimentao, a moradia, o saneamento bsico, o meio ambiente, o trabalho,

    a renda, a educao, o transporte, o lazer e o acesso a bens e servios

    essenciais: os nveis de sade da populao expressam a organizao

    social e econmica do Pas.

    Mediante tal definio, a sade no apenas a ausncia de doena, mas o

    resultado de adequadas condies de alimentao, habitao, saneamento,

    educao, renda, meio ambiente, transporte, trabalho, emprego, lazer e acesso a

    servios de sade.

    A medicina atua enfocando o indivduo, enquanto as medidas estatais na rea

    da Sade Pblica visam promoo e proteo da sade individual e coletiva. Sua

    atuao global, por meio de campanhas de vacinao em massa da populao

    infantil e idosa, saneamento bsico e campanhas de educao ambiental.

  • 39

    O atendimento s necessidades da populao em sade encontra seu ponto

    culminante na dignidade da pessoa humana. No sendo aceitvel que seja ultrajada

    e desrespeitada, sob o argumento de limites oramentrios entre outros.

    Compreende-se que ao Estado cabe disponibilizar todos os servios de sade

    existentes, inclusive os do campo da assistncia teraputica, tecnolgica e cientfica,

    e ainda o fornecimento de medicamentos. Por outro lado, entretanto, a funo

    principal do mdico curar ou prevenir doenas, valendo-se das mais diversas

    tcnicas disponveis. E, exatamente a que surgem questes que colocam em

    xeque a tica. At que ponto so vlidos todos os mtodos para que o mdico

    consiga atender satisfatoriamente s necessidades de seu paciente?

    Atualmente, tm sido comum debates sobre questes originadas da evoluo

    cientfico-tecnolgica, especialmente no tocante tica e dignidade do ser

    humano, como ser visto no captulo a seguir.

  • 40

    2. DA BIOTICA AO BIODIREITO

    No se pode falar de Biodireito sem discutir as questes ticas que envolvem

    a maioria dos problemas que surgem dentro, e fora das relaes teraputicas. Os

    direitos dos pacientes devem ser na tica do melhor e mais adequado procedimento

    mdico-cientfico.

    H necessidade de adequar o sistema jurdico s descobertas cientficas e s

    alteraes sociais, valendo-se de uma nova ordem jurdica, coerente com o

    momento atual da cincia Biomdica.

    Assim, para conceituarmos Biodireito, devemos antes dar uma idia do que

    seja Biotica, o que, por sua vez, exige a explanao da concepo de tica, e

    ainda, a distino do termo moral, se faz necessrio.

    2.2. tica

    A tica considerada a cincia do comportamento dos homens. Regula as

    relaes sociais e profissionais. Atuando como instrumento que baliza a conduta

    humana, dita o que certo e errado para voc e o outro. Tem como princpios o bem

    comum e a justia distributiva.

    Atualmente, os valores ticos esto em evidncia, como expressado por

    Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos41: A tica est na moda. E no sem razo.

    tica na poltica, movimentos pela tica. Cdigos de tica, Biotica, em toda parte

    nota-se uma presso em favor da tica .

    41 SANTOS, O Equilbrio de um Pndulo - Biotica e a Lei: Implicaes Mdico-Legais, 1998. p. 20.

  • 41

    Quanto sua etimologia42, a palavra tica vem do grego ethikos, a partir de

    ethos, que significa costume. Na concepo de Gabriel Chalita: parte da

    filosofia que estuda a conduta humana para se atingir o bem comum. Ela tambm

    chamada de filosofia da moral, ou simplesmente moral43.

    A tica no campo de atuao da filosofia preocupa-se com o estudo de

    valores e atos humanos; busca estabelecer os princpios e a conduta justos.44

    Encontramos diversas definies para o sentido da palavra tica: Trata-se de

    um conjunto de preceitos sobre o que moralmente certo, ou errado. Faz parte da

    filosofia dedicada aos princpios que orientam o comportamento humano.45

    Eduardo Carlos Bianca Bittar46, divide a tica em dois grandes ramos dando-

    nos uma viso didtica de suma importncia, como segue:

    tica geral: aquela que se detm na anlise e no estudo das normas

    sociais, aquelas que atingem a toda coletividade, e que possui lineamentos

    os mais abrangentes possveis, correspondendo ao conjunto de preceitos

    aceitos numa determinada cultura, poca e local no pelo consenso da

    populao, mas sim pela maioria predominante. A tica geral incumbir-se-ia,

    portanto, de tratar dos temas gerais de interesses ligados moralidade.

    Essa faceta da tica seria a mais aberta, e, por conseqncia, a mais

    abrangente, lidando com os interesses sociais de um modo geral.

    tica aplicada: esta segunda deter-se-ia na apreciao de normas morais e

    cdigos de tica especificamente localizveis na sociedade, uma vez que

    estes estariam relacionados ao comportamento de grupos, coletividades,

    categorias de pessoas, no possuindo a abrangncia da primeira. Essa

    faceta da tica, chamada tica aplicada, deter-se-ia no estudo qualificado

    (por um interesse especfico por ramos de atividade, grupo de pessoas

    envolvido...) de questes tico-sociais. So desdobramentos da tica

    42 Estudo da ORIGEM e da evoluo das palavras, HOUAISS, Antonio. Dicionrio da Lngua Portuguesa, 2 edio, revista e aumentada, 2004, p. 320. 43 CHALITA, Vivendo a Filosofia, 2 edio - ampliada, 2004, p. 65. 44 Ibidem, p. 6. 45 HOUAISS, op. cit. p. 319. 46 BITTAR, Curso de tica Jurdica: tica Geral e Profissional, 2002, pp. 16-17.

  • 42

    aplicada: a tica ecolgica, a tica profissional, a tica familiar, a tica

    empresarial.

    Vivemos tempos de concepes pluralistas, havendo diferentes

    interpretaes sobre os princpios e valores tico-sociais, no sendo mais aceitas

    idias absolutas. Tudo relativo, ocasionando crises de grandes dimenses.

    Na dico de Eduardo Carlos Bianca Bittar:

    (...) tica deve ser uma atitude reflexiva de vida, algo impregnado

    dimenso da razo deliberativa, em constante confronto com as inquiries,

    dificuldades, os desafios e problemas inerentes existncia em si. -se

    freqentemente interrogado pela existncia acerca dos modos de agir.

    Perceber isto perceber que est-se permanentemente revisando os

    modos como se intervm sobre a realidade, em geral, e sobre a realidade

    do outro, mais especificamente.47

    Cabe assinalar, ademais, nas palavras de Matilde Carone Slaibi Conti: tica

    o estudo do comportamento do homem em sociedade. o combustvel que

    abastece a sobrevivncia humana no planeta, com o senso de dignidade e da

    responsabilidade de uns para com os outros.48

    Fortes discusses vm ocorrendo na rea da sade decorrentes dos avanos

    mdico-cientficos, que tm sido to rpidos que o nmero de testes genticos

    disponveis, tanto para caractersticas normais como patolgicas, esto aumentando

    a cada dia. Enquanto questes ticas a ela relacionadas esto sendo debatidas no

    mbito acadmico, os laboratrios esto disputando a possibilidade de desenvolver

    e aplicar testes de DNA, pois do ponto de vista comercial os interesses so

    enormes.

    47 BITTAR, tica, Educao,... p.4. 48 CONTI, op. cit. p. 3.

  • 43

    O progresso baseado nos avanos tecnolgicos no deve cooperar para

    aprofundar as desigualdades sociais, menos ainda, servir de elemento para

    degradao do homem.

    Apesar dos aspectos positivos apresentados pelo desenvolvimento

    tecnolgico a sociedade no se sente segura de que o progresso cientfico possa

    resolver os problemas que resistem ao tempo. Desta forma, nunca foi to importante

    como atualmente, refletir e despertar para as questes e valores ticos essenciais,

    de modo a assegurar de maneira digna a plenitude do direito vida e a sade.

    2.2.1. tica e moral

    A idia do correto proceder como vimos recebe a denominao de tica. Seus

    conceitos so mutveis, variando de acordo com o contexto em que est inserido

    num dado momento.

    Quanto distino de tica e moral, podemos dizer que a primeira expressa

    uma ao do homem em suas relaes pessoais e sociais. Nesse desiderato, moral

    pode ser denominada como conjunto de regras de conduta desejveis num grupo

    social.49

    Na sociedade atual observa-se que coexistem diferentes morais baseadas em

    princpios diversos. Apesar de ambas as palavras serem originariamente

    semelhantes, foram adquirindo diferentes significados e compreenses.

    Historicamente a palavra tica sempre foi relacionada com a moral, em todas

    as suas manifestaes, como na cincia, e na arte. Os seus conceitos so variveis,

    e exterioriza-se de acordo com o tempo e o espao social.

    49 HOUAISS, op. cit. p. 505.

  • 44

    H doutrinadores que no distinguem o conceito e aplicao da tica e moral,

    e ainda colocam que a primeira atua na esfera terica e a segunda no campo

    prtico. Porm de acordo com o magistrio de Maria Celeste Cordeiro Santos, ao

    fazer uma abordagem desses termos expressa-se desta forma:

    tica e moral no so considerados perfeitamente sinnimos. Por moral

    entende-se um sistema de normas de conduta que visam regular a ao

    humana. Do latim mos, moris, que tambm significa uso, costume, maneira

    de viver. J a palavra tica, de origem grega, procede de ethos, que

    significa onde se habita, morada. Aponta esta palavra para a concepo de

    lugar privilegiado que tem o homem e que o distingue e qualifica. Nas

    lnguas latinas, no possumos um termo especfico para nos referir a esse

    sacrrio que cobia a moralidade. Utilizamos a idia de conscincia que no

    representa totalmente o mesmo. Posteriormente, a palavra ethos adquiriu a

    concepo de modo de ser, de carter.50

    Ainda na lio de Maria Celeste Cordeiro Santos: tica em sentido restrito

    a cincia do dever moral. Ela no um ideal a ser alcanado por um sujeito ideal.

    Est sujeita s leis da cultura e da moral.51

    Os atos ticos so inerentes ao ser humano. Podem ser livres, voluntrios e

    conscientes, sendo caracterizados pela forma como afetam as pessoas, o meio

    ambiente e/ou a coletividade.

    Quando se fala de tica e moral a diferena consiste, na medida em que a

    moral muitas vezes ligada a preceitos religiosos, comportamentos moralistas e

    normativos, que influenciam as relaes do homem com a sociedade.

    Conforme comenta Zygmunt Bauman

    50 SANTOS, O equilibrio..., pp. 30-31. 51 Idem.

  • 45

    De muitas coisas podemos afirmar que quanto mais delas se necessita

    tanto menos facilmente esto disponveis. Essa afirmao vale com certeza

    com respeito a normas ticas comumente acordadas, de que tambm

    podemos esperar que sejam comumente observadas: essas normas podem

    guiar nossa conduta em nossas relaes mtuas nosso relacionamento

    para com os outros e, simultaneamente, dos outros para conosco de sorte

    que possamos nos sentir seguros em nossa presena recproca, ajudar-nos

    uns aos outros, cooperar pacificamente e derivar de nossa presena mtua

    prazer no corrompido pelo medo ou pela suspeio.52

    Assim sendo, uma reflexo tica tem carter filosfico, religioso e

    sociolgico. Mantm uma perspectiva humanista e autnoma. Busca ver o homem

    em sua globalidade.

    2.2.2. tica e normas jurdicas

    Em cada sociedade, podemos encontrar diversas vises e correntes ticas e

    morais, no entanto apenas as normas jurdicas mantm uma unicidade, devendo,

    mesmo assim, disciplinar uma sociedade com tantas distines.

    Nas palavras de Paulo Nader53: O Direito no o nico instrumento

    responsvel pela harmonia da vida social. A Moral, Religio e Regras de Trato

    Social so outros processos normativos que condicionam a vivncia do homem na

    sociedade.

    Em sentido semelhante, conforme Joo Maurcio Adeodato54: Uma

    observao fenomenolgica da conduta humana em sociedade revela a existncia

    de quatro ordens normativas bsicas: a religio, a moral, os usos sociais e o direito.

    52 BAUMAN, tica Ps-Moderna, 2 edio, 2003, p. 23. 53 NADER, Introduo ao estudo do direito, 24 edio-Revista e atualizada de acordo como novo Cdigo Civil, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, 2004, p. 29. 54 ADEODATO, tica e Retrica: para uma teoria da dogmtica jurdica, 2002, p. 23.

  • 46

    Atualmente, vivenciamos grandes polmicas quanto tica envolvida na

    biotecnologia. Embora no haja ilegalidade no desenvolvimento da cincia, h um

    dilema tico, especialmente envolvendo os profissionais da sade. A deciso a ser

    tomada pelos mesmos dever ser baseada nos valores e princpios ticos, avaliando

    os riscos e os benefcios que envolvem cada caso.

    2.2.3. tica e normas deontolgicas

    A deontologia pode ser entendida como o tratado do dever ou o conjunto de

    deveres, princpios e normas adotadas por um determinado grupo profissional. A

    deontologia uma disciplina especial da tica, destinada ao exerccio de uma

    profisso. denominada normalmente de tica profissional.

    Existem diversos cdigos de deontologia, sendo esta codificao da

    responsabilidade de associaes ou ordens profissionais. Em geral, os cdigos

    deontolgicos fundamentam-se nas grandes declaraes universais e buscam

    traduzir o sentimento tico expresso nestas, adequando-os s particularidades de

    cada pas e de cada grupo profissional, prevendo sanes, segundo princpios e

    procedimentos explcitos, para os infratores do mesmo. Alguns cdigos no

    apresentam funes normativas e vinculativas, oferecendo apenas uma funo

    reguladora.

    No Brasil55, h diversas categorias profissionais, especialmente na rea da

    sade, que esto submetidas a normas deontolgicas, contidas em seus cdigos de

    55 Foram elaborados trs Cdigos de tica Mdica. O primeiro, de 1965, dava bastante nfase relao mdico-paciente e, particularmente, relao mdico-mdico. Esse Cdigo foi substitudo, em 1984, pelo Cdigo Brasileiro de Deontologia Mdica, que teve pouca vigncia e enfrentou grandes resistncias, pois era dotado de forte orientao paternalista. O atual Cdigo de tica Mdica (Resoluo CFM N. 1.246/88) teve sua publicao no Dirio Oficial da Unio em 26 de janeiro de 1988. (Marconi do Cato, Biodireito: Transplante de rgos Humanos e Direitos de Personalidade, p. 37).

  • 47

    tica. Tais normas padronizam a conduta para os profissionais em suas relaes

    com membros de sua prpria categoria, como tambm de outras, alm da sociedade

    em geral. No entanto, pode haver divergncias entre o cdigo tico de uma

    categoria com outras.

    Como leciona Paulo Antonio de Carvalho Fortes:

    Diferentemente do que ocorre em outros pases, como os Estados Unidos

    da Amrica, em que as normas deontolgicas so apenas orientaes

    diretivas para os profissionais de sade, pois estes no so obrigados a se

    filiarem s associaes de classe que as emitem, no Brasil as normas

    emanadas dos Conselhos de tica Profissionais tm poder coercitivo,

    estabelecem sanes quando de sua violao, sanes garantidas pelo

    poder estatal.56

    Embora os cdigos tenham como finalidade assegurar uma reserva moral ou

    uma garantia conforme com os Direitos Humanos, pode ocorrer perigo de

    monopolizao de uma determinada rea, grupo ou conjunto de profissionais, sobre

    questes relativas a toda a sociedade.

    Os conselhos de tica da rea da sade tm como objetivo preservar o

    desempenho tcnico e moral de seus afiliados. No Brasil obrigatria a inscrio do

    profissional de sade no rgo regional da categoria para regulamentar seu

    exerccio profissional.

    De acordo com Marco Segre e Cludio Cohen:

    a deontologia um estudo dos deveres de mdico (...) poderamos chamar a

    Deontologia Mdica de moral mdica, isto , o elenco das obrigaes que o

    mdico tem, porque assumiu, com o seu mundo profissional: o paciente, a

    famlia do paciente, a sociedade em geral, o colega, o Estado. (...)

    56 FORTES, tica e Sade. Questes ticas, deontolgicas e legais. 1998, p. 30.

  • 48

    Deceologia dikeos, em grego, significa direito ser a moral dos direitos.

    (...) a Deontologia a codificao dos direitos profissionais.57

    As crticas a esta forma de regulamentao da tica ocorre especialmente

    devido a normas deontolgicas, no raramente, privilegiarem apenas a parte do

    profissional, contrariando os anseios do cliente (ou paciente). Exemplo disso a

    omisso do mdico em informar ao paciente de seu real estado de sade, sob a

    alegao de que tal informao poderia causar danos ou prejuzos psicolgicos ao

    mesmo. H tambm quem acuse tais cdigos de tica de ocultarem

    comportamentos inadequados de seus afiliados, em prejuzo a toda sociedade.

    Apesar das dificuldades em se definir o que realmente pode ser adequado

    para o paciente, deve prevalecer o bom senso. E, no campo da sade, prudente

    observar, ainda, as recomendaes de Paulo Antonio de Carvalho Fortes.

    Quando so defrontadas duas opes, dever-se-ia pesar cada uma delas e

    escolher aquela que trouxesse mais benefcios ao maior nmero de

    pessoas e na qual fossem eliminados, evitados ou minimizados os danos, o

    sofrimento, a dor das pessoas envolvidas, ou seja, o que for considerado

    em oposio ao bem. Quando as conseqncias das alternativas

    possveis se equivalem no balano entre o bem sobre o mal, o agente

    tico tem direito moral de escolher entre qualquer uma delas.58

    Para os utilitaristas, o ato tico deve buscar o maior benefcio para o

    indivduo, o grupo ou a sociedade, muito embora nem sempre o que benfico para

    a maioria das pessoas, o seja para todas. Sempre haver excees.

    Nesse ponto, pode-se afirmar que medidas radicais dificilmente atendero ao

    princpio bsico da tica, pois tudo deve ser visto pelo prisma da relatividade. Os

    indivduos tm caractersticas fsicas, psicolgicas e sociais diferenciadas, devendo

    57 SEGRE & COHEN, Biotica, 2002, p. 31. 58 FORTES, op. cit. p. 32.

  • 49

    ser tratadas tambm de formas distintas, sempre visando ao bem-estar e

    preservao da sua dignidade.

    Os cdigos de tica mdica, adotados no Brasil, segundo Gabriel Oselka

    caracterizam-se por representar uma mescla de cdigo de moral que de alguma

    forma amplia e define a doutrina hipocrtica com o cdigo administrativo que

    regula com preciso muitos aspectos prticos da profisso.59

    Assim, as questes relacionadas com a tica, tem sido nas ltimas dcadas

    discutidas de forma calorosa nos diversos setores da sociedade. E, em especial na

    rea da sade, em razo das transformaes que passa o mundo, desencadeando

    no homem um temor de que ocorra uma fragilidade junto a valores tico-sociais, em

    razo dos grandes avanos cientficos e tecnolgicos que estamos vivenciando.

    Instaurou-se um debate no mundo no tocante questo cincia versus tica.

    Destarte, com a fuso da tica, e a intitulada cincia da vida, originou-se a

    Biotica. Responde pela integrao da cultura humanstica e das tcnicas cientficas.

    2.3. Biotica

    Atualmente utiliza-se muito o termo Biotica, palavra que possui um

    significado amplo, mas em sntese, definida por diversos doutrinadores como o

    estudo do comportamento moral do homem em relao s cincias da vida. Trata-

    se basicamente de uma aproximao entre a tica, medicina e a biotecnologia.

    59 OSELKA, O Cdigo de tica Mdica. In: SEGRE & COHEN, (orgs.), 2002, p. 63.

  • 50

    A Biotica ocupa-se dos aspectos ticos relativos vida e morte do homem.

    Tenta hierarquizar valores sociais, religiosos, mdicos, e legais na soluo de

    eventuais conflitos. Num sentido estrito significa a tica aplicada s cincias da vida.

    O direito vida, e morte digna uma abordagem presente desde o

    momento em que o homem consegue valorizar sua existncia e temer o seu fim.

    Assim tem a Biotica como campo de preocupao as intervenes mdico-

    cientficas; para tanto, estabelece limites ticos e morais dentro da ao cientfica,

    tendo sempre como paradigma a dignidade da pessoa humana, em todos os seus

    ciclos: concepo, nascimento e morte.

    Para Eduardo Carlos Bianca Bittar:

    A biotica , portanto, uma resposta a essas necessidades hodiernas,

    consistindo na avaliao crtico-moral dos avanos mdico-tcnico-

    cientfico, pode-se dizer que se constitui numa reao com vistas a

    estabelecer o compasso reflexivo e dialgico ao avano de tcnicas

    aplicadas e experimentais que sacrificam valores e conceitos humanos

    preexistentes ou recentemente adquiridos.60

    Dessa forma, a Biotica uma resposta tica nas questes suscitadas pelo

    desenvolvimento mdico-cientfico. Possui incidncia, especialmente nas cincias

    biomdicas. Trata de questes como clonagem, aborto, eutansia, transplantes,

    biossegurana e outras.

    Neste contexto examinaremos as questes pertinentes ao seu conceito,

    surgimento, caractersticas, e princpios, bem como passaremos brevemente pela

    sua diviso clssica em macrobiotica e microbiotica.

    60 BITTAR, Curso de tica...p. 94.

  • 51

    2.3.1. Conceito de Biotica e seus aspectos histricos

    O primeiro postulado tico-moral em cincia mdica surgiu com o

    pensamento hipocrtico, que apesar de no estar assentado em fundamentos

    jurdicos, tornou-se historicamente dogmtico no exerccio da medicina.

    A Biotica, filosoficamente, tem seus princpios baseados na autonomia do

    indivduo, na beneficncia, na no-maleficncia e na justia.

    Conforme assevera Marco Segre, a Biotica a parte da tica, ramo da

    filosofia, que enfoca as questes referentes vida humana (e, portanto, sade). A

    Biotica, tendo a vida como objeto de estudo, trata tambm da morte (inerente

    vida).61

    Historicamente a nomenclatura deste termo Biotica, atribuda ao

    oncologista e bilogo norte-americano Van Rensselder Potter, da Universidade de

    Winsconsin, em Madison, que a utilizou pela primeira vez em sua obra, intitulada

    Bioethics: bridge to the future (Biotica: uma ponte para o futuro), publicada no ano

    de 1971, dando-lhe inicialmente um sentido ecolgico. Para ele era importante criar

    um elo entre cincias biolgicas e valores morais.

    Mas conforme colocado por James Drane e Leo Pessini, para uma melhor

    compreenso do conceito de Biotica, necessrio se faz usarmos como referencial

    as definies contidas na Encyclopdia of Bioethics (Enciclopdia de Biotica), que

    assim dispe:

    61 SEGRE & COHEN, op. cit. p. 27.

  • 52

    1 edio 1978 como: O estudo sistemtico da conduta humana no

    mbito das cincias da vida e da sade, enquanto essa conduta

    examinada luz de valores e princpios morais. J na 2 edio - 1995,

    composta por cinco volumes, afirma-se que a biotica um neologismo

    derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (tica). Pode-se defini-la

    como o estudo sistemtico das dimenses morais incluindo viso,

    deciso, conduta e normas morais -, da cincias da vida e da sade,

    utilizando uma variedade de metodologias ticas num contexto

    interdisciplinar. E, por fim na 3 edio - 2004, biotica foi definida como o

    exame moral interdisciplinar e tico das dimenses da conduta humana nas

    reas das cincias da vida e da sade.62

    De acordo com o magistrio de Maria Helena Diniz:

    A biotica seria, em sentido amplo, uma resposta tica s novas situaes

    oriundas da cincia no mbito da sade, ocupando-se no s dos

    problemas ticos, provocados pelas tecnocincias biomdicas e alusivos ao

    incio e fim da vida humana (...), mas, constituiria numa vigorosa resposta

    aos riscos inerentes prtica tecnocientfica e biotecnocientfica (...), no

    tocante s pesquisas em seres humanos, como eutansia, engenharia

    gentica e outras.63

    So considerados dois fatores como principais responsveis pelo

    desenvolvimento da Biotica: a revoluo biolgica e o fortalecimento do movimento

    dos direitos humanos, pois as questes com as quais se relaciona, dizem respeito

    dignidade da pessoa, devendo ser a mesma o centro de todo e qualquer debate, por

    ser ela que sofrer os efeitos tanto benficos como, se o caso, os malficos, no

    podendo ser afastada de toda e qualquer deciso.

    nesse sentido que Eduardo Carlos Bianca Bittar, coloca como sendo a

    biotica uma resposta pragmtica a um contexto de mutaes em que o ser humano

    se v exposto ganncia intelectual, tcnica e economica do prprio homem64.

    62 DRANE & PESSINI, Biotica, Medicina e Tecnologia: Desafios ticos na fronteira do conhecimento humano, 2005, pp. 41-42. 63 DINIZ, O estado atual do biodireito, 2001, pp. 11-12. 64 BITTAR, Curso de tica...p. 94.

  • 53

    Quanto sua abrangncia, nas palavras de Marco Segre e Claudio Cohen, a

    Biotica pode ser dividida em dois ramos.

    Macrobiotica, que responsvel pela abordagem de matrias relativas

    Ecologia, com a finalidade de preservar a espcie humana no planeta, ou

    Medicina Sanitria, dirigida para a sade de determinadas comunidades ou

    populaes, e Microbiotica, voltada basicamente para o relacionamento

    entre os profissionais de sade e os pacientes, e entre as instituies

    (governamentais ou privadas), os prprios pacientes, e, ainda, no interesse

    deles, destas com relao aos profissionais de sade.65

    Referente a sua classificao temtica Maria Helena Diniz assim considera:

    a) biotica das situaes persistentes, se ocupar de temas cotidianos, que

    persistem desde que o mundo mundo, como aborto, eutansia, racismo,

    excluso social e discriminao; b) biotica das situaes emergentes, se

    relativa aos conflitos originados pela contradio verificada entre o

    progresso biomdico desenfreado dos ltimos anos e os limites da

    cidadania e dos direitos humanos, como fecundao assistida, doao e

    transplante de rgos e tecidos e engenheiramento gentico.66

    A biotica, nos ensinamentos de Matilde Carone Slaibi Conti67, tem