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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 8 (2016) - 01 - ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays (A. N. Oliveira Silva) - 25 - AMERINI, F. Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità (P. T. dos Santos Ferreira) - 34 - AREZZO, A. Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto scientifico della teologia (G. B. Vilhena de Paiva) - 48 - CROSS, R. Duns Scotus’s Theory of Cognition (G. B. Vilhena de Paiva) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG) Revisão: Gustavo Paiva

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ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 8 (2016)

- 01 -

ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays (A. N. Oliveira Silva)

- 25 -

AMERINI, F. Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità (P. T. dos Santos Ferreira)

- 34 -

AREZZO, A. Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto scientifico

della teologia (G. B. Vilhena de Paiva)

- 48 -

CROSS, R. Duns Scotus’s Theory of Cognition (G. B. Vilhena de Paiva)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu

Mazzola Verza (UFMG)

Revisão: Gustavo Paiva

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ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, xi + 298 p.

Allan Neves Oliveira Silva* ___________________________________________

Abu ‘Ali Ibn Sina (980-1037 d.C.) está entre as figuras que mais

influenciaram o pensamento medieval, estendendo-se por gerações de

pensadores em diversas áreas do conhecimento e cruzando fronteiras

linguísticas, étnicas e religiosas. Seu destacado alcance, de fato, reflete sua

maestria em catalisar, sintetizar e inovar o conjunto de ideias que preenchiam o

rico ambiente intelectual circunvizinho de Bukhara (cidade próxima de onde

nasceu, hoje Uzbequistão) e de Khurasan (território onde viveu maior parte de

sua vida, hoje parte do Irã), ambas situadas no que foi o antigo império persa. No

limiar do século XI, o movimento de tradução do grego ao árabe já havia

chegado ao seu fim com a quase totalidade do corpus aristotélico traduzido,

assim como boa parte dos chamados comentadores neoplatônicos gregos de

Atenas e Alexandria; a escola de Bagdá, empenhada em comentar e definir o

pensamento do Estagirita, já havia tido seu apogeu com al-Farabi (m. 950); e a

teologia islâmica (kalâm), que se engajava em temas caros aos filósofos como a

criação, atributos divinos e o porvir da alma humana, assim como o gnosticismo

ismailiano, que importou fortemente do neoplatonismo grego e de sábios persas,

estavam marcantemente em voga. O contexto em que viveu, entretanto, não

minimizou seu potencial, que, como ele aponta em sua autobiografia, se firmava

singular e prolífico desde cedo; mas, antes, o que produziu a partir dele o fez se

projetar historicamente até as fronteiras opostas do império islâmico com seu

diálogo com Averróis (m. 1198), indo daí para a Europa cristã – onde seu nome

latino, Avicenna, se fazia soar – e adiante, mostrando-se ilustre no mundo

islâmico até tempos recentes.

* Doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista do CNPq.

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A despeito da importância de Avicena, o relativo estreito leque de

pesquisas aprofundadas sobre suas doutrinas, a carência de edições críticas

apropriadas de suas obras e a ainda tímida abordagem compreensiva da

dimensão e extensão de sua influência se fazem sentir sobremaneira. A verdade é

que, considerando a magnitude de Avicena frente ao que contamos de material

sobre ele, temos em nossa frente um autor que ainda nos é estranho, revelando,

por efeito, o quando ainda é estranha ao próprio pesquisador da tradição

medieval a filosofia árabe islâmica. Tem havido, contudo, um crescente esforço

de estudo qualificado nas últimas décadas para aplainar tais lacunas. O livro

editado por Peter Adamson contribui em grande medida para isso. Trata-se de

uma coletânea de artigos redigidos por prestigiosos pesquisadores sobre as mais

diferentes facetas do autor, cobrindo também em boa dose seu legado. É um

título que apresenta a virtude de oferecer ao leitor de filosofia um panorama da

figura, doutrina e influência do pensador árabe de forma acessível e técnica,

localizando-o ao mesmo tempo no cenário atual de pesquisas e de disputas

interpretativas. Como aponta o próprio título, os escritos são ensaios críticos

que trazem a valiosa contribuição de fazer avançar as pesquisas sobre Avicena

com a apresentação de interpretações e informações originais, fazendo

contraponto ao que temos disponível e indicando ao estudioso da filosofia árabe

o caminho ainda a se trilhar.

As duas primeiras contribuições, de David Reisman1 e Dimitri Gutas2,

oferecem um acurado retrato do personagem na ambiência social, cultural e

intelectual em que estava inserido. Reisman destaca a importância crucial do

patronado para Avicena, primeiramente para sua própria formação filosófica e,

em seguida, para conseguir os próprios meios para redigir e para congregar seus

discípulos. O interessante é que o que faz com que Avicena seja adotado por

auxílio benfeitor de governantes e nobres não são (ao menos não inicialmente)

1 REISMAN, D. “The Life and Times of Avicenna: Patronage and Learning in Medieval Islam”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 7-27. 2 GUTAS, D. “Avicenna’s Philosophical Project”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 28-47.

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seus dotes filosóficos, mas o seu talento para curar. É este que lhe garante –

como narra em sua autobiografia – ocupar com a idade de 18 anos o posto de

médico na corte do governante samânida Nuh b. Mansûr, o qual lhe abre uma

biblioteca de rico e variado acervo. Reisman argumenta que essa adoção marca a

primeira de uma série de fases da produção filosófica do nosso autor, a saber, a

confecção sobretudo de compêndios em favor de seus protetores, tendo,

portanto, um modo de exposição próprio, mas que vem assinalar sua maturação

enquanto pensador autônomo (pp. 10-1). Esse foi um meio conveniente para

conseguir a estabilidade necessária para seu exercício intelectual, já que Avicena,

graças a sua autoproclamada e reconhecida capacidade autodidata, nunca esteve

filiado a um estabelecimento de ensino institucionalizado. Com isso, tem início a

sua fase de composição de obras pedagógicas para alunos que começaram a

agregar seus ensinos, as quais comportam um teor mais sistemático e

aprofundado. De fato, o progressivo conhecimento das obras do Estagirita –

mais primordialmente, do Organon – o faz se confrontar, em um primeiro

momento, com seus conterrâneos bagdadis, a quem acusa de não raciocinar com

exatidão segundo os princípios lógicos por eles próprios defendidos, e, em

seguida, com o próprio Aristóteles. Como aponta Reisman: “A interpretação

deles de Aristóteles e outros filósofos gregos conduziria em parte Avicena a

propor sua ‘filosofia dos Orientais’, que romperia com a prática servil de mero

comentário a Aristóteles” (p. 15). É nessa efervescência que tem início sua fase

de rivalidade e disputa, mesmo pública, com os sábios da época e sua firmação

enquanto autoridade. Um episódio marcante é a discussão de problemas lógicos

que Avicena protagoniza com o pensador bagdadi Abu l-Qasim al-Kirmani (pp.

14-9), que é intrigantemente apresentado pelo pesquisador em seu contexto de

turbulência política.

A fase de maturidade de Avicena é marcada pela composição de suas

duas maiores obras: Livro da Cura (Kitâb al-Shifâ’) e Indicações e notas (Al-Ishârât

wa-l-tanbîhât). Reisman ressalta que Avicena assume uma postura que se

caracteriza em três frentes (pp. 19-20): 1) seu embate com al-Kirmani e outros

adeptos da mesma Escola realça sua posição polemista contra os

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autodenominados “aristotélicos”; 2) o confronto é intelectualmente fundado,

visto que Avicena, reconhecendo a competência de Aristóteles, se presta a

mostrar a falência dos métodos e práticas de seus seguidores na própria

linguagem lógica – silogístico-demonstrativa – do mestre grego; 3) superando o

Estagirita e seus seguidores no próprio território deles, Avicena procede a firmar

sua filosofia de modo próprio não apenas em conteúdo, mas também em meio

de veiculação e divulgação para a comunidade intelectual. As duas primeiras

frentes são materializadas no Livro da Cura, onde Avicena, no Prólogo, menciona

explicitamente os bagdadis e adverte o leitor sobre seu projeto de remodelagem,

correção e superação do pensamento de Aristóteles de um modo sistemático e

coeso. Nesse ínterim, Avicena nomeia sua própria investidura de “oriental”

(mashriq), que, como esclarece Reisman, seguindo a aclamada tese de Gutas,

trata-se de um qualificativo geográfico que remonta à parte oriental (Khurasan)

do império islâmico, em contrapartida aos “ocidentais” de Bagdá. Avicena não

apenas inova em conteúdo, mas no gênero literário sem precedentes com o qual

apresenta seu sistema nas Indicações. Aí, o filósofo adota largamente o recurso

do entimema (argumento que elide uma das premissas) e omite as conclusões,

permitindo que o leitor a elas chegue através de uma das premissas e de

pequenas descrições ou apontamentos que lhes “indicam”. Com essa forma de

exposição, tinha-se em vista seu discipulado e iniciados, que deviam chegar à

verdade por um esforço próprio de inferência e raciocínio (p. 22). Reisman

aponta ainda que a produção não fez Avicena dispensar o patronado, e que, de

fato, mesmo nos anos finais de sua vida outros nobres o comissionaram, o que

redundou em escritos com diferentes modos de exposição (pp. 22-6). Fica claro

como a filosofia de Avicena foi construída em um cenário altamente dinâmico e

como isso afetou a estrutura formal de sua escrita, sem, contudo, interferir no

projeto autônomo de filosofia que ele desde muito cedo concebeu.

Gutas vem destacar com sua contribuição os constituintes desse projeto

e os elementos importados para sua realização. Informa-nos que,

fundamentalmente, Avicena contava com uma formação alinhada à tradição

aristotélica. Primeiro, porque tinha à sua disposição a maioria dos textos do

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Estagirita e boa parte de seus comentadores (esp. Nicolau de Damasco,

Alexandre de Afrodísia, Temístio, João Filopono), conhecendo apenas pouco e

indiretamente Platão. E, sobretudo, porque importou o currículo de ensino

filosófico da escola de Alexandria, principal e direta fonte grega dos árabes (pp.

29-30). De acordo com esse currículo, a lógica fomentaria a parte primeira e

propedêutica do conjunto restante das disciplinas filosóficas teóricas: física

(entende-se a física de Aristóteles e zoologia), matemática (i.e., quadrivium:

aritmética, geometria, astronomia e música) e metafísica. A partir daí se

seguiriam as disciplinas práticas como a ética e a política (p. 31). De fato, foi

exatamente nesta ordem que seu opus magnum, o Livro da Cura, foi redigido. Isso

porém, como enfatiza Gutas, não era um mero modo de divulgação organizada

do saber, mas, antes, era para Avicena o reflexo exato da estrutura da realidade.

Tal concepção lhe permitiu ir além da tradição que o influenciou. Como coloca

Gutas de modo significativo: “Ele foi o primeiro filósofo a escrever sobre todo

conhecimento filosófico (o que ele chamou simplesmente de al-‘ilm, conhecimento)

dentro de uma composição única como um todo unificado: ele desenvolveu a

summa philosophiae” (p. 32, suas ênfases).

Gutas nos apresenta ainda duas importantes teses. A primeira, já clássica

e aderida largamente pela comunidade acadêmica, é que a concepção aviceniana

da justaposição entre verdade científica e a estrutura ontológica é racionalmente

justificada através de um conceito nuclear e orgânico em seu sistema: hads (pp.

36-7). Abdicando da escolha em tempos anteriores de traduzi-lo como

“intuição” (intuition), Gutas opta por uma expressão mais neutra, “adivinhar

corretamente” (guess correctly), para descrever o vocábulo que Avicena usa

quando se refere ao ato intelectual de alcançar o termo médio no argumento

silogístico redundando na conclusão. Trata-se de um importe direto de

Aristóteles (Segundos Analíticos I.34), mas que Avicena usa de uma maneira

integrada em seu sistema de conhecimento, fazendo uso dele não apenas em

seus tratados, mas, de modo mais pessoal, em cartas a discípulos e na

autobiografia para descrever a aquisição do saber inteligível pela alma (inclusive a

dele próprio!) e o progresso científico do homem na história. É pela noção de

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hads, em outras palavras, que Avicena fornece de maneira racional, pois

silogisticamente fundada, o link entre o mundo, seus efeitos e causas, e o que

conhece o homem dele. A outra tese de Gutas, mais recente, vem chamar

atenção ao “empirismo racional” (pp. 39-40) do filósofo árabe. Tal expressão não

vem apenas a qualificar as marcantes e numerosas colocações sobre os sentidos

externos e internos, assim como sobre as premissas de experiência (tajriba;

mushâhâdât), mas também a noção de autorreflexão ou consciência (qadâyâ

i‘tibâriyya) que é famosamente exposta pelo argumento do homem suspenso no

ar, uma experiência de si. Para Gutas, esses elementos sustentam o eixo empirista

da filosofia aviceniana, que, de certo modo antecipa o que veremos em John

Locke, e que varre qualquer carga exegética forte da terminologia emanacionista

– ou, antes, neoplatônica – ou quiçá inatista que emprega. Uma leitura similar é

oferecida por Deborah Black nesta coletânea.

Pela noção de hads estar essencialmente integrada com a concepção

silogística do mundo, o artigo de Tony Street3 na coleção, intitulado Avicenna on

the Syllogism, vem agregar a nosso entendimento esse tema fundamental na obra

lógica do autor. Street nos mostra como Avicena sofistica aspectos da teoria da

proposição e demonstração aristotélicas dialogando fortemente com a tradição e

se desvinculando dela. No que tange à proposição, uma questão bastante

disputada era sobre como compreendê-la na ausência de um operador modal,

isto é, de um termo que define a necessidade, possibilidade ou impossibilidade da

afirmação ou negação expressa no enunciado (pp. 54-5). Tal condição “absoluta”

(mutlaqa), que caracteriza a ausência do operador, foi diferenciada por Avicena

em proposição “absoluta geral” (mutlaqa ‘amma) e “absoluta especial” (mutlaqa

khassa). Tomemos o exemplo de um enunciado universal afirmativo como “Todo

A é B”. Como o componente modal não é expresso, ela pode ser lida de modo

geral, como “Todo A é ao menos uma vez B”, ou de modo especial, como

“Todo A é ao menos uma vez B e ao menos uma vez não-B”. Ao inserir

operadores temporais para discriminar proposições desprovidas de modalidade,

3 STREET, T. “Avicenna on the Syllogism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 48-70.

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Avicena, segundo a interpretação proposta por Street, estabelece novas

condições de verdade para elas. Assim, as contrárias “Todo A é B” e “Nenhum

A é B”, embora tenham qualificadores opostos, podem ser verdadeiras, já que,

sendo uma delas tomada em sentido especial, A está ao menos uma vez incluso

no domínio de B e ao menos uma vez no de não-B. Neste “ao menos uma vez”,

Avicena implica, de modo amplo, não apenas a possibilidade, mas a

potencialidade, do que é A realizar-se ou de existir como tal (wujûd), como B (tal

como na proposição absoluta “Todo homem morre”). A divisão proposta está

emoldurada em uma ontologia e, portanto, tem uma aplicação que extrapola sua

lógica alcançando a metafísica (p. 58). No que concerne à demonstração, Avicena

confronta a chamada “regra da mais fraca” defendida por Teofrasto, segundo a

qual a força de uma conclusão em um dado silogismo é definida pela quantidade,

qualidade e modalidade do que é expresso na mais fraca das premissas. Avicena

contesta isso argumentando que a força da conclusão é definida pelo que

expressa a premissa maior com algumas exceções reconhecidas. Essa teoria será

criticada por lógicos posteriores, em especial pela adesão da ontologia à lógica

modal. Como pontua Street: “Avicena está construindo sua lógica modal em

torno de insights quanto a naturezas e as diferenças essenciais entre naturezas

que são reveladas pelas potencialidades diferentes e constituintes” (p. 62).

Adotados ou criticados, seus desenvolvimentos no campo da lógica têm um

tremendo impacto entre os filósofos árabes posteriores (pp. 63-5). Street ainda

fornece ao leitor, como apêndice, um guia bibliográfico bastante útil das obras

lógicas de Avicena incluindo estudos especializados sobre a temática (pp. 67-70).

Seguindo a ordenação do saber concebida por Avicena, depois da lógica, a

filosofia da natureza é colocada em escrutínio, a começar por Jon McGinnis4, que

analisa conceitos fundamentais da Física (al-Tabî‘iyyât) da Cura, em contraste com

a tradição peripatética. O primeiro deles é o de movimento (haraka), sobre o

qual Avicena estabelece dois sentidos por meio de uma distinção que é estranha

a Aristóteles. Um deles é o sentido que se tem na imaginação (khayâl), pelo qual

4 MCGINNIS, J. “Avicenna’s Natural Philosophy”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 71-90.

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é apreendido que um determinado corpo se deslocou de um ponto a a um

ponto b em determinado tempo t. Nessa perspectiva psicológica, o movimento é

um processo visto como acabado, já que visualiza o corpo movido sob uma

contagem temporal com início e fim. Quando trazido ao mundo concreto (fî al-

a‘yân), entretanto, onde o tempo cede estritamente lugar ao instante (sua fração

indivisível), o movimento é dimensionado em sua dinâmica de processo que se

realiza. Avicena conecta a noção de instante à de movimento, afirmando que há

movimento em um instante. Enquanto que tal afirmação parece contraintuitiva

por sugerir a violação da lei de contradição, Avicena responde a isso

reendossando ao seu leitor a distinção feita entre os sentidos de movimento: a

contradição existiria, de fato, se compreendêssemos t¹ e t² em um instante, uma

compreensão fundada no nível psicológico, mas entender o movimento

radicalmente na perspectiva extramental significa que, se um corpo se move, ele

se encontra em um estado x em um instante, e, necessariamente, em um estado

y em um instante seguinte (pp. 72-5). A distinção de perspectivas entre a

psicológica ou conceitual e a concreta ou física também desempenha um papel

crucial na reflexão de Avicena sobre o contínuo e o átomo, pois ele admite que

o contínuo – um composto material uniforme – pode ser potencialmente

dividido ao infinito, mas isso só enquanto experiência de pensamento. No que

tange à divisibilidade do corpo físico do domínio concreto, contra o que pensa

Aristóteles, isso seria impossível (pp. 75-8). Ao contrário do que as expectativas

poderiam indicar, porém, dessa mesma arquitetura teórica também uma vigorosa

refutação do atomismo é ensaiada, atomismo este reinante e racionalmente

sustentado pelos teólogos islâmicos (mutakallimûn) asharitas. Isso porque estes

não endossam apenas a existência de uma parte indivisível da matéria (com o que

concordaria o filósofo persa), mas, no que sustentam, a noção de átomo

compreende também a indivisibilidade conceitual. McGinnis nos apresenta a

refutação aviceniana a essa possibilidade pelo argumento de agregação (ta’lîf):

para um corpo se constituir enquanto uma magnitude espacial única é necessário

que suas partes se agrupem, se conglomerem quantitativamente de modo a

formar um corpo qualquer. Mas isso não seria possível se eles fossem

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conceitualmente indivisíveis, pois, teoricamente, eles não teriam limites (então,

partes), o que é indispensável para que a sobreposição de um componente a

outro dê origem a um todo físico (pp. 78-81).

Na categoria da qualidade e da substância com relação aos compostos

físicos, Avicena exibe o impulso criativo que o deixou conhecido enquanto

filósofo da natureza. A relação entre os elementos naturais (terra, água, ar, fogo)

com as qualidades sensíveis primárias (frio-quente, seco-úmido) é bem delimitada

por nosso autor, que argumenta contra a natureza substancial dessa relação,

defendida por alguns comentadores aristotélicos gregos, e contra a ideia de que

a origem dos elementos naturais ocorre em virtude do grau extremo que suas

respectivas qualidades sensíveis atingem – a água sendo resultado dos extremos

do úmido e do frio, etc. A respeito deste último, Avicena contra-argumenta que,

fosse esse o caso, não seria possível nomear água este elemento que pode tanto

congelar quanto entrar em ebulição. De fato, também a transição da água para o

ar, ou qualquer outra mudança substancial, isto é, a mudança que envolve a

passagem de uma forma substancial a outra, marca o contexto em que Avicena

recorre ao que ficou conhecido no mundo latino por dator formarum, uma feliz

tradução de wâhib al-suwar, “doador de formas”. Trata-se de uma inteligência

celeste separada (o intelecto agente de suas obras psicológicas) que fica

responsável por emanar a nova forma substancial sempre que o composto

estiver preparado ou predisposto para tal. É a causação metafísica fortemente

presente para explicar fenômenos físicos (pp. 86-8).

O artigo de Peter Pormann5 traz luz a um campo basilar do pensamento

aviceniano ainda por muito a ser explorado e que lhe rendeu um epíteto de

peso, o de médico. Avicena não apenas teorizou, enquanto filósofo e médico,

sobre a medicina (tibb), mas também a levou ao domínio prático, cujo exercício

desde cedo, como dito, lhe garantiu acesso à elite política e intelectual. Sua

reflexão sobre ela no campo filosófico consiste, do ponto de vista mais amplo,

5 PORMANN, P. “Avicenna on Medical Practice, Epistemology, and the Physiology of the Inner Senses”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 91-108.

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em classificá-la no quadro de disciplinas do saber. Neste quesito, Pormann

esclarece, o espaço que a medicina ocupa oscila desde ser uma ciência natural

derivativa (al-hikma al-tabî‘iyya al-far‘iyya) na Epístola sobre a Divisão das Ciências

(Risâla fî Aqsâm al-‘ulûm) até, na tardia Os Orientais (al-Mashriqiyyûn), a de possuir a

condição mais periférica de ciência corolária ao lado de astrologia e agricultura

(p. 93). Enquanto médico, Avicena escreve sobre essa ciência na introdução do

massivo Cânon de Medicina (Al-Qânûn fî al-tibb), classificando-a nas dimensões

teórica (nazarî) e prática (‘amalî). O médico compreende e lida com os

elementos, misturas e humores que constituem os organismos físicos, suas

faculdades e partes anatômicas, os compostos que reagem e interagem com eles

(comida, bebida etc.), e os que trazem ao equilíbrio e à cura, preservando sua

saúde. Esse é o limite de sua atuação; ir além, isto é, buscar pela causa daquilo

que constitui seu campo de atuação é trabalho do filósofo, do filósofo da

natureza. (p. 94). Na terminologia utilizada podemos notar a ressonância de

Galeno, que foi bem conhecido nas terras islâmicas. De fato, declara Pormann,

Avicena desenvolve a dimensão empírica da ciência médica, tão marcada pela

tradição grega, e enfatiza a noção de experiência (tajriba), meio pelo qual ele, de

modo qualificado e organizado, orienta o teste de drogas ou medicamentos em

faculdades orgânicas diversas e registra seus efeitos (pp. 98-99).

É interessante observar como Avicena combina, de modo apurado, suas

visões de médico e filósofo em temas que se tocam, e nenhum outro se faz mais

influente que o dos sentidos internos (al-hawâss al-bâtina) da alma. Trata-se das

faculdades anímicas que lidam com os dados sensíveis uma vez que eles são

percebidos e veiculados pelos órgãos externos. Nelas repousa o limiar da

questão entre corpo e alma e sua interação. Como nos informa Pormann,

Galeno foi peça de leitura importante, mas também o foram Posidônio e o

cristão Nemésio de Emesa (ambos do século IV d.C.), que propagavam suas

reflexões quanto à centralidade do cérebro na relação corpo-alma a partir da

notória descoberta dos nervos feita pelos gregos (pp. 102-3). Avicena aprofunda

essa gama de conhecimentos e define cinco sentidos internos para a alma, que

estão sediados em três ventrículos cerebrais – frontal, médio, dorsal – e que

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sofrem quando suas específicas sedes corpóreas são danificadas, como consta no

De anima (Kitâb al-Nafs) da Cura. Com efeito, a razão de 5:3, em vez de 3:3, é

apenas detectada pelo filósofo e passa despercebida ao médico. A função de

perceber noções derivadas dos dados sensíveis difere da função de armazená-las,

o que exige a duplicação das faculdades perceptivas: o sentido comum (al-hiss al-

mushtarak) e a estimação (wahm), a última das quais se fez bem conhecida na

tradição latina (pp. 105-7). Pormann nos mostra ainda como passagens textuais

sobre sentidos internos na obra médica e na filosófica de Avicena se sobrepõem

mostrando seu nível de sistematicidade e a base empírica de que fazia uso para

fundamentar suas proposições teóricas.

Ascendendo das faculdades internas corpóreas ao nível intelectual, Dag

Hasse6 nos apresenta seu escrito em contornos polêmicos, tratando do mais

debatido tema da epistemologia aviceniana. O problema é fundamentalmente

exegético, pois Avicena em diversas obras explica sua teoria da intelecção, ou

aquisição das noções (s. ma‘nâ) ou formas inteligíveis (s. al-sûra al-ma‘qûla),

empregando dois arcabouços terminológicos que advêm de tradições diferentes

e que são aparentemente contraditórios. Ele, em certos momentos, explicita que

o intelecto (‘aql) humano alcança as formas inteligíveis por um procedimento de

abstração (tajrîd) sobre as formas sensíveis (s. al-sûra al-mahsûsa) que estão

armazenadas na imaginação, despindo-as completamente da materialidade que as

torna particulares. Entretanto, em outras ocasiões de uma mesma obra, a

aquisição intelectual humana é descrita como o resultado da emanação (fayd) dos

conceitos universais a partir do intelecto agente (al-‘aql al-fa‘‘âl), que é uma

inteligência celeste separada do mundo natural, quando quer que o intelecto

humano esteja pronto ou disposto para tal. Emerge, pois, a questão: de onde

vêm os universais inteligíveis, e como precisamente o ser humano os adquire?

Hasse, na primeira metade de seu artigo, realça as tradições – respectivamente,

aristotélica e neoplatônica – sobre as quais são baseadas as diferentes descrições

oferecidas por Avicena mostrando a correspondente segmentação em duas

6 HASSE, D. “Avicenna’s Epistemological Optimism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 109-119.

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correntes de leituras pela bibliografia especializada, correntes que, de modo

geral, ao aderir a uma das descrições, classifica a outra como apenas metafórica.

Essa foi a postura do próprio Hasse anos atrás em favor da leitura abstracionista,

e que ele, na segunda metade, tenta ajustar para comportar o vocabulário

emanacionista.

Hasse explora a distinção feita por Avicena (cuja origem remonta a

Alexandre de Afrodísia) entre as formas que se encontram na matéria e as

abstratas, estas sendo os existentes separados, inteligências celestes e Deus (pp.

114-5). Ademais, as mesmas essências ou quididades que se encontram unidas à

matéria enquanto formas do composto natural existem em um estado abstrato

(mujarrad) no intelecto agente separado. Se as formas são naturais, o vocabulário

da abstração para as adquirir de modo imaterial, universal, está justificado e

endossa ainda uma vez mais o empirismo com o qual se compromete Avicena.

Mas, e quanto à emanação e às formas abstratas no intelecto agente? Hasse

argumenta que, ao sustentá-las, um outro problema é visado, qual seja, não a da

fonte primeira dos inteligíveis alcançados pelo indivíduo cognoscente, mas a da

origem última deles e, portanto, sua proveniência de ser. Desse modo,

“[e]pistemologicamente, o modo normal de adquirir as formas universais é a

abstração dos particulares, mas ontologicamente as formas vêm do intelecto

agente” (p. 115). O emanacionismo, Hasse destaca, desempenha ainda um papel

específico na teoria do conhecimento de Avicena, que é o de responder às suas

interrogações sem precedentes sobre a existência de uma memória intelectual

na alma. Um tal repositório para os inteligíveis é rejeitado longamente no De

anima em razão 1) da materialidade do corpo que não pode comportar a

imaterialidade de noções abstratas e 2) de o intelecto humano, imaterial, não

poder conservar aquilo que pensa, pois, ao se encontrarem em um substrato

(mawdu‘) intelectual, elas devem ser pensadas em ato. Aqui notamos a distinção

cara ao nosso autor entre percepção e preservação, o intelecto agente

aparecendo como o substrato no qual os inteligíveis abstraídos pelo homem são

“armazenados” e eternamente inteligidos em ato. Para Hasse, a teoria da

emanação vem exatamente resolver o problema da memória intelectual e

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preservar o homem de, para reaver noções já adquiridas, ter de se engajar em

uma nova e laboriosa busca empírica com seus correlatos processos cognitivos

(pp. 116-7). Nessa tentativa de interpretação conciliatória, então, o intelecto

agente é inexistente na aquisição primeira pelo homem dos inteligíveis e vem, de

modo auxiliar, resolver um problema que o próprio Avicena detectou. Estando

exclusivamente a encargo e em poder do homem adquirir as noções universais

por si próprio, estamos, finaliza Hasse, frente a uma complexa teoria que, porém,

resguarda um “otimismo epistemológico” (p. 119), expressão que dá título ao

artigo.

A investigação sobre a epistemologia continua com Deborah Black7, que

explora as diferentes proposições de conhecimento classificadas por Avicena

segundo a noção de assentimento (tasdîq), que está ultimamente ancorada no ato

elementar da alma de reconhecimento de sua própria existência, exemplificado

pela famosa experiência de pensamento do homem suspenso no ar. O filósofo

nos oferece uma extensa lista (Black enumera 11, p. 124) de tipos de

proposições que variam em grau de certeza (yaqin), desde as autoevidentes,

como proposições matemáticas simples (“O todo é maior que a parte”), até as

baseadas em testemunhas (“A torre Eiffel está na cidade de Paris”), ou que nos

são ditadas por opiniões geralmente aceitas e autoridades (“Mentir é mau”). A

força epistêmica de tais proposições, em seus distintos graus, nos declara

Avicena, se afastando da tradição aristotélica, não está na necessidade (ou

contingência) lógica que elas transmitem enquanto objetos cognitivos, mas é

diretamente proporcional ao ato do indivíduo cognoscente de assentir à

informação que se lhe apresenta. O assentimento, conceito central aqui, se

refere ao ato mental de conferir valor de verdade ao objeto conceitualizado de

conhecimento (tasawwur). A certeza stricto sensu é retratada como o grau

máximo de assentimento a uma dada proposição. Avicena parece flertar com o

inatismo quando admite que as proposições de primeiro tipo, as matemáticas,

7 BLACK, D. “Certitude, Justification, and the Principles of Knowledge in Avicenna’s Epistemology”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 120-142.

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são acessadas pela “inteligência natural” (fitra) de modo “inato” (gharîza) e

“imediato” (fi l-hâl). A despeito desses designativos sobre aquelas proposições,

Black esclarece que ele os emprega apenas para designar que “a aquisição delas

requer nada mais do que a concepção de seus termos” (p. 126). Sua atitude de

conectar a força epistêmica com a realidade intrínseca do indivíduo cognoscente,

que detém sua certeza primeira e imediata na autoconsciência (um campo

promissor de estudos), permite render-lhe, segundo Black, o título de

fundacionalista moderado (p. 123), possuindo sugestivas aproximações com Kant

(p. 127).

Vale ressaltar que também os princípios éticos são compreendidos no

enquadrinhamento epistemológico oferecido por nosso autor, e que, portanto,

se o rigor lógico e a investigação empírica a eles não chegam no mesmo teor que

a outras premissas do saber, seu estatuto de verdade não chega senão até onde

o indivíduo consegue assentir. Em outras palavras, proposições como “Mentir é

mau”, ou as ditadas por autoridades religiosas e círculos sociais, por não

poderem ser verificadas seja racionalmente, seja empiricamente, têm a força

dada apenas pelo consenso comunitário ou veiculado pelos instrumentos sociais

de poder. Analisa Black: “O bem e mal dos atos humanos não podem ser

intuídos intelectualmente, mas, antes, o reconhecimento deles é condicionado

pela educação, pelo temperamento individual do agente moral e experiência, e

por várias outras influências sociais. Avicena não vê isso como problemático ou

relativista” (p. 136). Temos aqui uma das poucas reflexões ainda existentes sobre

a ética em Avicena, que neste quesito estava em conflito com os teólogos

mutazilitas, para os quais as noções de bem e mal têm uma realidade em si que

pode ser apreendida intelectualmente pelo homem.

A metafísica (mâ ba‘da al-tabîa) é o tema tratado por Stephen Menn8, que

explora pontos doutrinais face às influências que Avicena recebeu para elaborá-la

enquanto a ciência magna que coroa seu sistema de filosofia. E nenhuma figura se

fez mais importante em seu empreendimento do que al-Farabi, que escreveu

8 MENN, S. “Avicenna’s Metaphysics”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 143-169.

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sobre a finalidade da Metafísica de Aristóteles, sua composição e importância

para as outras ciências em Sobre os Objetivos da Metafísica de Aristóteles. A

tradição peripatética via dificuldade (e se vê ainda hoje) de conciliar os dizeres de

seu mestre segundo os quais a ciência da metafísica estuda o ser enquanto ser e

seus atributos per se (livro gama) com os de que seu tratamento concerne a

Deus, primeiro motor, e às substâncias imateriais separadas (livro lambda). Al-

Farabi engenhosamente concilia ambas as colocações fazendo uma distinção

fundamental na universalidade e imaterialidade dos objetos de que trata essa

disciplina: ela não estuda apenas o conceito mais universal, isto é, existente

enquanto existente, e seus correlatos, mas também investiga o ente mais

universal, causa de todas as coisas, Deus (p. 145). Avicena adota tal reflexão que

concilia nesta ciência universal, respectivamente, o título de “filosofia primeira”

(al-falsafa al-ûla), ignorado pelos primórdios da falsafa com al-Kindi, com o de

“teologia” (al-ilahîyyât). Esse projeto é arquitetado por Avicena com um ponto de

partida, o sujeito (mawdû‘) – o existente enquanto tal –, cuja existência não

precisa ser provada por se tratar de uma verdade elementar alcançada de modo

necessário e imediato pela alma, e um ponto de chegada, o objeto (matlûb) –

Deus –, cuja existência deve ser provada. Diversas noções como as de quididade,

unidade (que recebe importante parcela de atenção por Menn), causalidade,

universais, atributos divinos, profecia e vida futura, delineiam o campo de atuação

dessa ciência.

O ponto em que a metafísica aviceniana mais radicalmente difere da

aristotélica é que para o filósofo árabe (esse é, de fato, um consenso que resulta

da veia neoplatônica da escola de Bagdá) Deus, a causa primeira, não é o

primeiro motor, nem mesmo é motor ou causa de movimento, mas trata-se,

antes, da causa de existência (p. 146). Quanto à noção de existente enquanto

existente, Avicena a esquadrinha com um sofisticado arcabouço metafísico que

importa e dialoga com o que é propriamente encontrado já em terras islâmicas.

A noção de existente é tratada e relacionada com outras noções primeiras como

“coisa” (shây’) e “um” (wâhid). Mais notadamente, é analisando a própria

constituição metafísica do existente que a aclamada distinção entre quididade ou

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essência (mahîyya) e existência (wujûd) tem seu lugar na metafísica aviceniana.

Neste quesito, Menn aponta de modo bem argumentado o débito existente para

com o Livro das Letras (Kitâb al-Hurûf), de al-Farabi, (uma obra crucial que poucos

estudam), e as obras do cristão jacobita Yahya ibn ‘Adi (m. 974). Menn sugere

que há uma correlação entre os conceitos de “existência afirmativa” (al-wujûd al-

ithbâtî) – que é usado por Avicena para expressar a realização ou instanciação da

quididade na alma, enquanto conceito, ou no mundo enquanto ente natural – e

“existência própria” (al-wujûd al-khâss) – que descreve a condição da quididade

por si mesma, desconsiderando qualquer instanciação sua – os quais remontam a

uma distinção feita por al-Farabi na referida obra (pp. 151-3). A existência

“afirmativa” se diferencia, como dito, entre o ser da quididade no mundo

exterior e na alma. Mas Avicena admite na Metafísica V.1 da Cura uma outra

existência da quididade – enquanto tomada em si mesma (e que está relacionada

com a existência própria) – que é a chamada “existência divina” (al-wujûd al-ilâhî).

Esta é uma noção já presente em Yahya ibn ‘Adi, mas que recebe outras

conotações em Avicena, que rejeita a independência ontológica separada das

quididades proposta por Ibn ‘Adi, pressuposto das formas platônicas (pp. 154-5).

Cumpre ainda notar que, contra as formas platônicas, Avicena incrementa sua

“maquinaria metafísica” com raciocínios que serão empregados em sua doutrina

dos universais e em sua argumentação de Deus enquanto existente necessário

(wâjib al-wujûd), a qual Menn sugestivamente aponta como sendo inspirada nas

Quaestiones II.28 de Alexandre de Afrodísia (pp. 158-9, n. 30).

Peter Adamson9 dá sequência à investigação metafísica explorando um de

seus pontos mais elevados, a prova da existência de Deus. De fato, a motivação

de sua contribuição se baseia em uma constatação aguçada: a famosa prova que

conduz à afirmação de um existente necessário, isto é, cuja existência deve

somente a si mesmo sem qualquer apelo exterior, não se constitui na prova de

Deus, pois este inclui atributos que não são imediatamente evidentes na noção

de wâjib al-wujûd, lit. “necessário de existência”. Em outras palavras, como

9 ADAMSON, P. “From the Necessary Existent to God”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 170-189.

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Avicena passa da noção de ser necessário por si para a de um ser que é

incausado, uno, causa primeira, intelecto, bom, generoso? Ele mesmo se mostra

consciente da necessidade de explicar essa investida, pois desenvolve uma

estratégia argumentativa (por ex. na Metafísica da Cura VIII.7) para chegar aos

atributos divinos, reconhecendo que, além da própria necessidade de existência,

e partindo dela, ele pode ser descrito (wasf) por meio de negações e de relações.

Adamson salienta essa estratégia e sugere um modo mais esquemático de

compreendê-la que faz referência a um traço interno e a um traço externo da

divindade (pp. 174-5).

Segundo Adamson, a extração de atributos por meio de negações e

relações é uma estratégia prefigurada na própria noção de existência necessária.

Quando Avicena trata do ser necessário, ele trata de um ente que tem e deve a

si mesmo sua existência ou, em outras palavras, não tem uma causa que o faça

existir (o traço interno). Por sua existência, chegamos então imediatamente a

seu caráter de ser incausado, um atributo negativo que serve de base para outras

negações. Por outro lado, as relações que o necessário de existência possui

remonta a algo outro que si mesmo (o traço externo), e que acaba por ser –

dado que, como Avicena argumenta, não há senão um ser necessário por si

mesmo – seu efeito: o caráter de ser causa se revela, pois, um atributo que serve

de base para outras relações. Adamson, então, expõe como esse esquema opera

na enumeração dos atributos de unicidade (pp. 177-9), simplicidade (179-81),

inefabilidade (pp. 181-2), intelecção (pp. 183-5) e bondade (pp. 185-8), este

último aparentemente o mais distante de ser extraído, mas que está firmemente

ancorado no estatuto de Deus enquanto causa e, portanto, na relação que possui

com seus efeitos. Deus, por portar e ser a própria existência, é a perfeição que,

em vez de contentar-se em retê-la apenas para si, distribui-a, ao criar, a todas a

suas criaturas. Isso situa Deus, para Avicena, “acima da perfeição” (fawqa al-

tamâm). Adamson observa que essa mesma expressão é empregada na pseudo-

Teologia de Aristóteles, mas no filósofo árabe vem acomodar um significado

diferente: o que assinala Deus como causa por excelência, como doador de

existência (p. 187).

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Os três artigos que finalizam a coletânea traçam um painel geral da

fortuna de Avicena nas tradições árabe-islâmica, judia e latina. Robert

Wisnovsky10 assume a tarefa de delinear o campo mais obscuro e complexo de

estudos do nosso autor, trilhando pelo oriente (fora, portanto, do ofuscamento

causado pela ascensão e legado de Averróis na Andaluzia) o caminho desde a

morte de Avicena, atravessando os séculos até a era contemporânea.

Primeiramente, o que fica manifesto é que, no oriente, Avicena foi tomado como

paradigma filosófico reinante, e Aristóteles foi quase que totalmente deixado de

lado, pois o primeiro, além de desenvolver todos os pontos do pensamento

deste, ainda agregava e discutia temas caros à agenda islâmica, como Deus, suas

provas e seus atributos, criação do mundo e profecia. Baseado nisso, a postura

dos filósofos e intelectuais em relação a sua filosofia foi tripla: a de adesão total, a

de aceitação com ajustes e transformações e a de completa rejeição (pp. 193-7).

Wisnovsky pioneiramente explora o primeiro grupo que mostra a ascensão de

um verdadeiro “avicenismo”, que explicava e defendia as ideias de seu mestre.

Acontece que Avicena, por brilhante que tenha sido, não era infalível, de modo

que em certos temas de extrema importância seu pensamento não se mostrava

claro o suficiente ou antes era assomado de inconsistência, já que eram tratados

aparentemente de maneira diferente em obras distintas. Isso fez com que seus

seguidores empreendessem um esforço de conciliar Avicena com ele mesmo –

um esforço similar, alude Wisnovsky, ao que filósofos gregos do período

helenístico fizeram com Aristóteles (pp. 199-202). Com isso visava-se blindar a

filosofia de Avicena contra seus críticos, que não eram poucos. Ainda assim,

entretanto, mesmo o mais destacado dentre eles, al-Ghazali (m. 1111), que

escreveu a Incoerência dos filósofos (Tahâfut al-falâsifa) para mostrar as doutrinas

dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”) como racionalmente equivocadas e contrárias à

fé islâmica, absorveu fortemente dos escritos do nosso autor (sua lógica,

psicologia, bem como distinções e conceitos de sua metafísica) e incorporou seu

pensamento na escola sunita, no kalâm e na espiritualidade sufista. Essa

10 WISNOVSKY, R. “Avicenna’s Islamic Reception”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 190-213.

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“influência indireta”, que encontramos também em filosofias tão distintas como

as elaboradas por Suhrawardi (m. 1191) e Ibn ‘Arabi (m. 1240), de orientação

mística-iluminacionista, mostra o duradouro e onipresente impacto de Avicena

(pp. 205-7).

Wisnovsky chama a atenção para a peculiar recepção de Avicena de

acordo com suas obras. Duas se destacam: a Cura e as Indicações, esta, como

dito, a última grande e sistematizadora obra redigida de maneira hermética para

fins didáticos avançados. A despeito da gigantesca diferença entre as duas obras

no que tange a inteligibilidade de leitura e clareza de exposição de doutrina, as

Indicações ocuparam acentuadamente o cenário nos comentários sobre a filosofia

aviceniana por mais de cinco séculos após a sua morte, enquanto a Cura passou a

preponderar do século XVI ao XIX (uma lista dos comentadores é oferecida na

página 191). A opção dos pensadores posteriores se torna ainda mais curiosa

pelo fato de a maioria das obras sistematizadores de Avicena serem escritas de

modo claro, antecipando ou sumarizando a Cura (Kitâb al-Shifâ’), como o Livro da

Salvação (Kitâb al-Najât) e os Elementos de filosofia (‘Uyûn al-hikma), entre outras.

A razão disso, analisa Wisnovsky, é que, no que se refere às Indicações, “seu

estilo compresso e opaco de composição permitiu aos comentadores provocar

implicações filosóficas do modo que eles queriam, ao contrário das mais

explícitas articulações na Najât e na ‘Uyûn al-hikma, que resistiam à interpretação

criativa. Isso deu a eles uma liberdade interpretativa que não teriam tido com a

Najât e a ‘Uyûn al-hikma, e, a fortiori, com a Shifâ” (p. 198). De fato, o grupo dos

avicenianos e o dos que extraíram seus pensamentos a partir de embates

teóricos com o filósofo persa mantinham em contínua atividade o ambiente

intelectual islâmico após o século XII segundo uma agenda exegética que acabou

perdendo força apenas a partir do século XVI, embora tenha seguido atuante. O

esfacelamento do império – sobretudo com a onda xiita no Irã relacionada à

dinastia safávida, e a consequente expulsão dos pensadores sunitas que tanto

beberam do saber aviceniano – enfraqueceu esse movimento, o que foi

alimentado por uma revisão do currículo de ensino nas madrasas (escolas

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sunitas) em todo o mundo islâmico segundo uma orientação mais religiosa (pp.

209-11).

Gad Freudenthal e Mauro Zonta11 qualificam a recepção de Avicena entre

os filósofos e cientistas judeus de um under-appreciated enigma (p. 214) e

procuram minimizar isso com sua contribuição. Cumpre dizer, antes de tudo,

que entre os judeus há uma peculiaridade extra ao fato de que, como no caso

dos muçulmanos, haver uma extensão geográfica do oriente (Oriente Médio) ao

ocidente (Andaluzia): eles redigiram filosofia tanto no idioma árabe quanto no

hebraico. Portanto, a pergunta sobre quais ideias e doutrinas foram conhecidas

diretamente de Avicena pelos judeus é diferente da questão sobre quais de suas

obras foram traduzidas do árabe para o hebraico.

Do lado árabe, Moisés Maimônides foi a figura principal do pensamento

medieval judeu, além de ter sido médico. Ele declara conhecer Avicena em sua

mais importante obra, o Guia dos Perplexos, e mesmo estimá-lo (p. 216). Esse

apreço é justificado por seu débito em temas como teologia negativa, distinção

entre essência e existência e profetologia, uma constatação feita pelo estudioso

Sholomo Pines e aderida pela comunidade (p. 217). Entretanto, o “enigma”

começa a se mostrar quando se tenta rastrear que escritos exatos o filósofo

judeu conhecia e que tipo de contato foi esse. Além de não informar isso com

clareza, Maimônides não raro conflui os nomes de Aristóteles e Avicena,

atribuindo teses caras deste – como a noção de “existente necessário” – ao

Estagirita. Entretanto, como é bem documentado, um texto basilar que tinha

nesta época uma forte circulação no meio andaluz parece oferecer as pistas: são

as Intenções dos filósofos (Maqâsid al-falâsifa), de al-Ghazali, que não deve ser

confundido com sua Incoerência dos filósofos. Nas Intenções, al-Ghazali sumariza as

principais doutrinas dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”), para, em seguida, refutá-las

em sua Incoerência. Esse prelúdio teve sua fortuna como um excelente manual de

exposição do pensamento filosófico em vigor. E Maimônides, testemunho desse

11 FREUDENTHAL, G., ZONTA, M. “The Reception of Avicenna in Jewish Cultures, East and West”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 214-241.

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ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna

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livro, sem reputar sua verdadeira procedência, atribuiu as ideias filosóficas aí

contidas diretamente a Avicena. Essa é uma leitura bem acolhida pelos

pesquisadores acadêmicos, mas Freudenthal e Zonta avançam uma sugestão do

porquê de o nome de Aristóteles ser pronunciado pelo pensador judeu neste

contexto: “na Andaluzia, Aristóteles continuou a ser visto como o líder e a fonte

principal do modo filosófico de pensamento. Maimônides (e seu meio) pode ter

associado as doutrinas encontradas na Maqâsid com o nome emblemático de

Aristóteles. Similarmente, quando Maimônides passa a julgar a filosofia de

Avicena, sem dizer qual, se qualquer, obra ele tinha em mente, ele pode

simplesmente estar expressando uma das mashhurât – ideias geralmente aceitas –

correntes e aceitas em seu meio cultural geral andaluz” (pp. 218-9). Al-Ghazali,

assim, desempenha um papel crucial na difusão do pensamento de Avicena, um

papel (até onde se consegue visualizar no estado corrente de pesquisas) mais

importante que o do próprio Avicena, de cujas obras filosóficas não se sabe se, e

ao certo quais, estiveram no painel intelectual judeu (p. 223).

Isso não impediu o nosso autor de ter tido declarados aderentes que dão

pistas de um contato direto: cumpre citar em especial Abraham Ibn Da’ud (este,

com toda probabilidade, o tradutor de Toledo de nome Avendauth, m. 1180) e

Moses ha-Levi (m. séc. XIII), que mostram ter uma familiaridade com a Salvação

(pp. 221-2). Do lado oriental, a evidência é patente: Ibn Kammuna (m. 1284),

nascido no Iraque, poderia ser chamado de aviceniano e, de fato, como era

costume intelectual corrente nessas terras, também escreveu um comentário às

Indicações (pp. 219-20). Ao todo, porém, o acesso a Avicena é difuso e tem um

quadro difícil de determinar pelo fragmentado e pouco confiável conjunto de

menções não-contextualizadas, o mesmo ocorrendo, no meio judeu arabófono,

com o Cânon de Medicina.

Do lado hebraico da filosofia judaica temos inicialmente um acesso ainda

mais mediatizado a Avicena. Não apenas al-Ghazali, com suas Intenções,

extensamente difundidas em hebraico, mas outra personagem ocupava o centro

da filosofia entre os judeus: Averróis. Seus escritos tiveram um profundo

impacto entre os intelectuais da Andaluzia e, como consequência, suas epítomes

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e grandes comentários foram traduzidos para servir de ponte ao pensamento de

Aristóteles. De fato, nas epítomes, o jovem Averróis tinha sua ótica exegética

em muito inspirada por Avicena. Ademais, e em contrapartida, não apenas suas

ideias revistas em seus grandes comentários tardios, mas também seu

“aristotelismo” antiaviceniano concentrado na Incoerência da Incoerência (Tahâfut

al-tahâfut) (resposta à Incoerência dos filósofos, de al-Ghazali) foi conhecido em

hebraico (pp. 226-7). Assim, embora Avicena tenha sido ofuscado pela tradução

de obras mais condizentes com o ambiente geográfico e intelectual, seu nome foi

bastante pronunciado em hebraico, ainda que de maneira indireta. Uma dose de

contrabalanço a essa onda de Avicena malgré lui, destacam Freudenthal e Zonta,

foi dada por Shem Tov Ibn Falaqera (m. 1195), que, em sua erudição, tinha certa

preocupação de retornar a fontes e assim o faz quando realça o débito de

Maimônides ao filósofo de Bukhara (pp. 232-4). A medicina, porém, não teve o

mesmo destino, pois seu Cânon de Medicina, embora traduzido tardiamente (séc.

XIII), foi lido em hebraico em mais de 150 manuscritos parciais e completos, o

que ocorreu devido ao florescimento das universidades europeias e

intelectualidade latina. Nesta época, ironicamente, ficava claro que o Avicena

árabe para os judeus já estava distante, pois o Cânon de Medicina, “a obra

hebraica de ciência mais bem disseminada”, foi traduzido do latim (pp. 236-7).

Ao contrário do que acontece com os meios islâmico e judaico, a

recepção de Avicena na tradição filosófica latina com o movimento de tradução

iniciado em meados do século XII em Todelo tem sido um campo mais

privilegiado de atenção. Porém, visto que a quantidade de publicações sobre a

influência aviceniana nos latinos é desproporcional com o que de fato se sabe e

se tem de fonte primária crítica publicada, Amos Bertolacci12 nos traz uma

pertinente avaliação na primeira parte de seu artigo. É bem reconhecido que a

Cura de Avicena foi traduzida na Espanha em sua maior parte (lógica, física,

metafísica; com exceção, portanto, da parte matemática) assim como o Cânon de

12 BERTOLACCI, A. “The Reception of Avicenna in Latin Medieval Culture”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 242-269.

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Medicina. O fato de a comunidade acadêmica começar a ter acesso a edições

críticas dessas traduções apenas a partir da década de 1960 (com o projeto

Avicenna Latinus, coordenado por Simone Van Riet) não impediu que rótulos

generalizantes pouco fundados para classificar tendências ou pontos doutrinais –

como o de “agostinismo avicenizante”, para citar apenas a renomada expressão

de Étienne Gilson – viessem à tona (pp. 243-4). Do que está disponível do

Avicena latino, muito há ainda por ser publicado – a lógica ainda é matéria

totalmente ignorada – para que seja possível uma compreensão abrangente e

completa do tema da influência, e a fim de que evitemos a abordagem até aqui

desnivelada e, por extensão, potencialmente enviesada de estudos (a área da

psicologia recebe a maior fatia) (p. 248). Efeito grave disso é a lacuna

historiográfica existente entre o final do século XII e início do século XIII com os

primeiros contatos com a obra aviceniana – antes de figuras como Guilherme de

Auvergne (m. 1249) e Alberto Magno (m 1280) –, a começar por escritos

filosóficos de um de seus eminentes tradutores, Domingo Gundisalvo (m. 1190),

período que só agora começa timidamente a ser investigado (pp. 249-50).

Dado o status quaestionis da pesquisa sobre a influência de Avicena,

Bertolacci, na segunda parte, nos oferece a agenda para a qual a comunidade

deve atentar na busca de um diagnóstico e narração acurados. A orientação

ideológica por trás do Avicena latino deve ser precisamente considerada para

uma justa avaliação da questão. Bertolacci nos oferece exemplos preciosos

focando na metafísica. Quanto à tradução, ocorre que na Prima Philosophia (título

vertido da Metafísica da Cura) o rico extrato de vocábulos que Avicena emprega

para designar a existência como concomitante necessário (lazim) da essência é

quase que sumariamente expresso pelo único verbo accidere. Acontece que essa

escolha (proposital ou não), que dá seguimento às críticas difundidas de al-

Ghazali e Averróis contra a teoria da distinção entre a essência e a existência,

ajudou a difundir que, para o filósofo persa, a relação da existência para com a

essência é de natureza acidental (pp. 256-8). Ademais, há um claro propósito

“desislamizador” na concepção da Prima Philosophia, visto que parte do livro X,

onde um vasto uso de vocabulário islâmico é feito para descrever a filosofia

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prática, é suprimido pelo tradutor (p. 259). De modo abrangente, a orientação

ideológica afeta a visão sobre o papel de Avicena no painel filosófico corrente.

Ao contrário do que ocorre na fortuna pós-aviceniana no oriente islâmico, no

mundo latino, Aristóteles era o expoente maior, mas se fazia necessário

encontrar outros materiais que esclarecessem seu pensamento. Segundo

Bertolacci, a escolha da Cura para ser traduzida, pela sua estrutura esquemática e

fama de síntese peripatética, ocorreu porque ela atendia a esse propósito. Essa

missão, entretanto, será transferida aos longos comentários de Averróis, que se

tornaram bastante influentes. Essa transmissão da autoridade exegética fez a

recepção de Avicena nos primórdios da filosofia na Europa pós-Averróis ser

realizada em fases (pp. 260-1). Ademais, a figura de al-Ghazali, que foi tomado

como “discípulo” de Avicena por ter sido conhecido somente por suas Intenções,

desempenhou um papel considerável na difusão do nosso autor (pp. 264-6). O

interessantíssimo embate entre Avicena e Averróis no mundo latino é ainda

explorado por Bertolacci como tendo despertado diferentes reações com

respeito ao pensamento do filósofo persa nos séculos XIII e XIV, isso depois de

já ter havido, quando as obras do árabe andaluz ainda estavam se tornando

familiares, uma audaciosa tentativa de harmonização dos dois empreendida por

Alberto Magno (pp. 266-8).

A imponente grandeza e o valor de Avicena na história das ideias são

muito bem representados no conjunto editado por Peter Adamson. Cumpre

frisar que tão importante quanto a exposição clara e rigorosa do que se sabe

dele, a apresentação daquilo que não se sabe – sobretudo no que tange à

recepção posterior de seu pensamento e à parcimônia por parte dos intérpretes

em suas conclusões – é uma marca que transforma o título editado por Peter

Adamson em um confiável guia de estudo e pesquisa.

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AMERINI, F. Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità. Pisa: Edizioni ETS,

2013, 223 p. (Coleção Philosophica, volume 117, série Viola)

Pedro Thyago dos Santos Ferreira*

___________________________________________

Há disputas acaloradas entre os medievalistas acerca do papel da

intencionalidade na epistemologia tomista. Para alguns, a intencionalidade é

condição necessária e suficiente para que haja conhecimento. As formas

intencionais são intrinsecamente representativas (e, logo, cognoscíveis) e, por

isso, só podem ser encontradas nos sentidos e no intelecto.1 Para outros, a

intencionalidade possui um papel subalterno, pois a condição necessária e

suficiente para o conhecimento é a imaterialidade. As formas intencionais se

tornam representativas e cognoscíveis quando unidas a substratos imateriais, ou

seja, a faculdades cognitivas.2 Fabrizio Amerini está entre os defensores do papel

crucial da imaterialidade na epistemologia do Aquinate (pp. 73-74). Mesmo assim,

admite que a intencionalidade permanece como tema importante e

exaustivamente retomado no corpus thomisticum. Por isso, Tommaso d’Aquino e

l’intenzionalità terá como objetivo investigar a teoria do conhecimento de Tomás

de Aquino sob este aspecto.

* Mestrando no Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista da Capes. 1 Cf. PASNAU, Robert. Theories of Cognition in the Later Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1997; BROWER, Jeffrey E./BROWER-TOLAND, Susan. “Aquinas on Mental Representation: Concepts and Intentionality”, Philosophical Review 117 (2008), pp. 193-243; GEACH, Peter. “Form and Existence” In: DAVIES, Brian (ed.). Aquinas's Summa Theologiae: Critical Essays. Lanham: Rowman and Littlefield, 2006, pp. 111-128 (publicado originalmente em 1955). 2 Cf. WIPPEL, John F. “Thomas Aquinas and the Axiom ‘What is Received is Received According to the Mode of the Receiver’” In: Id. Metaphysical Themes in Thomas Aquinas II. Washington: Catholic University of America Press, 2007, pp. 113-122; MOSER, Robbie. “Thomas Aquinas, esse intentionale, and the congnitive as such”, The Review of Metaphysics 4 (2011), pp. 763-788; HERNÁNDEZ, Fernando Gabriel. “El criterio de cognoscibilidad en Tomás de Aquino: entre la intencionalidad e la inmaterialidad”, Revista de Humanidades 30 (2014), pp. 111-127.

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26AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità

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Sua obra se divide em cinco capítulos. O primeiro apresenta algumas

linhas teóricas que guiarão a investigação como um todo. O segundo, dividido

em quatro partes, apresenta a teoria do conhecimento tomista, com especial

ênfase na descrição das etapas do processo cognitivo. O terceiro e o quarto,

partes centrais da obra, investigam de que modo a intenção se relaciona com as

espécies inteligíveis e os conceitos (capítulo 3) e com o

representacionalismo/realismo e a categoria de relação (capítulo 4). O último

capítulo, composto de três partes, visa apresentar os pontos de contato entre

intenção e linguagem mental/expressa. Nesta resenha procuraremos apresentar,

e na medida do possível discutir, temas que consideramos relevantes ou

controversos em cada capítulo. Nosso método de exposição será o seguinte:

elencaremos, para cada capítulo, os assuntos a serem abordados; depois,

apresentaremos a postura do autor, confrontando-a com outros comentadores

citados ou não por ele; por fim, faremos, quando nos for possível, um balanço

crítico de suas teses.

No primeiro capítulo, Amerini afirma que “os historiadores da filosofia

medieval sempre atentaram ao tema da intencionalidade” (p. 29).3 Desta atenção,

nasceram dois modos de lidar com a filosofia medieval e de relacioná-la com a

atual. A primeira, chamada de “Tese da Perenidade da Filosofia”, afirma que a

filosofia deseja resolver sempre os mesmos problemas, ainda que em contextos

históricos e com formulações diferentes. A segunda, de nome “Tese do

Antianacronismo”, sustenta que contextos e formulações diferentes implicam

conteúdos filosóficos diferentes, de modo que os problemas da filosofia medieval

nem sempre serão os mesmos dos de outras épocas. Embora Amerini não opte

por uma linha, a maneira como articula filosofia atual e medieval deixa claro que

seu ponto de análise é o primeiro. Para ele, o diálogo e a aproximação entre

filosofia medieval e moderna/contemporânea são profícuos para ambos os lados,

pois aquela tem intuições filosóficas úteis ao pensamento

3“Gli storici della filosofia medievale hanno sempre prestato attenzione al tema dell’intenzionalità”.

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moderno/contemporâneo, e este oferece meios para uma análise mais

problematizada da filosofia medieval (p. 41).

O segundo capítulo expõe a teoria do conhecimento de Tomás. Há dois

assuntos que merecem especial atenção: a prova da imaterialidade do intelecto e

o processo de recepção das formas.

Amerini apresenta o argumento da imaterialidade do intelecto (ausência

de órgão corporal) assim: “se o intelecto está em potência para todas as formas,

então não pode ter em ato nenhuma forma em particular, portanto nem sequer

a da materialidade ou corporeidade, pois se possuísse tal forma ela impediria o

conhecimento das outras” (pp. 63-64).4 Ele salienta que há neste raciocínio uma

aparente confusão entre natureza real e intencional, pois o fato de não ser

constituído dos objetos que irá conhecer implica que o intelecto não tem

previamente as formas intencionais daqueles objetos (do contrário, já os

conheceria em ato) e não que a sua natureza, enquanto intelecto, seja imaterial.

Assim, a inferência, de fato, não vai, sem passos intermediários, do que o

intelecto conhece para o que ele é. Esta dificuldade ficou conhecida como falácia

de conteúdo (content fallacy) e foi observada especialmente por Joseph Novak e

Robert Pasnau.5

O comentador, no entanto, oferece três alternativas para fundamentar a

inferência e fugir da falácia. Primeiro, o intelecto recebe formas materiais e

imateriais. Se ele fosse material, seria uma faculdade sensitiva e só receberia

formas materiais. Disto se segue que ele é imaterial. Segundo, tendo em vista que

a operação segue o modo de ser, se o intelecto recebe formas imateriais, então

ele é imaterial. Terceiro, conhecer equivale, para o intelecto, à posse de uma

forma inteligível. Por estar em potência para todas as formas, o intelecto pode

recebê-las sem alteração em sua natureza. Ainda que a presença inteligível de

4 “se l’intelletto è in potenza a tutte le forme, l’intelletto non può avere in atto nessuna forma in particolare, quindi nemmeno quella della materialità o corporeità, perché se avesse tale forma, essa impedirebbe la conoscenza delle altre forme”. 5 Cf. PASNAU, Robert. “Aquinas and the Content Fallacy”, The Modern Schoolman LXXV (1998), pp. 293-314; NOVAK, Joseph. “Aquinas and the Incorruptibility of the Soul”, History of Philosophy Quarterly 4 (1987), pp. 405-421.

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28AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità

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uma forma não altere a sua natureza, uma presença real, ao contrário, a alteraria.

Logo, o intelecto não pode ser material.

Contudo, tais argumentos, do modo como os entendemos, não alcançam

o sucesso desejado, pois continuam a confundir a natureza intencional do

intelecto com a sua natureza real. No primeiro caso, defende-se que faculdades

materiais, como os sentidos, recebem formas que representam naturezas

materiais e que faculdades imateriais, como o intelecto, recebem formas que

representam naturezas materiais e imateriais. Ora, aqui continua a ocorrer

passagem imediata do conteúdo da faculdade para sua natureza. No segundo, a

imaterialidade é, ao mesmo tempo, tomada no sentido de inteligibilidade

(aspecto intencional) e de ausência de materialidade (aspecto real). No terceiro,

passa-se diretamente da presença intencional das formas, justificada pelo fato de

não alterarem a essência do intelecto, para a natureza real imaterial do intelecto.

Por estas três observações evidencia-se que as respostas de Amerini são também

vítimas da falácia de conteúdo.6

Outro tema importante deste capítulo é o processo de recepção das

formas intencionais por parte do intelecto e dos sentidos. Uma das dificuldades

deste processo consiste em descrever como se chega às espécies inteligíveis, que

representam a essência do objeto, através da abstração dos fantasmas, que

representam acidentes. Conforme o comentador, o mais natural seria que as

espécies inteligíveis representassem a essência destas características acidentais e

não a essência em si do objeto. Por isso, ele apresentará a seguinte hipótese: as

espécies sensíveis são formas intencionais sensíveis que representam

características acidentais do objeto. O fantasma é o conjunto ordenado delas em

uma imagem. O papel do intelecto agente, pela abstração, será dar enfoque às

características acidentais que apresentam relacionamento direto com a essência

6 Para uma interessante discussão sobre o posicionamento de Tomás e uma tentativa de reconstrução de seus argumentos cf. KLIMA, Gyula. “Aquinas’s Proofs of the Intellect from the Universality of Human Thought”, Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics 1 (2001), pp. 19-28; PASNAU, Robert. “Comments on Gyula Klima, ‘Aquinas’s Proofs of the Immateriality of the Intellect’”, Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics 1 (2001), pp. 29-36; KLIMA, Gyula. “Reply to Bob Pasnau on Aquinas’s Proofs for the Immateriality of the Intellect”, Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics 1 (2001), pp. 37-44.

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do objeto através de dois critérios: (a) tais acidentes devem ser causa explicativa

dos outros acidentes e (b) devem se referir ao objeto como um todo. No

entanto, as informações selecionadas, que formam a espécie inteligível, são

confusas, pois ainda não se sabe claramente a que tipo de essência se referem.

Pela paulatina ação do intelecto, a essência à qual estes acidentes se relacionam

torna-se mais nítida, até que o intelecto esteja apto a formar um conceito que a

manifeste.

Todavia, parece-nos que, ao invés de solucionar o problema, o autor o

mantém. A noção de espécie inteligível proposta ainda é a de uma forma

intencional dos acidentes do objeto, embora o seja daqueles mais fundamentais.7

Ademais, a dificuldade percebida na passagem de formas intencionais que

representam acidentes para formas intencionais que representam essências

permanece. Se antes ela estava na passagem dos fantasmas à espécie inteligível,

agora ela está no caminho da espécie inteligível, que representa os acidentes

relacionados à essência, para o conceito, que representa a essência enquanto tal.

Os capítulos 3 e 4 são, como já dissemos, o núcleo da obra. Pela

amplitude dos temas tratados, enfatizaremos dois assuntos, a saber: de um lado,

a relação entre conceito e espécie inteligível e, de outro, o

representacionalismo/realismo de Tomás.

Para Tomás, o conhecer é uma ação imanente, cumprida e sofrida pelo

sujeito, que não ocasiona efeitos externos a si. No entanto, ele apresenta algo

em comum com a ação transitiva, devido à produção do conceito, algo diferente

7 O que o autor defende parece estar em descontinuidade com a posição de Tomás, por exemplo, em Quodl., VIII, q. 2, art. 2 [Taurini, 68416]: “quia sensus et imaginatio nunquam pertingunt ad cognoscendum naturam rei, sed solummodo accidentia, quae circumstant rem; et ideo species quae sunt in sensu vel imaginatione, non repraesentant naturam rei, sed accidentia eius tantum, sicut sensus repraesentat hominem quantum ad accidentalia, sed intellectus cognoscit ipsam naturam et substantiam rei. Unde species intelligibilis est similitudo ipsius essentiae rei, et est quodammodo ipsa quidditas et natura rei secundum esse intelligibile, non secundum esse naturale, prout est in rebus. Et ideo omnia quae non cadunt sub sensu et imaginatione, sed sub solo intellectu, cognoscuntur per hoc quod essentiae vel quidditates eorum sunt aliquo modo in intellectu.”. Sobre a diferença entre as formas intencionais recebidas pelo intelecto e pelos sentidos cf. KENNY, Anthony. “Intentionality. Aquinas and Wittgenstein” In: DAVIES, Brian (ed.). Thomas Aquinas. Contemporary Philosophical Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 248.

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do próprio ato de inteligir, mas que não é um produto exterior à ação. O

conceito (conceptus) teve interpretações diferentes ao longo das obras do

Aquinate. Amerini observa que em seus primeiros escritos,8 o filósofo medieval

endossa que a espécie inteligível, a operação intelectual e o objeto são três

fatores necessários para que ocorra o conhecimento, parecendo assimilar o

conceito à espécie. No entanto, em seus escritos mais maduros,9 defende que

para haver conhecimento são necessários o objeto, a operação intelectual, o

conceito e a espécie inteligível, definindo esta como aquilo pelo qual se conhece

(id quo intelligitur) e aquele como aquilo que é conhecido (id quod intelligitur). O

que certos autores, como Pasnau,10 veem como uma evolução de pensamento,

Amerini entende como uma clarificação ou precisão de certas intuições já

presentes nos escritos mais jovens do filósofo (p. 133).

Podemos sintetizar as semelhanças e diferenças entre espécie inteligível e

conceito, tal como expostas pelo autor, afirmando que são semelhantes

enquanto formas intencionais imateriais que representam uma determinada

essência e que têm o intelecto como sujeito. Contudo, são diferentes, porque a

espécie é uma forma intencional recebida pelo intelecto que possui informações

ainda confusas e implícitas acerca da essência do objeto; já o conceito é uma

forma intencional produzida e proferida pelo intelecto (verbum mental) que

apresenta clara e explicitamente as informações antes confusas e obscuras

contidas na espécie inteligível. O problema desta explicação é que, se a unirmos

com as intuições apresentadas no capítulo 2 sobre a relação entre as espécies

inteligíveis e os fantasmas, chegaremos à conclusão de que as espécies

representam os acidentes ligados à essência do objeto, e não a sua essência.

Como consequência, o conceito será uma representação clara e explícita destes

acidentes, mas não da essência.

O último assunto relevante dos capítulos 3 e 4 diz respeito à discussão

sobre o modelo de conhecimento em Tomás de Aquino. Alguns pensadores,

8 Por exemplo, In Sent., I, d. 27, q. 2, art. 2, qla. 1. 9 Por exemplo, Cont. Gent., I, 53; IV, 11; De Pot., q. 8, art. 1. 10 Amerini indica PASNAU, Theories of Cognition in the Later Middle Ages, 1997, pp. 195ss.

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como Claude Panaccio,11 põem-no entre os representacionalistas; outros, como

Étienne Gilson,12 entre os realistas. Amerini, particularmente, tende a ver as duas

posturas como possíveis e, por isso, mostra em que medida o filósofo medieval

está em uma ou noutra classificação.

Esta postura, deveras interessante, é apresentada de maneira mais clara

na conclusão e, por isso, a seguiremos neste momento (pp. 212-219). Tomás é

um representacionalista se por esta etiqueta se entender que a representação é

crucial e indispensável em sua teoria do conhecimento, ainda que tal

representação não seja o objeto primeiro do conhecimento intelectual, mas

antes a coisa externa. Nesta versão simples do representacionalismo, o filósofo

medieval defenderia que há descontinuidade entre o mundo externo material e o

intelecto imaterial, de modo que o intelecto agente deve formar uma

representação da coisa capaz de estar no intelecto possível. Ao contrário, ele é

um realista direto se por esta classificação se entender que a coisa externa é

conhecida por meio da representação e que esta não é conhecida anteriormente

à coisa e nem do mesmo modo que ela. Tomás defenderia, assim, um realismo

direto modificado, no qual se prega que o objeto não pode estar na mente tal

como existe fora dela e que há semelhança entre a forma presente na coisa e a

presente no intelecto.

O quinto e último capítulo visa tratar da natureza linguística da operação

intelectual e da relação entre linguagem e intencionalidade. Nele, Amerini é mais

conjectural e discute com autores que negam a concepção de linguagem mental

em Tomás de Aquino, especialmente Robert Pasnau. Nossa ênfase será em sua

disputa com Pasnau e na hipótese de Amerini.

De acordo com Pasnau, não é possível dizer que, para Tomás, o

pensamento tem estrutura linguística, porque ele só se organiza desta maneira

11 Amerini indica PANACCIO, Claude. “Aquinas on Intellectual Representation” In: PERLER, Dominik (ed.). Ancient and Medieval Theories of Intentionality. Leiden/Boston/Köln: Brill, 2001, pp. 185-201. 12 O comentador indica GILSON, Étienne. Réalisme thomiste et critique de la connaissance. Paris: Vrin, 1939.

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32AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità

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depois que o sujeito aprende uma determinada língua.13 Uma das dificuldades da

tese de Pasnau, segundo Amerini, é deixar sem explicação o fato de o primeiro

falante, antes de qualquer registro oral e escrito, conseguir passar do

pensamento à linguagem oral e escrita sem antes ter aprendido uma língua. Por

isso, diferente do que Pasnau pensa, o autor afirma que “Tomás estaria disposto

a aceitar que a simples posse de conceitos (junto com a admissão da capacidade

de nossa mente de poder exercitar operações sobre estes) seria condição

suficiente, além de necessária, para poder introduzir e falar uma linguagem com

sucesso” (p. 191).14

Tal hipótese, no entanto, não é apresentada de modo sistemático pelo

filósofo medieval. Seguindo o capítulo, poderíamos enumerar algumas intuições

que Amerini percebe em Tomás e que favorecem a sua posição. Em primeiro

lugar, os conceitos são encarados como definições e proposições mentais,

denotando a existência de definições e proposições na linguagem. Segundo,

mesmo que a linguagem oral/escrita seja algo com o qual o homem entra em

contato antes de atribuir estrutura linguística ao pensamento, é o mecanismo

linguístico presente no pensamento que fornece as categorias necessárias para a

formação da linguagem oral/escrita. Terceiro, as partículas de ligação presentes

na linguagem oral/escrita (conectivos e quantificadores) não representam

aspectos da realidade externa, mas sim composições, feitas pelo intelecto, entre

conceitos simples. Portanto, a atividade intelectual e as formas intencionais são

naturalmente linguísticas, porque são expressas pela linguagem falada e escrita e

também porque se referem à realidade externa e funcionam de modo

tipicamente linguístico. Enquanto hipótese, a postura de Amerini é

argumentativamente bem elaborada e interessante, espelhando uma tentativa, já

feita em outro texto seu, de mostrar que, sobre o tema da linguagem mental,

Ockham retomou certas teses tradicionais e presentes implicitamente em

13 O autor indica PASNAU, Robert. “Aquinas on Thought’s Linguistic Nature”, The Monist 4 (1997), pp. 558-575. 14 “Tommaso sarebbe stato disposto ad accettare che il semplice possesso dei concetti (insieme con l’ammissione della capacita della nostra mente di poter esercitare operazioni su di essi) sia una condizione sufficiente oltre che necessaria per poter introdurre e parlare un linguaggio con successo”.

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33AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità

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Tomás.15 No entanto, o fato de ser um tema tratado de maneira imprecisa e

pouco orgânica pelo Aquinate dificulta a avaliação tanto da interpretação de

Amerini quanto da de Pasnau.

Concluindo, percebemos que Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità prima

pela clareza, pelo rigor científico e, especialmente, pela exposição didática dos

assuntos. Chama atenção a capacidade do autor em ser detalhista no tratamento

de cada tema e em conciliar análise textual com discussão bibliográfica. Ademais,

salta aos olhos sua segurança em comparar autores medievais, percebendo,

especialmente entre Tomás, Ockham e Scotus, certas semelhanças no tocante à

teoria do conhecimento e à noção de linguagem mental. Finalmente, outra

qualidade do livro é a constante e abundante remissão às obras de Tomás de

Aquino e à bibliografia secundária.

15 Cf. AMERINI, Fabrizio. “Thomas Aquinas on Mental Language”, Medioevo XXXVIII (2013), pp. 77-110.

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AREZZO, A. Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto

scientifico della teologia. Bari: Edizioni di Pagina, 2014, 246 p. – e-

book (Biblioteca filosofica di Quaestio 21)

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

No último volume deste caderno, a resenha da coletânea de artigos

L’aristotélisme exposé 1 nos deu a ocasião de discutir, entre outros temas

suscitados pela interessante obra, a relação entre filosofia e teologia no

pensamento de Henrique de Gand. Nesse âmbito, um problema fundamental que

emerge da contribuição de Catherine König-Pralong ao referido volume2 é o da

relação entre [i] a necessidade de uma iluminação divina para o conhecimento da

verdade da coisa (tese defendida pelo Doutor Solene em Suma, art. 1, qq. 1-33) e

[ii] a necessidade de uma iluminação divina para o conhecimento científico

teológico (doutrina formulada, por exemplo, em Suma, art. 64). Em face dessas

duas teses, o problema enfrentado pelo leitor de Henrique é: seriam essas duas

iluminações a mesma ou não? Caso sejam, é preciso admitir que somente a

teologia conhece a verdade das coisas, sendo a filosofia excluída de tal

conhecimento. Como esse não parece ser o caso para Henrique5, talvez se deva

* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. 1 CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé. Aspects du débat philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome. Fribourg: Academic Press Fribourg, 2014. A resenha a que me refiro é: PAIVA, G. B. V. de. “Resenha de: CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé..., 2014”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 7 (2015), pp. 24-41. 2 KÖNIG-PRALONG, C. “Le désir naturel de connaître. Autour des Questions métaphysiques attribuées à Gilles de Rome”. In: CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotelisme exposé, 2014, pp. 1-28. 3 Henrique de Gand, Suma, art. 1, qq. 1-3 (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 5-90). 4 Henrique de Gand, Suma, art. 6, q. 1, co. (ed. 1642-6, pp. 106b-107a, nn. 7-9). Cf. tb. Henrique de Gand, Suma, art. 1, q. 8, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 150-2), Suma, art. 5, q. 3, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 328-30); e Suma, art. 13 (ed. 1642-6, pp. 225-47). 5 O Doutor Solene afirma explicitamente que tanto a filosofia como a teologia são ciências. Nesse sentido, ambas (ainda que diferentemente) devem dizer respeito à verdade acerca de seus respectivos objetos: “Stricte vero appellatur scientia, non quaecunque certa notitia, sed solummodo eorum, quorum veritas intellectui ex rei evidentia apparet <...> scientia proprie dicta

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AREZZO,A.Lumenmedium

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adotar uma resposta negativa à pergunta formulada acima. Mas, então, somos

levados a afirmar uma multiplicidade de iluminações divinas (uma geral, outra do

conhecimento da verdade filosófica, outra própria da teologia, outra própria da

fé, outra própria da glória etc.). Isso parece multiplicar ao extremo as ações

diretas de Deus sobre o intelecto humano – algo que, ainda que não se possa de

saída descartar, parece dificilmente defensável em uma filosofia que assevera a

possibilidade de um conhecimento científico para homem6.

Retornando à pergunta feita há pouco, as duas respostas possíveis – isto

é, a positiva e a negativa – já foram formuladas por leitores de Henrique de

Gand. A supracitada König-Pralong parece tender a identificar as iluminações [i]

e [ii], quando afirma que “[s]egundo os primeiros artigos da Suma, a infusão de

uma iluminação habitual é requerida em todo conhecimento”7 e que, ao mesmo

tempo, “Henrique estabelece, com efeito, as condições de uma teologia racional

que permite ler verdadeiramente e exaustivamente a metafísica e a ética de

Aristóteles enquanto teólogo <...>”8. A comentadora, destarte, parece relacionar

a defesa da necessidade de uma iluminação divina para o conhecimento humano

com a defesa de uma necessária complementaridade da filosofia pela teologia. Em

outras palavras, para König-Pralong, a exigência de uma elevação das forças

naturais pela luz divina e de uma elevação da filosofia pela teologia seriam um

mesmo movimento no pensamento de Henrique. Essa interpretação é criticada

por Pickavé, que afirma a necessidade de distinguir os casos [i] e [ii] de est duplex <...>. Primo modo habetur intellectus de rebus naturalibus in scientiis philosophicis. Secundo autem modo habetur de rebus supernaturalibus in ista scientia <i.e. a teologia>” – Henrique de Gand, Suma, art. 6, q. 1, co. (ed. 1642-6, p. 107a, nn. 8-9). 6 A defesa da possibilidade do conhecimento científico para o homem é justamente o tema do primeiro artigo da Suma de questões ordinárias de Henrique de Gand (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 4-199). Portanto, que o conhecimento científico seja possível para o homem é um elemento basilar no pensamento do Doutor Solene. Todo problema está em saber, para retomar termos utilizados por Martin Pickavé, quais seriam o alcance (Reichweite) e o limite (Begrenztheit) de um conhecimento estritamente natural (cf. PICKAVÉ, M. Heinrich von Gent über Metaphysik als erste Wissenschaft. Studien zu einem Metaphysikentwurf aus dem letzten Viertel des 13. Jahrhunderts. Leiden-Boston: Brill, 2007, pp. 46-9). Uma possível distinção entre iluminações divinas diversas atuantes, respectivamente, nos conhecimentos filosófico e teológico só adiciona mais uma dificuldade à temática. 7 KÖNIG-PRALONG, “Le désir naturel de connaître...”, 2014, p. 20: “Selon les premiers articles de la Summa, l’infusion d’une illumination habituelle est requise dans toute connaissance”. 8 KÖNIG-PRALONG, “Le désir naturel de connaître...”, 2014, p. 23: “Henri établit en effet les conditions d’une théologie rationnelle qui permette de lire véritablement et exhaustivement la métaphysique et l’éthique d’Aristote en théologien <...>”.

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AREZZO,A.Lumenmedium

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iluminação. Em sua resenha do artigo de König-Pralong, ele nos diz: “tenho a

impressão de que ela não distingue o suficiente entre as diferentes iluminações

de que Henrique fala no começo de sua Summa quaestionum ordinariarum: a luz

que é tema em Suma, art. 1, q. 2, não é a mesma que o, assim chamado, lumen

theologicum (ou lumen medium), de que supostamente o teólogo se beneficia”9.

Enfim, a discussão sobre a unidade da doutrina da iluminação desenvolvida por

Henrique de Gand nos primeiros artigos de sua Suma (mais precisamente, em

Suma, arts. 1-20) está entre os temas mais complexos para seus leitores atuais.

Por isso mesmo, é extremamente bem-vinda uma contribuição como o

livro Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto scientifico della teologia,

de autoria de Anna Arezzo10. Nessa obra, a autora considera a noção de teologia

desenvolvida por Henrique de Gand principalmente desde o ponto de vista de

toda a problemática que envolve a caracterização da teologia como ciência. É

justamente nesse contexto, como ficará claro, que surge a necessidade da

afirmação de uma iluminação típica do teólogo, a qual eleva seu conhecimento

para além daquele das ciências estritamente filosóficas. A seguir, pretendo

apresentar sucintamente o caminho seguido e as posições adotadas por Arezzo

em seu livro.

II.

O livro Lumen medium é dividido em duas partes principais. A primeira contém a

principal etapa da obra, pois lida com “a teologia como ciência em Henrique de

Gand [La teologia come scienza in Enrico di Gand]” (pp. 37-96). Já a segunda parte

se apresenta como uma tentativa de reconstrução da “controversa fortuna do

lumen medium [La controversa fortuna del lumen medium]” (pp. 97-204). Para ser 9 PICKAVÉ, M. “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent. Critical Study of V. Cordonnier – T. Suarez-Nani (eds.), L’aristotélisme exposée...”. Recherches de Théologie et Philosophie Médiévales 81.2 (2014), pp. 387-98 (esp. p. 390): “<…> I have the impression that she does not distinguish enough between the different illuminations of which Henry speaks at the beginning of his Summa quaestionum ordinariarum: the light that is issue in Summa art. 1, q. 2 is not the same as the so-called lumen theologicum (or lumen medium), of which the theologian is supposedly benefitting”. 10 Como explicado no prefácio (p. 7), o livro ora resenhado é fruto da tese de doutorado AREZZO, A. I dibattiti sullo statuto scientifico della teologia tra XIII e XIV secolo: l’eredità di Enrico di Gand. Tesi di dottorato. Università degli Studi di Salerno, Dipartimento di Latinità e Medioevo. Anno accademico 2009-2010.

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AREZZO,A.Lumenmedium

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mais preciso, nessa segunda etapa do trabalho, a comentadora se debruça sobre

diversos autores que, em fins do século XIII e começos do XIV, discorreram

criticamente acerca da noção de teologia – e, mais pontualmente, da concepção

de cientificidade da teologia – defendida por Henrique de Gand. Na conclusão

(pp. 205-9), Arezzo busca derivar de seu estudo uma impressão geral no que diz

respeito à recepção imediata da acepção de teologia formulada pelo Doutor

Solene (recepção, diga-se, amplamente negativa). Ainda na conclusão, busca-se

sugerir os limites do trabalho realizado no livro – em particular, a necessária

incompletude da lista de autores estudados, sendo destacada a ausência, no

estudo, de mestres como Guilherme Pedro de Godino ou Henrique Harclay (pp.

207-9). Antes de todas essas etapas, porém, a autora dedica a introdução de seu

livro ao estudo da “teologia como ciência antes de Henrique de Gand [La teologia

come scienza prima di Enrico di Gand. Cenni storici e storiografici]” (pp. 9-35).

Podemos dizer que o trecho central do livro é constituído pela parte 1,

onde há um esforço de compreensão da concepção de teologia elaborada por

Henrique de Gand, no qual tomam-se por base diversos excertos da obra deste

– em especial, os já mencionados primeiros artigos da Suma de questões

ordinárias. Essa parte 1, porém, é antecedida e sucedida por trechos nos quais se

procura localizar historicamente a posição do Doutor Solene com respeito a

autores que o precederam (na introdução) e àqueles que a ele se seguiram

imediatamente (na parte 2 e na conclusão). Isso faz com que a parte 1 seja não

somente a etapa central da exposição de Arezzo, mas também aquela mais

densa, sendo dedicada ao estudo acurado da posição de um único autor sobre

um determinado tema. As demais etapas da obra ganham pelo interesse da

narrativa histórico-filosófica proposta pela autora, mas perdem por parecerem

um tanto superficiais quando comparadas à parte 1, uma vez que buscam expor

em um pequeno espaço as posições dos mais diversos pensadores dos séculos

XIII e XIV acerca de uma temática tão central quanto a relação entre filosofia e

teologia. Nas próximas páginas, buscarei destacar as principais posições

propostas por Arezzo, dando especial atenção à parte 1 do livro, dada a sua já

mencionada centralidade na obra.

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AREZZO,A.Lumenmedium

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II.I. Tendo por temática central a discussão sobre a cientificidade da teologia

entre os século XIII e XIV, a introdução de Lumen medium não coloca o

problema do surgimento de uma noção de teologia tout court. Antes, partindo já

do pressuposto de que havia no século XIII um campo de saber teológico, a

autora se pergunta sobre a origem da caracterização desse campo de saber

como ‘científico’. Em poucas palavras, a origem de tal caracterização estaria na

associação entre a sacra doctrina de inícios dos duzentos e a recepção dos

Analíticos posteriores, contexto no qual os teólogos foram “chamados a confrontar

sua ‘ciência’, a sacra doctrina, com aquela descrita pelo Estagirita, nos Segundos

Analíticos, como um conhecimento de causas que procede per demonstrationem, a

partir de premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas,

anteriores, que são as razões da conclusão e os princípios da demonstração”11

(pp. 9-10). O problema do historiador da filosofia passa a ser, portanto, mapear

as reações a essa confrontação entre a noção de sacra doctrina e aquela de

ciência silogística. Tomando por base um artigo de Dominique Demange12,

Arezzo propõe que distingamos três reações típicas adotadas por mestres de

teologia em meados do século XIII (p. 15): 1. identificação entre teologia e

sabedoria; 2. uma busca de “compromisso entre o ideal agostiniano e aquele

aristotélico de ciência [compromesso tra l’ideale agostiniano e quello aristotelico di

scienza]”13 (p. 15); 3. a recusa de tal compromisso, com a consequente negação

da cientificidade da teologia. Como a última alternativa é adotada por Godofredo

de Fontaines em face da posição de Henrique de Gand (ao que voltaremos

adiante), Arezzo se dedica somente às duas primeiras soluções na introdução,

uma vez que esta, como mencionado, pretende descrever a discussão acerca da

cientificidade da teologia que antecede a intervenção do Doutor Solene. 11 “<...> i teologi, chiamati a confrontare la loro ‘scienza’, la sacra doctrina, con quella descritta dallo Stagirita, negli Analitici secondi, come una conoscenza di cause che procede per demonstrationem, a partire da premesse vere, prime, immediate, più note, anteriori, che sono le ragioni della conclusione e i principî della dimostrazione” (grifos no orig.). 12 DEMANGE, D. “La théologie est-elle une science? La réponse de Duns Scot à Godefroid de Fontaines dans le prologue des Reportata Parisiensia”. Documenti e studi sulla tradizione filosofia medievale 20 (2009), pp. 547-72 (cf. esp. p. 549). 13 No francês de Demange: “Solutions de compromis entre l’idéal augustinien et l’idéal aristotélicien de la science” (DEMANGE, “La théologie est-elle une science?...”, 2009, p. 549).

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Pois bem, se uma concepção (1) de teologia como sabedoria enfatiza

principalmente “uma dimensão prático-afetiva [una dimensione pratico-affettiva]”

(p. 16) da teologia – como seria o caso, entre outros, de Alberto Magno (pp. 16-

21) –, uma reflexão (2) na qual se busca aproximar a sacra doctrina e a noção de

‘ciência’ que lemos nos Analíticos posteriores tende, por sua vez, a permitir uma

concepção de teologia enquanto ciência silogística. Essa última posição será o

terreno no qual se desenvolverá a compreensão de teologia do próprio

Henrique de Gand. E, se os defensores de uma ‘teologia como ciência’

destacados por Arezzo também incluem Odão Rigaldo e Boaventura, Tomás de

Aquino se torna o pensador mais marcante para o Doutor Solene, seja por [i]

caracterizar a teologia principalmente como ciência especulativa, seja por [ii]

inseri-la num complexo esquema de subalternação das ciências (pp. 21-35). Essas

duas teses marcarão a discussão sobre a cientificidade da teologia em Henrique

de Gand.

II.II. Nesse ponto chegamos à parte 1, isto é, à etapa na qual a concepção de

ciência teológica proposta pelo Doutor Solene é exposta. Após uma pequena

introdução à biografia intelectual e institucional de Henrique de Gand, bem como

à problemática que envolve o estabelecimento crítico de sua obra (pp. 39-44),

Arezzo destaca, com base na leitura de A. J. Minnis14, o cuidadoso trabalho de

introdução (accessus) à teologia elaborado pelo gandavense em Suma, arts. 6-20,

frisando igualmente sua preferência pelo vocábulo theologia em detrimento da

expressão sacra doctrina (pp. 45-6). Como, porém, a discussão introdutória de

Henrique de Gand é antecedida por um estudo do conhecimento humano na

Suma (arts. 1-5), a comentadora igualmente inicia sua apresentação pelos

“pressupostos gnoseológicos [pressuposti gnoseologici]” (p. 46) da teologia na

Suma e, em particular, pela consideração da necessidade, segundo o Doutor

Solene, de uma iluminação divina para o conhecimento natural da verdade pelo

homem (pp. 46-60). Logo em seguida, porém, a autora mostra a insuficiência

14 MINNIS, A. J. “The Acessus Extended: Henry of Ghent on the Transmission and Reception of Theology”. In: JORDAN, M. D., EMERY Jr., K. (eds.). Ad litteram. Authoritative Texts and Their Medieval Readers. Notre Dame – London: University of Notre Dame, 1992, pp. 275-326.

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dessa iluminação divina. Com efeito, se tal iluminação (junto à atividade das

potências naturais do homem) garante um conhecimento de verdades acerca do

que é natural, ela não possibilita ao homem o conhecimento acerca do

sobrenatural que é igualmente objeto de seu desejo natural de conhecer. Assim,

para além daquela iluminação divina que possibilita um conhecimento da verdade

das coisas naturais, o apetite do homem por conhecimento termina por exigir

uma iluminação ‘mais especial’ (specialior)15, que permita um conhecimento de

objetos que estão para além das coisas naturais. Destarte, faz todo sentido que a

autora, após considerar a doutrina da iluminação divina de Henrique de Gand,

estude a temática do apetite pelo conhecimento (pp. 60-5), desenvolvida com

especial atenção em Suma, art. 4. Com efeito, é esse apetite por um

conhecimento não somente de coisas naturais, mas também sobrenaturais que

torna necessário que haja um meio de se alcançar uma intelecção acerca do

sobrenatural. Sendo o sobrenatural a finalidade, o estudo – considerado em

Suma, art. 5 – deve passar pelas ciências acerca do natural, mas deve almejar para

além disso, o conhecimento do sobrenatural (pp. 65-9). Em outras palavras, o

estudo, em consonância com o apetite de conhecimento, deve tender ao

sobrenatural. Este, entretanto, não pode ser conhecido pelo homem sem algum

auxílio (de fato, nem mesmo a verdade sobre objetos naturais podia ser

conhecida sem auxílio superior). Nesse ponto, abre-se espaço na argumentação

para a defesa de uma iluminação especial reclamada pelo teólogo.

A etapa seguinte dessa primeira parte do livro de Arezzo será,

precisamente, voltada para a elucidação do que seria essa luz própria ao teólogo

(pp. 69-78). Em primeiro lugar, a autora caracteriza com base em Suma, art. 1, q.

8 e Suma, art. 5, q. 316, o conhecimento típico do teólogo. Nas suas palavras, tal

conhecimento é intermediário entre a filosofia e a visão beatífica: “[n]a q. 3 do

art. V Henrique distingue novamente <i.e., como fizera em Suma, art. 1, q. 8> as

três formas de conhecimento: uma natural, que procede segundo um modo

15 Henrique de Gand, Suma, art. 1, q. 2, ad 2 (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 68-9): “Naturali enim appetitu bene desiderat homo scire etiam illa quae sunt supernaturaliter cognoscenda, quae tamen secundum communem illustrationem a divino exemplari sine illustratione specialiori non posset attingere <...>”. Citado por Arezzo (p. 60). 16 Para as citações precisas, cf. a nota 4, acima.

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AREZZO,A.Lumenmedium

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natural; outra sobrenatural, que procede segundo um modo igualmente

sobrenatural; e uma intermediária: sobrenatural, mas que procede segundo um

modus natural. Dessa vez, porém, ele precisa que a primeira forma de

conhecimento coincide com a filosofia, a segunda com a visão beatífica

ultraterrena e a terceira com uma notitia que deriva de uma luz sobrenatural, mas

que alcança a consideração das realidades divinas através da mediação daquelas

sensíveis <...>”17 (p. 70). Esse último conhecimento é, justamente, a teologia que,

pela mediação das coisas sensíveis, chega ao sobrenatural. O grande problema

está na passagem do sensível ao sobrenatural. Ora, tal como “no plano da

cognitio naturalis, para conhecer a sincera veritas ocorre a iluminação divina,

também naquele da cognitio supernaturalis, para conhecer a veritas dos credibilia, é

necessário um lumen divino <...>” 18 (p. 72). Assim como o conhecimento

teológico é intermediário entre um conhecimento natural como a filosofia e o

conhecimento estritamente sobrenatural, também a iluminação teológica será

intermediária entre a luz da fé e a luz da visão beatífica. Assim, temos que a

teologia se põe como um conhecimento sobrenatural inferior à visão beatífica,

mas superior à filosofia, como vimos, e também à fé: “[e]ntre a obscuridade

daquilo que é crido pela fé e a evidência daquilo que se conhece diretamente na

visão beatífica, de fato, Henrique põe uma evidência ‘intermediária’, que se funda

em uma ratio que é veridica, porque conhece os credibilia com o auxílio de um

lumen supernaturale”19 (p. 77). Portanto, para o Doutor Solene, esse lumen

teológico garante um conhecimento intelectivo da verdade dos credibilia –

superior à fé, mesmo que não tão claro como aquele da visão beatífica – e, assim,

17 “Nella q. 3 dell’art. V Enrico distingue ancora le tre forme di conoscenza: una naturale, che procede secondo un modo naturale; un’altra sovrannaturale, che procede secondo un modo altrettanto sovrannaturale; ed una intermedia: sovrannaturale, ma che procede secondo un modus naturale. Questa volta, però, egli precisa che la prima forma di conoscenza coincide con la filosofia, la seconda con la visione beatifica ultraterrena e la terza con una notitia che deriva da una luce sovrannaturale, ma che perviene alla considerazione delle realtà divine attraverso la mediazione di quelle sensibili <…>” (grifo no orig.). 18 “Come sul piano della cognitio naturalis, per conoscere la sincera veritas, occorre l’illuminazione divina, anche su quello della cognitio supernaturalis, per conoscere la veritas dei credibilia, è necessario un lumen divino <…>” (grifos no orig.). 19 “Tra l’oscurità di ciò che viene creduto per fede e l’evidenza di ciò che si conosce direttamente nella visione beatifica, infatti, Enrico pone un’evidenza ‘intermedia’, che si fonda su una ratio che è veridica, perché conosce i credibilia con l’aiuto di un lumen supernaturale” (grifos no orig.).

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a teologia se torna “uma ciência verdadeira e própria, pois os credibilia podem se

tornar intelligibilia por meio de uma illustratio superior com respeito àquela da fé e

da razão”20 (p. 78).

Ora, se a iluminação teológica é superior tanto àquela da fé como àquela

envolvida no conhecimento da verdade natural, resta que a teologia seja

igualmente superior à fé e, também, às ciências filosóficas, que lidam com as

coisas naturais – é o que se mostra na terceira etapa da primeira parte do livro

(pp. 78-87). Em poucas palavras, a “teologia não é, com efeito, segundo

Henrique, somente uma ciência verdadeira e própria segundo os cânones da

epistemologia aristotélica, mas a ciência mais certa (mesmo do que a

matemática), mais universal (mesmo do que a metafísica), subalternante com

respeito a todas as outras disciplinas e não subalternada por nenhuma outra

(nem mesmo por aquela divina), primeira”21 (p. 87). Ao que parece, para Arezzo,

isto é o fundamental na caracterização da teologia para Henrique de Gand: ela é

uma ciência não subalternada, uma vez que seus princípios são evidentes não por

alguma ciência superior, mas pelo lumen teológico que possibilita ao intelecto

humano o conhecimento da evidência desses princípios. Como aponta Arezzo, a

defesa da não-subalternação da teologia surge em Henrique “em polêmica com

Egídio Romano, mais do que com Tomás [in polemica con Egidio Romano più che

con Tommaso]” (p. 81) de Aquino. Em todo caso, a exposição da comentadora

parece deixar clara a relação existente, na noção de teologia do Doutor Solene,

entre [i] a afirmação de um lumem teológico, [ii] a defesa de uma não-

subalternação da teologia e [iii] a concepção de teologia como ciência superior.

Disso tudo, deriva o cuidado de Henrique ao caracterizar o doctor

theologiae, visto ser o professor de teologia precisamente aquele a receber a

iluminação que fundamenta a teologia como ciência superior às ciências

filosóficas. Por isso mesmo, parece-me, Arezzo dedica a derradeira etapa de seu

20 “L’originale tesi di Enrico in merito allo statuto della teologia è, dunque, questa: essa è una scienza vera e propria, perché i credibilia possono diventare intelligibilia per via di una illustratio superior rispetto a quella della fede e della ragione” (grifos no orig.). 21 “La teologia non è infatti, secondo Enrico, solo una scienza vera e propria secondo i canoni dell’epistemologia aristotelica, ma la scienza più certa (anche della matematica), più universale (perfino della metafisica), subalternante rispetto a tutte le altre discipline e non subalternata a nessun’altra (nemmeno a quella divina), prima” (grifos no orig.).

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estudo sobre a teologia em Henrique de Gand à caracterização, por parte deste

último, do doctor desta ciência (pp. 88-96). Ao fim, temos que o professor de

teologia se caracteriza por um “modo de ser, de conhecer e de viver que, por

meio do lumen speciale, excede as próprias capacidades naturais de todos os

outros homens <...> [un modo di essere, di conoscere e di vivere che, per via del

lumen speciale, eccede le stesse capacità naturali di tutti gli altri uomini]” (p. 96 –

grifo no orig.). Estaríamos, portanto, em face de um “elitismo teológico

[elitarismo teologico]”, que seria a resposta do Doutor Solene ao “elitismo

filosófico [elitarismo filosofico]” almejado pelos artistae condenados em 1277 (p.

96).

A caracterização da teologia proposta por Henrique de Gand parte da

constatação de que o homem almeja mais do que pode obter de maneira

estritamente natural. Isso é válido para a filosofia, na qual a verdade da coisa

natural só pode ser conhecida por iluminação divina. Porém, é mais verdadeiro

ainda no caso da teologia, onde o objeto que apetece ao intelecto é, ele próprio,

sobrenatural. Esse apetite por um conhecimento sobrenatural mostra que toda

ciência sobre coisas naturais deve ser obtida com o fim de conhecer o

sobrenatural. Esse fim, porém, só pode ser alcançado com um auxílio divino que

permita ao nosso intelecto conhecer, a partir do natural, o sobrenatural,

tornando o que era apenas crível algo inteligível e científico para o homem (cf. p.

75). Mas, se por esse conhecimento intelectual e, assim, científico, conhecemos o

sobrenatural, segue-se que essa ciência será superior àquelas que dizem respeito

a objetos naturais. Da mesma maneira, o doctor dessa ciência será superior

àqueles das ciências filosóficas. Essa é, fundamentalmente, ao que me parece, a

interpretação de Arezzo acerca da concepção de teologia elaborada por

Henrique de Gand. Do meu ponto de vista, o que mais chama a atenção aqui é o

modo como a autora consegue agregar e ordenar elegante e coerentemente os

diversos aspectos da discussão sobre teologia desenvolvida nos primeiros artigos

da Suma como um preâmbulo ao trabalho teológico apresentado a partir de

Suma, art. 21.

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II.III. Como já notado acima, após esse cuidadoso e aprofundado estudo da

concepção de teologia desenvolvida por Henrique de Gand, o restante de Lumen

medium recai em uma narrativa de caráter generalizante (aparentada, portanto, à

da introdução ao livro) acerca da recepção daquela posição que a comentadora

lê no Doutor Solene. Mais precisamente, Arezzo busca, nessa segunda parte de

seu livro, expor o modo como a concepção de ciência teológica de Henrique foi

“duramente criticada, por exemplo, pelo mestre secular Godofredo de

Fontaines, pelos dominicanos João Quidort de Paris, Tiago de Metz, Herveu

Natal e Durando de São Porciano, pelos franciscanos João Duns Escoto e Pedro

Auriol e pelo primeiro mestre carmelita Gerardo de Bologna”22 (p. 99). Ou seja,

o período coberto pela autora compreende a passagem do século XIII para o

XIV, bem como as primeiras décadas deste último. Sendo assim – dada tamanha

amplitude cronológica da narrativa –, seria vão tentar expor em detalhes os

meandros da argumentação de Arezzo. Por outro lado, poderemos recorrer à

conclusão do livro para uma formulação geral das posições da comentadora

nesta segunda parte de sua obra. Antes disso, porém, notemos rapidamente o

modo de exposição adotado neste trecho de Lumen medium. Essa parte 2 do

livro é divida em oito itens, cada qual dedicado a um dos autores mencionados

na última passagem citada. A cada etapa, Arezzo busca fornecer informações

introdutórias sobre a biografia intelectual e a situação atual de estabelecimento

das obras de cada autor. Em seguida, há em todos os casos um esforço por

analisar textos precisos onde tais autores se posicionem com respeito àquelas

teses acerca da cientificidade da teologia que líamos em Henrique de Gand.

Dito isso, é interessante notar que, muito embora no decorrer da parte 2

os autores supracitados sejam estudados em ordem cronológica, ao sumarizar os

resultados de sua pesquisa, já na conclusão, a comentadora prefere separá-los de

acordo com os grupos eclesiásticos a que estavam institucionalmente associados.

Assim, Godofredo de Fontaines – único secular da listagem – surge como aquele

22 “La dottrina enrichiana del lumen medium <…>, tra il XIII e il XIV secolo, è stata aspramente criticata, ad esempio, dal maestro secolare Goffredo di Fontaines, dai domenicani Giovanni Quidort di Parigi, Giacomo di Metz, Erveo di Nédellec e Durando di San Porziano, dai francescani Giovanni Duns Scoto e Pietro Aureolo e dal primo maestro carmelitano Gerardo di Bologna” (grifo no orig.).

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para quem “a teologia não é uma ciência proprie, sobretudo porque lhe falta a

certitudo evidentiae [la teologia non è una scienza proprie soprattutto perché le

manca la certitudo evidentiae]” (p. 206 – grifos no orig.). Tiago de Metz, Herveu

Natal e Durando de São Porciano são descritos como dominicanos que

entendem a teologia como “uma scientia que é tal somente ‘em sentido amplo’ e

que igualmente ‘em sentido amplo’ pode ser considerada subalternada àquela

divina”23 (p. 206). João Quidort seria uma exceção entre os dominicanos ao, não

obstante recusar a doutrina do lumem teológico, “considerar que a teologia é

uma ciência verdadeira e própria [ritenere che la teologia sia una scienza vera e

propria]” (p. 206). Gerardo de Bologna, por sua vez, único carmelita da listagem

acima, considera que a teologia “não seja de maneira alguma científica [non sia

affatto scientifica]” (p. 206); porém, ainda que se afaste de Henrique neste ponto

doutrinário, “nas primeiras doze questões de sua Suma, Gerardo” segue “o

modelo daquela henriquina retomando dela o novo esquema de accessus à

teologia <...>”24 (p. 207). Por fim, os dois franciscanos, João Duns Escoto e Pedro

Auriol, recusam a noção de lumen teológico tal como proposta por Henrique de

Gand, mas admitem a possibilidade de um conhecimento científico, superior à fé,

sobre Deus na vida presente (p. 207). Ao cabo, após a avaliação da recepção

crítica da concepção de teologia defendida pelo Doutor Solene, Arezzo crê

poder resumir a duas as dificuldades que levaram à recusa da posição por ele

formulada: “1) a oposição entre ciência e fé entendidas como actus; 2) a

impossibilidade de conhecer com evidência os credibilia nesta vida”25 (p. 206). Em

outras palavras, um lumen que permita a passagem da fé para a ciência ou de

credibilia a intelligibilia parece improvável devido à própria oposição extrema entre

fé e ciência, crível e inteligível. 23 “Sulla base di tali argomentazioni, i domenicani Giacomo di Metz, Erveo di Nédellec e Durando di San Porziano oppongono al modello enrichiano di teologia come super-scienza quello di una scientia che è tale solo ‘in senso largo’ e che, altrettanto ‘in senso largo’, può essere considerata subalternata a quella divina <…>” (grifo no orig.). 24 “Nonostante, nelle prime dodici questioni della sua Summa, Gerardo segua il modello di quella enrichiana riproponendone il nuovo schema di accessus alla teologia, le argomentazioni e in alcuni casi perfino gli esempi, egli non ne condivide l’ideale di scienza teologica” (grifo no orig.). 25 “Le tesi di fondo che conducono molti maestri a criticare il lumen medium, come si è visto, sono in pratica due: 1) l’opposizione tra scienza e fede, intesi come actus; 2) l’impossibilità di conoscere con evidenza i credibilia in questa vita” (grifos no orig.).

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Sem dúvida, a rapidez com que formulamos as posições adotadas por

Arezzo na parte 2 de Lumen medium não faz jus ao cuidado com que ela se

dedica ao estudo dos autores elencados. Por outro lado, fica bem clara, na

transição da primeira para a segunda parte de seu livro, a diferença de

abordagem necessária quando se passa do estudo aprofundado e pontual de um

tema em um único autor – no caso, Henrique de Gand – para o estudo do

mesmo tema em um série de autores cujos trabalhos foram desenvolvidos no

decorrer de anos ou décadas. Decerto, o estudo buscado na introdução ou na

parte 2 de Lumen medium é importante pela contextualização histórica da

temática pesquisada em Henrique de Gand. Há nele, porém, o perigo de

simplificação das posições que lemos nos autores estudados ao se deixar de lado

o contexto filosófico interno à obra de cada autor na qual elas se desenvolvem.

Arezzo parece tentar escapar a esse problema ao buscar sempre oferecer uma

ampla bibliografia a respeito de cada pensador abordado, o que é, sem dúvida, de

grande valia para seu leitor.

III.

Seguido o percurso de Lumen medium, vemos que Arezzo se posiciona muito

claramente com respeito à dificuldade que colocávamos ao início desta resenha.

Para ela, no pensamento de Henrique de Gand, a [i] iluminação divina que diz

respeito ao conhecimento da verdade da coisa e a [ii] iluminação divina que diz

respeito ao conhecimento teológico são certamente distintas. Há, porém, um

paralelismo entre elas, pois tal como [i] o conhecimento da verdade filosófica

acerca de coisas naturais exige uma determinada iluminação divina, também [ii] o

conhecimento dos credibilia como evidentes exige uma iluminação mais especial,

a saber, aquela típica da teologia. Esse paralelismo é quebrado somente pelo fato

de que a iluminação teológica proporciona um conhecimento superior ao

conhecimento filosófico, sendo este último subordinado àquele.

Com efeito, parece-me que Arezzo propõe uma resposta elegante,

cuidadosa e textualmente bem fundamentada para um dos problemas centrais no

estudo da concepção de ciência – e, em geral, de conhecimento humano – em

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Henrique de Gand. Já por esse aspecto, o livro resenhado se apresenta como

uma importante contribuição ao estudo desse autor. A isso se adiciona o fato de

a obrar ser rica em referências bibliográficas sobre os diversos temas abordados.

Por fim, Lumen medium se mostra também uma instigante introdução à discussão

acerca da cientificidade da teologia na passagem do século XIII para o XIV. Ainda

que por vezes certos autores sejam abordados mais rapidamente, há sem dúvida

material suficiente no texto para que o leitor possa complementar por si mesmo

os comentários ali propostos.

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CROSS, R. Duns Scotus’s Theory of Cognition. Oxford: Oxford University Press, 2014, xiv + 224 p.

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

Nas palavras do próprio Richard Cross, esse livro representa uma novidade em

sua abordagem da filosofia medieval e, em particular, do pensamento de João

Duns Escoto. Segundo o autor, Duns Scotus’s Theory of Cognition é sua primeira

tentativa de “escrever um livro que seja puramente filosófico, em vez de um

<livro> que ocupe o penumbroso espaço entre as duas disciplinas”1 (p. vii), isto

é, teologia e filosofia. Com efeito, muito do importante trabalho realizado por

Cross tem o valor de circular muito bem entre a teologia e a filosofia

escolásticas 2 – um valor que, muitas vezes, não se encontra em outros

comentadores, que buscam em mestres de teologia medievais um pensamento

estritamente filosófico. Na presente obra, porém, o objetivo de Cross é

justamente o oposto, ou seja, buscar uma expressão o mais filosófica possível da

noção de conhecimento em Duns Escoto. Se tal abordagem é

metodologicamente nova quando comparada aos demais comentários

produzidos pelo próprio Cross, não parece possível compartilhar tão

prontamente de seu juízo, segundo o qual não haveria “em inglês – ou,

provavelmente, em qualquer outra língua – um amplo estudo do tema”3 (p. vii)

com que ele lida aqui. Pelo contrário, parece-me que seu livro forma um

precioso par com aquele de Dominique Demange, Jean Duns Scot. La théorie du

* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. 1 “<...> I felt it rather incumbent upon myself to write a book that was purely philosophical, rather than one occupying the penumbral space between the two disciplines, where much (though not all) of my previous work had been”. 2 Como exemplo disso, destaque-se, antes de tudo: CROSS, R. Duns Scotus. New York-Oxford: Oxford University Press, 1999. Outro exemplo de trabalho tributário da mesma linha interpretativa é CROSS, R. “Where Angels Fear to Tread’: Duns Scotus and Radical Orthodoxy”. Antonianum. 76 (2001), pp. 7-41. 3 “<...> since there is in English – and arguably in any other language – no comprehensive account of the subject <...>”.

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CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition

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savoir, lançado em 2007, e já resenhado neste mesmo caderno4. Ainda que Cross

se utilize da obra de Demange (e.g., pp. 78-80), ele não parece discutir alguns de

seus principais aspectos, ao que voltarei adiante.

Pois bem, uma vez que a noção de conhecimento é um dos temas mais

candentes na recepção contemporânea da obra de Duns Escoto e Richard Cross

tem sido uma das principais referências na interpretação desse pensador

medieval, não impressiona que Duns Scotus’s Theory of Cognition já tenha recebido

bastante atenção. De fato, muitas foram as resenhas dedicadas a ele

recentemente, de maneira que não se faz necessário apresentar um resumo

ordenado do conteúdo do livro – tal resumo pode ser lido em outras avaliações

da obra5. Por isso mesmo, a seguir, contento-me em apresentar rapidamente e

de modo esboçado o caminho seguido por Cross em seu estudo. Isso nos

permitirá dedicar maior cuidado à consideração de elementos precisos de sua

interpretação de Duns Escoto.

II.

No livro ora resenhado, a discussão sobre a noção de conhecimento em Duns

Escoto é distribuída por dez capítulos. Estes são antecedidos por uma introdução

(pp.1-17) na qual são apresentados o estado atual das pesquisas sobre as obras

do Doutor Sutil, o pano de fundo filosófico e (em menor medida) teológico

sobre o qual ele desenvolve sua concepção de conhecimento e, finalmente, os

pressupostos metafísicos que antecedem e determinam a discussão sobre o

conhecimento em sua obra. Ainda ao fim da introdução, Cross nos faz um rápido

alerta metodológico, lembrando que “Escoto não oferece um tratamento

sistemático desses temas <i.e., relativos à noção de conhecimento> e suas

observações estão espalhadas em toda parte por sua razoavelmente extensa 4 STORCK, A. “Resenha de: DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir, Paris, Vrin, “Sic et non”, 2007, 474p”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 1 (2009), pp. 16-21. 5 As resenhas a que tive acesso são aqueles de autoria de Robert Andrews (Journal of the History of Philosophy 53.3 (2015), pp. 548-9), Mário Correia (Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Porto 32 (2015), pp. 219-26), Oleg V. Bychkov (Franciscan Studies 74 (2016), pp. 392-401), Therese Scarpelli Cory (Vivarium 54 (2016), pp. 117-21), Henrik Lagerlund (Notre Dame Philosophical Reviews (March 07, 2016), http://ndpr.nd.edu/news/duns-scotuss-theory-of-cogniti on/).

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produção filosófica e teológica”6 (p. 16). Por isso mesmo, o livro se produz como

uma colagem de excertos (cujas edições disponíveis surgem, por vezes,

corrigidas com base em manuscritos) das mais diversas obras de Duns Escoto.

Por meio de tal colagem, almeja-se a apresentação de uma posição filosófica una

e coerente, ainda que sujeita a mudanças desde um ponto de vista diacrônico.

Assim, como era explicado no prefácio, Cross busca em seu livro “notar algo do

desenvolvimento do pensamento de Escoto sobre o tema”, apresentando aquilo

que ele crê ser “uma visão geral sintética que representa, de forma mais ou

menos acurada, o pensamento de Escoto no momento de sua morte”7 (p. vii).

Após a introdução, seguem-se os dez capítulos supracitados.

Basicamente, nos caps. 1-7 estudam-se o mecanismo de produção causal do

conhecimento – seja tal conhecimento sensível (cap. 1), intelectual intuitivo (cap.

2) ou intelectual abstrativo (caps. 3-4) –, a classificação categorial do ato de

conhecimento (cap. 5) e as potências ativas e passivas envolvidas na produção do

conhecimento intelectual (caps. 6-7). Já os caps. 8-10 se voltam para a

caracterização do próprio conhecimento em termos de intencionalidade (cap. 8),

para a descrição do pensamento como verbo e linguagem mental (cap. 9) e para

a caracterização metafísica do objeto como esse inteligibile (cap. 10). Em resumo,

os “[c]apítulos 1 a 7 tratam do nível do real; os três capítulos restantes

examinam temas que dizem respeito à intencionalidade e ao conteúdo

conceitual”8 (p. 16). A isso segue-se uma conclusão (pp. 200-3) na qual Cross

resume em poucas palavras os ganhos que ele considera ter obtido em seu livro

no que tange à interpretação da noção de conhecimento em Duns Escoto e, por

6 “A brief note on method. As I have indicated, Scotus offers no systematic treatment of these issues, and his remarks are scattered far and wide throughout his rather extensive philosophical and theological output”. 7 “He <i.e. Duns Escoto> provided no truly systematic discussion of the whole area; his views on the topics I examine were to some extent in a state of flux; and he never managed to synthesize his various attempts at systematization into one consistent whole. I attempt here to note something of the development in Scotus’s thinking on the matter, and also to present what I believe is a synthetic overview that represents, more or less accurately, Scotus’s thinking at the time of his death”. 8 “Chapters 1 to 7 deal with the level of the real; the remaining three chapters examine issues surrounding intentionality and conceptual content <...>” (grifos no original). Note-se que a resenha de Mário Correia (cf., acima, nota 5) apresenta um resumo bem detalhado, etapa por etapa, do conteúdo do livro de Cross.

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fim, compara este último a Guilherme de Ockham, buscando mostrar o Doutor

Sutil como um pensador de transição, “adotando muitos aspectos da psicologia

do século XIII e, ao mesmo tempo, inventando ou antecipando muitos aspectos

da psicologia do século XIV”9 (p. 203).

Feito esse rápido resumo do livro, não será meu objetivo aqui (como,

ademais, já foi mencionado) expor detalhadamente cada capítulo. Antes,

pretendo a seguir comentar rapidamente alguns poucos elementos do livro de

Cross dentre os vários que, a meu ver, merecem destaque.

II.I. Um tema enfatizado por Cross em sua intepretação da noção de

conhecimento de Duns Escoto é a distinção entre processos mentais conscientes

e inconscientes. Lemos, por exemplo, que “o processo abstrativo é automático e

inconsciente [unconscious]”10 (p. 68), enquanto que “formar definições de tipos

requer uma boa dose de trabalho intelectual consciente [conscious]”11 (p. 70) –

esse trabalho consciente, descobrimos algumas páginas depois, é associado ao

controle que a vontade exerce sobre o intelecto (pp. 134-7). A meu ver, o

problema fundamental dessa interpretação é a releitura da distinção [i] entre

intelecto e vontade como uma distinção [ii] entre inconsciente e consciente. A

primeira dificuldade aqui é o fato de que a noção de conscientia possui um

estabelecido uso técnico na ética de Duns Escoto, onde ela mais diretamente se

associa ao intelecto do que à vontade12. De outra parte, a leitura de Cross se

justificaria caso o próprio Duns Escoto não oferecesse uma alternativa de

9 “<...> Scotus represents something of a transition position, adopting many aspects of thirteenth-century psychology while at the same time inventing, or anticipating, many aspects of fourteenth-century psychology”. A bem dizer, parece-me bem pouco claro o que seria descrever um autor como estando em posição de ‘transição’. Isso soa como a negação da possibilidade de um leitura interna da obra de tal autor – ou seja, daquilo mesmo que Cross busca em seu livro. Tal classificação me parece tão problemática quanto aquela de ‘pensador intermediário’, rejeitada veementemente por Pasquale Porro no contexto do estudo de Henrique de Gand – cf. PORRO, P. “Metaphysics and Theology in the Last Quarter of the Thirteenth Century: Henry of Ghent Reconsidered”. In: AERTSEN, J. A., SPEER, A. (Hrsg.). Geistesleben im 13. Jahrhundert. Berlin – New York: De Gruyter, 2000, pp. 265-282 (esp. p. 267). 10 “First, the abstractive process is automatic and unconscious <...>”. 11 “He righlty holds that forming definitions of kinds requires a great deal of conscious intellectual work”. 12 Cf. e.g. KANTOLA, I. Probability and Moral Uncertainty in Late Medieval and Early Modern Times. Helsinki: Luther-Agricola-Society, 1994, pp. 95-102.

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distinção entre operações puramente intelectuais e operações volitivas.

Entretanto, o Doutor Sutil justamente se volta para tal distinção em Qq. super

Metaph. IX, q. 15, onde nos é dito que “a primeira divisão dos princípios ativos é

em natureza e vontade [prima divisio principiorum activorum est in naturam et

voluntatem]” 13 – nas clássicas palavras de Étienne Gilson, “<d>uas forças

dominam o domínio do ser e partilham seu império, a natureza e a vontade”14.

Ainda na mesma questão, Duns Escoto explica que o intelecto diz respeito à

natureza (isto é, possui uma determinação natural para um único)15, enquanto

que a vontade é, precisamente, indeterminada quanto a opostos16. Nesse caso, a

tentativa de Cross de explicar a oposição entre processos intelectivos e

processos volitivos por uma distinção entre consciente e inconsciente não se

mostra necessária, uma vez que o próprio Doutor Sutil fornece uma chave de

leitura para aquela oposição, a saber, a distinção mais geral entre natureza e

vontade como princípios ativos primários. Além disso, ao tomar por base a

distinção proposta em Qq. super Metaph. IX, q. 15, o comentador evitaria a

utilização do termo ‘consciência’ em um contexto alheio àquele em que tal

termo de fato surge na obra de Duns Escoto.

II.II. Como já mencionado acima, o cap. 2 do livro de Cross é estritamente

voltado para o conhecimento intuitivo na obra do Doutor Sutil. A bem dizer, a

noção de conhecimento intuitivo surge ainda no capítulo anterior, quando nos é

lembrado que a própria sensação é intuitiva: “[s]ensação é um caso padrão de

13 Duns Escoto, Qq. super Metaph. IX, q. 15, n. 23 (ed. St. Bonaventure, 1997, p. 681). A primordialidade de tal divisão fica clara no próprio fato de não se poder apontar sua causa (cf., adiante, nota 16). 14 GILSON, É. Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris: Vrin, 20052 [1952], p. 574: “Deux forces dominent le domaine de l’être et s’en partagent l’empire, la nature et la volonté”. 15 Duns Escoto, Qq. super Metaph. IX, q. 15, n. 36 (ed. St. Bonaventure, 1997, p. 684): “Et sic intellectus cadit sub natura. Est enim ex se determinatus ad intelligendum <...>”. 16 Duns Escoto, Qq. super Metaph. IX, q. 15, n. 24 (ed. St. Bonaventure, 1997, p. 681): “Si ergo huius differentiae quaeritur causa, quare scilicet natura est tantum unius (hoc est – cuiuscumque vel quorumcumque sit – determinate ex se illius vel illorum), voluntas autem est oppositorum (id est, ex se indeterminate huius actionis vel oppositae, seu actionis vel non actionis), dici potest quod huius nulla est causa”.

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percepção (aquilo que Escoto denomina ‘conhecimento intuitivo’) <...>”17 (p. 22).

Por outro lado, tal sensação intuitiva não é capaz de conhecer a própria

singularidade da coisa, dizendo respeito antes à sua natureza comum enquanto

existente: “[n]ós conhecemos [cognize] não somente o singular mas também a

natureza comum; mas tal como a natureza comum não existe sem singularidade,

assim também não conhecemos [cognize] intuitivamente a natureza, existente e

presente, sem singularidade. O que não podemos conhecer [know], decerto, é a

haecceidade <...>”18 (p. 22). Em outras palavras, a sensação conhece as naturezas

existentes e presentes enquanto existentes e presentes, de tal maneira a

conhecê-las enquanto singulares (mas não em sua singularidade – isto é, naquilo

pelo que cada qual é um tal singular). O grande problema está em transferir essa

doutrina dos sentidos para o intelecto – precisamente aquilo que Duns Escoto

pretende fazer. O próprio Cross nos alerta a respeito das dificuldades, agora já

tratando do conhecimento intuitivo intelectual: “há diversos debates a respeito da

natureza precisa e do escopo do conhecimento intuitivo na visão de Escoto. É

possível, em nosso estado atual, ter conhecimento intuitivo de objetos

extramentais? E, se for, tal conhecimento deve contar como uma variedade de

percepção extrassensorial (PES) ou ele envolve em algum sentido espécies

intermediárias?”19 (p. 45).

A convicção de Cross é que “Escoto, pelo menos em seu trabalho tardio,

vem a aceitar que o conhecimento intuitivo de objetos extramentais é, de fato,

possível e que ele sempre requer algum tipo de espécie (sensível)”20 (p. 45).

Além disso, em um longo desenvolvimento neste cap. 2, o comentador conclui

17 “Sensation is standardly a case of perception (what Scotus calls ‘intuitive cognition’) <...>” (grifo no orig.). 18 “We cognize not merely the singular but also the common nature; but just as the common nature does not exist without singularity, so too we do not intuitively cognize the nature, existent and present, without singularity. What we cannot know, of course, is the haecceity <...>” (grifo no orig.). 19 “There are a number of debates about the precise nature and scope of intuitive cognition in Scotus’s view. Is it possible in our current state to have intuitive cogntion of extramental objects? And if it is, should such cognition count as a variety of extrasensory perception (ESP), or does it involve in any sense intermediary species?”. 20 “Here, I argue that Scotus, at least in his later work, comes to accept that intuitive cognition of extramental objects is indeed possible, and that it always requires some kind of (sensible) species”.

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que, nessa posição tardia, não se poderia envolver o fantasma na intelecção

intuitiva (p. 56). Ou seja, resta que a espécie sensível a que o intelecto recorreria

para o conhecimento intuitivo seria aquela dos sentidos externos: “Camille

Bérubé afirma a possibilidade do conhecimento intuitivo dos objetos particulares

por meio [via] dos sentidos. Ele insiste que a sensação (com suas várias espécies)

é em algum sentido um intermediário causal, mas insiste que, não obstante, esse

conhecimento é direto: o ato de sensação não é, ele próprio, o objeto de

intuição nesses casos e o conhecimento intuitivo fornece informação sobre os

objetos enquanto presentes. Parece-me que Bérubé está exatamente correto”21

(pp. 51-2).

Dito isso, é interessante notar como essa interpretação da doutrina da

intuição tardia de Duns Escoto, na qual intelecção intuitiva surge estreitamente

associada à sensação ao mesmo tempo em que exclui qualquer referência à

imaginação, nos remete à noção de conhecimento intelectual do singular

elaborada por Vital de Furno. Nas palavras de John E. Lynch, o “intelecto, Vital

de Furno conclui, conhece o ente [being] singular em sua existência ao conhecer

a sensação que tem lugar em um dos órgãos dos sentidos”22. Como Bérubé

igualmente destacava, para Vital, “nesta e por esta sensação, o intelecto conhece

a atualidade da coisa, não ao lançar seu olhar (aspectus) para fora, por um certo

contato, sobre esta atualidade da coisa enquanto é exterior ao sujeito, mas

somente enquanto ela é no sentido”23. Com efeito, nas Questões disputadas sobre

o conhecimento de Vital de Furno, lemos que “o intelecto conjugado, quando

existe um ato do sentido particular, atinge por apreensão a atualidade da

21 “Camille Bérubé affirms the possibility of intuitive cognition of extramental objects via the senses. He insists that sensation (with its various species) is in some sense a causal intermediary, but insists that, nevertheless, this cognition is direct: the act of sensation is not itself the object of intuition in such cases, and intuitive cognition gives information about objects as present. Bérubé seems to me to be exactly right” (grifos no orig.). Em nota, Cross remete a BÉRUBÉ, C. La connaissance de l’individuel au moyen âge. Préface de P. Vignaux. Montréal – Paris: Presses de l’Université de Montréal – PUF, 1964, p. 201. 22 LYNCH, J. E. The Theory of Knowledge of Vital du Four. St. Bonaventure: The Franciscan Institute, 1972, p. 60: “The intellect, Vital du Four concludes, knows a singular being in its existence by knowing the sensation that takes place in one of the sense organs”. 23 BÉRUBÉ, La connaissance de l’individuel..., 1964, p. 119: “Et dans et par cette sensation, l’intellect connaît l’actualité de la chose, non en portant son regard (aspectus) au dehors, par un certain contact, sur cette actualité de la chose en tant qu’exterieure au sujet, mais seulement en tant qu’elle est dans le sens” (grifos no orig.).

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existência de qualquer coisa sensível singular ou, pelo menos, pode atingir, se se

converter”24. Aqui, afirma-se a necessidade e anterioridade do ato do sentido

com respeito ao ato de conhecimento do singular pelo intelecto. Mais adiante,

Vital descreve com mais detalhes a relação entre essas duas potências

cognoscitivas neste caso de conhecimento: “o intelecto, porém, atinge

diretamente a mesma atualidade tal como é no sentido, uma vez que apreende

diretamente a própria sensação ou o movimento que o sensível faz enquanto

presente e existente em ato no sentido particular <...>; ele, porém, não estende

seu olhar como que de modo tátil [quasi modo tactivo] sobre uma tal atualidade

sensível como é fora enquanto é fora, mas somente enquanto é no próprio ato

do sentidos <...>”25.

Note-se como, para Vital, o conhecimento intelectual do singular diz

respeito à existência e presença da coisa já conhecida presentemente em ato pelo

sentido. A meu ver, esse estreitamento, em Vital, da relação entre intelecto e

sentido externo sem necessidade da intermediação do fantasma é algo próximo

da doutrina da intelecção intuitiva que Cross lê em Duns Escoto. De outra parte,

parece haver um claro afastamento entre os dois mestres escolásticos: se para

Vital o intelecto conhece o singular somente enquanto este é no sentido, para

Duns Escoto, sempre lendo-o com Cross, o sentido é somente um meio para que

o intelecto chegue ao próprio singular em si mesmo, em sua existência própria.

Essa dissensão fica muito clara quando atentamos para os vocabulários de cada

autor: para Vital, o intelecto não se estende “de modo tátil [modo tactivo]” para

além do sentido, enquanto para Duns Escoto a intelecção intuitiva justamente

possui uma relação pela qual atinge (attingit) a coisa enquanto existente (“relatio

attingentiae alterius ut termini”)26. De fato, o caráter fundamental dessa relação

24 Vital de Furno, Qq. de cognitione, q. 1, co. (ed. Delorme, AHDLMA 1927, p. 179): “<...> dico quod intellectus coniunctus, actu existente sensus particularis, apprehensione attingit actualitatem existentiae cuiuslibet rei sensibilis singularis vel saltem, si convertat se, attingere potest”. 25 Vital de Furno, Qq. de cognitione, q. 1, co. (ed. Delorme, AHDLMA 1927, p. 179): “Intellectus autem directe eamdem actualitatem, ut est in sensu, attingit, pro eo quod apprehendit directe ipsam sensationem seu motionem quam facit sensibile ut praesens et actu existens in sensu particulari <...>; non tamen extendit aspectum quasi modo tactivo supra huiusmodi illam actualitatem sensibilis ut est extra secundum quod est extra, sed solum secundum quod est in ipso actu sensus <...>”. 26 Duns Escoto, Quodl., q. 13, nn. 34-36 [11] (ed. Alluntis, 1968, pp. 458-9).

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para a caracterização da intuição intelectual no Doutor Sutil é destacado por

Cross no cap. 8 (pp. 150-70). Em todo caso, seja por dissensões ou

concordâncias, a leitura de Cross parece aproximar a doutrina do conhecimento

intelectual do singular desenvolvida por Duns Escoto daquela elaborada por Vital

de Furno. A relação entre esses dois autores nesse campo é algo que ainda se

está por explorar mais profundamente.

II.III. Um dos aspectos mais polêmicos do livro de Cross é, possivelmente, sua

defesa de que haveria uma concepção de ‘linguagem mental’ (mental language) na

filosofia de Duns Escoto: “<...> eu afirmo que Escoto possui a descrição de uma

linguagem mental que, embora não particularmente similar à de Ockham,

claramente antecipa aspectos da teoria do próprio Ockham”27 (p. 201). Essa tese,

como já mencionado, é desenvolvida no cap. 9. Aí lemos que, para Cross, a

maneira como Duns Escoto associa verdade e pensamento em sua obra termina

por exigir algum modo de complexidade ou estrutura sintática nos conceitos do

intelecto: “[m]inha impressão é que Escoto está tentando encontrar um modo

de falar a respeito do fato de que (no que, creio, ele acredita) pensamentos são

os portadores fundamentais de valores de verdade e que isso exige que alguns

deles possuam algum tipo de estrutura sintática”28 (p. 181). Não pretendo aqui

discutir a proposta de que haveria uma linguagem mental (sintaticamente

estruturada) na filosofia de Duns Escoto. Antes, interessa-me apenas destacar um

elemento da argumentação de Cross.

Ao buscar ilustrar mais claramente como ocorreria, para o Doutor Sutil,

a composição de estruturas sintáticas a partir de conceitos simples, o

comentador recorre a um dos textos mais pesquisados por aqueles interessados

na concepção de linguagem em Duns Escoto, a saber, Ord. IV, d. 8, q. 2. Nessa

questão, estuda-se a fórmula da eucaristia e o seu papel na produção do

sacramento. Em determinado momento da argumentação, torna-se necessário

27 “So too, I maintain that Scotus has an account of mental language, that, while not particularly like Ockham’s, clearly anticipates aspects of Ockham’s own theory”. 28 “My impression is that Scotus is trying to find a way to talk about the fact that (as I think he believes) thoughts are the fundamental bearers of truth-values, and that this requires some of them to have some kind of syntactic structure” (grifo no orig.).

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explicar mais precisamente como um ouvinte pode, a partir de palavras ouvidas,

formar o conceito de uma proposição. Nesse ponto, lemos os trechos que

interessam a Cross: [i] “o intelecto, no último instante <sc. da enunciação>,

causa por sua colação [per suam collationem] o intelecto ou o conceito do

todo”29; e [ii] “<...> aquela significação <sc. da parte da oração> não é a razão

formal de que se cause aquele conceito no ouvinte, mas é uma disposição

anterior à qual se segue, pela colação do intelecto, a causação do conceito todo

a partir dos conceitos causados pelas partes”30. Assim Cross interpreta tal

posição: a “ideia é que as partes da enunciação são mantidas como ‘disposições’,

que o intelecto combina na conclusão da enunciação – e, suponho, de maneiras

que espelham a estrutura sintática da enunciação falada”31 (p. 177). Destarte,

nessa leitura, o conceito do todo formado pelo intelecto do ouvinte ao fim do

enunciado será sintaticamente semelhante ao próprio enunciado – isto é, será

uma estrutura sintática conceitual que espelha a estrutura sintática da oração

pronunciada. Porém, uma vez que o intelecto, antes de produzir o conceito do

todo deve produzir o conceito de cada parte à medida que as partes do

enunciado são pronunciadas, é preciso explicar de que maneira o intelecto

conheceria, ao fim do enunciado, o papel sintático de cada uma das partes. A

meu ver, é por essa razão que Cross acrescenta: “suponho que os conceitos

causados pelas partes vêm com marcadores sintáticos de algum tipo”32 (p. 178).

Em poucas palavras, o intelecto produziria diversos conceitos no decorrer da

pronúncia do enunciado, cada qual com um marcador sintático que permitiria, ao

29 Duns Escoto, Ord. IV, d. 8, q. 2, n. 108 (ed. Vaticana, vol. 12, p. 26): “<...> intellectus in ultimo instanti <sc. prolationis> per collationem suam causat intellectum vel conceptum totius”. Na tradução de Cross: “The intellect, in the final instant of [the utterance], causes, by means of its combining (collationem), the understanding or concept of the whole” (p. 177). 30 Duns Escoto, Ord. IV, d. 8, q. 2, n. 109 (ed. Vaticana, vol. 12, p. 26): “<...> significatio illa non est ratio formalis causandi illum conceptum in audiente, sed est quaedam dispositio praeambula, ad quam – per collationem intellectus – sequitur causatio totius conceptus ex conceptibus per partes causatis”. Na tradução de Cross: “The signification [of the parts of the utterance] is not the formal grounds for causing the concept [of the whole utterance] in the hearer, but is a kind of preliminary disposition (dispositio praeambula) from which follows, through the intellect’s combination, the causation of the whole concept from the concepts caused by the parts” (p. 178, grifos no orig.). 31 “The idea is that the parts of the utterance are kept as ‘dispositions’, which the intellect combines at the conclusion of the utterance – and, I assume, in ways that mirror the syntactic structure of the spoken utterance”. 32 “I assume the concepts caused by the parts come with syntactic markers of some kind”.

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fim de tal pronúncia, a combinação correta de tais conceitos e, assim, a formação

de um único conceito do todo sintaticamente estruturado de acordo com o

enunciado ouvido.

O principal problema em tal interpretação é, parece-me, a ausência de

referência à imaginação na descrição da comunicação. Com efeito, se atentarmos

para as linhas anteriores ao trecho [i] citado por Cross, colocando tal passagem

em contexto, lemos: [iii] “<...> embora o conceito seja feito no intelecto no

instante após o enunciado da oração ou da palavra, não é feito por ela <...>, mas

no fim do enunciado de qualquer palavra [dictionis], por algo causado na fantasia

pela palavra, por cuja razão – enquanto <ela> era enunciada –, o intelecto causa

em si um conceito da palavra. Ou, mais quanto ao proposto, o intelecto, no

último instante, causa por sua colação [per suam collationem] o intelecto ou o

conceito do todo por aquilo que foi deixado por cada palavra [per aliqua derelicta

a singulis dictionibus] enquanto era enunciada”33. Isso que é deixado por cada

palavra não pode ser algo no intelecto, pois Duns Escoto justamente argumenta

no início deste trecho que a palavra nada causa diretamente no intelecto, mas

antes o intelecto causa em si algo a partir daquilo que a palavra deixou na

fantasia ou imaginação. Ou seja, a imaginação surge aqui como um importante

intermediário entre a palavra ou oração enunciada e o conceito desta palavra ou

oração. A pergunta é: isso afeta em alguma medida a interpretação proposta por

Cross?

A resposta a essa questão depende de como entendemos a collatio a que

Duns Escoto se refere nos textos [i], [ii] e [iii] aqui citados. Cross traduz collatio

pelo inglês “combining / combination”34. Tal tradução favorece sua interpretação,

uma vez que, nessa leitura, o intelecto já possui certos conceitos que ele, em

seguida, combina sintaticamente. No entanto, o mesmo collatio pode ser tomado

como a ação de ‘coletar’ ou ‘coligir’. Nesse caso – e, agora, reintroduzindo a

33 Duns Escoto, Ord. IV, d. 8, q. 2, n. 108 (ed. Vaticana, vol. 12, p. 26): “Ideo dico: cum conceptus fiat in intellectu in instanti post prolationem orationis vel dictionis, non fit per illam, quia illa non est sicut arguitur, sed in fine prolationis cuiuscumque dictionis, per aliquid causatum in phantasia a dictione, cuius ratione – dum fuit in prolatione – intellectus causat in se conceptum aliquem dictionis. Vel ad propositum magis, per aliqua derelicta a singulis dictionibus, dum proferebantur, intellectus in ultimo instanti per collationem suam causat intellectum vel conceptum totius”. 34 Cf. notas 29 e 30, acima.

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imaginação ou fantasia como intermediário entre a enunciação e a intelecção –,

podemos entender que o intelecto, a cada passo da enunciação, forma um

conceito em si a partir da imagem produzida pela palavra na imaginação e, além

disso, ao fim da enunciação, se volta para todas essas imagens (na fantasia) das

diversas palavras enunciadas, formando para si um único conceito do todo.

Nesta última intepretação, a collatio não seria a ‘combinação’ de conceitos já

possuídos, mas o ato pelo qual o intelecto ‘colige’ ordenadamente os efeitos

ordenados das diversas palavras sobre a fantasia, isto é, as imagens. Esta última

parece ser a interpretação de Alain de Libera e Irène Rosier-Catach quando

dizem que “[p]or aquilo que é deixado, depositado, por cada uma das palavras da

fórmula sucessivamente pronunciadas, o intelecto, voltando-se sobre si ao

recapitular ou agrupar essas diferentes imagens por um processo de collatio,

causa o conceito total da frase”35. Deste ponto de vista, a collatio é certamente

uma atividade do intelecto – um voltar-se do intelecto sobre si –, mas que diz

respeito às imagens, isto é, àquilo que as palavras e, ao cabo, a oração deixaram

para trás na fantasia. Agora, a referência a uma collatio por parte do intelecto não

mais remete ou pressupõe uma estrutura sintática conceitual no intelecto, mas

simplesmente uma série sucessiva e ordenada de efeitos sensíveis das palavras

sobre a imaginação. A partir dessa série – ou melhor, coligindo as etapas dessa

série –, o intelecto pode formar para si um conceito único do todo da oração

que, enquanto enunciado, deve ser composto de diversas partes ordenadas

gramaticalmente. Em suma, ao não enfatizar o papel da fantasia na concepção de

comunicação proposta por Duns Escoto em Ord. IV, d. 8, q. 2, Cross termina por

desconsiderar uma possível interpretação desse trecho que prescindiria do

recurso a uma hipotética estrutura sintática dos conceitos do intelecto.

35 LIBERA, A. de, ROSIER-CATACH, I. “L’analyse scotiste de la formule de la consécration eucharistique”. In: MARMO, C. (ed.). Vestigia, imagines, verba. Semiotics and Logic in Medieval Theological Texts (XIIth-XIVth century). Turnhout: Brepols, 1997, pp. 171-102 (cf. p. 181): “Par ce qui est laissé, déposé, par chacun des mots de la formule successivement prononcés, l’intellect, retournant en lui-même en récapitulant ou regroupant ces différentes images par un processus de collatio, cause le concept total de la phrase”. Cf. tb. ROSIER-CATACH, I. La parole efficace. Signe, rituel, sacré. Paris: Éditions du Seuil, 2004, pp. 437-8. O próprio Cross remete a este último texto (p. 178, nt. 27).

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II.IV. Um último ponto que desejo sublinhar diz respeito àquilo que Cross

denomina, no cap. 10, ‘estatuto ontológico do conteúdo mental’ (“ontological

status of mental content”, p. 182) ou, melhor, à relação entre esse tema e o

problema da intencionalidade em Duns Escoto, estudado no cap. 8. Centrais para

o tratamento que Cross devota às duas temáticas são, respectivamente, a noção

de esse intelligibile e a caracterização relacional do conhecimento intelectual

formulada – não somente, mas principalmente – em Quodl., q. 13, nn. 35 [11] (ed.

Alluntis, 1968, p. 459), trecho lido atentamente pelo comentador (p. 153). Em

particular, interessa-me aqui destacar a consideração acerca da primeira relação

que Duns Escoto atribui ao ato de intelecção no referido trecho, a saber, a

relação “do mensurável à medida [mensurabilis ad mensuram]”. Dada a

importância dessa relação para a caracterização da intelecção – mormente, da

intelecção abstrativa – em Duns Escoto, Cross dedica razoável espaço a seu

estudo. Na tentativa de esclarecer o que seria a ‘medida’ a que o Doutor Sutil se

refere aqui, Cross se volta, entre outros, para um excerto do mesmo Quodl., q.

13, onde lemos que uma operação como a intelecção em ato “é algo mensurável

por um objeto, isto é, naturalmente apto a depender em sua entidade do objeto

e isso naquela dependência especial que é daquilo que é similitude por imitação

ou participação para com aquilo de que é similitude”36. Nessa passagem, Duns

Escoto parece pretender explicar a relação ‘do mensurável à medida’ na

intelecção humana como algum tipo de participação, a qual o Doutor Sutil busca

esclarecer algumas linhas antes por comparação à relação entre o intelecto

divino e a ideia conhecida37. Em face desse discurso sobre uma relação de

36 Duns Escoto, Quodl., q. 13, n. 41 [13] (ed. Alluntis, 1968, p. 462): “<...> operatio est huiusmodi, quia est aliquid mensurabile per obiectum, hoc est, aptum natum in entitate sua dependere ad obiectum, hoc in speciali tali dependentia qualis est eius quod est similitudo per imitationem vel participationem ad illud cuius est similitudo”. Na tradução de Cross: “[An act of cognition] is something that is measurable by an object, that is, is naturally apt in its entity to depend on an object with that special dependence which is its, which is likeness (similitudo) by imitation [of] or participation in that thing of which it is a likeness” (p.154, grifos no orig.). 37 Duns Escoto, Quodl., q. 13, n. 39 [12] (ed. Alluntis, 1968, p. 461): “Cum aliquid possit multipliciter participare perfectionem ab alio, actus cognoscendi sic participative se habet respectu obiecti sicut similitudo respectu cuius est. Non dico similitudo per communicationem eiusdem formae, sicut est albi ad album, sed similitudo per imitationem, sicut est ideati ad ideatum”. Na tradução de Cross: “When something can participate in many ways in the perfection of another, so the act of knowing is related to the object by participation, just as a likeness is to that of which it is a likeness. I do not mean a likeness through communication of the

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participação entre objeto e intelecto, a qual poderia ser explicada por uma

aproximação dos casos do conhecimento divino e do conhecimento humano,

Cross afirma o seguinte: “<...> nós não possuímos compreensão da primeira

relação – o modo no qual o ideado é medido por uma ideia divina. Então, a lição

aqui é que há simplesmente uma relação de participar (do modo relevante), ser

(relevantemente) como ou imitar, a qual não admite análise conceitual ulterior”38

(p. 155). Em outras palavras, o máximo a que chegamos na tentativa de

esclarecer o que seria a relação ‘do mensurável à medida’ envolvida na intelecção

é sua caracterização como algum tipo de ‘participação’.

É nesse momento, parece-me, que está a falha na interpretação de Cross.

Como mostrado por Dominique Demange39, a caracterização do conhecimento

intelectual como relação ‘do mensurável à medida’ diz respeito principalmente

(não a uma doutrina da participação, como quereria o autor do livro ora

resenhado, mas) à noção de ‘quantidade virtual’ desenvolvida por Duns Escoto

em etapas do seu trabalho. Com efeito, há textos em que o Doutor Sutil se

refere a uma quantidade – não categorial, mas transcendente e, assim,

conveniente a todo e cada ente – que caracterizaria cada ente localizando-o na

ordem do universo40. Essa noção transcendente de quantitas pode ser uma chave

de leitura para a concepção do conhecimento como relação ‘do mensurável à

medida’, uma concepção que surge não somente no Quodlibet de Duns Escoto,

mas também em suas Questões sobre a Metafísica41. Justamente ao estudar a

temática do conhecimento como relação ‘do mensurável à medida’ com base em

Quodl., q. 13, Demange afirma que a “verdade do conhecimento consiste em uma

same form, as in the case of a likeness between two white objects, but a likeness through imitation, as in the case of the likeness of what is ideated to an idea” (p. 154). 38 “Now, this is, of course, wholly uninformative, because we have non grasp of the first relation – the way in which the ideated is measured by a divine idea. So the lesson is that there is simply a relation, of participating (in the relevant sort of way), or being (relevantly) like, or imitating, that does not admit of further conceptual analysis” (grifos no orig.). 39 DEMANGE, D. “‘Objet premier d’inclusion virtuelle’. Introduction à la théorie de la science de Jean Duns Scot”. In: BOULNOIS, O., KARGER, E., SOLÈRE, J.-L., SONDAG, R. (eds.). Duns Scot à Paris. Actes du colloque de Paris, 2-4 septembre 2002. Turnhout: Brepols, 2004, pp. 89-116 (esp. pp. 105-9); e DEMANGE, Jean Duns Scot. La théorie..., 2007, pp. 236-40. 40 Cf. Duns Escoto, Quodl., q. 6, n. 13 [5] (ed. Alluntis, 1968, pp. 209-10); e Rep. I-A, d. 31, q. 1-3, n. 58 (ed. Wolter & Bychkov, 2008, p. 285). 41 Duns Escoto, Qq. super Metaph. VI, q. 3 (ed. St. Bonaventure, 1997, pp. 57-84). Cf. tb. Qq. super Metaph. V, q. 12-14, nn. 94-9 (ed. St. Bonaventure, 1997, pp. 637-8).

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medida da entidade, quer dizer, em uma relação [rapport] de quantitas virtualis”42.

Nesse sentido, talvez se possa dizer que a intelecção é medida pela quantidade

transcendente típica de cada objeto seu – um ato de intelecção é sobre algo

enquanto toma por medida a quantidade virtual deste algo.

Dito isso, parece-me que a atenção a essa noção de quantitas

desenvolvida por Duns Escoto poderia ter contribuído para a argumentação de

Cross, não somente no cap. 8 (onde é estudada a relação ‘do mensurável à

medida’), mas também no cap. 10. Aí, o comentador defende que o esse

intelligibile a que o Doutor Sutil tantas vezes se refere ao caracterizar o

conhecimento não seria algo distinto do próprio acidente real que é a intelecção

em ato. Esse ser intencional seria realmente idêntico ao ato de intelecção que é,

por sua vez, um acidente na alma: “é simplesmente a estrutura real do item

representacional que explica o conteúdo”43 (p. 195). Na terminologia de Cross,

esse ‘ser inteligível’ é algo intencionalR, isto é, algo real com caráter intencional e

que remete a algo realR ou, dito mais simplesmente, a uma forma natural

estritamente real (não havendo na ontologia de Duns Escoto, para Cross, um

item intencionalI, ou seja, exclusivamente intencional – cf. pp. 35-6, 195). Uma

possibilidade para a compreensão dessa ‘estrutura real do item representacional’,

da qual provém o conteúdo, seria buscar associá-la à noção transcendente de

quantitas desenvolvida pelo Doutor Sutil. Quiçá, poderíamos dizer que o ato de

intelecção (um acidente real) remete a um objeto porque tal ato, de algum

modo, possui uma quantidade essencial proporcional àquela do objeto

conhecido. Destarte, parece-me que a discussão desenvolvida por Cross acerca

do estatuto ontológico do conceito e de seu caráter relacional poderia ser muito

enriquecida pela consideração dessa noção transcendente de ‘quantidade’ que

Demange busca destacar no pensamento de Duns Escoto.

42 DEMANGE, “‘Objet premier d’inclusion virtuelle’”, 2007, p. 109: “La vérité de la connaissance consiste dans une mesure de l’entité, c’est-à-dire dans un rapport de quantitas virtualis” (grifo no orig.).43 “<...> it is simply the real structure of the representational item that explains content <...>” (grifo no orig.).

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III.

Como dito anteriormente, estes são alguns poucos temas dentre os diversos que

merecem discussão no livro de Cross – e que, como mencionado, já foram

abordados em diversas resenhas. Pareceu-me, porém, interessante ressaltá-los

por serem temas centrais para a filosofia de Duns Escoto, sendo a discussão

deles claramente suscitada pela obra ora resenhada. Temáticas como (II.I.) a

distinção entre intelecto e vontade, (II.II.) aquela entre intuição e abstração,

(II.III.) a noção de comunicação associada à temática teológica dos sacramentos e

(II.IV.) a discussão sobre o ser típico do objeto de intelecção são, dentre outros,

elementos fundamentais na filosofia do Doutor Sutil. De fato, uma virtude do

texto de Cross é justamente mostrar a diversidade de temas que está associada

à doutrina da intelecção – e, em geral, do conhecimento – desenvolvida por João

Duns Escoto. Que se busquem aqui interpretações alternativas a algumas

daquelas propostas por Cross em Duns Scotus’s Theory of Cognition mostra

somente o quão proveitosa pode ser sua leitura para o estudioso das obras do

Doutor Sutil.