Transitivização de Desaparecer Sob Uma Perspectiva Discursivo Funcional

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM TRANSITIVIZAÇÃO DE DESAPARECER SOB UMA ÓTICA COGNITIVO-FUNCIONAL MONCLAR GUIMARÃES LOPES Niterói 2015

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Tese de funcionalismo

Transcript of Transitivização de Desaparecer Sob Uma Perspectiva Discursivo Funcional

  • 0

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE LETRAS

    DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

    TRANSITIVIZAO DE DESAPARECER SOB UMA TICA

    COGNITIVO-FUNCIONAL

    MONCLAR GUIMARES LOPES

    Niteri

    2015

  • 1

    MONCLAR GUIMARES LOPES

    TRANSITIVIZAO DE DESAPARECER SOB UMA TICA

    COGNITIVO-FUNCIONAL

    Tese apresentada ao curso de Ps-graduao

    em Letras da Universidade Federal Fluminense,

    como requisito final para a obteno do Grau de

    Doutor. rea de Concentrao: Estudos da

    Linguagem. Subrea: Lngua Portuguesa. Linha

    de Pesquisa: Interfaces

    Discurso/Sintaxe/Fonologia Experimental.

    Orientadora: Profa Dra Vanda Maria Cardozo de Menezes

    Niteri

    2015

  • 2

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    L864 Lopes, Monclar Guimares.

    Transitivao de desaparecer sob uma tica cognitivo-

    funcional / Monclar Guimares Lopes. 2015.

    177 f. ; il.

    Orientadora: Vanda Maria Cardozo de Menezes.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense,

    Instituto de Letras, 2015.

    Bibliografia: f. 170-176.

    1. Lngua portuguesa. 2. Gramtica portuguesa.

    3. Conjugao dos verbos. 4. Verbo. I. Menezes, Vanda Maria

    Cardozo de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de

    Letras. III. Ttulo.

    CDD 469.5

    .

    1. Lngua portuguesa. 2. Gramtica portuguesa.

    3. Conjugao dos verbos. 4. Verbo. I. Menezes, Vanda Maria

    Cardozo de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de

    Letras. III. Ttulo.

    CDD 469.5

    .

    1. 371.010981

  • 3

    MONCLAR GUIMARES LOPES

    TRANSITIVIZAO DE DESAPARECER SOB UMA TICA

    COGNITIVO-FUNCIONAL

    Tese apresentada ao curso de Ps-graduao

    em Letras da Universidade Federal Fluminense,

    como requisito final para a obteno do Grau de

    Doutor. rea de Concentrao: Estudos da

    Linguagem.

    Aprovada em 21 de janeiro de 2015.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________

    Profa. Dra Vanda Maria Cardozo de Menezes UFF (Orientadora)

    _______________________________________________________

    Profa. Dra Mrcia dos Santos Machado Vieira - UFRJ

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Eduardo Kenedy UFF

    _______________________________________________________

    Profa. Dra Maria Jussara Abraado de Almeida UFF

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Marcos Luiz Wiedemer UERJ

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Ivo da Costa do Rosrio UFF (Suplente)

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Gerson Rodrigues da Silva UFRRJ (Suplente)

    Niteri

    2015

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pelo

    fomento que me proporcionou a tranquilidade necessria para o prosseguimento

    adequado da pesquisa;

    Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade que me foi dada, a de um

    ensino de excelncia;

    Aos mestres que encontrei pelo caminho, sobretudo Vanda pela eterna

    pacincia, educao e orientao competente , Eduardo Kenedy e Jussara

    Abraado, cujas sugestes foram fundamentais para a concluso desta pesquisa;

    minha famlia, que sempre me incentivou em minha educao;

    minha esposa, pelo apoio incondicional e compreenso de minha ausncia;

    Aos colegas (e amigos) da UFF, que sempre se dispuseram em ajudar-me no que foi

    necessrio.

  • 5

    Os desejos humanos so infindveis. So

    como a sede de um homem que bebe gua

    salgada, no se satisfaz e a sua sede apenas

    aumenta.

    Texto Budista

    [...]

    Valeu a pena? Tudo vale a pena

    Se a alma no pequena.

    Quem quer passar alm do Bojador

    Tem que passar alm da dor.

    [...]

    Fernando Pessoa

  • 6

    RESUMO

    Esta tese visa descrio do processo de transitivizao do verbo desaparecer no portugus brasileiro. Tal verbo, a despeito de ser considerado intransitivo na literatura tradicional (mais especificamente um verbo inacusativo, na medida em que apresenta um sujeito gramatical de papel paciente), apresenta-se frequente em construes transitivas na sincronia atual. Defende-se que tal mudana representa um processo de gramaticalizao e construcionalizao, motivado, sobretudo, pela estrutura conceptual humana. Nessa perspectiva, assume-se que adjuntos adverbiais com propriedades de causao (como as circunstncias de causa e instrumento) so promovidos posio de sujeito, partindo-se de uma construo SUJEITO-CAUSAO + VERBO + ADJUNTO ADVERBIAL+CAUSAO para uma outra: SUJEITO+CAUSAO + VERBO + OBJETO-CAUSAO. Tal hiptese pde ser confirmada, na medida em que adjuntos com propriedades semnticas de causao podem apresentar-se em uma nova construo em que passam a funcionar como sujeito e o sujeito gramatical, como objeto, como podemos comprovar nos corpora analisados. No obstante, vale ressaltar que esse processo de construcionalizao (isto , de uma FORMANOVA-SENTIDONOVO) escalar, e no abrupto. Nesse sentido, num primeiro estgio, os adjuntos adverbiais com propriedades semnticas de causao como os de causa e instrumento passam por um processo de analogizao, no qual so interpretados semanticamente como um tipo de argumento do verbo, muito embora ainda mantenham a mesma estrutura morfossinttica. Num segundo estgio, procede-se transitivizao (neoanlise), na medida em que se efetua mudana tanto na estrutura semntica quanto na morfossinttica. PALAVRAS-CHAVE: Transitivizao. Construcionalizao. Analogizao. Neoanlise. Dinmica de foras.

  • 7

    ABSTRACT

    This thesis describes the process of transitivization of the unaccusative verb desaparecer (disappear) in Brazilian Portuguese. Such verb, despite being regarded as unaccusative in the traditional literature (to the extent that it is intransitive and select a patient role as the subject), is frequently found in transitive constructions in nowadays synchrony. It is argued that this change represents a process of grammaticalization and construcionalization, motivated by the human conceptual structure. From this perspective, the causative-like adverbial adjuncts (like the circumstances of "cause" and "instrument") would be promoted to the subject position, that is, from construction 'SUBJECT-CAUSATION + VERB + ADJUNCT+CAUSATION " to another: " SUBJECT+CAUSATION + VERB + OBJECT-

    CAUSATION". This assumption is quite reasonable, to the extent that causative-like adjuncts always permit a construction in which they become the subject and the grammatical subject becomes the object, as we demonstrate in the corpora analyzed. Nevertheless, it is noteworthy that this construcionalization process (that is, a FORMNEW MEANINGNEW) is gradual, and not abrupt. In this point of view, at first, the adverbial adjuncts which shows causation semantic properties like the ones of "cause" and "instrument" undergo a process of analogization, in which they are semantically interpreted as a kind of argument, though still maintaining the same syntactic structure. At second, transitivization occurs, as long as the semantic structure and morphosyntactic structure change (neoanalysis). KEY WORDS: Transitivization. Constructionalization. Analogization. Neoanalysis. Force Dynamics.

  • 8

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 01 Escala de transitividade (HOPPER e THOMPSON) ..................... 58

    Quadro 02 Ativao na gramtica ................................................................... 61

    Quadro 03 Unidirecionalidade e mecanismos de gramaticalizao ................ 64

    Quadro 04 Correlao entre categorias metafricas, classes de palavras e

    tipos de constituinte ....................................................................... 65

    Quadro 05 Correlao entre caso e categoria prototpica ................................ 65

    Quadro 06 Tipos de contextos em gramaticalizao ........................................ 86

    Quadro 07 Quantidade de palavras por corpora .............................................. 105

    Quadro 08 Mdia e total de ocorrncias por corpora e frequncia relativa

    percentual total dos dados .................................................... .......... 106

    Quadro 09 Quadro resumitivo dos dados levantados por corpora..................... 119

    Quadro 10 Quadro resumitivo dos dados levantados por periodicicade ........... 120

    Quadro 11 Padres Sintticos de DESAPARECER + COM e

    DESAPARECER COM ................................................................... 134

    Quadro 12 Mdia de ocorrncias e frequncia relativa percentual de

    DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM .......................135

    Quadro 13 Frequncia de DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM

    por periodicidade ............................................................................. 138

    Quadro 14 Adjuntos com propriedade de causao ......................................... 148

    Quadro 15 Adjuntos sem propriedade de causao ......................................... 149

    Quadro 16 Correlao de parmetros da gramaticalizao .............................. 154

    Quadro 17 Escala de transitividade .................................................................. 156

    Quadro 18 Correlao entre padres construcionais e padres sintticos

    de DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM ................... 161

    Quadro 19 Inverso da construo de DESAPARECER COM para a

    construo DESAPARECER + COM ............................................... 164

  • 9

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 01 Teoria dos Prottipos (Rosch) ........................................................ 35

    Figura 02 Teoria de semelhana de famlia (Wittgenstein) ............................ 36

    Figura 03 Representao da estrutura argumental do verbo to put ............... 37

    Figura 04 Representao do arqutipo cadeia de aes ............................... 40

    Figura 05 Perfilamento prototpico da orao com adj. adv de instrumento .. 40

    Figura 06 Perfilamento dos papis semnticos expressos na sentena

    preferia pintar a leo ..................................................................... 41

    Figura 07 Representao da transferncia de agentividade a instrumento .... 42

    Figura 08 Representao de orao em que apenas o papel paciente

    perfilado ........................................................................................... 43

    Figura 09 A estrutura simblica da construo ............................................... 73

    Figura 10 A estrutura interna da construo sem relaes sintticas ............. 74

    Figura 11 Elementos, componentes e unidades da construo Heather sings

    ......................................................................................................... 76

    Figura 12 Relaes simblicas na construo intransitiva Heather sings ........ 76

    Figura 13 Representao do arqutipo cadeia de aes ................................ 92

    Figura 14 O modelo cannico da clusula ....................................................... 94

    Figura 15 O esquema imagtico do verbo to enter .......................................... 100

    Figura 16 Representao do arqutipo cadeia de aes de Joo abriu a

    porta com a chave .......................................................................... 143

    Figura 17 Perfilamento dos componentes da sentena Joo abriu a porta

    com a chave.................................................................................... 144

    Figura 18 Perfilamento dos componentes da sentena A chave abriu a porta

    .......................................................................................................... 144

    Figura 19 A construo inacusativa DESAPARECER + COM ........................ 150

    Figura 20 A construo transitiva DESAPARECER COM ............................. 151

    Figura 21 Processo de transitivizao de desaparecer .................................... 168

  • 10

    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 01 Quantidade de palavras por corpora .............................................. 105

    Grfico 02 Frequncia relativa percentual de desaparecer por corpora .......... 106

    Grfico 03 DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM em relao a

    todas as ocorrncias de desaparecer ........................................... 137

    Grfico 04 DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM em relao s

    ocorrncias em que desaparecer seguido de com ...................... 137

    Grfico 05 Aumento na frequncia relativa percentual de DESAPARECER +

    COM e DESAPARECER COM por sculo ...................................... 139

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................... 13

    1 REVISO DE LITERATURA .................................................................... 21

    1.1 VERBOS INACUSATIVOS NO PORTUGUS BRASILEIRO ................... 21

    1.2 O PROCESSO DE TRANSITIVIZAO ................................................... 27

    1.3 ADVRBIO E FUNO ARGUMENTAL .................................................. 32

    1.3.1 O advrbio (e adjunto adverbial) de instrumento ....................................... 38

    1.3.2 O papel semntico instrumento na Gramtica Cognitiva ........................ 39

    1.3.3 A mudana de instrumento a instrumento-agentivo .............................. 43

    1.3.4 O adjunto adverbial de causa e a propriedade de causao .................... 45

    2 REFERENCIAL TERICO ...................................................................... 50

    2.1 FUNCIONALISMO LINGUSTICO ............................................................ 50

    2.1.1 O princpio da iconicidade ......................................................................... 53

    2.1.2 O conceito de transitividade ...................................................................... 57

    2.1.3 A gramaticalizao .................................................................................... 59

    2.1.4 Princpio e mecanismos de gramaticalizao ........................................... 63

    2.2 GRAMTICA DE CONSTRUES .......................................................... 68

    2.2.1 A gramtica radical das construes ........................................................ 70

    2.2.2 Uma perspectiva cognitivo-funcional da Gramtica de Construes......... 83

    2.2.3 A construcionalizao ................................................................................ 87

    2.3 A GRAMTICA COGNITIVA ..................................................................... 90

    2.4 A SEMNTICA COGNITIVA ..................................................................... 98

    3 ANLISE DE DADOS ............................................................................... 103

    3.1 CARACTERIZAO DOS CORPORA ..................................................... 103

    3.2 PROCEDIMENTOS DE ANLISE ........................................................... 107

    3.3 CARACTERIZAO DE DESAPARECER, DESAPARECER + COM E

    DESAPARECER COM ............................................................................. 111

    3.4 PADRES SINTTICOS DE DESAPARECER + COM E

    DESAPARECER COM ............................................................................ 119

  • 12

    3.5 ANLISE QUANTITATIVA DOS DADOS .................................................. 134

    3.6 ANLISE QUALITATIVA DOS DADOS ..................................................... 139

    3.6.1 Transitivizao de DESAPARECER .......................................................... 140

    3.6.2 Gramaticalizao de DESAPARECER .................................................... 151

    3.6.3 De adjunto adverbial a argumento ............................................................. 157

    3.6.4 Padres construcionais de DESAPARECER + COM e DESAPARECER

    COM ......................................................................................................... 159

    3.6.5 Autonomia da construo transitiva de DESAPARECER ....................... 162

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 166

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 170

  • 13

    INTRODUO

    Esta tese visa descrio do processo de transitivizao de desaparecer. A

    despeito de esse verbo ser tradicionalmente descrito como intransitivo mais

    especificamente, um verbo inacusativo, na medida em que apresenta um sujeito

    gramatical preenchido por um termo de papel paciente encontram-se, na sincronia

    atual, vrias ocorrncias em que ele ncleo de uma construo transitiva.

    (1) Os monumentos, que fazem da histria a melhor parte, e a mais visvel, no s se estragam, mas desaparecem, e de tal sorte, que nem vestgios deixam por onde ao menos lhes recordemos as runas.

    Reflexes sobre a vaidade dos homens (Aires Matias, sc XVIII)1

    (2) O desembargador Ernani Vieira de Souza, que foi acusado pelo juiz de ter feito contrataes irregulares acusaes rechaadas por ele , afirmou que o TJ no tem nenhum interesse em desaparecer com um cidado como esse, pelo contrrio.

    Notcia do sculo XXI (Corpus do Portugus Brasileiro. Plataforma Sketch Engine2)

    No exemplo (1), desaparecem uma construo intransitiva, tendo o sujeito

    gramatical os monumentos a propriedade semntica de paciente da ao verbal.

    No exemplo (2), por sua vez, o sujeito gramatical o TJ um termo agente, cuja

    ao afeta o paciente um cidado como esse, que assume a funo de objeto. Tal

    classificao se d sob critrios sintticos e semnticos, pautando-se, sobretudo, na

    integrao existente entre o verbo e seu complemento.

    O reconhecimento da construo transitiva de desaparecer, embora recente,

    j encontra descrio nos estudos lexicogrficos. Houaiss (2001)3, por exemplo,

    apresenta a construo transitiva indireta associada a desaparecer em diferentes

    entradas de seu dicionrio:

    1 Texto extrado do Corpus Histrico do Portugus, disponvel em: http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/. 2 Sketch Engine uma plataforma de corpus lingustico que funciona de forma colaborativa, com vrios corpora de diferentes lnguas. Disponvel em: http://www.sketchengine.co.uk/. 3 HOUAISS, A. (2001) Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. (Verso online) Disponvel em: http://houaiss.uol.com.br

  • 14

    4. (t.i.) [prep..: com] tirar do devido lugar; dar sumio em 6. (t.i.int.) [prep..: com] fig. roubar ou ser roubado. < desapareceram com o talo de cheques> 7. (t.i.) [prep.: com] fazer que no se manifeste; apagar, dissipar, extinguir. 8. (t.i) [prep..: com] tirar a vida de; matar

    importante ressaltar que j se encontravam, nos dicionrios de meados do

    sculo XX, sob o paradigma da Gramtica Tradicional, descries transitivas

    indiretas para desaparecer. No entanto, a transitividade indireta se relacionava a um

    complemento adverbial de natureza locativa e no a um termo afetado pela ao

    verbal como observamos em Silva (1971, p. 509)4

    Desaparecer, v. (des + aparecer). 1. Tr. ind. e intr. Deixar de aparecer; esconder-se, ocultar-se, sumir-se. Todos ns desapareceremos. 2. Tr. ind. e intr. Cessar de ser ou de existir: Se Deus atendesse a tdas as oraes, a ordem desapareceria do mundo (Coelho Neto). 3. Tr. ind e intr. Afastar-se, retirar-se: Certo dia desapareceu de casa. O avio passou e desapareceu. 4. Intr. Faltar sbitamente (pessoas ou coisas): Desapareceu o livro que deixei aqui. 5. Tr. ind. e intr. Apagar-se, ofuscar-se. 7. Intr. Esquivar-se furtivamente Antn. (acepo 1): surgir.

    Analisando-se quatro corpora lingusticos diferentes, sendo dois deles

    diacrnicos (PHPB e Corpus Histrico do Portugus), um sincrnico (Corpus do

    Portugus Brasileiro) e outro que contempla ambas diacronia e sincronia (Corpus do

    Portugus)5, procedeu-se investigao da construo transitiva, cujo objeto

    preenchido por um termo de papel paciente. Sentiu-se a necessidade de recorrer a

    diversos corpora porque o verbo desaparecer apresenta baixa frequncia

    Nessa investigao, observou-se a presena da construo transitiva apenas

    no sculo XX e incio do sculo XXI, com um aumento de frequncia de uso neste

    ltimo sculo6. Desse modo, o uso mais transitivo de desaparecer parece instanciar

    4 SILVA, A. P. Novo Dicionrio Brasileiro Melhoramentos. Vol II. So Paulo: Melhoramentos, 1971. 5 PHPB Por uma Histria do Portugus Brasileiro , disponvel em:

    https://sites.google.com/site/corporaphpb/home/plataforma-de-corpora-phpb; Corpus Histrico do

    Portugus , disponvel em: http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/; Corpus do Portugus ,

    disponvel em: http//www.corpusdoportugues.org; Corpus do Portugus Brasileiro:

    http://www.sketchengine.co.uk/. 6 Dados disponveis no captulo 3, seo 3.5.

  • 15

    uma construo mais recente, que vem se tornando mais frequente no portugus

    brasileiro7.

    importante frisar que um dos objetivos desta pesquisa o de descrever o

    processo de transitivizao e no somente o de comprov-lo, at mesmo porque a

    construo j se encontra dicionarizada , apontando as motivaes que subjazem a

    esse processo de mudana. Para tal, recorreu-se a uma base terica de cunho

    cognitivo-funcional, valendo-se da contribuio de quatro teorias, a saber: o

    Funcionalismo Lingustico, a Gramtica de Construes, a Gramtica Cognitiva e a

    Semntica Cognitiva.

    A opo por essas correntes tericas se deve ao fato de defender-se que a

    linguagem deve ser descrita em seu uso real, na medida em que a organizao das

    estruturas lingusticas se d mediante as funes a que serve a linguagem. Nesse

    sentido, o Funcionalismo e a Gramtica de Construes servem como um norte na

    compreenso do processo de transitivizao de desaparecer, que ao sofrer um

    processo de construcionalizao, torna-se uma estrutura mais gramatical8. A

    Gramtica Cognitiva e a Semntica Cognitiva, por sua vez, colaboram

    significativamente na compreenso dos mecanismos conceptuais que impulsionam a

    mudana lingustica tanto na estrutura semntica quanto na morfossinttica.

    A primeira hiptese desta tese a de que a construo transitiva de

    desaparecer SUJ + DESAPARECER COM + OBJ seja cognitivamente motivada

    pela estrutura semntica da construo intransitiva, quando esta apresenta, alm de

    um sujeito de papel paciente, um adjunto adverbial iniciado pela preposio com

    que apresente propriedades semnticas de causao SUJ + DESAPARECER +

    COM9 em incio de adjunto adverbial. Vale ressaltar que essas construes so

    7 Cabe investigar os usos desse verbo, nas modalidadades oral e escrita em outras comunidades lingusticas de lngua portuguesa. 8 Vale ressaltar que a perspectiva de gramaticalizao adotada aqui mais ampla. Traugott e Trousdale (2013) reconsideram a viso que determina a gramaticalizao como um processo de reduo. Nessa perspectiva, expanso gramatical que envolve aumento de esquematicidade e produtividade um processo de gramaticalizao que antecede o processo de gramtica como reduo em que a rotinizao das estruturas lingusticas acarreta reduo da forma fnica, perda de complexidade (e informatividade), rapidez do enunciado e uma relao mais frouxa entre forma lingustica e estrutura da experincia. Nesse sentido, expanso e reduo so processos complementares. Para mais informaes, consulte o segundo captulo, seo 2.2.4. 9 O fato de tratarmos de duas construes distintas, sendo a primeira DESAPARECER COM e a segunda DESAPARECER + COM, se deve tanto integrao quanto dessemantizao associada preposio em DESAPARECER COM, caracterstica que melhor explicitamos na anlise de dados.

  • 16

    estruturalmente prximas, na medida em que apresentam uma preposio seguida

    de um sintagma nominal.

    (3) Os micos foram desaparecendo com a derrubada da mata pela especulao imobiliria, a implantao de fazendas agropecurias e a atuao de madeireiras e de caadores.

    Notcia do Sc XXI (Corpus do Portugus Brasileiro).

    (4) Vamos combater o privilgio desses marajs, que querem mandar neste

    pas, mas no tm dignidade. Esse pas precisa desaparecer com os picaretas.

    Reportagem do Sc XXI (Corpus do Portugus Brasileiro).

    No exemplo (3), tem-se uma construo intransitiva e, no exemplo (4), uma

    construo transitiva. O critrio adotado para diferenciar uma da outra de natureza

    semntica. Enquanto, na primeira, o sujeito gramatical exerce um papel paciente e o

    adjunto adverbial apresenta o valor semntico de causa, na segunda, o sujeito

    gramatical agente e o objeto, o afetado.

    A crena de que a construo inacusativa, nessa configurao, propicia a

    construo transitiva advm da compreenso dos mecanismos de

    construcionalizao (analogizao e neoanlise10), que preveem que o processo de

    gramaticalizao envolve um conjunto de mudanas em micro escala.

    Num primeiro momento, ocorre a analogizao, em que se opera uma nova leitura

    semntico-pragmtica de uma dada construo. Num segundo momento, efetua-se

    mudana morfossinttica (neoanlise). Nessa perspectiva, portanto, uma nova

    construo deve emergir de uma outra com a qual esteja estruturalmente

    relacionada, tratando-se, portanto, de um caso de construcionalizao (TRAUGOTT

    e TROUSDALE, 2014).

    A segunda hiptese a de que a construcionalizao, na transitivizao de

    desaparecer, conceptualmente orientada por uma propriedade de causao. Em

    critrios cognitivos, acredita-se que nossa cognio apresente uma forte tendncia

    em lexicalizar como sujeito gramatical o termo de papel semntico mais proeminente

    da clusula, estando essa proeminncia cognitivamente relacionada dinmica de

    10 Os termos analogizao e neoanlise so paradigmas conceituais cunhados por Traugott (2013). Embora remetam aos processos conhecidos por analogia e reanlise, tais categorias apresentam

    uma diferente perspectiva. Para mais informaes, ver captulo 2, seo 2.2.4.

  • 17

    foras, isto , transferncia de energia de um participante x para um participante y.

    Como ilustrao, observa-se o seguinte exemplo de Langacker (2008, p. 369), em

    que se apresentam trs participantes em interao de foras:

    (a) Floyd broke the glass with a hammer. AGs INSTR PATo

    Floyd quebrou o copo com o martelo.

    (b) A hammer broke the glass. AG INSTRs PATo

    Um martelo quebrou o copo.

    (c) The glass broke. AG INSTR PATs

    O copo quebrou.

    Na primeira sentena (a), h uma interao de foras entre o agente (Floyd),

    o afetado (o copo) e o instrumento (o martelo), de modo que o agente exerce uma

    fora x sobre o instrumento, que exerce uma fora y sobre o afetado. Como o termo

    mais proeminente tende a preencher a funo de sujeito, o agente assume essa

    posio sinttica. Em (b), estando o agente que mais proeminente ausente da

    sentena, a tendncia passa a ser que o segundo termo mais proeminente na

    dinmica de foras assuma a funo de sujeito (o instrumento). Por fim, em (c), na

    ausncia dos outros dois termos, o elemento afetado assume a posio de sujeito.

    importante frisar, no entanto, que, na perspectiva da Gramtica Cognitiva e da

    Semntica Cognitiva, esse processo uma tendncia conceptual, e no uma regra

    algortmica na formao de sentenas. Embora a maior parte das sentenas da

    lngua opere sob esse mecanismo, existem outras possibilidades, relacionadas,

    sobretudo, perspectivao do falante no processo de enunciao.

    Desse modo, assume-se que, numa construo intransitiva prototpica de

    desaparecer, o sujeito gramatical preenchido por um termo de papel paciente

    porque ele o nico termo disponvel na sentena no h elementos mais

    proeminentes disponveis em relao dinmica de foras. No entanto, quando a

    construo intransitiva apresenta, alm do sujeito gramatical de papel paciente, um

    outro elemento mais proeminente, esses elementos entram em competio de

    foras. Num primeiro estgio, a construo intransitiva se mantm, pois esse o

    esquema argumental conceptualmente disponvel. Com o tempo, porm, efetua-se a

    construcionalizao, na medida em que se reinterpreta pragmaticamente atravs

  • 18

    de analogizao o termo mais proeminente da dinmica de foras como sujeito da

    sentena.

    A ltima hiptese se correlaciona s outras duas. Defende-se que os adjuntos

    adverbiais com propriedade de causao, na construo intransitiva de desaparecer,

    so, na verdade, argumentos na estrutura sinttica, e no termos acessrios tal

    como muitos tericos defendem, na teoria lingustica, em relao s circunstncias

    locativas em sentenas com determinados verbos de movimento. Essa interpretao

    se deve maior integrao entre verbo e adjunto, cuja supresso acarreta ora

    problemas na produo de efeito de sentidos pretendidos ora incoerncia semntica:

    (5) Quem sabe, se trata, justamente de ter esquecido que antigos problemas desaparecem com solues que fujam ao convencional.

    Artigo acadmico (Corpus do Portugus Brasileiro)

    (6) a. De fato, desde a Lei Francisco Campos, mantendo-se na Reforma Capanema e na L.D.B, a terminologia educacional e a popular consagravam as palavras Curso e Escola, com a conotao de terminalidade: curso primrio, curso ginasial, curso colegial, curso superior; havia a Escola primria, a Escola de Grau Mdio (e aqui j surgia a ideia de continuidade) e a Escola Superior. Tal conotao somente desaparece com a lei atual, de 1971.

    b. * Tal conotao somente desaparece.

    Artigo acadmico (Corpus do Portugus Brasileiro)

    Como ilustrao, a sentena (5) apresenta integrao entre verbo e adjunto

    adverbial. A supresso do adjunto com solues que fujam ao convencional

    acarreta prejuzo semntico. O sujeito gramatical de desaparecer Os antigos

    problemas s sofre a ao expressa pelo verbo se as condies expressas pelo

    adjunto forem satisfeitas. No entanto, poder-se-ia argumentar que sua supresso,

    embora prejudique o enunciado, no acarreta incoerncia.

    Em (6), por outro lado, como a relao entre verbo e adjunto ainda mais integrada,

    a supresso do adjunto impossvel, na medida em que forma uma frase

    incoerente, estruturalmente fragmentada.

    importante ressaltar que, ao longo desta tese, faz-se recorrente referncia

    ao verbo desaparecer, ora como item lexical, ora como uma dada construo

  • 19

    lingustica. Para diferenciar um termo do outro, o item lexical vir sempre em

    minsculas (desaparecer) e a construo, em caixa alta (DESAPARECER).

    Paralelamente, como se defende que a transitivizao de desaparecer propiciada

    pela relao estabelecida entre o adjunto adverbial com propriedade de causao e

    o sujeito de papel paciente, diz-se, ao longo desta tese, que a transitivizao de

    desaparecer se d pela construcionalizao de uma construo inacusativa para

    uma construo transitiva. Embora se reconhea que os rtulos inacusativo e

    transitivo pertenam a recortes tericos distintos, optou-se por manter o rtulo

    inacusativo como forma de deixar bem explcita a importncia da presena de um

    sujeito de papel paciente, que, em competio de foras com um outro elemento

    mais proeminente, propicia a transitivizao. Nesse sentido, vale frisar que toda vez

    em que aqui se fala de construo inacusativa e construo transitiva, faz-se

    referncia no apenas ao verbo, mas a construo toda, em nvel esquemtico,

    sendo a primeira uma construo SUJpaciente+ V e a segunda SUJagente + V +

    OBJafetado11.

    Quanto organizao, esta tese composta por trs captulos. O primeiro

    aborda a reviso de literatura e est dividido em trs sees. Na seo 1.1, trata-se

    do fenmeno da inacusatividade no portugus brasileiro. Na seo 1.2, trata-se do

    processo de transitivizao em duas diferentes abordagens uma de cunho

    formalista e outra funcionalista, explicitando-se os mecanismos desencadeadores da

    transitivizao nos dois estudos. Na seo 1.3, revisa-se a funo do advrbio tanto

    na estrutura sinttica quanto na estrutura semntica sob diferentes perspectivas, no

    intuito de questionar sua natureza acessria e de confirmar sua natureza

    argumental.

    O segundo captulo versa sobre o referencial terico, visando explicitao

    cuidadosa dos pressupostos que sustentam cada teoria. Na seo 2.1, trata-se do

    Funcionalismo Lingustico, dando-se especial ateno perspectiva norte-

    americana, sobretudo, aos conceitos de iconicidade, transitividade e

    gramaticalizao. Na seo 2.2, trata-se da Gramtica de Construes, com

    11 Vale ressaltar que a construo mais transitiva de desaparecer, embora tradicionalmente seja descrita como uma construo transitiva indireta, esquematicamente, apresenta-se to transitiva como uma transitiva direta. Em um exemplo como o bandido desapareceu com o corpo da vtima, observam-se os dez traos de transitividade alta de Hopper e Thompson (1980), na medida em que o exemplo apresenta: dois participantes, verbo de ao perfectivo, punctual e no modo realis, sujeito agentivo e intencional, polaridade afirmativa da sentena, objeto afetado e individuado.

  • 20

    especial nfase na teoria da construcionalizao (TRAUGOTT e TROUSDALE,

    2014) e da Gramtica Radical de Construes (CROFT, 2001). Na seo, 2.3, trata-

    se da Gramtica Cognitiva (LANGACKER, 2008), com nfase no arqutipo Cadeia

    de Aes, que explicita a tendncia cognitiva de o sujeito gramatical ser ocupado

    pelo termo de propriedade mais causativa na clusula. Na seo 2.4, trata-se da

    Semntica Cognitiva (TALMY, 2000), explicitando-se o arqutipo Dinmica de

    Foras e sua contribuio para a abstratizao de como os sujeitos gramaticais

    tendem a se manifestar na lngua.

    No terceiro captulo, descrevem-se tanto os corpora lingusticos e os

    procedimentos de anlise empregados quanto se procede anlise de dados. Na

    seo 3.1, descrevem-se os corpora, com nfase em sua periodicidade e quantidade

    de ocorrncias das construes pesquisadas. Na seo 3.2, explicitam-se os

    procedimentos adotados para a anlise de dados nos corpora. Na seo 3.3,

    caracterizam-se as construes investigadas nos corpora. Na seo 3.4, descrevem-

    se os diferentes padres sintticos encontrados para as construes

    DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM. Na seo 3.5, analisam-se os

    dados quantitativamente, com foco na frequncia relativa percentual das

    construes DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM. Por fim, na seo

    3.6, analisam-se os dados qualitativamente, defendendo-se, sobretudo, a

    transitivizao como um caso de construcionalizao no portugus brasileiro.

  • 21

    1 REVISO DE LITERATURA

    Neste captulo, o principal objetivo o de apresentar, na literatura

    contempornea, abordagens que tratem tanto da caracterizao dos verbos

    inacusativos do portugus brasileiro uma vez que desaparecer se inclui na classe

    desses verbos quanto de seus processos de transitivizao. Paralelamente,

    ressalta-se a funo argumental que pode ser atribuda a alguns adjuntos

    adverbiais, com vistas descrio de um aspecto semntico que, no ponto de vista

    defendido, propicia a transitivizao de desaparecer.

    1.1 VERBOS INACUSATIVOS NO PORTUGUS BRASILEIRO

    Na tradio dos estudos lingusticos, os verbos intransitivos compreendem

    duas classes: os inergativos e os inacusativos, sendo cada classe associada a

    propriedades semnticas e sintticas especficas. Nessa perspectiva, os inergativos

    so os verbos tipicamente intransitivos, que possuem um nico argumento na

    posio de sujeito. Os inacusativos12, por sua vez, so os verbos que tambm

    possuem um nico argumento, entretanto, postula-se que esse argumento gerado,

    em estrutura profunda, na posio de argumento interno13, na medida em que

    seleciona um item com propriedade de afetado e no um desencadeador do

    processo (isto , um termo de papel agente). No Portugus Brasileiro, so exemplos

    de verbos inacusativos: chegar, crescer, florescer, aparecer, desaparecer, etc.

    Como ilustrao do processo de inacusatividade, analisa-se um exemplo do

    verbo desaparecer:

    (7) (...) Hoje quando fui acessar os meus documentos (com o nome de CASA) a pasta tinha desaparecido (simplesmente sumiu). * Procurei ver a quantidade de memria da partio, e 200Gb de dados desapareceram. * Passei o dia tentando recuperar com alguns recuperadores de arquivos e s recuperei arquivos antigos que apaguei propositalmente, o resto

    12 Por inacusativo, entende-se o verbo que no admite o caso acusativo caso do objeto para o

    seu complemento. Nesse sentido, em vez de o termo paciente tpico objeto assumir a posio do

    objeto da orao, ele assume o caso nominativo (a posio de sujeito). 13 Por argumento interno, entende-se o complemento do verbo, que pode ser tanto o objeto direto quanto o indireto. O termo argumento externo, por sua vez, refere-se ao sujeito.

  • 22

    desapareceu mesmo. * Por favor preciso de ajuda! urgente! Tenho dados realmente importantes, meu emprego depende disto!14

    Enquanto verbos inergativos como trabalhar, gritar e caminhar exigem um

    sujeito gramatical de papel agentivo, desencadeador do processo, desaparecer

    apresenta um sujeito de papel paciente. Nesse sentido, em (7), representa-se o

    valor inacusativo desse verbo, na medida em que a conceptualizao de um termo

    agente no pode sequer ser inferida. J os verbos inergativos admitem, na

    superfcie lingustica, a manifestao de um argumento interno. Pode-se observar

    esse fenmeno no exemplo abaixo, em que o termo a corrida exerce a funo de

    objeto direto de correr:

    a. Joo correu uma corrida difcil.

    O estudo do fenmeno da inacusatividade teve a sua origem com a Hiptese

    Inacusativa, de Perlmutter (1978), dentro do quadro da Gramtica Relacional e,

    posteriormente, fora assumida por Burzio (1986) dentro do contexto da Gramtica

    Gerativa. Atravs de muitas anlises translingusticas, Perlmutter (1978, 1980),

    Levin (1983), Marantz (1984), Rosen (1984) entre outros afirmam que

    argumentos cujos papis temticos so agentes so sujeitos profundos de verbos inergativos; e argumentos cujos papis temticos so pacientes ou temas so, na realidade, objetos na estrutura profunda, embora se apresentem como sujeitos derivados na estrutura superficial dos verbos inacusativos. Evidncia dessa hiptese que os sujeitos de verbos inacusativos apresentam propriedades, tanto sintticas quanto semnticas, mais tpicas de objetos diretos do que de sujeitos profundos.

    (CIRACO e CANADO, 2006, p. 208).

    Conforme Alexiadou, Anagnostopoulou & Everaert (2004), h fenmenos

    considerados sensveis inacusatividade. Dentre eles, os autores (ibid., p. 22)

    citam:

    a) Seleo de auxiliar: inacusativos selecionam to be e inergativos

    selecionam to have;

    14 Exemplo extrado da seo tira-dvidas do site Tech Mundo. Disponvel em: http://www.tecmundo.com.br/tira-duvidas/166148

  • 23

    b) Cliticizao do ne para o italiano (os inacusativos permitem e os

    inergativos no);

    c) Possibilidade de ocorrerem em construes resultativas (os inacusativos

    ocorrem nesse tipo de construo, os inergativos no);

    d) Aceitao do particpio passivo, tambm conhecido como construo com

    particpio absoluto (os inacusativos aceitam e os inergativos no);

    e) As passivas impessoais (os inacusativos no podem ser passivizados

    porque no tm o papel temtico do sujeito para absorver).

    Vale ressaltar que esses testes se aplicam a algumas lnguas, e no a outras,

    uma vez que o fenmeno da inacusatividade manifesta-se idiossincraticamente. No

    obstante, partindo-se da hiptese da existncia de papis temticos tpicos tanto de

    sujeito profundo quanto de objeto profundo, Alexiadou et al. (2004 apud CIRACO e

    CANADO, 2006, p. 209) afirmam que esses diagnsticos especficos apoiam-se

    essencialmente:

    a. na inexistncia de um argumento externo, e, consequentemente, na no seleo do papel temtico tpico do sujeito, que faz a posio de sujeito ser preenchida por um argumento do tipo de objeto, que recebe papel temtico caracterstico de objeto;

    b. em uma relao de movimento entre a posio de objeto e a posio de sujeito.

    Nessa perspectiva, a primeira generalizao aponta para uma caracterstica

    que pode ser considerada universal: verbos que possuem um s argumento com

    papel temtico tpico de sujeito so inergativos; j aqueles que selecionam um s

    argumento com papel temtico associado, geralmente, posio de objeto, so

    inacusativos. Pode-se tambm estender essa generalizao para relao entre

    funes sintticas e funes semnticas especficas, sendo comum a existncia de

    teorias que se apoiam na associao das noes gramaticais de sujeito e objeto s

    noes semnticas de agente e paciente/tema, como pode ser observado em Rosen

    (1984). Dowty (1989) trata da existncia de tais relaes semnticas, investigando

    um padro quanto ao tipo de papel associado determinada posio sinttica.

    Segundo o autor (ibidem), tais associaes no determinam a estrutura sinttica de

    todos os verbos, mas funcionam muito bem para a classe dos verbos transitivos com

    dois argumentos.

  • 24

    Segundo Dowty (1989), em predicados com sujeito e objetos gramaticais, o

    argumento para o qual o predicado implica maior nmero de propriedades Proto-

    Agente ser lexicalizado como sujeito; o argumento que tiver o maior nmero de

    implicaes Proto-Paciente ser lexicalizado como objeto direto. Nesse sentido, as

    caractersticas tpicas de Proto-Agente e Proto-Paciente seriam as seguintes:

    Proto-Agente:

    a) Envolvimento volitivo no evento ou no estado;

    b) Conhecimento (e/ou percepo);

    c) Causa um evento ou mudana de estado noutro participante;

    d) Movimento (relativamente posio de outro participante).

    Proto-Paciente:

    a) Sofre mudana de estado;

    b) Tema incremental;

    c) Afetado causalmente por outro participante;

    d) Estacionrio relativamente ao movimento de outro participante.

    Contudo, como observa o prprio Dowty (1989), esses procedimentos de

    anlise atendem bem estrutura transitiva, que a mais prototpica na lngua, mas

    no atende, porm, s estruturas inacusativas. O verbo desaparecer, por exemplo,

    apresenta um sujeito gramatical que apresenta mais caractersticas de Proto-

    Paciente relacionadas categoria objeto direto do que de Proto-Agente

    relacionadas categoria sujeito. De certo modo, o ponto de vista do autor (ibidem)

    vai ao encontro do que afirma Perlmutter (1978) quando relaciona as propriedades

    semnticas do sujeito gramatical dos verbos inacusativos com as caractersticas

    prototpicas do objeto direto.

    Retornando s generalizaes de Alexiadou et al. (2004), segundo os autores

    (ibidem), a segunda generalizao (expressa em b) pode ser exemplificada no teste

    de cliticizao de ne, em italiano. Como exemplo do Portugus, por sua vez, Ciraco

    e Canado (2006) aplicam o teste da posposio, visto que, sendo o argumento de

  • 25

    um verbo inacusativo um objeto em sua origem, a ordem VS para esse tipo de verbo

    ser aceita mais naturalmente, na medida em que indicar a relao de movimento

    ocorrida na passagem da sentena da estrutura profunda para a superficial.

    No entanto, Ciraco e Canado (ibidem), ao aplicar esse teste de posposio

    em quarenta verbos monoargumentais do Portugus Brasileiro tanto inacusativos

    quanto inergativos , observam uma fragilidade na proposta. Constatam que alguns

    verbos inacusativos no apresentam naturalidade na inverso da ordem SV para VS

    e, por sua vez, alguns verbos inergativos aceitam naturalmente essa inverso. Como

    ilustrao, transcrevem-se alguns exemplos das autoras (2006, p. 210):

    (a) Joo amadureceu com a morte da me. (b) * Amadureceu Joo com a morte da me. (c) Saiu a folha de pagamento.

    O verbo amadurecer, inacusativo, no procede naturalmente inverso da

    ordem SV, na medida em que o exemplo (b) no soa natural nas variedades do

    portugus brasileiro. Paralelamente, o verbo inergativo sair soa naturalmente na

    ordem VS. Ao enxergar essa fragilidade nos testes de inacusatividade e

    inergatividade, as autoras procedem a uma nova metodologia, considerada por elas

    mais flexvel15.

    Defende-se que a transitivizao de desaparecer se deve, em parte, s

    propriedades semnticas de seu sujeito e adjunto adverbial. Assume-se que a

    mudana da posio de adjuntos adverbiais com propriedades semnticas de

    causao para a posio de sujeito gramatical torna-se possvel pela competio

    entre diferentes foras: a presena de um termo mais agentivo16 como as

    circunstncias de causa e instrumento compete pela posio de sujeito gramatical

    com o termo paciente, propiciando a nova construcionalizao17, isto , parte-se da

    15 Tal metodologia, no entanto, no ser abordada nesta tese. Na verdade, o nosso objetivo neste momento foi o de caracterizar os verbos inacusativos e entender os parmetros que os caracterizam na literatura vigente, uma vez que a hiptese mais forte desta pesquisa reside no processo de transitivizao de desaparecer, considerado um verbo inacusativo. 16 Utiliza-se o termo mais agentivo para fazer referncia propriedade de causao e no particularmente ao papel agente. Nesse sentido, afirma-se que um termo agentivo aquele que acarreta uma ao x sobre um paciente y.

  • 26

    construo esquemtica inacusativa SUJ -CAUSAO18 + V + ADJUNTO ADVERBIAL+

    CAUSAO para a construo transitiva SUJ+CAUSAO + V + O-CAUSAO.

    Um dos critrios tradicionalmente adotados na identificao de verbos

    inacusativos o da no identificao de um agente na estrutura inacusativa, na

    medida em que o desencadeador do processo no infervel. Sob esse aspecto,

    Ciraco e Canado (2006) citaram como exemplo o verbo amadurecer. No exemplo

    (a), amadurecer apresenta realmente propriedades inacusativas. Entretanto,

    possvel encontrar, em corpora de uso real da lngua, ocorrncias transitivas de tal

    verbo. Veja:

    (8) Como amadurecer um abacate?

    Coloque o abacate num saco de papel pardo. O saco ser usado para armazenar gs etileno, que amadurece o abacate. Certifique-se de que no haja buracos nele!

    http://pt.wikihow.com/Amadurecer-um-Abacate19.

    (9) Meu processo interessante: eu amadureo a ideia do texto dirigindo...

    http://bloglog.globo.com/blog/post.do?act=loadSite&id=1483420

    .

    Acima, os dois exemplos apresentam o papel agente, sendo infervel no

    primeiro exemplo atravs da elipse do sujeito e, no segundo, explcito o sujeito

    gramatical eu. Em um ponto de vista cognitivo-funcional, a identificao de

    empregos menos prototpicos como esse facilitada por uma anlise de corpus de

    uso da lngua, em que se mapeiam as diferentes possibilidades pragmticas,

    semnticas e morfossintticas admitidas por uma determinada construo

    lingustica.

    17 A construcionalizao representa um processo de gramaticalizao de construes, em que uma determinada construo resulta em uma FORMANOVA-SENTIDONOVO. Para melhor compreenso do conceito, consulte a seo 2.4 do segundo captulo. 18 Os termos CAUSAO e +CAUSAO correspondem a ausncia ou presena da propriedade de causao na posio sinttica. Causao representa, nessa perspectiva, a propriedade de desencadear uma ao em outro termo da orao. 19 Acesso em novembro/2014. 20 Acesso em novembro/2014.

  • 27

    1.2 O PROCESSO DE TRANSITIVIZAO

    Visa-se, nesta pesquisa, descrio do processo de transitivizao do verbo

    desaparecer, tradicionalmente considerado um verbo inacusativo. O uso transitivo

    de desaparecer j consta na descrio lexicogrfica na medida em que os

    dicionrios atuais j o registram como se pode comprovar no Dicionrio de usos do

    portugus do Brasil (BORBA, 2002), no Dicionrio UNESP (BORBA, 2004) e no

    Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa (HOUAISS)21, por exemplo.

    A nossa inteno, no entanto, no apenas a de confirmar a transitivizao

    de desaparecer, mas principalmente a de descrever as motivaes que ensejam a

    mudana, que se considera ser de ordem cognitiva. Nesta seo, far-se- referncia

    literatura existente sobre o assunto, no intuito de verificar pontos de vista

    convergentes e/ou divergentes com a perspectiva assumida.

    Como primeira referncia de estudo da transitivizao, citam-se as pesquisas

    funcionais de Gutirrez Ordes (2002a) e Touratier (2000). Os autores argumentam

    que os processos de transitivizao e intransitivizao ocorrem devido a uma

    modificao valencial na estrutura semntica do verbo, que pode dar-se por

    aumento, reduo ou apenas transformao da valncia verbal. Nessa perspectiva,

    Maralo (2007, p. 2) diz que:

    Falamos de reduo valencial quando se elimina ou anula uma das funes previstas na valncia significativa do signo. O contrrio tambm pode acontecer, ou seja, acrescenta-se ao verbo uma funo argumental no prevista nas possibilidades combinatrias do seu significado. Pode ainda acontecer uma transformao que consiste na alterao dos papis semnticos que correspondem aos espaos funcionais de carter formal.

    Segundo Gutirrez Ordes (2002a), a modificao valencial pode ocorrer em

    toda diatesis, que pode ser compreendida como a oposio de estruturas

    sintagmticas que representam o mesmo evento mediante um relacionamento

    distinto entre papis semnticos e funes sintticas. O tipo mais prototpico de

    diatesis pode ser verificado na alternncia entre as vozes verbais, cujos enunciados

    descrevem os mesmos tipos de eventos, mas sob uma diferente perspectiva.

    21 Dispem-se exemplos extrados de dicionrio na introduo deste trabalho.

  • 28

    Segundo o autor (ibidem), a passagem da voz ativa para a passiva implica tanto

    uma reduo quanto uma incorporao valencial: reduz-se a valncia ao suprimir-

    se a funo semntica que ocupa o sujeito e incorpora-se uma valncia quando o

    segundo argumento o objeto direto passa a ocupar a funo sujeito. Trata-se,

    desse modo, de um caso especfico de intransitivizao.

    J em se tratando de transitivizao, Maralo (2007) mostra o aumento

    valencial de verbos inacusativos. Os verbos detonar e amedrontar, por exemplo,

    esto na classe dos verbos inacusativos. No entanto, na sincronia atual, tais verbos

    so frequentemente usados em uma construo transitiva, como ilustra Maralo

    (2007, p. 7) com os exemplos a seguir:

    A polcia detonou a bomba. A av amedrontou as crianas.

    Segundo a autora, esses casos aceitam comutao por perfrases com o

    verbo fazer, de modo que se poderia parafrase-las do seguinte modo: a polcia fez

    com que a bomba detonasse; a av fez com que as crianas amedrontassem.

    Nesses casos, a transitivizao ocorre pela presena de um agente-instigador do

    processo na estrutura semntica.

    Processo anlogo a esse o que ocorre na transitivizao de desaparecer.

    Seu uso transitivo d-se pela presena do agente-instigador do processo. Observe o

    exemplo:

    (10) Prefeitura de Volta Redonda desaparece com mais de R$ 7 milhes do oramento da educao para 1998.

    Notcia de jornal. (Corpus do Portugus Brasileiro)

    Acima, o verbo desaparecer tambm procede comutao com verbo fazer,

    na medida em que se poderia parafrasear toda a sentena por uma como esta: a

    prefeitura de volta redonda faz mais de R$ 7 milhes do oramento da educao

    para 1998 desaparecer.

    Por conseguinte, observa-se que, para os autores supracitados, a mudana

    da estrutura lingustica se d sob critrios semnticos. Muda-se a valncia na

    estrutura semntica e, por consequncia, altera-se a forma. Concorda-se com

    esse ponto de vista, na medida em que se acredita que a funo o sentido

    enseja a forma a estrutura gramatical. Assim sendo, pretende-se agregar valor

  • 29

    nessa pesquisa ao incluir um ponto de vista cognitivo sobre esse processo de

    transitivizao, mais especificamente, ao procurar investigar quais so as

    motivaes de ordem cognitiva que ensejam uma nova conceptualizao e,

    portanto, uma nova estrutura lingustica.

    Outro estudo que trata da transitivizao pertence a Whitaker-Franchi (1989),

    que descreve casos de causativizao (ou transitivizao) em verbos tipicamente

    usados como intransitivos. Como ilustrao, Ciraco (2007) cita os seguintes

    exemplos:

    (a) Essa escova di a cabea. (b) Essa bicicleta sua voc (verbo suar).

    Diferentemente da pesquisa de Gutirrez Ordez (2002a) e Maralo (2000),

    Whitaker-Franchi (1989) e Ciraco (2007) atuam sob um paradigma formal de anlise

    lingustica, assumindo a hiptese de que a semntica constitui-se como um mdulo

    autnomo, assim como a sintaxe e a fonologia; e que esses mdulos da gramtica

    so igualmente estruturados, sendo a sintaxe o mdulo gerador, isto , o mais alto

    da hierarquia. Um paradigma funcionalista, em contrapartida, concebe um sistema

    holista, simblico, em que no h diviso de blocos: forma e sentido representam,

    na verdade, um continuum.

    Segundo Ciraco (2007, p. 55), a causativizao consiste em inserir um

    argumento desencadeador estrutura argumental de um verbo basicamente

    intransitivo, dando origem forma causativa z CAUSA x V. Nesse processo, o verbo

    tipicamente processual incorpora uma causao. Veja (CIRACO, 2007, p. 55):

    a. A chave sumiu. b. Joo fez a chave sumir. c. Joo sumiu a chave.

    Em (a), o verbo sumir, basicamente intransitivo, passa pelo processo de

    causativizao, formando uma construo transitiva, tendo-se as seguintes

    estruturas: x V z V.

    Vale ressaltar que, na perspectiva adotada, a noo de transitividade

    quando relacionada aos conceitos de causatividade e inacusatividade est

    intimamente relacionada noo de acarretamento. Para Dowty (1979), em uma

    estrutura x V y, se x V y acarreta propriedades para x, ou seja, Pn(x), ento, pode-se

  • 30

    inferir Pn(x) em qualquer contexto em que esse verbo ocorra. Em outras palavras, o

    acarretamento lexical de um verbo o grupo de tudo o que se pode concluir sobre x

    e y somente por saber que x V y verdade, independentemente do contexto

    sentencial em que esse verbo aparece. Como exemplo, Ciraco (2007, p. 48) cita

    dois exemplos do verbo quebrar.

    a. Joo quebrou o vaso. b. O vaso quebrou.

    Em (a), tem-se a forma transitiva x QUEBRAR y, e no conjunto Pn(x), x figura

    como o desencadeador do processo. Em (b), entretanto, mesmo no havendo a

    presena de um desencadeador do processo, este infervel. Portanto, embora o

    verbo quebrar, no primeiro exemplo, esteja em uma construo transitiva e, no

    segundo, em uma construo inacusativa, originalmente quebrar transitivo. Um

    verbo originalmente inacusativo, por sua vez, no teria um desencadeador infervel,

    como no caso do verbo desaparecer.

    (11) Da Chacra do Capito Jeronimo Jo-|s dAndrade, desapareceo uma besta de| Sella; suppoem-se ter sido furtado por um| preto que a se achava alugado titulo| de forro; a besta pequena vermelha, qua-|si pangar, e boa marchadeira; quem della| tiver noticia avise as mesmas pessoas acima.

    O Farol Paulistano, 15 de maro de 1828 (Notcia do sculo XIX. Corpus

    PHPB)

    (12) O pai de Srgio, Raimundo Gomes, disse acreditar que a PM tenha matado o garoto e desaparecido com seu corpo.

    Notcia de jornal do sculo XXI (Corpus do Portugus Brasileiro.)

    Nos exemplos acima, tm-se, respectivamente, uma construo intransitiva e

    outra transitiva de desaparecer. No primeiro caso, no se pode depreender que,

    necessariamente, haja um desencadeador do processo. Por isso, sob a perspectiva

    de Dowty (1979), desaparecer, originalmente, um verbo intransitivo.

    Em se tratando da noo de desencadeador do processo, Canado (2000

    apud CIRACO, 2007, p. 74) afirma que parece haver uma especificao de causa

    direta e indireta para os verbos. Nesse sentido, segundo CIRACO (ibidem),

  • 31

    Existem verbos causativos que acarretam a seu argumento x no apenas a propriedade P1(x) = ter um papel no desenrolar do processo, mas tambm podem acarretar as propriedades de P2(x) = no apresentar nenhum tipo de mediao no desenrolar desse processo e de P3(x)= apresentar algum tipo de mediao no desenrolar desse processo. Chamaremos, descritivamente, o papel temtico do sujeito dos verbos causativos que acarretam a x as propriedades P1(x) e P2(x) de desencadeador direto. J o papel temtico dos verbos causativos que acarretam a x propriedades P1(x) e P3(x) ser chamado, descritivamente, de desencadeador indireto. (...) Desse modo, podemos dizer que o desencadeador direto o responsvel imediato pelo desencadeamento do processo e que o desencadeador indireto aquele que tem um papel no desenrolar do processo de forma mediada.

    Como ilustrao, Ciraco (2007, p.75) cita os seguintes exemplos:

    (a) Joo quebrou o vaso com um martelo. (b) Joo quebrou o vaso com o empurro que levou.

    Segundo anlise da autora, na sentena (a), percebe-se que ao argumento

    Joo so acarretadas as propriedades do papel temtico ser o desencadeador direto

    do processo de quebrar. Entretanto, em (b), percebe-se que o argumento Joo

    desempenha um papel diferente, ele no desencadeia o processo de quebrar de

    forma direta, mas mediado por um evento anterior ao evento do qual participa, de

    modo que se poderia parafrasear esta ltima sentena como o empurro que Joo

    levou quebrou o vaso.

    Argumenta-se que, embora as pesquisas de Whitaker-Franchi (1989) e

    Ciraco (2007) sejam de base formalista, elas apresentam semelhanas com

    algumas perspectivas de base funcionalista. A noo de causao, por exemplo,

    figurativizada no modelo da cadeia de aes (CROFT, 1991, 1998; CROFT e

    CRUSE, 2004; LANGACKER, 1987; TALMY, 1976, entre outros), que aponta para a

    tendncia conceptual de o sujeito ser conceptualizado pelo elemento mais

    proeminente na cadeia de aes22, a origem de energia.

    Sob essa perspectiva, retomando os exemplos (a) e (b) de Ciraco (2007, p.

    75), concebe-se que a cadeia de aes poderia ser conceptualizada da seguinte

    forma:

    22 Para definio de cadeia de aes, veja o segundo captulo, seo 2.3.

  • 32

    a) Joo > martelo > vaso.

    b) Empurro > Joo > vaso.

    No primeiro caso, Joo, o elemento mais proeminente na cadeia de aes

    lexicalizado como sujeito da clusula. Ele incide uma fora x para o martelo, que

    exerce uma fora y sobre o vaso. A mesma cena, em critrios conceptuais, poderia

    ser lexicalizada pondo o segundo elemento na posio de sujeito o martelo

    quebrou o vaso ou o ltimo elemento o vaso quebrou. A cada avano na cadeia

    de aes na posio de sujeito, h uma tendncia para a no lexicalizao dos

    elementos esquerda na sentena (pois, quando lexicalizados, assumem posies

    perifricas). O mesmo ocorre com o exemplo em b.

    1.3 ADVRBIO E FUNO ARGUMENTAL

    Advrbio a expresso modificadora que por si s denota uma CIRCUNSTNCIA (de lugar, de tempo, modo, intensidade, condio, etc.) e

    desempenha na orao a funo de adjunto adverbial.

    Bechara (2004, p. 287)

    Os advrbios recebem a denominao da circunstncia ou de outra ideia ACESSRIA que expressam.

    Cunha e Cintra (2001, p. 542)

    As descries acima, extradas de duas renomadas gramticas brasileiras23,

    trazem dois pontos de vista consensuais na caracterizao do advrbio prototpico.

    Semanticamente, advrbios so circunstncias; sintaticamente, so termos

    acessrios da orao.

    Tal caracterizao embora necessria como forma de abstratizao das

    caractersticas que configuram a classe dos advrbios relativizada pelos autores,

    23 As obras citadas so as seguintes: 1) BECHARA, E. Moderna Gramtica Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004; 2) CUNHA, C; CINTRA, L. Nova Gramtica do Portugus Contemporneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

  • 33

    na medida em que facilmente se encontram expresses adverbiais com estatuto de

    argumento, e no de circunstncia. Como exemplo, cita Bechara (2004, p. 436):

    A criana caiu da cama durante a noite. Os carregadores puseram o mvel na sala logo pela manh.

    Segundo o autor (ibidem),

    levada exclusivamente pelo aspecto semntico, a gramtica tradicional igualou estes termos tambm sintaticamente, considerando-os ambos adjuntos adverbiais, isto , como termos no argumentais, fora do mbito da regncia do verbo da orao.

    Nesse sentido, tanto da cama quanto na sala so interpretados como

    adjuntos adverbiais, do mesmo modo como as expresses durante a noite e logo

    pela manh. No obstante, percebe-se, atravs do teste de reduo, que os termos

    da cama e na sala so obrigatrios, isto , argumentais24, na medida em que

    pertencem regncia dos verbos cair e pr, respectivamente.

    Said Ali (1931, p. 183), de quem Bechara foi fiel discpulo, reconhecia a

    existncia de complementos de natureza circunstancial a que ele chamava de

    objeto indireto circunstancial , sem, contudo, associ-los categoria advrbio. Vale

    ressaltar que Said Ali (1931) tinha uma concepo diferenciada de transitividade.

    Para o estudioso, intransitivos eram todos os verbos que no exigiam objeto direto,

    sendo eles intransitivos absolutos (p. ex.: viver e chorar) ou intransitivos relativos.

    Nesta ltima categoria, incluam-se os verbos a que se convencionou chamar, hoje,

    de transitivos indiretos, como depender e precisar, por exemplo. Sua classificao

    dos verbos transitivos corresponde aos casos acusativo (objeto direto) e dativo

    (objeto indireto). Nesse sentido, verbos que no admitiam tais casos, mas cujo uso

    requeria um complemento eram interpretados sob um aspecto circunstancial.

    Kury (2000, p. 32), assim como Bechara, reconhece a existncia de

    argumentos de natureza adverbial:

    Certos verbos de movimento ou de situao (como chegar, ir, partir, vir, voltar; estar, ficar, morar, etc.), quando pedem um COMPLEMENTO ADVERBIAL DE LUGAR que lhes integre o sentido, embora tradicionalmente classificados como intransitivos, devem ser considerados transitivos, desde que se entenda por TRANSITIVIDADE a

    24 Vale ressaltar que, embora Bechara (2004, p. 36) defenda a classificao desses elementos como argumentais, o autor no prope uma nova categorizao para os elementos em estudo.

  • 34

    necessidade de um complemento que vem acabar uma ideia insuficiente em si mesma.

    De modo anlogo, Rocha Lima (2011 [1972], p. 312), descreve os

    complementos circunstanciais:

    O complemento circunstancial um complemento de natureza adverbial to indispensvel construo do verbo quanto em outros casos, os demais complementos verbais.

    Se compararmos frases como:

    Irei a Roma e Jantarei em Roma , verificaremos que, na segunda, o liame entre a preposio e o substantivo se nos mostra muito mais ntimo do que na primeira, onde, pelo contrrio, a preposio como que forma um bloco com o verbo. Temos, a, com efeito, dois sintagmas.

    Irei a Roma Jantarei em Roma

    Por seu valor de verbo de direo, ir exige, por assim dizer, a preposio a para lig-lo ao termo locativo.

    A partir dessas anlises, pode-se questionar a natureza

    acessria/circunstancial de algumas expresses classificadas como advrbio. Ao

    compreender-se circunstncia como uma PARTICULARIDADE que acompanha um

    fato, uma situao25, entende-se que muitas das expresses cuja classificao

    adverbial compem um argumento semntico do verbo a que se referem. Definir o

    advrbio como um termo acessrio da orao evidencia um paradigma formal de

    anlise lingustica, cujos estudos se restringem ao prottipo, isto , aos exemplos

    mais centrais da categoria, sobrepondo-se, assim, a estrutura funo. O que fica

    margem tratado em carter de excepcionalidade. Como tipicamente os advrbios

    so termos modificadores dos verbos e representam ideias de lugar, tempo, modo,

    condio, etc., convencionou-se chamar de advrbios expresses que traziam tais

    caractersticas, mesmo que representassem, semanticamente, um argumento do

    verbo.

    25 FERREIRA, A. B. H. Aurlio Sculo XXI: O dicionrio da Lngua Portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio

    de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

  • 35

    A descrio lingustica a partir dos elementos mais centrais da categoria

    parece-nos um procedimento padro de nossa cognio, como bem aponta Eleanor

    Rosch et al. (1976) na perspectiva da Teoria dos Prottipos. Inicialmente, fixa-se em

    um elemento como sendo um ponto de partida, um ncleo, de cada categoria em

    anlise. Contudo, com o avano do estudo dos elementos mais nucleares de uma

    dada categoria, torna-se natural que se passe a investigar seus elementos mais

    perifricos. No obstante, muito comum que, nessa anlise, alguns traos

    semnticos que eram considerados essenciais categoria passem a ser negados,

    fato que se consegue depreender das observaes tecidas por Bechara (2004) e

    Kury (2000), ao considerarem alguns adjuntos adverbiais como complementos do

    verbo. Afinal, se h advrbios que, semanticamente, funcionam como argumentos,

    estes no podem ser termos acessrios do verbo26.

    Sob esse ponto de vista, concorda-se com Wittgenstein (1991[1941]) quando

    afirma que as categorias no so discretas, uma vez que no possvel delimit-las

    com traos de essncia. Os traos so intermitentes e dependem da perspectiva e

    do uso que se faz da linguagem para referir-se ao conceito. Desse modo, alm de

    interpretar as categorias a partir de um ncleo, como se os elementos se

    agrupassem ao redor de caractersticas comuns (figura 1), pode-se pens-las de

    uma forma lateral (figura 2), analisando-se cada elemento e seus atributos

    especficos.

    Fig 1. Teoria dos Prottipos (Rosch)

    26 Toda vez em que se utiliza o termo argumento nesta tese, faz-se referncia estrutura semntica, e no sinttica, defendendo-se que alguns adjuntos adverbiais so imprescindveis na construo da sentena, diferentemente do que tradicionalmente se associa aos usos mais prototpicos dos advrbios.

    A B C D

    E

  • 36

    Fig 2. Teoria de Semelhana de Famlia (Wittgenstein)

    Pensando sob o paradigma da figura 2, tem-se um extenso agrupamento de

    elementos que no necessariamente tm, entre si, as mesmas caractersticas,

    sendo que um elemento A, uma categoria mais nuclear e prototpica, pode no ter

    semelhana alguma com D, que no mais apresenta os traos considerados

    essenciais categoria do primeiro elemento. Vale ressaltar que, nessa perspectiva,

    mantm-se a representao de um continuum, que atende muito bem s

    abordagens gramaticais, na medida em que se preveem, gradativamente, tanto a

    mudana categorial quanto a semntica. Observe, em carter de ilustrao, dois

    exemplos:

    Compramos um carro naquela agncia de automveis Os carregadores puseram o mvel na sala logo pela manh.

    (BECHARA, 2004, p. 436)

    Tanto no primeiro quanto no segundo exemplos, destacam-se expresses

    tradicionalmente chamadas de adjuntos adverbiais de lugar. No entanto, elas se

    diferenciam semntica e sintaticamente. A primeira, sintaticamente, um termo

    acessrio da orao; semanticamente, uma circunstncia e denota a ideia de

    lugar, funcionando como um modificador do verbo da orao. J a segunda, embora

    sintaticamente seja tambm um adjunto adverbial, semanticamente, complementa o

    sentido do verbo, no sendo, assim, um termo acessrio. Logo, pode-se inferir, com

    base na figura 2, que naquela agncia de automveis ocuparia a posio A e que na

    sala ocuparia a posio B. O ponto de interseo entre os dois seria to-somente a

    D E C B A

  • 37

    ideia de lugar que os dois expressam e a estrutura morfolgica semelhante, iniciada

    pela preposio locativa em seguida de sintagma nominal.

    Goldberg (1995), j sob uma perspectiva cognitiva da anlise lingustica

    (Gramtica de Construes), lana mo de exemplos que mostram a funo do

    adjunto adverbial como argumento componente da estrutura argumental da clusula.

    Um de seus exemplos da construo de movimento causado (ibid., p. 52) evidencia

    que o verbo to put (pr) precisa de um argumento circunstancial em algumas de

    suas instanciaes isto , sintaticamente, pode exigir um adjunto adverbial de

    lugar para complementar-lhe o sentido:

    Sem CAUSE-MOVE < cause goal theme >

    PUT < putter put.place puttee >

    Syn V SUBJ OBL OBJ

    Fig 3. Representao da estrutura argumental do verbo to put.

    Na tabela acima, o termo goal (destino) apresenta uma barra tracejada,

    mostrando que a estrutura argumental pode no realizar o adjunto. No entanto, vale

    ressaltar que essa no realizao do adjunto adverbial depende da instanciao da

    construo. O adjunto adverbial ser inferido contextualmente quando o objeto,

    pragmaticamente, puder representar um lugar infervel, como, por exemplo, na frase

    Ponha a jaqueta em que o lugar s pode ser o prprio corpo. No entanto, em uma

    frase como ponha a jarra na mesa, a expresso adverbial na mesa deixa de ter

    carter acessrio, na medida em que no pode ser inferida a partir do contexto e

    que sua omisso compromete, efetivamente, o sentido pretendido na frase.

    Ao longo desta seo, questionou-se e discutiu-se a definio tradicional

    atribuda ao advrbio, na medida em que h expresses tradicionalmente

    classificadas como advrbios, muito embora no sejam termos acessrios do

  • 38

    verbo. No entanto, o objetivo, aqui, no a de propor uma nova definio para a

    categoria. Na verdade, um dos objetivos desta tese o de retratar como o objeto de

    estudo em anlise, os advrbios que admitem a ideia de causao, podem afastar-

    se da concepo clssica de advrbio quando assumem uma posio argumental.

    Por causao, entende-se uma categoria cognitiva que representa a fonte da

    energia de um determinado processo/ao. Nesta pesquisa, afirma-se que advrbios

    de causa e instrumento podem representar, semanticamente, um argumento do

    verbo, na medida em que se encontram mais integrados.

    1.3.1 o advrbio (e o adjunto adverbial27) de instrumento

    A categoria instrumento, enquanto um dos papis semnticos ou um dos

    valores semnticos do advrbio, parece apresentar-se como discreta e

    homognea nas gramticas tradicionais, uma vez que os autores apenas a

    exemplificam, e no a descrevem. Veja alguns exemplos:

    As principais circunstncias expressas por advrbio ou locuo adverbial so:

    [...] instrumento: Escrever com lpis.

    Bechara (2004, p. 290-291)

    difcil enumerar todos os tipos de ADJUNTOS ADVERBIAIS. Muitas vezes, s em face do texto se pode propor uma classificao exata. No obstante, convm conhecer os seguintes:

    [...] e) DE INSTRUMENTO: Anastcio estava no alto, na orla do mato, juntando, a ancinho, as

    folhas cadas (Lima Barreto, TFPQ, 156.) Dou-te com o chicote, ouviste! (Luandino Vieira, L. 41.)

    Cunha & Cintra (2001, p. 152-153)

    Muito difcil seria relacionar todos os tipos de adjunto ou complemento adverbial. Quantas vezes somente num caso concreto se consegue dar a denominao mais expressiva. Deve o professor aceitar todas as que revelem no aluno compreenso inteligente. Sirvam apenas de guia os exemplos que adiante se do:

    27 Vale ressaltar que, na sintaxe, o termo adjunto adverbial equivale ao advrbio e locuo adverbial na morfologia.

  • 39

    [...]

    Instrumento: Preferia pintar a leo (ou com guache).

    Kury (2000, p. 56)

    Grosso modo, os exemplos acima correspondem definio encontrada na

    literatura existente sobre o estudo dos casos gramaticais, para o qual o instrumento

    o quinto caso, usado para indicar que um nome o instrumento ou meio pelo

    qual ou com o qual o sujeito realiza e efetua uma ao. (GARCIA, 1993, p. 137)

    Tal concepo no se diferencia nas obras de orientao funcionalista. Nas

    obras analisadas28, apenas uma trazia definio para a categoria adjunto adverbial

    de instrumento, a qual se adequa tanto definio de Garcia (1993, p. 137) quanto

    aos exemplos citados pelos autores das gramticas a que se fez referncia

    anteriormente.

    Segundo Valin e LaPolla (1997, p. 177), o papel semntico de instrumento29

    uma entidade manipulada por um agente no fazer de uma ao. Dessa forma,

    observa-se que os sujeitos gramaticais dos exemplos extrados de Bechara (2004),

    Cunha e Cintra (2001) e Kury (2000) embora nem todos estejam expressos so

    agentes que, por sua ao e poder, executam uma ao com o uso de determinado

    instrumento.

    1.3.2 O papel semntico instrumento na gramtica cognitiva

    De modo anlogo a Valin & LaPolla (1997), Langacker (2008, p. 356) define o

    papel semntico instrumento, sem, no entanto, associar-lhe a uma classe gramatical

    especfica.

    [...] Um instrumento algo usado por um agente para afetar outra

    entidade. O instrumento tpico um objeto inanimado, fisicamente

    manipulado por um agente. Portanto, ele no uma fonte de energia

    28 Dentre as obras pesquisadas, destacamos: 1) a Gramtica de Usos do Portugus (NEVES, 1999); 2) a Gramtica Discursivo-Funcional (HENGEVELD e MACKENZIE, 2008); 3) a Lingustica Sistmico-Funcional (HALLIDAY, 1985), a Lingustica Funcional Padro (DIK, 1989 e 1997); 4) a Gramtica de Papel e Referncia (VALIN e LAPOLLA, 1997). 29 Embora os autores definam a categoria enquanto papel semntico, vale ressaltar que eles a associam ao sintagma adverbial. Langacker (2008) j a trata conceptualmente e ilustra que ela pode ocupar outra posio sinttica, a de sujeito.

  • 40

    independente, mas intermediria na transferncia de energia do agente

    para o paciente.

    Quando Langacker (2008) afirma que o instrumento no uma fonte de

    energia independente, ele faz referncia a um dos arqutipos da Gramtica

    Cognitiva, a Cadeia de Aes, que representa interaes de fora, cada uma

    envolvendo transmisso de energia (seta larga) de um participante para o outro.

    Veja sua representao abaixo:

    Fig 4. Representao do arqutipo Cadeia de Aes (LANGACKER, 2008)

    Nessa perspectiva, pode-se entender que um agente A transfere sua fora

    para um instrumento B, o qual transfere sua fora para um paciente C, como se

    ilustra no esquema a seguir:

    Fig 5. Perfilamento prototpico da orao com adjunto adverbial de instrumento

    (LANGACKER, 2008)

    Ao se tomar como ilustrao o exemplo Dou-te com um chicote, observa-se

    na orao (nosso escopo imediato EI), os seguintes elementos perfilados (em

    Cenrio

    EI

    AG INST PAC

    ESP

  • 41

    negrito): 1) agente, representado pela desinncia nmero-pessoal u do verbo dar;

    2) instrumento, representado pelo adjunto adverbial com um chicote; 3) paciente,

    representado pelo complemento verbal te30.

    Embora esse seja o esquema cannico da orao com adjunto adverbial de

    instrumento, nem sempre todos os elementos precisam ser perfilados, isto , esto

    presentes na orao. Em preferia pintar a leo, o paciente infervel no escopo

    imediato, embora no se encontre perfilado, como se pode observar no esquema a

    seguir:

    Fig 6. Perfilamento dos papis semnticos expressos na orao preferia pintar a olo.

    Langacker (2008, p. 369) ainda afirma que o papel semntico instrumento

    pode ser promovido a agente quando o perfilamento da clusula se limita interao

    instrumento-paciente.

    Quando o perfilhamento limitado a interaes instrumento-paciente, o instrumento selecionado: ele semelhante ao agente porque ele afeta o paciente e, em termos locais, a fonte de energia31.

    30 O esquema da figura 5 um modelo bsico da Gramtica Cognitiva, o Modelo de Palco, que, segundo Langacker (2008), pertence ao mundo externo. O termo utilizado para sugerir que o processo cognitivo semelhante a assistir uma pea. Como ns no podemos ver tudo de uma nica vez, assistir, portanto, exige o direcionamento e a focalizao da ateno. A partir de nosso escopo de viso, selecionamos uma rea limitada como o lugar de ateno. Dentro dessa regio, ns focalizamos nossa ateno especificamente em certos elementos. Nesse sentido, EI, representa nosso escopo imediato, isto , os elementos proeminentes para os quais nossa ateno foi dedicada; esp, significa espectador e, por isso, representa os interlocutores.

    Cenrio

    EI

    AG INST PAC

    ESP

  • 42

    Para tal, Langacker (ibidem) faz uso dos seguintes exemplos:

    (a) Floyd broke the glass with a hammer. AGs INSTr PATo Floyd quebrou o copo com o martelo

    (b) A hammer broke the glass. AG INSTrs PATo O martelo quebrou o copo.

    (c) The glass broke AG INSTr PATs O copo quebrou.

    No exemplo (a), tem-se uma orao em que o agente, o instrumento e o

    paciente encontram-se perfilados, de modo que o instrumento exerce sua funo

    prototpica, isto , o agente prototpico ocupa a posio de sujeito; o paciente, o

    objeto; o instrumento, o adjunto adverbial. J no exemplo (b), uma vez que o agente

    no perfilado, o instrumento torna-se agentivo, uma vez que ele a fonte de

    energia. Pode-se representar essa transferncia de agentividade ao instrumento no

    seguinte esquema:

    Fig 7. Representao da transferncia de agentividade a instrumento.

    J no exemplo (C), apenas o paciente perfilado, e por isso assume a

    posio de sujeito da orao, mesmo no assumindo carter agentivo, veja:

    31 When the profile is limited to the instrument-patient interaction, the instrument is chosen: it is agent-like because it affects the patient and in local terms is the energy source.

    AG INST PAC

    ESP

    Cenrio

    EI

    AG

  • 43

    Fig 8. Representao de orao em que apenas o papel paciente perfilado.

    1.3.3 A mudana de instrumento a instrumento-agentivo32

    A transferncia de agentividade a instrumento facilmente encontrada em

    verbos de dois argumentos no portugus brasileiro, como se pode observar no

    segundo exemplo abaixo, em que o no perfilamento do agente prototpico (isto ,

    um ser humano) nos leva a interpretar o instrumento como agente, atribuindo-lhe,

    nesse caso, o papel prototpico de sujeito da orao.

    a) Carlos abriu a porta com a chave.

    b) A chave abriu a porta.

    c) A porta abriu.

    No obstante, em verbos monoargumentais de sujeitos no agentivos,

    tambm possvel essa promoo de instrumento a instrumento-agentivo, como se

    v a seguir:

    a) Com Clear, a caspa desaparece.

    32 Optou-se por chamar de instrumento-agentivo, o papel semntico instrumento quando este assume a posio de sujeito da sentena. Nesse caso, o instrumento assume uma funo semelhante a do agente prototpico, na medida em que ele desencadeia uma ao.

    Cenrio

    EI

    AG INST PAC

    ESP

  • 44

    Em Com Clear, a caspa desaparece, o sujeito gramatical afetado (isto , a

    caspa no faz desaparecer, mas sofre essa ao) e a agentividade sobre essa ao

    parece pertencer entidade Clear, que funciona como ncleo do adjunto adverbial

    de instrumento (Clear faz a caspa desaparecer). Julga-se a expresso Com Clear

    sob o papel semntico instrumento porque se compreende que a cena original dessa

    orao envolve um agente humano que no se encontra perfilado na orao. Em

    critrios cognitivos, pode-se conceber que algum faz a caspa desaparecer com o

    uso de Clear. Ter-se-ia, sob esse ponto de vista, o esquema representado na figura

    733.

    Conforme se viu anteriormente, na perspectiva de Langacker (2008, p. 369),

    em parmetros conceptuais, a categoria prototpica instrumento promovida a

    instrumento-agentivo quando o perfilamento da clusula se limita interao

    instrumento-paciente.

    Sob essa perspectiva, na orao Com Clear, a caspa desaparece, Clear

    promovido a instrumento-agentivo, j que caspa preenche o papel participante

    paciente na estrutura da construo adverbial. Segundo a Gramtica Cognitiva

    (LANGACKER, 2008), essa transferncia de papis se d pelo no perfilamento da

    fonte da energia na clusula, isto , do agente humano que faria a caspa

    desaparecer com o uso de Clear. Desse modo, o instrumento eleito fonte de

    energia, nico elemento disponvel a esse papel no escopo imediato.

    No entanto, diferentemente do que se viu no exemplo de verbo de dois

    argumentos, em que o instrumento-agentivo lexicalizado como sujeito o martelo

    quebrou o copo , Com Clear apresenta uma estrutura adverbial, preposicionada.

    No caso da orao o martelo quebrou o copo, interpretou-se o sintagma nominal o

    martelo como sujeito gramatical e como agente, como bem aponta Langacker

    (2008), sem que se tenha a um problema para as descries gramaticais vigentes.

    O mesmo fato j no ocorre com o sintagma adverbial com Clear.

    33 Entende-se que com Clear apresenta um instrumento de comportamento distinto do exemplo anterior: a chave abriu a porta. Nesse caso, embora se atribua o papel semntico instrumento ao adjunto adverbial com Clear, observa-se uma agentividade inerente aos produtos qumicos. Clear age sobre a caspa independentemente da ao humana. Enquanto a chave, no exemplo anterior, requer a conceptualizao de um agente, na medida em que a chave necessita de uma pessoa que a utilize como um instrumento, Clear age sobre a caspa independentemente da ao de um ente humano. A despeito dessa diferena, consideramos que, nesse exemplo, um ente humano tambm infervel como um agente primrio, na medida em que algum precisa fazer uso do produto.

  • 45

    Ao se entender que o adjunto adverbial de instrumento em anlise funciona,

    na verdade, como agente, tem-se, a, uma construo diversa, no prototpica.

    Nesse caso, deve-se ainda classificar essa expresso adverbial como instrumento

    ou deve-se propor uma nova classificao para a categoria? Ademais, ao se

    reconhecer que essa construo tem papel agentivo, deve-se analis-la, sob

    critrios semnticos, ainda, como termo acessrio, e no argumento?

    Em se tratando de uma tendncia pelo perfilamento do elemento mais

    agentivo no escopo imediato da sentena, tambm justifica-se, baseando-se em

    Langacker (2008), que o papel semntico arquetpico instrumento, na estrutura

    conceptual humana, um dos provveis desencadeadores da transitivizao tanto

    de desaparecer quanto de outros verbos inacusativos. Nesse sentido, encontrar-se-

    ia a motivao cognitiva para alguns exemplos, como Normaderm some com

    aquelas espinhas inconvenientes, em que um verbo prototipicamente intransitivo

    apresenta-se em uma construo transitiva. Veja que, assim como no exemplo

    anterior, h uma promoo do instrumento a sujeito, e o paciente da construo

    original foi promovido posio de complemento, prototpica desse papel semntico.

    1.3.4 O advrbio (e o adjunto adverbial) de causa e a propriedade semntica da

    causao

    Causa, sob o olhar da gramtica normativa tradicional, um valor (e no um

    papel) semntico que remete ao verbo. Nessa perspectiva, ele est associado s

    circunstncias, estruturalmente classe dos advrbios e dos adjuntos adverbiais.

    Nas gramticas contemporneas de alta circulao nacional, pouco se trata

    desse valor semntico. De modo geral, concorda-se que causa uma circunstncia

    expressa, sobretudo, por locues adverbiais (morfologia) ou adjuntos adverbiais

    (sintaxe).

    difcil enumerar todos os tipos de ADJUNTOS ADVERBIAIS. Muitas vezes, s em face do texto se pode propor uma classificao exata. No obstante, convm conhecer os seguintes:

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    (...) a) De causa: Por que lhes dais tanta dor? (A. Gil, LJ, 25)

    No havia de perder o esforo daqueles anos todos, por causa de um exame s, o derradeiro. (C. dos Anjos, MS, 343).

    (...) Cunha & Cintra (2001, p. 152)

    As principais circunstncias expressas por advrbio ou locuo adverbial so: (...) 2) causa: Morrer de fome. (...)

    Bechara (2004, p. 291)

    Muito difcil seria relacionar todos os tipos de adjunto e complemento adverbial. Quantas vezes somente num caso concreto se consegue dar a denominao mais expressiva.