Transindividualidade - Leibniz, Espinosa, Simondon

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    Intersubjetividade e transindividualidade

    a partir de Leibniz e Espinosa

    Vitorio Morfno*

    Resumo: Um dos mal-entendidos mais persistentes que cercam a losoa leibniziana

    consiste, sem dvida, em querer ver nela uma forma de espinosismo. Por outro lado, toda

    oposio que se faz entre Leibniz e Espinosa no plano terico aparentemente no ultrapassa

    a viso hegeliana da relao entre os dois lsofos como oposio entre universalidade

    e individualidade. Pretende-se aqui, diferentemente, confrontar os dois lsofos em

    relao questo da individualidade confrontando os seus prolongamentos tericos do

    sculo XX. De um lado, a intersubjetividade husserliana como prolongamento terico

    da monadologia; de outro, o conceito simondoniano de transindividualidade que, com

    Balibar, permite-nos prolongar o pensamento espinosano na contemporaneidade. Tentar-

    se- marcar toda a distncia que separa estes dois sistemas segundo uma abordagem que

    no se limita a repetir o velho refro hegeliano.

    Palavras-chave: Espinosa, Leibniz, transindividualidade, intersubjetividade.

    1. Monadologia e espinosismo

    Na histria dos mal-entendidos a respeito da losoa leibniziana certamente est,

    entre os mais curiosos e insistentes, aquele que nela quer ver uma forma de espinosismo;

    uma incompreenso em duplo sentido, pois, para poder armar-se, opera uma reduo

    da complexidade tanto de Leibniz quanto de Espinosa. Leibniz j se expressava de

    maneira inequvoca nos ltimos anos de sua vida, em resposta a uma carta de Bourguet:

    Eu no sei, senhor, como podeis tirar da qualquer espinosismo; passar um tanto rpido s concluses. Ao contrrio, justamente

    graas a essas mnadas que o espinosismo destrudo, porque

    existem tantas substncias verdadeiras, e, por assim dizer, espelhos

    vivos do universo sempre subsistentes, ou universos concentrados,

    quantas mnadas existem, enquanto que, segundo Espinosa, no

    existe nada alm de uma s substncia. Ele teria razo caso no

    * Professor na Universit degli studi di Milano - Bicocca

    Traduo de Herivelto Pereira de Souza

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    existissem mnadas; ento tudo, fora de Deus, seria passageiro e

    se esvairia como simples acidentes ou modicaes, uma vez que

    no existiria a base das substncias nas coisas, a qual consiste na

    existncia das mnadas.(Leibniz 11, p.575)

    Na resposta de Leibniz est presente o forte componente ideolgico sublinhado

    por Friedmann, que arma que na galeria de doutrina mobiliada pela propagandaleibniziana dos ltimos anos, o espinosismo joga cada vez mais o papel do maligno,

    que a harmonia preestabelecida vem exorcizar (Friedmann 5, p.163), uma monadologia

    que se ergue como ltimo baluarte cristo contra o atesmo; todavia, a importncia da

    resposta no pode ser limitada a este aspecto: ela apresenta um ponto terico fundamental

    de afastamento progressivo das duas losoas, aquele que Balibar, usando uma bela

    expresso de Foucault, deniu como o ponto de heresia (Balibar 1, p.8).

    Em um plano estritamente metafsico, foi Friedrich Heinrich Jacobi a colocar

    em relevo a oposio entre os dois sistemas, em um apndice segunda edio das suas

    clebres Cartas ao Sr. Moses Mendelssohn sobre a teoria de Espinosa (apndice este feitopara corrigir a insistncia, na primeira edio, sobre a identidade substancial dos dois

    sistemas): a presena, em Leibniz, do conceito de forma substancial, de um principium

    individuationis, torna os dois sistemas no apenas diferentes, mas opostos. (Jacobi 10,

    p.114; trad. p.252) Esta oposio foi canonizada e ao mesmo tempo dialetizada por Hegel

    na clebre nota ao primeiro captulo da terceira seo da Teoria da Essncia (Hegel

    7, p.376-378; trad. p.604-606): aqui a oposio Espinosa-Leibniz perde os caracteres

    contingentes do horizonte histrico que a viu surgir, para se tornar um jogo categorial

    que a mente de Deus conduz na eternidade do elemento lgico. Nessa oposio, em

    sua existncia histrica, exprime-se a dialtica de duas unilateralidades que devero ser

    superadas pelo desdobrar-se do processo: se, de fato, na losoa espinosana, o sujeito

    naufraga na totalidade da substncia, na losoa leibniziana o sujeito pode ser colocado

    apenas se toma como prpria a lei das suas relaes com as outras mnadas, isto , se

    a sua atividade entendida somente em sentido relativo. Olhando bem, Hegel repete

    a opinio leibniziana1 colocando a dialtica das duas unilateralidades a servio de sua

    prpria losoa: a substncia sem sujeito de um lado e os sujeitos sem totalidade imanente

    de outro, preparando o caminho para aquele fazer-se sujeito da substncia que o ncleo

    central de seu pensamento.

    Em um plano teortico, alm dos contornos do esboo hegeliano nada houve alm

    de mera repetio.2 Todavia, se colocada em um plano puramente metafsico, a oposio

    parece ser estril: a eterna repetio da dialtica Um-Muitos, que habita a tradio ocidental

    desde oParmnides de Plato, refratar-se-ia na dade Espinosa-Leibniz atravs da lente

    metafsica da substncia. Uma ou muitas substncias: eis o dilema. Porm, se se renuncia

    a um olhar panormico sobre a histria do pensamento e se aproxima a terminologia dos

    dois autores, torna-se imediatamente claro que todo esquema opositivo simplista resulta

    inadequado e redutivo3, como demonstra aquele extraordinrio protocolo de leitura que

    o manuscrito leibnizianoAd Ethicam , cujo aspecto proeminente consiste precisamente

    na impossibilidade de Leibniz em traduzir a terminologia metafsica espinosana dentro de

    sua prpria losoa.(Cf. Morno 15) Buscar-se-, ento, desativar a questo atravs de

    um duplo movimento: de um lado, situar a oposio no em nvel metafsico (unicidade da

    substncia contra pluralidade das mnadas) mas sobre o plano do nito e de suas relaes

    internas (mnadas contra modos); e de outro lado, desvincul-la do plano meramente

    historiogrco para avaliar sua potncia em termos de histria dos efeitos, projetando-a

    sobre um terreno que, em ltima instncia, teortico.

    2. Intersubjetividade transcendental

    Se h um autor na losoa do sculo XX que restitui vigor ao projeto leibniziano

    de uma monadologia, ele sem dvida alguma Edmund Husserl. Na medida em que se

    avana na leitura das Meditaes Cartesianas, a gura de Leibniz parece deslocar do

    centro da cena terica fundamental a de Descartes, culminando na quinta meditao,dedicada intersubjetividade, quando Husserl prope, apertis verbis, a sua prpria teoria

    como uma monadologia.

    Percorramos brevemente as passagens fundamentais desse caminho. O primeiro

    e bem conhecido movimento terico husserliano consiste na repetio da dvida universal

    cartesiana que conduz a um ego puro (ou ego reduzido), pura interioridade dotada do

    carter de evidncia apodtica. Deste modo, o ego cogito resulta no solo judicativo ltimo

    e apoditicamente certo sobre o qual toda losoa radical fundada (Husserl 9, p.58; trad.

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    p.52); diante do mundo, assim como dos outros, eu no sou mais do que uma pretenso de

    existncia, um Seinsanspruch, isto , perdem-se as inteiras formaes da socialidade e da

    cultura [die ganzen Gebilde der Sozialitt und der Kultur] (Husserl 9, p.58-59; trad. it. p.

    52) em sua crena existencial, Seinsglauben. Esta epoch, esta reduo fenomenolgico-

    existencial , como dito, a repetio de um movimento cartesiano e, no entanto, ao

    mesmo tempo, uma tentativa de atingir uma radicalidade mais profunda: a colocao do

    mundo entre parnteses enquanto mtodo, graas ao qual eu tomo a mim mesmo como eu

    puro, constitui, de fato, uma tomada de distncia da identicao cartesiana entre cogito

    esubstantia, na qual Husserl v uma espcie de reicao do eu puro.

    Esse primeiro movimento, porm, graas ao qual eu entro em contato com a

    evidncia do cogito, no um m em si mesmo. Ele me permite ter acesso multiplicidade

    das experincias de si do viver transcendental:

    a mera identidade do eu sou no o contedo absolutamente

    indubitvel da experincia transcendental de si, antes, estende-se

    atravs de todos os dados particulares da real e possvel experinciade si [...] uma universal e apodtica estrutura de experincia do eu.

    (Husserl 9, p.67; trad. it. p.60)

    Assim, a fenomenologia transcendental resulta uma cincia absolutamente

    subjetiva, enquanto o objeto, no seu ser, independente da deciso acerca da existncia ou

    da no existncia do mundo. Porm, segundo Husserl, apenas em aparncia estamos diante

    de um solipsismo transcendental, uma vez que sua execuo conseqente, conforme

    seu prprio sentido, conduz a uma fenomenologia da intersubjetividade transcendental

    (Husserl 9, p.69; trad. it. p.62): no fundo, o solipsismo seria apenas um estgio inferior,uma considerao metodolgica necessria para poder colocar em funcionamento a

    problemtica da intersubjetividade transcendental. Vejamos como.

    O campo de trabalho do ego reduzido compreende todo o mundo e a cincia

    objetiva, um ego que permanece idntico nas multplices cogitationes, a vida corrente

    da conscincia [das strmende Bewusstseinleben] na qual vive o eu idntico (Husserl 9,

    p.70; trad. it. p.62): a expresso mais correta da evidncia apodtica , portanto, segundo

    Husserl, ego cogito + cogitatum na dupla direo notica e noemtica. Este uxo de

    Erlebnisse [vivncias] na conscincia no dado sem conexo, mas como sntese:

    na reexo pura vejo que este cubo dado de maneira contnua

    como unidade objetiva em uma varivel e multiforme multiplicidade

    que determina modos fenomnicos que lhe fazem parte [in

    einer vielgestaltigen wandelbaren Mannigfaltigkeit bestimmt

    zugehriger Erscheinungsweise ]. (Husserl 9, p.77; trad. it. p.69)

    a sntese da conscincia que estabelece a unidade do objeto na pluralidade

    das suas manifestaes: a inteira vida da conscincia [...] unicada sinteticamente

    (Husserl 9, p.80; trad. it. p.72). A tarefa do fenomenlogo no descrever de maneira

    ingnua o objeto, mas os modos pelos quais a conscincia o constitui enquanto tal:

    apenas deste modo o fenomenlogo pode tornar compreensvel

    para si como na imanncia da vida da conscincia, e em quais

    modos constitudos de conscincia estes uxos ininterruptos

    de conscincia, assim como as unidades objetivas estveis epermanentes, podem tornar-se conscientes, e em particular, como

    vem a efetuar-se essa maravilhosa realizao da constituio dos

    objetos idnticos para cada categoria de objeto. (Husserl 9, p.85;

    trad. it. p.77)

    No uxo heraclitiano da conscincia cada objeto designa uma estrutura de

    regras do eu transcendental.

    At aqui, sumariamente, as trs primeiras meditaes, as quais vo na direo

    de uma transcendentalizao do cogito cartesiano. Com a quarta se abre o percurso, por

    assim dizer, leibniziano. De fato, o ego no um plo de identidade vazio, pois para

    cada ato que emana de si [ele] adquire um novo sentido objetivo, uma nova propriedade

    durvel [eine neue bleibende Eigenheit] (Husserl 9, p.100; trad. it. p.92). E mais:

    enquanto o eu, por sua prpria gnese ativa, constitui-se como

    substrato idntico de durveis propriedades-do-eu [identisches

    Substrat bleibender Ich-Eigenheiten], constitui-se tambm

    ulteriormente como eu pessoal estvel e permanente naquele

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    sentido mais amplo, que permite tambm se falar em pessoas

    infra-humanas (Husserl 9, p.101; trad. it. p.93).

    O eu se constitui como estilo permanente, como carter pessoal. Mas o eu

    como plo idntico e como substrato de habitualidade ainda diferente do eu na sua

    plena concretude; a este, Husserl chama de mnada, o ego enquanto possui um mundo-

    ambiente contnuo [eine fortwhrend Umwelt] (Cf. Husserl 9, p.102; trad. it. p.94)4.Neste ponto Husserl se coloca a pergunta fundamental para o seu projeto: como

    sair do domnio da conscincia [Bewusstseinsbereich] (Husserl 9, p.116; trad. it. p.106),

    da ilha da conscincia [Bewusstseinsinsel](Ibidem; trad. it. p.107)? Ou seja, como

    possvel que a evidncia tenha mais do que o carter de dado da conscincia? aqui,

    precisamente, que se abre o problema da intersubjetividade: no tem sentido colocar, como

    fez Descartes, o universo do ser como externo ao universo da conscincia estabelecendo

    uma lei xa de correspondncia entre os dois (correspondncia que necessita de uma

    garantia divina); suciente que em mim sejam constitudos transcendentalmente outros

    ego e um mundo objetivo. Trata-se, aqui, de sair de um solipsismo transcendental, da

    imanncia da conscincia, para mover-se em direo transcendncia do outro.

    Husserl aborda a questo analisando como se forma em mim o sentido do

    alter ego. Trata-se, em primeiro lugar, de operar uma reduo metodolgica da esfera de

    pertencimento, isto , de excluir do campo temtico tudo aquilo que agora questionvel,

    isto , de [fazer] abstrao de todos os produtos constitutivos da intencionalidade

    orientada mediata ou imediatamente subjetividade estrangeira [fremde Subjektivitt]

    (Husserl 9, p.124; trad. it. p.116); Husserl considera, porm, que:

    uma tal abstrao no radical, um tal ser-sozinho no muda nadano sentido de mundo natural do ser-experiencivel-para-cada-um

    [Fr-jedermann-erfahrbahr], o qual tambm adere ao eu entendido

    de maneira natural, e que no seria perdido mesmo se uma peste

    universal me deixasse sozinho. (Husserl 9, p.125; trad. it. p.116)

    Assim, naquilo que me prprio enquanto mnada, [que existe] puramente em

    mim mesmo e para mim mesmo, em clausura do que me prprio [ in abgeschlossener

    Eigenheit] (Husserl 9, p.125; trad. it. p.117), h a intencionalidade do estrangeiro:

    constitui-se o novo sentido do ser que ultrapassa meu eu mondico no que prprio

    de si mesmo, e se constitui um ego no como eu mesmo, mas como um que se espelha

    no meu eu prprio, na minha mnada [sondern als sich in meinem eigenen Ich, meiner

    Monade spiegelndes] (Ibidem). Este segundo ego no est presente, no nos dado

    autenticamente, mas constitudo como alter ego. A questo acerca da possibilidade

    de intencionar o estrangeiro permanece, porm, de difcil soluo: Deve haver

    aqui escreve Husserl uma certa mediaticidade da intencionalidade que procede a

    partir da camada inferior do mundo primordial [primordinale Welt], colocada sempre

    como fundamental (Husserl 9, p.139; trad. it. p.129). Esta mediao deveria tornar

    representvel o Mit-da sem que se possa sequer mostrar-se como um Selbst-da. Trata-

    se do ato de tornar co-presente, de uma espcie de apresentao, de tipo diferente com

    respeito quela presente na experincia externa, segundo a qual, por exemplo, o lado visto

    de um objeto me apresenta aquele posterior, escondido. A apresentao do outro de

    tipo diferente: ego e alter ego so dados sempre e necessariamente em emparelhamento

    originrio [ursprngliche Paarung] (Husserl 9, p.142; trad. it. p.132), emparelhamento

    que um presentar-se congurante como par, grupo, multido, uma sntese passiva de

    associao segundo a qual, pelo fato de que eu sou um corpo orgnico, se aparece na

    minha esfera primordial um corpo semelhante ao meu, [um corpo] que deve entrar em

    emparelhamento fenomenal [phnomenale Paarung] com o meu [corpo] (Husserl 9,

    p.143; trad. it. p.133)5, aquele corpo assume sentido de corpo orgnico atravs de uma

    transferncia de sentido.

    A questo diz respeito, agora, a como esse sentido pode ter valor de ser. Segundo

    Husserl, a apresentao [Apprsentation] que me d o outro na sua

    inatingvel originalidade entrelaada a uma presentao

    [Prsentation] original (deseu corpo como parte da natureza dada a

    mim singularmente [seines Krpers als Stck meiner eigenheitlich

    gegebenen Natur]). Mas neste entrelaamento [Verechtung] o

    corpo-orgnico estrangeiro e o eu estrangeiro que o governa so

    dados no modo de uma experincia transcendente unitria. (Husserl

    9, p.143-144; trad. it. p.134)

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    Essa experincia do estrangeiro pode ser vericada mediante novas

    apresentaes decorrentes em concordncia sinttica (Husserl 9, p.144; trad. it. p.134).

    Fica claro, com isso, continua Husserl que na modicao analgica apresentado

    tudo aquilo que pertence concretude deste eu, em primeiro lugar como seu mundo

    primordial e depois como ego inteiramente concreto (Husserl 9, p.144; trad. it. p.135).

    Assim, por apresentao, constitui-se na minha mnada uma outra mnada que, no entanto,

    no posso nunca apreenderoriginaliter, e que, por isso, tem o carter da transcendncia.

    Essa experincia do estrangeiro funda a objetividade do mundo e a comunidade

    das mnadas, isto , a sua temporalidade comum:

    [...] estabelece em sua complexa estrutura uma ligao semelhante,

    mediada atravs de presenticaes [Vergegenwrtigung], entre

    a experincia de si (enquanto pura manifestao de si passiva

    e original), que prossegue em vivacidade ininterrupta, do eu

    concreto, portanto sua esfera primordial, e a esfera do estrangeiro

    nela presenticada [vergegenwrtigten]. Ela estabelece tal ligao

    mediante uma sntese identicadora do corpo-orgnico estrangeiro

    primordialmente dado consigo mesmo, s que apresentado em

    outro modo fenomnico, e, a partir da, estende-se atravs da

    sntese identicadora da mesma natureza dada e vericada ao

    mesmo tempo primordial (em pura originalidade sensria) e

    apresentativamente. Dessa forma, originariamente fundada

    a coexistncia do meu eu (e do meu ego concreto, em geral)

    com o eu estrangeiro, da minha vida intencional com a sua, das

    minhas realidades com as suas; em uma palavra, [ fundada] uma

    forma temporal comum [eine gemeinsame Zeitform], onde cada

    temporalidade primordial [primordinale Zeitlichkeit] adquire porsi mesma o mero signicado de um original e subjetivo-individual

    modo fenomnico da temporalidade objetiva. V-se, aqui, como

    a comunidade temporal [ zeitliche Gemeinschaft] das mnadas,

    mutuamente referidas de maneira constitutiva, indissocivel,

    porque essencialmente relacionada constituio do mundo e do

    tempo do mundo [Weltzeit]. (Husserl 9, p.156; trad. it. p.146)

    A contemporaneidade das mnadas, o seu ser-ao-mesmo-tempo (Husserl

    9, p.166; trad. it. p.156), funda a unicidade da comunidade mondica, a unicidade e a

    objetividade do mundo, a unicidade do espao e a unicidade da temporalidade real.

    Essa comunidade tem dois graus de formao: em um grau mais baixo, a

    outra mnada constituda em mim como estrangeira, as outras mnadas so realiter

    separadas da minha, ou seja, no h liame real entre os momentos de conscincia delas

    e os meus; em um grau mais elevado, se eu dirijo minha compreenso em direo ao

    outro ser humano, descubro que, como seu corpo orgnico se encontra no meu campo

    perceptivo, tambm o meu se encontra no dele. Esta reciprocidade funda a comunidade

    mondica, a intersubjetividade transcendental que traz consigo, necessariamente,

    o mesmo mundo objetivo constitudo (Husserl 9, p.158; trad. it. p.148). De maneira

    extremamente sinttica, poderamos dizer que o primeiro nvel cartesiano, enquanto o

    segundo leibniziano. Como escreve o prprio Husserl:

    Assim, constituio do mundo objetivo pertence essencialmente

    uma harmonia das mnadas, mais precisamente, uma tal

    constituio harmnica particular das mnadas e, conforme aisso, tambm uma harmonia na gnese singular que prossegue.

    (Husserl 9, p.138; trad. it. p.128; itlicos meus)

    A constituio da intersubjetividade transcendental necessita, assim, do conceito

    de mnada como espelho sinttico de um mundo-ambiente e do conceito de comunidade

    mondica como reciprocidade dos espelhamentos, sincronia dos mundos. Esta harmonia

    no teria, porm, uma estrutura metafsica, tampouco as mnadas seriam invenes ou

    hipteses metafsicas: a sada do solipsismo no seria tornada possvel, de fato, como quis

    sublinhar o prprio Husserl, por uma metafsica inconfessa, por uma retomada oculta detradies lebnizianas (Husserl 9, p.174; trad. it. p.164).

    3. Intersubjetividade metafsica

    A questo fundamental da teoria da intersubjetividade transcendental (que

    tambm a mesma questo sobre o valor da evidncia vinda de fora da cercadura da

    conscincia) diz respeito a este conceito no metafsico de mnada e de harmonia

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    que Husserl coloca como fundamento de sua teoria. O que, exatamente, Husserl

    entende por conceito no metafsico de mnada e de harmonia? Parece-me que, para

    ele, a teoria da intersubjetividade transcendental no necessita de alguns pressupostos

    metafsicos leibnizianos que elenco sinteticamente a seguir, percorrendo os pargrafos

    da Monadologia:

    1) a substancialidade das mnadas;

    2) que as mnadas s poderiam comear por criao e acabar por aniquilao

    (Leibniz 12, 6, p.607; trad. it., p.453);

    3) que como todo o estado presente de uma substncia simples uma continuao

    natural do seu estado passado, assim tambm o presente est prenhe do futuro (Leibniz

    12, 22, p.610; trad. it., p.456);

    4) que a razo ltima das coisas deve encontrar-se numa substncia necessria,

    na qual o pormenor das modicaes s esteja eminentemente, como na origem. o que

    chamamosDeus (Leibniz 12, 38, p.613; trad. it., p.458-459);

    5) que o intelecto de Deus seja o fundamento ontolgico da possibilidade

    (Leibniz 12, 43, p.614; trad. it., p.459);

    6) que tenha lugar uma inuncia meramente ideal de uma Mnada sobre

    outra, inuncia que s pode exercer-se com a interveno de Deus (Leibniz 12, 51,

    p.615; trad. it., p.460);

    7) que Deus tenha escolhido, entre uma innidade de universos possveis, aquele

    com o maior grau de perfeio (Leibniz 12, 53-55, p.615-16; trad. it., p.461);

    8) que a alma [siga] as prprias leis, e o corpo tambm as suas, e ambos se

    [ajustem] devido harmonia preestabelecida entre todas as substncias (Leibniz 12, 78,

    p.620; trad. it., p.465);

    9) que haja uma harmonia entre o reino Fsico da Natureza e o reino Moral da

    Graa (Leibniz 12, 87, p.622; trad. it., p.467).

    Aquilo que Husserl rechaa o conceito de harmonia dominada pelo par

    especular da onto-teologia: substncia nita - substncia innita, mnada - Deus.

    Trata-se, ento, de compreender em que sentido a teoria da intersubjetividade

    transcendental husserliana possa ser dita uma monadologia, mesmo com a recusa desse

    par conceitual. Renato Cristin, na introduo edio italiana das Meditaes, d nfase

    ao papel relacional das mnadas (Cristin 3, p.XV)6, acrescentando, algumas linhas

    abaixo, uma reexo um tanto pouco perspcua sobre a velocidade admitida pelo conceito

    de mnada: Como um multiplicador de velocidade, a mnada consente que se passe de

    uma situao outra, do eu ao Outro, com uma facilidade maior comparada lentido do

    cogito cartesiano (Cristin 3, p.XV). Convm, ento, deter-se sobre a primeira indicao:

    a imediata relacionalidade da mnada como aspecto central da retomada husserliana de

    Leibniz. Esta imediata relacionalidade da mnada est bem expressa nesta passagem da

    Monadologia, na qual retorna o tema, caro a Leibniz, da cidade observada de diferentes

    perspectivas:

    [...] esta acomodao de todas as coisas criadas a cada uma e

    de cada uma a todas as outras faz cada substncia simples ter

    relaes que exprimem todas as outras e ser, portanto, um espelho

    vivo e perptuo do universo. [...] E, assim como a mesma cidade

    parece outra e se multiplica perspectivamente sendo observada dediversos lados, o mesmo sucede quando, pela innita quantidade

    das substncias simples, parece haver outros tantos universos

    diferentes, que, no entanto, so apenas as perspectivas de um s,

    segundo os diferentes pontos de vista de cada Mnada. (Leibniz

    12, 56-57, p.616; trad. it., p.461).

    O mundo, a unidade do mundo na sua dimenso espao-temporal, nada alm

    de um fenmeno fundado na inter-relao das mnadas. A intersubjetividade precede e

    funda a objetividade do mundo.

    Todavia, Husserl nos diz que a harmonia entre as mnadas uma harmonia nometafsica. Nesta armao, aparentemente sem problemas, na realidade se esconde o

    verdadeiro e prprio malogro da intersubjetividade husserliana. O que signica harmonia

    no metafsica? Releiamos a passagem-chave de Husserl:

    constituio do mundo objetivo pertence essencialmente uma

    harmonia das mnadas, mais precisamente, uma tal constituio

    harmnica particular das mnadas e, conforme a isso, tambm

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    uma harmonia na gnese singular que prossegue.

    Em que consiste esta harmonia das mnadas que funda o mundo objetivo? Em

    Leibniz, a resposta conhecida: Ora, sendo esta substncia [necessria] razo suciente

    de todo aquele pormenor que, por sua vez, est [entrelaado] em toda parte, h um s

    Deus, e esse Deus suciente (Leibniz 12, 39, p.613; trad. it., p.459). A unidade de

    Deus funda a unidade do mundo, Deus antecipa e fecha os jogos relacionais das mnadas

    no clculo que origina o mundo. Em Husserl, no assim: Se [...] no cosmo leibniziano

    escreve Cristin a atividade das mnadas era preordenada sobre a base da harmonia

    universal, em Husserl o conceito de mnada carregado de uma valncia de autonomia,

    de espontaneidade, de capacidade de operar no mundo (Cristin 3, p.XV).

    Em um plano terico, essa resposta completamente insatisfatria, ou seja, no

    responde questo fundamental sobre a harmonia das mnadas, que aquilo que torna

    possvel a intersubjetividade transcendental e funda o mundo objetivo. Husserl rechaa

    a soluo cartesiana da veracitas divina que coloca fora de jogo a hiptese do gnio

    maligno, mas tambm a harmonia preestabelecida leibniziana que sincroniza o tempo de

    todas as mnadas, fazendo do tempo interno delas o espelho, diversamente situado, da

    histria do mundo. A resposta propriamente husserliana reside na idia de comunidade

    mondica como contemporaneidade essencial:

    O ser em conjunto das mnadas, o seu mero ser-ao-mesmo-tempo

    [ihr bloes Zugleichsein], signica, por necessidade de essncia,

    uma simultaneidade temporal [wesensnotwendig Zeitlich-

    zugleichsein] e, ento, tambm a sua realizao temporal sob a

    forma de temporalidade real[Verzeitlicht-sein in der Form realer

    Zeitlichkeit] (Husserl 9, p.166; trad. it., p.156).

    Mas este ser-ao-mesmo-tempo no pode nunca ser realmente percebido, dado

    que uma mnada no pode nunca atingiroriginalitero uxo vital de uma outra mnada.

    A temporalidade do alter ego sempre apenas apresentada, nunca dada diretamente.

    Nesse ser-ao-mesmo-tempo das mnadas, nessa harmonia sem metafsica, esconde-se

    nada menos que um Deus, seja ele aquele transcendente de Berkeley ou aquele imanente

    do esprito objetivo hegeliano: a contemporaneidade essencial o nome husserliano de

    Deus. A intersubjetividade s pode ser metafsica: uma vez que se repita o movimento

    agostiniano da busca pela verdade in interiore homine, movimento que Husserl reivindica

    na concluso das suas Meditaes (Husserl 9, p.183; trad. it., p.172), apenas um Deus

    pode nos permitir de sair da interioridade e de reencontrar o mundo.

    4. Simondon e o transindividual

    Se a intersubjetividade transcendental revela-se no fundo como uma

    intersubjetividade metafsica, ser preciso tentar percorrer uma outra estrada na tentativa

    de fundar a existncia de uma comunidade e de um mundo objetivo sem recorrer a um

    Deus (mesmo que seu papel seja reduzido a mero garante de uma sincronia dos mundos

    para alm do bem e do mal). Proporei, para tanto, um dtourque me permita fornecer em

    termos extremamente sintticos as coordenadas histricas da emergncia do conceito de

    transindividual, do qual pretendo servir-me em seguida para sublinhar, em toda a sua

    fora, a alternativa Espinosa/Leibniz.

    O termo foi introduzido por Gilbert Simondon em um livro, Lindividuation

    psychique et collective, publicado postumamente em 1989, que constitua a ltima parte

    de uma tese de doutorado escrita nos anos 1950, das quais as duas primeiras partes haviam

    sido publicadas em 1964 com o titulo deLIndividu et sa gense physico-biologique. O

    conceito central, como aparece mesmo a um olhar apenas supercial aos dois ttulos, o de

    individuao, sobre cujos processos Simondon prope-se xar sua ateno, em oposio

    a uma tradio que concedeu um privilgio ontolgico ao indivduo j constitudo. Tanto

    a tradio substancialista, quanto aquela hilomrca, de fato,

    supem que existe um princpio de individuao anterior

    individuao ela mesma, suscetvel de explic-la, de produzi-la,

    de conduzi-la. A partir do indivduo constitudo e dado, esfora-se

    em remontar s condies de sua existncia.(Simondon 21, p.9)

    Trata-se, segundo Simondon, de conhecer o indivduo atravs da individuao,

    mais do que a individuao a partir do indivduo, em outras palavras, de inverter

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    radicalmente a perspectiva a partir da qual se observa o indivduo, armando com fora

    o primado da individuao:

    O indivduo seria, ento, entendido como uma realidade relativa,

    uma certa fase do ser que pressupe uma realidade pr-individual,

    e que, mesmo aps a individuao, no existe completamente

    s, porque a individuao no esgota de uma vez por todas os

    potenciais da realidade pr-individual, e, por outro lado, [porque]

    o que a individuao faz aparecer no apenas o indivduo, mas

    o par indivduo-meio. O indivduo , assim, relativo em dois

    sentidos: porque ele no todo o ser, e porque ele resulta de um

    estado do ser no qual ele no existia nem como indivduo, nem

    como princpio de individuao. (Simondon 21, p.12)

    Uma tal inverso de perspectiva foi tornada possvel pelo conceito de equilbrio

    metastvel, que permite de pensar o ser no em termos de substncia ou matria, mas

    como um sistema teso, supersaturado. Simondon apresenta a individuao fsica e a

    individuao no mbito do vivente como casos de resoluo de um sistema metastvel,

    com a diferena de que, enquanto no mbito fsico a individuao advm de um modo

    apenas instantneo, quntico, brusco e denitivo, deixando atrs de si uma dualidade

    do meio e do indivduo, o vivente conserva em si uma atividade de individuao

    permanente (Simondon 21, p.16).

    exatamente esse carter da individuao no mbito do vivente que permite

    a Simondon pensar o nvel psquico e o coletivo em termos de individuaes sucessivas

    com respeito individuao vital. Todavia, a individuao psquica e a coletiva no

    devem ser pensadas elas mesmas como sucessivas uma outra, segundo um modelo de

    desenvolvimento diacrnico, mas em termos sincrnicos, como um mesmo processo que

    d lugar a um interno e a um externo. neste nvel que o conceito de individuao se

    entrelaa com o tema do transindividual:

    As duas individuaes, psquica e coletiva, esto em uma

    relao de reciprocidade; elas permitem denir uma categoria do

    transindividual que pretende dar conta da unidade sistemtica da

    individuao interior (psquica) e da individuao exterior (coletiva).

    O mundo psicossocial do transindividual no o social bruto,

    nem o inter-individual; ele pressupe uma verdadeira operao de

    individuao a partir de uma realidade pr-individual, associada

    aos indivduos e capaz de constituir uma nova problemtica dotada

    de uma sua prpria metastabilidade. (Simondon 21, p.19-20)

    O transindividual , ento, o nome da complexa trama de relaes que constitui

    ao mesmo tempo a individuao psquica e aquela coletiva. E, aqui, emerge o terceiro

    conceito-chave da teoria de Simondon, o conceito de relao, que no nunca relao

    entre dois termos preexistentes, mas constituio dos termos colocados em jogo pela

    relao. Neste sentido, trata-se, segundo Simondon, de delinear um novo mtodo que

    esteja altura dos conceitos de individuao e de transindividual:

    O mtodo consiste em no tentar compor a essncia de uma

    realidade em meio a uma relao conceitual entre dois termos

    extremos preexistentes, e em considerar cada verdadeira relao

    como tendo classe de ser. A relao uma modalidade do ser;ela simultnea com relao aos termos dos quais garante a

    existncia. Uma relao deve ser entendida como relao no ser,

    relao do ser, maneira de ser e no mera relao entre dois termos

    que se poderia conhecer adequadamente por meio de conceitos,

    porque eles teriam uma existncia efetivamente prvia e separada.

    (Simondon 21, p.23-24)

    Para resumir, o conceito de transindividual denido a partir de duas teses

    loscas que traam uma linha clara de demarcao com respeito tradio metafsica

    ocidental:1) primado do processo de individuao sobre o indivduo;

    2) primado da relao sobre os termos da relao.

    Transindividual , ento, o nome do sistema metastvel que d ocasio s

    individuaes psquica e coletiva, trama de relaes que atravessa e constitui os indivduos

    e a sociedade, interditando metodologicamente a substancializao daqueles ou desta:

    a sociedade escreve Simondon no surge realmente da mtua presena de muitos

    indivduos, mas tampouco ela uma realidade substancial que deveria ser superposta aos

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    seres individuais e concebida como independente deles (Simondon 21, p.177).

    Trata-se, como escreve Balibar, de uma ambiciosa tentativa de denir

    uma estrutura das cincias humanas atravs da crtica [s] doutrinas metafsicas da

    individualidade, que conduzem ao clssico dualismo interno e externo, ao conhecimento

    a priori e a posteriori, ao psicologismo e ao sociologismo. Tais doutrinas, continua

    Balibar, tm sempre subordinado a compreenso da individuao (ontognese)

    denio do indivduo entendido como forma (idealmente) imutvel, [enquanto] a fsica

    e a biologia modernas (includas algumas disciplinas como o estudo do desenvolvimento

    das estruturas cristalinas e a biologia dos processos cognitivos, nos quais a adaptao

    mudana ambiental requer a emergncia de novas estruturas) fornecem instrumentos

    decisivos para projetar um novo conceito geral de ontognese, mostrando que as formas

    permanentes (que reduzem a energia potencial ao mnimo) so menos importantes nos

    processos naturais com respeito aos equilbrios metastveis (que requerem um aumento

    do potencial de energia que deve ser preservado geralmente na polaridade entre indivduo

    e ambiente) (Balibar 2, p.112-113).

    5. Espinosa e o transindividual

    Trata-se, agora, de se perguntar de que modo o conceito de transindividual faz

    parte do percurso at aqui proposto. Tal conceito deveria constituir o prolongamento

    contemporneo da teoria espinosana, assim como a teoria husserliana da intersubjetividade

    nos forneceu o prolongamento, no sculo XX, da monadologia leibniziana. A conexo

    Espinosa-Simondon no , de fato, imediata: se se quisesse conduzir um trabalho de

    escavao acerca das fontes loscas de Simondon, creio que se encontraria o

    bergsonismo e a fenomenologia de Merleau-Ponty. O espinosismo no apenas no est

    presente como fonte inuente, mas at mesmo explicitamente liquidado por Simondon

    como uma posio pantesta, na qual a realidade individual negada. , assim, mais

    uma vez, histria dos efeitos e a um golpe de fora terico que se deve apelar para

    pensar a concepo do transindividual como prolongamento da losoa de Espinosa,

    ou melhor, e mais verossimilmente, para produzir uma reao qumica entre o texto de

    Espinosa e o conceito de transindividual. Este golpe de fora foi proposto por tienne

    Balibar, no rastro do projeto althusseriano de repensamento da losoa marxista atravs

    do pensamento de Espinosa7. Em um ensaio de 1997, com o eloqente ttulo deEspinosa.

    From individuality to transindividuality, ele se prope no tanto a adaptar a teoria de

    Espinosa s formulaes de Simondon, mas a discutir o limite dentro do qual o prprio

    Espinosa pode ser considerado um terico signicativo da transindividualidade, ajudando-

    nos assim a conduzir esta noo da sua inicial denio negativa (uma doutrina que no

    nem individualista nem holista, assim como no nem mecanicista nem nalista) a uma

    noo mais positiva ou construtiva (Balibar 2, p.113).

    Seguindo este projeto, Balibar delineia trs nveis atravs dos quais pode ser

    sondada, natica, a idia da individualidade como transindividual, ou como processo

    transindividual de individuao (Balibar 2, p.114):

    1) a transindividualidade como especco esquema de causalidade;

    2) como elemento determinante na construo de sucessivos graus de

    individualidade;

    3) como conceito latente que articula imaginao e razo.

    1) Balibar ressalta que no esquema de causalidade espinosano a complexidade

    no constitui um momento derivado, mas que est presente desde a origem:

    A concatenao innita no toma a forma de sries lineares

    independentes, ou de genealogias de causas e efeitos (A causa

    B que causa C que causa etc): ela assume o aspecto de uma

    rede innita de modos singulares ou existncias, de uma unidade

    dinmica de atividades modulantes/moduladas (a ao de B sobre

    cada A , por sua vez, modulada por alguns C, que so modulados

    por um D qualquer, etc.). (Balibar 2, p.117)

    Isso signica que cada indivduo , ao mesmo tempo, ativo e passivo. Ademais,

    a essncia da causalidade seria a unidade de atividade e passividade ou, como sugere

    ainda Balibar, em termos quase matemticos [...] o diferencial entre atividade e

    passividade, uma unidade que dene o conatus individual singular e o relaciona a uma

    innita multiplicidade de outros indivduos (Balibar 2, p.119). A transindividualidade,

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    aqui, consistiria ento no innitus nexus causarum, naquela ordem por conexo da qual

    fala a proposio 7, da segunda parte da tica.

    2) Esse nvel de complexidade, denido por Balibar de primeiro grau, que

    estabelece uma equivalncia entre o conceito de existncia atual de um indivduo e a

    pluralidade de relaes entre indivduos diferentes (assim, a impossibilidade de inserir

    o indivduo dentro de uma cadeia causal pensada segundo um modelo simples e serial),

    encontra em Espinosa um aprofundamento atravs da introduo de umsegundo grau de

    complexidade (justamente nas proposies que se seguem imediatamente tica II, 7):

    segundo este conceito, o indivduo representado como um

    determinado nvel de integrao, na medida em que incorpora

    outros indivduos (nvel de integral mais baixo) e a si mesmo em

    formas ou nveis de integrao mais altos (Balibar 2, p.119).

    Uma representao do segundo grau de complexidade desse tipo comporta,

    segundo Balibar, um risco, que consiste no pensar a natureza como hierarquia de formas,

    ordens de incluso dos indivduos uns nos outros, segundo um modelo que seria, em

    ltima instncia, esttico (o ponto de vista, em termos espinosanos, da natura naturata).

    Ele deve ser entendido, no entanto, dinamicamente (isto , segundo o ponto de vista da

    natura naturans), pensando que os indivduos, como formas dadas com uma estabilidade

    e identidade, so na realidade o efeito de uma contnua regenerao das partes

    constituintes do indivduo, isto , [de] um uxo em direo ao interno e ao externo

    (Balibar 2, p.122):

    A idia de Espinosa simples, mas audaz: aquilo que muda so

    partes do indivduo em questo, regenerao signica que um dado

    indivduo (chamemo-lo Eu) abandona continuamente parte(s) de

    si, enquanto ao mesmo tempo continuamente incorpora parte(s) de

    outros (chamemo-los esses), mesmo que esta substituio deixe

    uma certa proporo (ou essncia) invariada. [...] Quanto mais

    um indivduo complexo, tanto mais relaes empreender com o

    mundo externo; isto , quanto mais intensamente trocar as prprias

    partes com outros indivduos (semelhantes ou diferentes), tanto

    mais estas trocas se tornaro necessrias para a preservao de sua

    existncia. (Balibar 2, p.122-126)

    Isso signica que cada indivduo existe entre um nvel inferior e um nvel

    superior (as partes que o constituem e o ambiente do qual faz parte):

    Por essa razo escreve Balibar falei de um segundo nvel de

    complexidade na compreenso da causalidade natural, porque o

    modelo transindividual do qual ns nos ocupamos no apenas

    entendido como uma interao horizontal ou reciprocidade ao

    mesmo nvel, mas tambm como um processo de interao

    que, para cada tipo de indivduo [...], regride ao nvel inferior e

    simultaneamente progride ao nvel superior. (Balibar 2, p.127)

    Aqui, o sentido da transindividualidade encontrado por Balibar em Espinosa

    se aproxima do conceito simondoniano segundo o qual o indivduo uma realidade

    relativa, efeito de um processo de individuao que, de um lado, no exaure o potencial

    do pr-individual, e de outro, no d lugar ao individuo isolado, mas ao par indivduo-

    ambiente.

    3) Esse segundo grau de complexidade abre espao ao tratamento do mundo

    humano e especicamente ao conceito de transindividual como mediao entre imaginao

    e razo. Balibar mostra, em primeiro lugar, como tanto a estrutura da imaginao quanto

    aquela da razo so essencialmente transindividuais. Sobre a imaginao Balibar

    escreve:

    pode-se sugerir que 1) a teoria da imaginao de Espinosa no

    uma teoria sobre faculdades humanas (individuais ou genricas,

    tais como a memria, a percepo, a vontade, etc.), mas sim da

    estrutura na qual os indivduos eles mesmos so constitudos

    primariamente (e que inclui autoconscincia, reconhecimento

    de si, auto-armao); e 2) que essa estrutura originariamente

    relacional ou transindividual: isso no apenas nos coloca diante de

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    uma imagem da conscincia na qual cada relao que eu posso ter

    comigo mesmo mediada pelo Outro (mais exatamente por uma

    imagem do Outro), mas mostra tambm que a vida da imaginao

    um processo circular de identicaes sucessivas, no qual eu

    identico o Outro a partir de mim mesmo, e eu mesmo a partir do

    outro (Balibar 2, p.132).

    Passando a analisar o conceito espinosano de razo, Balibar nota como esta

    apresentada no como uma faculdade (muito menos uma inspirao

    divina ou uma essncia transcendente), mas como uma estrutura

    ou um sistema de implicaes recprocas nas quais, para cada

    indivduo, o conatus, para preservar a prpria existncia, comporta

    o conhecimento do prprio bem [...] e a instituio necessria de

    um commercium com outros homens(Balibar 2, p.135).

    Dada a constituio relacional da imaginao e da razo, Balibar prope

    considerar a transindividualidade no como um modelo rgido (ou como dois modelos

    contrapostos), mas como um processo no qual as relaes entre os indivduos so

    consideradas na transio da imaginao razo, isto , de um poder de agir menor a um

    maior (Balibar 2, p.139). Este terceiro nvel de leitura do pensamento espinosano atravs

    do conceito de transindividual mostra, ento, como um novo tipo de conhecimento [],

    por sua verdadeira natureza, um novo tipo de comunidade (Balibar 2, p.139)8.

    6. Mnada e modo

    Uma vez mostrado o contexto de emergncia do conceito de transindividual e

    a ocasio do seu encontro, atravs de Balibar, com o pensamento espinosano, possvel

    tentar enfrentar a questo da alternativa Espinosa/Leibniz lida atravs dos dois modelos

    tericos da intersubjetividade e da transindividualidade, e assinalar, de maneira forte, a

    distncia que os separa. Certamente poderia, ao contrrio, ser operada e o foi muitas

    vezes na histria das interpretaes uma leitura de cunho individualista, monadolgico,

    por assim dizer, dos modos.9 Uma vez recusada uma interpretao acosmista la Hegel,

    poder-se-ia sentir-se tentado a pensar o modo espinosano como um indivduo que

    preexiste e que funda as relaes. Em particular, a essncia do ser humano seria denida

    pela dade mente-corpo, cujas propriedades fundamentais seriam o desejo, a alegria e a

    tristeza. O modo, como a mnada, teria ento uma essncia que precede a existncia, que

    constituiria o fundamento do jogo relacional. Claro, em Espinosa, como em Husserl, no

    haveria harmonia preestabelecida, o jogo relacional seria aberto, mas em todo caso entre

    indivduos que precedem logicamente a relao. Neste horizonte terico, as paixes nada

    seriam alm de variaes possveis de uma essncia. Argumento apenas aparentemente

    contrrio, mas na realidade favorvel a uma interpretao deste tipo, a nfase colocada

    por alguns intrpretes franceses (Matheron, entre outros (cf. Matheron 13, p.151-156))

    sobre a teoria espinosana da imitao afetiva. De fato, Montag mostrou justamente que

    esta teoria [...] no exclui, de modo algum, a noo de indivduos

    originariamente dissociados que permanecem dissociados mesmo

    na sua imitao dos afetos dos outros. Com efeito, o texto de

    Espinosa fornece o fundamento para uma leitura segundo a qual

    a imitao dos afetos no seria outra coisa que um ato de projeo

    que requer apenas que eu imagine que o outro sinta prazer ou dor,

    de modo que eu imite aquilo que imagino que seja o sentimento

    do outro. Esta precisamente a denio de simpatia dada por

    Adam Smith na primeira parte da Teoria dos Sentimentos Morais,

    captulo I. Para Smith, no h atravessamento do limite que me

    separa dos outros; eu no posso nunca saber o que experimenta

    um outro homem, ou se experimenta alguma coisa. A simpatia

    permanece interna quilo que Smith chama o espectador: este

    imagina aquilo que ele mesmo experimentaria ou experimentou

    em circunstncias similares do outro. Para Smith, a rigor, asimpatia no requer nem mesmo a existncia do outro. -me

    possvel experimentar piedade com relao ao morto, dado que no

    h comunicao ou transferncia de sentimento ou afeto atravs

    da innita distncia que me separa dos outros, mas apenas uma

    projeo de mim mesmo.(Montag 14, p.76)

    Em outras palavras, a imitao afetiva constituiria, em um plano ontolgico,

    aquilo que em um plano metodolgico , em Husserl, a apresentao analgica do alter

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    ego: a ponte entre os indivduos erguida a partir da projeo de uma interioridade em

    modo analgico (no por acaso que Husserl usa aqui, mesmo que com extrema cautela,

    o termo empatia,Einfhlung).

    Todavia, a leitura do modo luz do conceito e mnada, mesmo sendo provisria,

    extremamente problemtica. Tomemos, em primeiro lugar, o esclio que encerra o

    pequeno tratado de fsica da segunda parte da tica, o qual desvincula o conceito de

    indivduo corpreo de qualquer forma de substancialidade, colocando o principium

    individuationis em uma determinada proporo (certa ratio) de movimento e de repouso

    das partes que entram no processo de sua composio e de sua regenerao na relao

    com o ambiente:

    Vemos, assim, em que proporo um indivduo composto pode

    ser afetado de muitas maneiras, conservando, apesar disso, sua

    natureza. At agora, entretanto, concebemos um indivduo que

    se compe to-somente de corpos que se distinguem entre si

    apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela

    lentido, isto , que se compem de corpos mais simples [ex

    corporibus simplicissimis componitur]. Se, agora, concebemos

    um outro indivduo, composto de vrios indivduos de natureza

    diferente, veremos que tambm ele pode ser afetado de muitas

    outras maneiras, conservando, apesar disso, sua natureza. Pois,

    como cada uma de suas partes compe-se de vrios corpos, cada

    uma delas poder, portanto [...], sem qualquer mudana de sua

    natureza, mover-se ora mais lentamente, ora mais velozmente e,

    como conseqncia, transmitir seus movimentos s outras partes,

    ora mais lentamente, ora mais velozmente. Se concebemos, alm

    disso, um terceiro gnero de indivduos, compostos de indivduosdo segundo gnero, veremos que tambm ele pode ser afetado de

    muitas outras maneiras, sem qualquer mudana de forma. E se

    continuamos assim, at o innito, conceberemos facilmente que

    a natureza inteira um s indivduo, cujas partes, isto , todos

    os corpos, variam de innitas maneiras, sem qualquer mudana

    do indivduo inteiro.(Espinosa 4, II, lema 7, esc., p.102; trad. it.,

    p.139; trad. bras.103-105)

    O esclio atraiu a ateno da crtica pelo referimento espinosano aos corpora

    simplicissima e natureza entendida como indivduo total. Na minha opinio, trata-se

    de Holzwege, de caminhos que no levam a lugar algum: em outras palavras, trata-se

    de termos-limite ou, para usar uma terminologia espinosana, de auxilia imaginationis,

    aos quais, realmente, no corresponde qualquer realidade ontolgica. Parece-me claro

    que Espinosa no est dizendo que existem innitos nveis de existncia de indivduos

    entre os corpos simples e a natureza entendida como indivduo no seu conjunto, mas que

    existem innitos nveis de existncia de individualidades de complexidade crescente tout

    court, e a natureza consiste precisamente nestes innitos nveis de complexidade, e no

    pode ser reduzida nem ao innitamente pequeno nem ao innitamente grande (a rigor,

    com efeito, nem os corpora simplicissima nem a natureza como totalidade podem ser

    entendidos como indivduos em sentido espinosano).

    A um olhar supercial, o esclio poderia remeter a alguns clebres pargrafos

    da Monadologia:

    64. [...] cada corpo orgnico de um vivente uma espcie deMquina divina ou de Autmato natural, excedendo innitamente

    todos os autmatos articiais, porquanto uma mquina feita pela

    arte do homem no mquina em cada uma das suas partes. Por

    exemplo: o dente de uma roda de lato tem partes ou fragmentos

    que j no so, para ns, algo articial, e relativamente ao seu uso

    nada possui de caracterstico da mquina a que a roda se destinava.

    As mquinas da Natureza porm, ou seja, os corpos vivos, so

    ainda mquinas nas suas menores partes, at ao innito. Eis o que

    distingue a Natureza e a Arte, que dizer, a Arte Divina e a nossa.

    65. E o Autor da Natureza pde executar este artifcio divino einnitamente maravilhoso, por ser cada poro da matria no s

    divisvel at ao innito [...], mas estar ainda atualmente subdividida

    sem m, cada parte em partes, tendo cada uma delas movimento

    prprio. De outro modo seria impossvel poder cada poro da

    matria exprimir todo o universo.

    66. Isto revela a existncia de um mundo de criaturas, de viventes,

    de animais, de Entelquias e de almas na mais nma poro da

    matria.

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    Cadernos Espinosanos XVII

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    Vittorio Morfno

    67. Cada poro da matria pode ser concebida como um jardim

    cheio de plantas e como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo

    de planta, cada membro de animal, cada gota de seus humores

    ainda um jardim ou um lago. (Leibniz 12, 64-67, p. 618; trad. it.,

    p. 463-464).

    Entretanto, se se analisam as duas passagens com ateno, no se pode deixar

    de destacar que em Leibniz h uma analogia estrutural entre os diferentes nveis de

    individualidade (as metforas do lago e do jardim exprimem precisamente isto), enquanto

    em Espinosa a complexidade do nvel superior no guarda qualquer analogia estrutural

    com a do nvel inferior: ela constitui, antes, a emergncia de um grau de individualidade

    que no estava contida previamente nos graus de individualidade que entraram na sua

    composio.

    A diferena aparecer com total evidncia lendo-se este pargrafo da

    Monadologia:

    70. Assim se v ter cada corpo vivo uma Entelquia dominante,

    que no animal a alma, mas estarem os membros deste corpo vivocheios de outros viventes, plantas e animais, cada qual, ainda, com

    a sua Entelquia ou a sua alma dominante.(Leibniz 12, 70, p.619;

    trad. it., p.464).

    Em Leibniz, o corpo, a vida comandada por uma hierarquia de formas cujo

    nvel (isto , a posio na escala hierrquica do ser) dado de uma vez por todas, ainda

    que o uxo perptuo dos corpos torne impensvel que uma alma tenha uma verdadeira e

    prpria posse de seres viventes de ordem inferior (Leibniz 12, 71, p.619; trad. it., p.464);

    em Espinosa, ao contrrio, a mente no , de fato, a forma do corpo, no a reductio ad

    unum da pluralidade da matria, ela o corpo mesmo, mas expresso segundo um atributo

    diferente: isto signica que as mentes devem ser pensadas segundo o mesmo modelo

    dos innitos nveis de complexidade atravs do qual Espinosa descreveu a estrutura dos

    corpos, pelo menos como impe a proposio 7 da segunda parte da tica. O indivduo

    mente-corpo, ento, no pensvel como uma mnada fechada, mas como um composto

    de indivduos que, por sua vez, entra na composio de indivduos de nvel superior:

    qualquer nvel que se escolha considerar, encontrar-se- sempre o indivduo como

    momento duplamente provisrio entre dois nveis de individualidade, ou seja, para usar a

    terminologia de Simondon, encontrar-se- que o indivduo , na realidade, posterior com

    respeito ao processo de individuao que o constitui enquanto tal.

    Para retornar ao confronto com Leibniz atravs do tema das relaes, pode-se

    colocar em relevo que a teoria da harmonia preestabelecida impe que cada determinao

    extrnseca seja fundada sobre uma determinao intrnseca, ou seja, que cada relao

    exterior seja fundada em uma propriedade da mnada, seja um estado interno da mnada

    (e cada estado innitamente complexo porque deve exprimir todo o inter-individual em

    nvel intra-individual), em Espinosa, cada determinao intrnseca , na realidade, fundada

    sobre um complexo jogo de determinaes extrnsecas (o que no signica, contudo, que

    as determinaes extrnsecas possam conter antecipadamente a determinao intrnseca),

    ou seja, cada propriedade de um indivduo produzida pelo complexo jogo de relaes

    que constituiu sua individualidade. Neste sentido, parece-me dotada de todo o sentido a

    contraposio mnada/modo, lida atravs das lentes contemporneas da contraposio

    entre intersubjetividade e transindividualidade.

    7. Paixes: no propriedades, mas relaes

    Trata-se, agora, de tentar mostrar como a aplicao do modelo da

    transindividualidade torna possvel uma leitura nova da teoria das paixes de Espinosa,

    entendendo estas ltimas no como propriedades de uma natureza humana supra-histrica,

    mas como trama transindividual que constitui formas de individualidade que so, em

    ltima instncia, histricas.

    verdade que em respeito ao mos geometricus daticae de algumas formulaes

    de Espinosa, poder-se-ia sentir a tentao de ler as paixes na teoria espinosana como

    propriedades10, ou seja, como denominaes intrnsecas, caractersticas da essentia intima

    da natureza humana tomada separadamente de todo o resto. Mas se pode realmente tomar,

    na ontologia espinosana, uma realidade separadamente de todo o resto? Pode-se mesmo

    entender de modo tcnico a paixo comoproprietas, ou seja, como aquilo que proprium

    a uma essentia que precede as relaes e as circunstncias existenciais?

    Em uma recente traduo do Tratado Poltico, Paolo Cristofolini props uma

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    Cadernos Espinosanos XVII

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    Vittorio Morfno

    traduo extremamente densa de signicados para uma locuo freqente na escrita de

    Espinosa: passionibus obnoxius. Dever-se-ia traduzir literalmente por subjugados,

    submetidos, sujeitos s paixes; Cristofolini nota que a palavra latina obnoxius contm,

    entretanto, o duplo signicado particular daquilo que causa dano e daquilo que invade ou

    permeia, e ento prope, sob escolta de um modelo de traduo leopardiana de Epicteto,

    traduzir tal expresso por atravessados pelas paixes. A partir desta traduo pode-se

    tentar pensar as paixes no comoproprietates de uma natureza humana genrica, dada

    de uma vez por todas, mas como relaes que atravessam o indivduo, constituindo a sua

    dimenso social e histrica.

    Seria apenas o caso de repetir que o indivduo para Espinosa no nem

    substncia nem sujeito (nem ousia, nem hypokeimenon), uma relao entre um exterior

    e um interior que se constituem na relao (ou seja, no existe a interioridade absoluta

    do cogito diante da exterioridade absoluta do mundo do qual o corpo prprio parte).

    Essa relao constitui a essncia do indivduo, que nada mais do que a sua existncia-

    potncia; no se trata, no entanto, de uma potncia dada de uma vez por todas, mas de

    uma potncia varivel, justamente porque a relao que constitui o interno e o externo

    instvel e no dada de uma vez por todas. Ora, as paixes no so as propriedades de uma

    natureza humana dada, propriedades que existem antes do encontro e que so de algum

    modo ativadas por este, mas so as relaes constitutivas do indivduo social: o lugar

    originrio a partir do qual agem as paixes no a interioridade, mas o espao entre os

    indivduos, dos quais a interioridade mesma um efeito histrico. Claro, Espinosa dene

    o desejo, a alegria e a tristeza os trs afetos primrios11: poder-se-ia, ento, entender esses

    afetos primrios como propriedades fundamentais da essncia humana, propriedades que

    antecipam os encontros produzidos pelas relaes indivduo-ambiente e recebem diferentes

    matizes com base nestes. Na realidade, se estes afetos so primrios com respeito ao

    indivduo, no o so se se coloca do ponto de vista da causalidade imanente, que d lugar

    ao indivduo enquanto connexio singularis, entrelaamento singular. Em tal perspectiva,

    os afetos primrios nada so alm de e lementos abstratos antes de entrar em relao; mas

    no apenas, pois eles no podem sequer existir em estado puro, elementos originrios de

    cuja combinao nascem todos os outros; eles existem apenas nas innitas metamorfoses

    que as relaes com o exterior lhes impem: dio, amor, esperana (segurana / gudio),

    medo (desespero / remorso), etc. E, alm disso, no se pode nem mesmo falar de um afeto

    singular como relao transitiva a um objeto12, uma vez que, por efeito da causalidade

    imanente, que no mbito do nito se mostra como nexus causarum, entrecruzamento de

    causas, cada afeto sempre sobredeterminado por outros.13

    Assim, as paixes no podem ser pensadas atravs da categoria de propriedade,

    da inerncia de um predicado a um sujeito, mas como complexa trama de relaes. Como

    escreve de maneira perfeita Montag,

    a imaginao, que de certo modo faz a mediao entre o interno e

    o externo, entre o si mesmo e o outro, agindo como canal entre o

    meu corpo considerado como uma coisa singular e outros corpos

    igualmente singulares, d dito a uma imitao imediata que no

    tanto uma duplicao do afeto de uma pessoa na outra, mas [...] uma

    perpetuao ou persistncia de afeto sem a mediao da pessoa. O

    afeto, portanto, no resulta contido em mim ou nos outros, mas

    entre ns.(Montag 14, p.77).

    Dessa forma, a trama da vida afetiva existe entre os indivduos e os constitui

    enquanto tais. Isso signica que no se d qualquer espelhamento interior do outro, da

    mnada do outro na minha mnada, precisamente porque o outro aquilo do que somos

    entretecidos.

    8. Concluses

    Atravs deste longo percurso histrico e terico, buscou-se observar a oposio

    Espinosa-Leibniz segundo uma perspectiva que no se limitasse a repetir a fatigadacano hegeliana da dialtica Um-Muitos, mas, antes, que procurasse desentranhar dela

    toda fora e atualidade. O que parece ter emergido em termos de resultados loscos a

    partir desse percurso o fato de que a retomada husserliana da monadologia em termos

    transcendentais se encontra diante de um denitivo malogro, o da inatingibilidade do

    Outro pela conscincia: a intersubjetividade ou metafsica ou nada (e, assim, o

    modelo mais rigoroso de intersubjetividade vem a ser aquele leibniziano). De fato, a

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    Vittorio Morfno

    intersubjetividade transcendental introduz sub-repticiamente um conceito de harmonia

    metafsica sem o qual o eu e o alterno podem pertencer ao mesmo tempo, ao mesmo

    mundo. De que maneira o modelo da transindividualidade permite evitar esse malogro?

    Ele o evita justamente porque o outro no est para alm da cercadura fechada do ego,

    mas est j e sempre no ego (e, claro, em uma tal perspectiva, a prpria contraposio

    ego-alternada mais que a substanticao de uma funo gramatical), o atravessa,

    o constitui enquanto tal como trama complexa de corpos, paixes, idias, palavras,

    trama complexa de temporalidade no redutvel contemporaneidade essencial de uma

    comunidade.14 Como escreve Lucrcio em um esplndido verso que me apraz pensar que

    tenha inspirado Espinosa:

    Inter se mortales mutua vivunt. ( De rer. Nat., II, 76)

    Intersubjectivity and transindividuality from Leibniz and Spinoza

    Abstract: One of the greatest persistent misunderstanding around leibnizian philosophyis to think it as a sort of spinozism. Likewise, every attempt to show Leibniz and Spinoza

    as opposed to each other do not surpass the hegelian interpretation, according to which

    both philosophies are seen as antagonism between universality and individuality. Our

    aim is, on the contrary, to contrast one philosopher to another in respect to the matter

    of individuality and their relations to the XXth Century thinking: on the one hand, the

    husserlian intersubjectivity as the philosophical continuation of the Monadology; on the

    other hand, the simondnian concept of transindividuality, which upon the developments

    of Balibar turns the spinozian thought possible to be continued in contemporaneity. We

    intend to show the distance that keep both systems away one from another by means of

    an interpretation that do not simply repeat the old hegelian refrain.

    Keywords: Spinoza, Leibniz, transindividuality, intersubjetivity.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    22. STEIN, L.,Leibniz und Spinoza , Berlin, Reimer, 1890.

    NOTAS:

    1 Com efeito, nas Lies sobre a histria da losoa, Hegel repete quase literalmente

    a opinio de Leibniz: A losoa de Leibniz metafsica que, em resoluto contraste

    com a simples substncia universal de Espinosa, na qual todo determinado apenas

    uma transio, coloca como fundamento a pluralidade absoluta das substncias

    individuais que, seguindo o exemplo dos antigos, ele denomina mnadas,expresso j empregada pelos Pitagricos. (Hegel 6, p. 238-39; trad. it., p. 187).

    2 Cf., p. ex., Ludwig Stein que, no seu clebre livro sobre o espinosismo

    de Leibniz, arma que a teoria das mnadas constitui o plo metafsico

    oposto da teoria espinosana da substncia nica (Cf. Stein 22, p. 21-22).

    3 Cf., obviamente, G. Friedmann, op. cit., mas tambm as belas chas de F. Piro (Piro 20).

    4 Trata-se de um respectivo mundo-ambiente conhecido com seu horizonte

    prprio de objetos no conhecidos, que esto ainda por obter, previamente

    antecipados com esta estrutural formal de objeto (Husserl 9, p.102; trad. it. p.94 ).

    5 exatamente a semelhana daquele corpo que entra no meu domnio primordial

    com o meu que faz dele um outro corpo (Husserl 9, p.140; trad. it. p.131 ).

    6 Em um texto de 1978, Paci, dentro de uma tentativa conjugar fenomenologia e marxismo,prope que se interprete a harmonia intermondica em sentido performativo: Em Husserl

    [...] h a tentativa de ver e de fazer de modo que, como eu sou claro minha vida pessoal,

    que vivo em primeira pessoa, assim tambm deveria me ser clara a vida em primeira

    pessoa que o outro vive. Apenas eu vivo em primeiro pessoa aquilo que me acontece,

    e s tu vives em primeira pessoa aquilo que te acontece, mas eu poderia identicar-me

    de tal maneira contigo, que poderia sentir aquilo que voc sente, e voc aquilo que eu

    sinto, e juntos poderamos encontrar em ns um mundo e um acordo mais rico para

    ambos. Se isto fosse aplicado a todas as religies e a todas as cincias, seria fornecido

    um vasto panorama enciclopdico, mas que no seria compilado e adquirido segundo

    esquemas exteriores e nocionais, mas que seria vivido em primeira pessoa por todos os

    homens (Paci 19, p. 102-103). E alm do mais: Uma pessoa, nos seus relacionamentos

    com as outras, portadora de todo aquele desenvolvimento que comeou na natureza

    material, que prosseguiu na natureza animal e que culmina na natureza social, em uma

    viso histrica, positiva e teleolgica, da humanidade, na qual todos realizam a prpria

    personalidade em acordo com os outros, e sem destru-los. Deste modo, a harmonia, quepara Leibniz era preestabelecida desde o incio do desenvolvimento, e que aqui se coloca

    como escopo ao nal da evoluo, liga-se ao problema do espao, do tempo e da histria

    (Paci 19, p. 158). E ainda: [...] se refazemos em ns mesmos o processo da comunho e da

    compreenso intersubjetiva, e se eu em um mundo, junto com outros em outros mundos,

    conseguimos reconhecer algo que forma, por exemplo, a classe operria e a burguesia, e

    ns conseguimos entender por que elas esto uma contra a outra e conseguimos quebrar

    todos os elementos que impedem o recproco reconhecimento entre os sujeitos, tendemos

    a um mundo que provavelmente no se alcanar nunca na sua perfeio, mas que

    signicativo para a vida das pessoas (Paci 19, p. 160). Enm: [...] uma harmonia

    que para Leibniz era preestabelecida por Deus, enquanto para ns aquilo em direo

    ao qual devemos nos mover, aquilo que devemos conquistar continuamente, porque

    sabemos que se trata de uma harmonia que vai sempre alm daquilo que alcanamos e

    daquilo que queremos alcanar, para dar signicado vida e histria. E intencional quer

    dizer tambm que tem uma prxis, e que no indiferente associao e ao acordo, nem

    quela sociedade comunista que um guia e que est viva [...], porque todo o mundo

    tende a este tipo de comunismo como harmonia que , justamente, o signicado de

    todo o universo (Paci 19, p. 167). evidente o paralogismo de Paci na substituio

    do signicado teortico-epitesmolgico da harmonia por aquele tico-poltico.

    7 Sobre a importncia e a presena de Espinosa na obra de Althusser, cf. minha

    Introduzione a Louis Althusser,Lunica tradizione materialista: Spinoza (Morno 16).

    8 Deve-se dizer que Balibar acrescenta: acho isso provvel, mas no estou segurode que possa ser completamente provado pelo texto da tica (Balibar 2, p. 139).

    9 Este tipo de leitura reaparece em muitas retomadas na histria da crtica. A tentativa

    mais sistemtica , sem dvida, aquela de Hicks, que indica fortes analogias entre

    o modo e a mnada com respeito individualidade entendida como atividade (de

    fato, Leibniz tem sido amplamente utilizado para tornar explcito o que est mais ou

    menos implcito na tica. [...] A atividade, ento, sobre a qual Leibniz coloca muita

    nfase como constituindo a essncia da individualidade foi igualmente reconhecida por

    Espinosa; e foi, de fato, no menos fortemente enfatizada por ele; (Hicks 8, p. 345-

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    Cadernos Espinosanos XVII

    348)), aos estados de desenvolvimento das vrias formas de individualidade (apesar

    de Espinosa no ter desenvolvido em detalhe sua concepo dos diferentes estgios

    dos [seres] animados, s com muita ingenuidade no se veria que ele estava, na

    prtica, distinguindo os estgios que Leibniz descreve (Hicks 8, p. 351)), e enm,

    relao que liga o indivduo nito a Deus (Ao desenvolver sua teoria das mnadas,

    Leibniz estabeleceu como seu alvo resgatar a losoa daquela destruio da existncia

    individual que a ele parecia estar implicada na metafsica de Espinosa. Contrapondo-

    se a Espinosa, ele assumiu como sua a posio de que apenas o indivduo enquantotal era o verdadeiramente real. Mas se algum escruta mais de perto a concepo de

    individualidade, tal como foi desenvolvida por Leibniz, ter logo razes para suspeitar

    que a concepo no agentar o peso que ele gostaria de impor-lhe. A caracterstica

    absolutamente essencial individualidade, como ele a v, a limitao, negao,

    passividade. Energia ou atividade puras e ilimitadas pareciam [...] a Leibniz incompatveis

    com a noo de ser real. O que quer que seja, deve ser limitado (Hicks 8, p. 356)).

    10 Lidei com tal questo em Ontologia della relazione

    e materialismo della contingenza (Morno 17).

    11 () Afora esses trs, no reconheo nenhum outro afeto primrio. De

    fato, demonstrarei, no que se segue, que desses trs provm todos os outros.

    (Espinosa 4, III, prop. 11, esc., p. 149; trad. it., p. 181; ed. bras. p. 179).

    12 A relao mesma que liga um sujeito e um objeto no tem qualquer

    universalidade, como sublinha o prprio Espinosa: Homens diferentes podem

    ser afetados diferentemente por um s e mesmo objeto, e um s e mesmo homem

    pode, em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um s e mesmo

    objeto. (Espinosa 4, III, prop. 51, p. 178; trad. it., p. 208; ed. bras., p. 221).

    13 Para uma detalhada anlise desta sobredeterminao, cf. ainda o meu Ontologia

    della relazione e materialismo della contingenza (Morno 17, p. 140-141).

    14 Sobre a multido como trama complexa de temporalidades, cf. o meu Temporalit

    plurale e contingenza: linterpretazione spinoziana di Machiavelli (Morno 18).

    43

    Estamos todos malucos

    O sujeito moderno e a falha geolgica*

    Eduardo Grner**

    Resumo: O artigo visa questionar as posies opostas do Sujeito Pleno cartesiano e dono-sujeito ps-moderno, que pretende criticar as razes do primeiro. O que se omite

    nessa contraposio uma corrente de auto-crtica interna prpria modernidade e que

    permite pensar um Terceiro Sujeito, trgico, falho, produto da violenta histria que o faz

    nascer.

    Palavras-chave: modernidade, ps-modernidade, Sujeito Pleno, sujeito trgico.

    Esta mesa muito pouco redonda chama-se, segundo entendi,Filosoa e Ensaio .

    O conceito de ensaio, como se sabe, uma criao francesa. Mais especicamente, de

    Michel de Montaigne, que foi o primeiro em us-lo, em 1580. Talvez, justamente por

    isso, seja praticamente um invento argentino no achem vocs que h na Argentina

    somente um afrancesado, so muitos; ou pelo menos, existe uma certa maneira de

    praticar a relao entre o ensaio literrio, a losoa e a poltica que uma tradio

    apaixonadamente argentina. Mas no se preocupem: estamos em San Juan, ento no

    vou falar de Sarmiento. Nem tampouco, digamos, de Martinez Estrada. Nestas mesmas

    jornadas tem gente muito mais capacitada do que eu para falar desse verdadeiro invento

    nacional que o ensaio losco-poltico argentino. Limito-me a constatar, isso sim,

    que o ensaio losco argentino sempre teve clareza sobre seu irrenuncivel carter

    poltico. Sempre teve clareza, para parafrasear um clssico, de que a losoa poltica

    concentrada no pensamento e no discurso. Mas, repito, no vou falar disso. Vou falar um

    pouquinho, s para comear, do criador de nosso conceito, Michel de Montaigne.

    No sei se se extraram as conclusesloscas sucientes do fato de

    que Montaigne fora um dos primeiros e, certamente, dos mais virulentos, crticos da

    * Palestra apresentada no Congresso Internacional de Filosoa que aconteceu em San Juan, Argentina, emJulho de 2007. Traduo de Mariana de Gainza.** Professor Titular de Antropologia da Arte, na Faculdade de Filosoa e Letras (Universidade de BuenosAires) e de Teoria Poltica na Faculdade de Cincias Sociais (Universidades Buenos Aires).