Transferências, contratransferências e outras coisinhas mais

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pulsional > revista de psicanálise > >58 ano XVI, n. 168, abr./2003 Os três títulos colocados como alternativas para o presente trabalho correspondem aos três aspectos focalizados. Em primeiro lugar, partindo-se da experiência clínica, sugere- se uma concepção das “relações terapêuticas” em que se articulam diversas modalidades ou dimensões do vínculo: a transferência, a identificação projetiva e o enactment. Em seguida, propõe-se uma correlação entre as formas dominantes do vínculo e os adoecimentos psíquicos – o das psiconeuroses (neuroses de transferência), o dos adoecimentos narcísicos e o dos adoecimentos esquizóides –, acentuando-se a relevância destes dois últimos para a clínica contemporânea. Finalmente, a esquizoidia e o narcisismo são considerados no plano metapsicológico como expressões da compulsão à repetição comandada pela chamada pulsão de morte que é, ela mesma, revisitada e diferenciada em seus diversos aspectos: o do desligamento e auto-extinção, o da constituição e preservação do próprio in extremis e o da procura reiterada de um objeto primordial. > Palavras-chave: Esquizoidia, narcisismo, transferência, identificação projetiva, enactment, pulsão de morte. Luís Cláudio Figueiredo Transferências, contratransferências e outras coisinhas mais ou Esquizoidia e narcisismo na clínica psicanalítica contemporânea ou A chamada pulsão de morte 1 1> As idéias apresentadas neste trabalho foram sendo elaboradas ao longo de diversas oportunidades durante o ano de 2002: na palestra de encerramento da Jornada da Formação Freudiana (junho, Rio de Janeiro), no VI Congresso de Psicopatologia Fundamental (setembro, Recife) e na palestra de abertura da jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (setembro, Belo Horizonte). A presente versão é inédita e se beneficiou dos comentários, críticas e revisões efetuadas gentilmente por Elisa Ulhoa Cintra, Miriam Uchitel e Zeferino Rocha, a quem agradeço; Pedro Henrique Bernardes Rondon colocou à nossa disposi- ção toda a sua capacidade de leitor e editor criterioso, pelo que sou particularmente agradecido. A presen- te versão contou, finalmente, com a leitura, sugestões e críticas de Elisa Ulhoa Cintra, Charles Lang, Mau- ro Meiches, Nelson Coelho Júnior, Octávio de Souza, Paulo Carvalho Ribeiro, Pedro de Santi, Sidnei Cazeto e Vera Lúcia Blum, reunidos para a discussão do trabalho em novembro de 2002. Para Chaim Samuel Katz e Flávio José de Lima Neces artigos> p. 58-81

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Os três títulos colocados como alternativas para o presente trabalho correspondem aostrês aspectos focalizados. Em primeiro lugar, partindo-se da experiência clínica, sugere-se uma concepção das “relações terapêuticas” em que se articulam diversas modalidadesou dimensões do vínculo: a transferência, a identificação projetiva e o enactment. Emseguida, propõe-se uma correlação entre as formas dominantes do vínculo e osadoecimentos psíquicos – o das psiconeuroses (neuroses de transferência), o dosadoecimentos narcísicos e o dos adoecimentos esquizóides –, acentuando-se a relevânciadestes dois últimos para a clínica contemporânea. Finalmente, a esquizoidia e onarcisismo são considerados no plano metapsicológico como expressões da compulsãoà repetição comandada pela chamada pulsão de morte que é, ela mesma, revisitada ediferenciada em seus diversos aspectos: o do desligamento e auto-extinção, o da

constituição e preservação do próprio in extremis e o da procura reiterada de um objeto

primordial.

> Palavras-chave: Esquizoidia, narcisismo, transferência, identificação projetiva, enactment, pulsão de morte.

Luís Cláudio Figueiredo

Transferências, contratransferências e outrascoisinhas mais ou Esquizoidia e narcisismo naclínica psicanalítica contemporânea ou Achamada pulsão de morte1

1> As idéias apresentadas neste trabalho foram sendo elaboradas ao longo de diversas oportunidades

durante o ano de 2002: na palestra de encerramento da Jornada da Formação Freudiana (junho, Rio de

Janeiro), no VI Congresso de Psicopatologia Fundamental (setembro, Recife) e na palestra de abertura da

jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (setembro, Belo Horizonte). A presente versão é inédita e

se beneficiou dos comentários, críticas e revisões efetuadas gentilmente por Elisa Ulhoa Cintra, Miriam

Uchitel e Zeferino Rocha, a quem agradeço; Pedro Henrique Bernardes Rondon colocou à nossa disposi-

ção toda a sua capacidade de leitor e editor criterioso, pelo que sou particularmente agradecido. A presen-

te versão contou, finalmente, com a leitura, sugestões e críticas de Elisa Ulhoa Cintra, Charles Lang, Mau-

ro Meiches, Nelson Coelho Júnior, Octávio de Souza, Paulo Carvalho Ribeiro, Pedro de Santi, Sidnei Cazeto

e Vera Lúcia Blum, reunidos para a discussão do trabalho em novembro de 2002.

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... o modo como o psicanalista se colocadiante-de (Gegen) também constitui a

possibilidade do psicanalisar.

(Formação Freudiana, 2002)

O termo “contratransferência” refere-se auma dimensão fundamental do modo doanalista colocar-se diante – ou, melhordizendo, deixar-se colocar diante – doanalisando e ser por ele afetado. Embora,no nosso entendimento, o termo nãocontemple todas as possibilidades con-ceituais necessárias para pensarmos asdiversas posições do analista em um pro-cesso terapêutico, ele não pode, como severá logo mais, ser descartado em umacompreensão do psicanalisar. Contudo,infelizmente, este termo também podenos levar a um equívoco, o de supor quea posição do analista é apenas da ordemde uma resposta e de uma reação àstransferências de que é efetivamente alvopor parte do analisando.Tentarei desenvolver neste trabalho a hi-pótese de que, aquém das contra-transferências no sentido estrito, que sãoefetivamente respostas do analista às

transferências do paciente e, nesta exatamedida, um aspecto essencial da dinâmi-ca do trabalho analítico – embora sejatambém uma fonte de impasses – há umacondição de possibilidade do psicanalisar– qualquer que seja a modalidade do tra-balho clínico em curso – que se configu-ra como uma contratransferência primor-dial, um deixar-se colocar diante do sofri-mento antes mesmo de se saber do que ede quem se trata. Esta contratransferên-cia primordial corresponde justamente àdisponibilidade humana para funcionarcomo suporte de transferências e de ou-tras modalidades de demandas afetivas ecomportamentais profundas e primitivas,vindo a ser um deixar-se afetar e interpe-lar pelo sofrimento alheio no que tem dedesmesurado e mesmo de incomensurá-vel, não só desconhecido como incom-preensível. Todo o psicanalisar, no queimplica lidar com as transferências – e asoutras coisinhas mais, que emergem epodem ser tratadas nestes processos –dependem, portanto, desta contratrans-ferência primordial. O cultivo desta dispo-sição subjetiva, provavelmente, é um as-

The three titles chosen to name this present paper correspond to its main subjects.

First, I suggest that therapeutic relationships include different forms of linking:

transference, projective identification, and enactment. Secondly, I refer to a

relationship between predominant forms of linking and different forms of psychic

pathologies: psychoneuroses (transference neuroses), narcissistic disorders, and

schizoid diseases. Thirdly, schizoid and narcissistic disorders are considered

expressions of the repetition compulsion ruled by the so-called death drive. The theory

of the death drive is discussed in order to reveal its various facets, which include

unbinding and self-extinction, constitution, self-preservation and the recurrent search

for a primary object.

> Key words: Schizoid disorders, narcissistic disorders, transference, projective identification,

enactment, death instinct.

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pecto essencial na formação do analista,e sua preservação ao longo do tratamen-to é também um dos elementos funda-mentais de uma cura. Lembremo-nos, apropósito, de Donald Winnicott (1962) di-zendo que seus objetivos ao começaruma análise são manter-se vivo, acordadoe bem. Creio que ele está se referindo,com outras palavras, ao que estamos cha-mando de contratransferência primordial.Quanto à natureza e origens desta contra-transferência primordial, cabem algumasconsiderações. Assim como podemos supor(seguindo Ferenczi, 1909) que uma pro-pensão ao estabelecimento de relaçõestransferenciais faça parte do psiquismohumano em sua universalidade (sendo ape-nas mais acentuada entre os neuróticos),sugerimos que também seja universal e bá-sica a nossa disposição a servir como supor-te para as transferências alheias, comodestinatário e depositário de seus afetose como coadjuvante de suas encenações.Sugerimos, mais ainda, que esta disponi-bilidade esteja nas raízes de todos os pro-cessos de singularização. Vale dizer, é algoque já está presente em um recém-nasci-do e é um dos aspectos da nossa condi-ção humana de desamparo, o que tantoacarreta uma vulnerabilidade extrema atoda sorte de abusos e traumatismoscomo, em contrapartida, é a base daconstituição do psiquismo.Encontramos em alguns filósofos e psica-nalistas algumas idéias aparentadas. O fi-lósofo Henry Maldiney (1991), por exem-plo, nos fala da transpassibilidade – umaafetação pelo impossível, pelo que estáfora do campo do que pode ser represen-tado e interpretado. Embora ele trabalhequase sempre a partir da experiência es-tética (mas também das situações extre-

mas da loucura), sua suposição, que aquifazemos nossa, é a de que é preciso admi-tir um nível de afetação pelo outro ante-rior à entrada deste outro em nossomundo, onde ele se configura e pode sernomeado. A contratransferência primor-dial de que estamos falando teria algodesta qualidade.Uma segunda referência filosófica nosvem de Emmanuel Lévinas (1974), quenos aponta para uma passividade radicalna base da constituição subjetiva. Estapassividade, anterior à própria separação en-tre passividade e atividade, coloca no ou-tro e nos seus impactos a origem an-árquicado sujeito, sendo que a noção de an-arquia deve ser entendida na estrita opo-sição à de aut-arquia, propriedade do quetem em si mesmo seus princípios. Não sódependo do outro para vir-a-ser eu,como venho-a-ser como resposta a e res-ponsabilidade pelo outro, este que me in-terpela desde sua própria condição de mortale padecente. Nossa contratransferênciaprimordial não se confunde, mas se apro-xima a esta concepção levinassiana, pre-sente, por sinal, na teoria da sedução ge-neralizada de Jean Laplanche, com a res-salva importante que o outro em Laplan-che padece não tanto de sua mortalidadecomo de sua condição de sujeito afetadopela própria sexualidade inconsciente ecindido. De qualquer forma, mantém-se ahipótese de que, antes de mais nada, umbebê é o suporte para as transferênciasde seus pais, não apenas um objeto deseus cuidados desinteressados, e de queé a partir desta condição que uma subje-tividade se organiza, na forma de uma res-posta à transferência. Assim, a idéia decontratransferência primordial pode sermais facilmente inscrita no campo da teo-

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ria psicanalítica como um aspecto atinen-te à constituição do psiquismo do sujeito.Rigorosamente falando, a contratransfe-rência primordial é não só a condição dopsicanalisar, mas do vir-a-ser sujeito, doexistir como subjetividade. Em contrapar-tida, pode estar na origem dos mais ter-ríveis sofrimentos psíquicos, bem como,efetivamente, está na base dos sofrimen-tos que fazem parte inevitável da consti-tuição e funcionamento do psiquismo.No entanto, no campo da clínica da psi-canálise, coube a Harold Searles em um deseus mais instigantes trabalhos (Searles,1973) nos propor a hipótese ousada de que

... entre as forças inatas mais poderosas que

empurram o homem na direção de seus seme-

lhantes, há, desde os primeiros anos e mesmo

desde os primeiros meses de vida, a tendência

essencialmente psicoterapêutica.

Se pensarmos em termos winnicottianos,seria como um concern pré-original, umaespécie de preocupação com o outro an-terior à própria constituição do aparelhomental do indivíduo, anterior, portanto, àconfiguração de um próprio. Recordemosque Lévinas nos remete ao âmbito dopré-original como sendo o do que expõeuma subjetividade a outra antes mesmode haver um sujeito, antes mesmo de quese tenha constituído um Eu, com seusatos, suas intenções e suas defesas. O pré-original é a exposição traumática à alteri-dade, um começo de mim antes de Eu tercomeçado, e essa nos parece ser uma di-mensão decisiva do que estamos denomi-nando de contratransferência primordial.Como se verá adiante, não é necessário

nem conveniente interpretar estes cuida-dos como emanando de alguma boa von-tade intrínseca ao ser humano. Não se tra-ta de samaritanismo, mas de sobrevivên-cia em uma condição de desamparo emque a dependência em relação ao ambien-te é extrema e em que a manutenção dos“objetos” em bom estado e em bom fun-cionamento é essencial ao indivíduo.Para Searles, os abusos pelos pais destafunção contratransferencial primária dosfilhos2 e, principalmente, a incapacidadedaqueles reconhecerem, admitirem eaceitarem a condição de serem “cuidadospor seus bebês” – o que pode incluir tan-to a educação como a cura de males físi-cos e mentais – figuram entre as mais im-portantes causas dos adoecimentos psí-quicos. Há pais e mães, aliás, que reúnemos dois aspectos: exigem tudo dos filhosem termos de cuidados, mesmo quandosão bebês, mas se mostram não educáveise incuráveis. É o caso da “mãe morta” –vale dizer, deprimida – de que nos falaGreen (1983). Trata-se, então, de uma for-ma ou de outra, de uma recusa ou inva-lidação destas “tendências psicoterapêu-ticas”, que ficarão insatisfeitas, o que ali-menta o ódio, a inveja e a rivalidade nosfilhos. Ou seja, nestes casos, a abertura àalteridade da contratransferência primor-dial foi de alguma forma atacada e des-truída ou teve de ser objeto de algumcontra-investimento, seja pelo recalque,seja por outros mecanismos de defesamais primitivos e radicais. Assim sendo,reunindo as propostas de Searles às deWinnicott, poderíamos supor que paraestes indivíduos estaria dificultado ou in-

2> Por exemplo, mães narcisistas que atrelam seus bebês e filhos pequenos à própria necessidade de se-

rem “cuidadas” por eles, explorando a propensão daqueles tratarem a psicose de suas mães.

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terditado o acesso ao concern que é pró-prio da passagem da posição esquizopa-ranóide para a posição depressiva, ou,em termos winnicottianos, a passagemdo amor voraz e cruel (ruthless love) paraa preocupação (concern) e para a verda-deira capacidade de reparação. No seulugar, as “tendências psicoterapêuticas”precoces ou não operariam (interditadaspelo ódio e pela inveja), ou operariammuito intensificadas assumindo a formade reparações maníacas, pela via das for-mações reativas. Nos dois casos estariamcomprometendo bastante a possibilidadedo paciente, ele mesmo, ser cuidado peloanalista que, por seu turno, se sentirá amea-çado em sua posição.Voltemos agora a nosso tema.Os maiores problemas na condução deum processo terapêutico surgem justamentequando algo da contratransferência pri-mordial do analista parece ser atacado, nasituação de análise, pelos chamados “pa-cientes difíceis”, indivíduos que, prova-velmente, tiveram eles mesmos sériosproblemas em sua constituição subjetivano que concerne os abusos e desperdícios desua contratransferência primordial. Quandoisso ocorre, tais pacientes exigirão do te-rapeuta uma determinação e uma habi-lidade excepcionais para se preservar emsuas reservas anímicas. Nos casos da aná-lise padrão, mesmo que aí também ne-

nhum analisando seja propriamente “fá-cil”, o trabalho analítico, desde que bemconduzido, tende a alimentar e a enrique-cer a contratransferência primordial, ouseja, ele enriquece e consolida a posiçãodo analista. Como afirma jocosamenteRobert Caper em um texto que utilizare-mos adiante, “uma das peculiaridades dotrabalho de análise é que se o analista ofizer bem-feito, mesmo que o pacientenão melhore, o analista melhorará” (Ca-per, 1995, p. 74). Creio que esta “melhora”do analista corresponda à possibilidadeque uma psicanálise lhe oferece de ela-boração e enriquecimento da sua contra-transferência primordial, o que é propor-cionado pela condução de uma análisepadrão e que se torna tão mais espinho-so (ou quase impossível) quanto maisperturbado for o paciente.3

Mas antes de chegarmos a esta tese, caberefazer um certo trajeto bem conhecidode todos. Tentaremos fazê-lo da formamais rápida e simples possível.

Um pouco de históriaRelembremos com a maior brevidade ospassos decisivos da descoberta freudianaque vão desde a percepção da transferên-cia como uma “falsa conexão” e como umproblema a ser enfrentado e contornadona relação do paciente com o médico, atéa aceitação da transferência como o ob-

3> Deve ficar claro para o leitor que, ao colocar “melhora” entre aspas e ao acentuar o caráter jocoso da

frase de Caper, não se está sugerindo que a evolução clínica do paciente não importa, desde que o analista

se sinta satisfeito com o trabalho que realizou. Apenas se diz que em uma análise padrão a contratrans-

ferência primordial não é atacada como ocorre em uma análise difícil; ao contrário, pode ser desenvolvida.

Mas se isso ocorrer, naturalmente, o analista ficará mais, e não menos, sensível ao sofrimento do anali-

sando. Vale dizer, é o contrário do que resultaria de um fortalecimento do narcisismo patológico do tera-

peuta. Aqui, o que se sugere é que o analista seja capaz de se manter na posição de analista apesar da

ferida narcísica que sofre em decorrência da continuidade do sofrimento de seu paciente e da sua própria

incapacidade de salvá-lo deste sofrimento.

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jeto essencial da análise (Freud,1912, 1914,1915, 1916-17). Embora a tendência a “vi-ver” e atuar, em vez de recordar, semprevá ser também entendida como um fenô-meno de resistência – um dispositivopara evitar o sofrimento psíquico e o con-tato com as experiências precoces demaior conflito – percebe-se que, alémdos limites do que pode ser lembrado,está o passado que só poderá de fatocomparecer na análise sob a forma deuma revivência e de uma atuação, seja elafora do setting analítico – acting out – oudentro dele – acting in. Ao menos nocontexto do setting (mas também, emgrande medida, fora dele, como será en-fatizado por Melanie Klein [1952] e seusseguidores), os sentimentos, as emoções,idéias e atuações do paciente terão comoalvo a figura do analista ou, mais propriamen-te, a figura do analista tal como constituí-da na transferência. A reserva do analis-ta, sua discrição e sua “neutralidade” têm,entre outras funções, a de proporcionaras condições para que se estabeleçam aolongo do tratamento estas montagenstransferenciais, conforme os recursos epossibilidades de cada analisando. Tantoos impulsos, como as representações e osafetos (amores, ódios, angústias...), comoas defesas que organizam a dimensão doinfantil no psiquismo do analisando serãomobilizados, acionados e irão se expres-sar de forma mais ou menos óbvia e dire-ta na relação com o analista que irá serconfigurado segundo os modelos das fi-guras mais significativas do passadoafetivo do paciente.

Ao longo dos anos da prática clínica freu-diana, mais importantes que as recorda-ções e as narrativas acerca do passado, oque foi se impondo como objeto privile-giado de observação e análise são estasreedições dos velhos padrões impulsivos,e defensivos, tanto no âmbito dos afetoscomo no das representações. Além doslimites do rememorável, impõe-se, assim,o que se repete na relação com o analis-ta e se apresenta como objeto vivo e atualde análise e de elaboração.No entanto, além mesmo destas repeti-ções que assumem as formas de reedi-ções, emergem as repetições ainda maisradicais, as que se produzem além doprincípio de prazer e sob o império dachamada “pulsão de morte”, nome quedissimula o fato de que estas repetiçõescorrespondem ao mais pulsional das pul-sões, à pulsionalidade propriamente ditaem seu estado bruto de desligamento eem sua urgência à descarga (Freud, 1920).4

Embora o próprio Freud inclua as repeti-ções transferenciais entre as manifesta-ções da pulsão de morte, talvez, por ra-zões que se irão expor adiante, não de-vêssemos incluir estas repetições no con-ceito de “transferência”, embora, sem dú-vida, elas incidam sobre os processos relacionais em uma análise e de algumaforma se originem na história passada doindivíduo. Mais precisamente, se originamnas fraturas irremediáveis, nos impasses enos fracassos desta história, se originemno que mais tarde denominarei de malo-gros na procura e no encontro de obje-tos primordiais. Ou seja, talvez pudésse-

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4> Sobre a conveniência de se incluir a tendência à descarga como uma qualidade essencial da chamada

“pulsão de morte”, ver-se-á adiante (As desordens de caráter...) que isto só é parcialmente verdadeiro.

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mos reservar o conceito de “transferên-cia” para as repetições que se mostramsob a forma de reedições dos padrões in-fantis e inconscientes – libidinais ouagressivos – que, em uma relação terapêu-tica, constituem o analista segundo os mo-delos do passado e no âmbito de opera-ção do princípio de prazer e do princípio derealidade. Em contrapartida, procuraría-mos outros nomes para as repetições mo-vidas pela pulsionalidade em estado puro,em um regime de funcionamento que perma-nece além (aquém) do princípio de prazer.São processos que ainda não contam comum aparelho psíquico suficientementeestruturado para que nele vigore o prin-cípio de prazer, ou que foi reduzido, peloefeito, por exemplo, do trauma a um modomuito mais primitivo de operação que o de umpsiquismo bem constituído, como o do neu-rótico. Repetições desta natureza são, jus-tamente, as que atacam e põem à prova acontratransferência primordial do analista.Mas esta distinção entre repetições trans-ferenciais e repetições de outra ordempode ser ajudada pelo recurso a algumasidéias de Ferenczi. Em um de seus primei-ros e mais elucidativos textos – “Transfe-rência e introjeção”, de 1909 – Ferencziapresenta a tese de que o processo de in-trojeção em sua universalidade inclui atransferência, também ela universal, po-rém mais ativa e imperiosa nos neuróti-cos. A introjeção é o processo pelo qual osobjetos do mundo são incluídos nas esferasde interesses do eu como alvos substitu-tos de impulsos e afetos. Quando o recal-camento incide sobre as experiênciasmais primitivas e intensas de prazer, seusobjetos são remetidos ao inconsciente ecria-se uma quantidade de energia livreque precisa buscar novos alvos, procu-

rando novos objetos que possam ocuparos lugares dos que foram vítimas do recal-que. Aí se originam, entre outros, os pro-cessos de criação de novos objetos e desublimação.Vale aqui uma pequena digressão. Quan-to mais intenso, radical e ”neurotizante” oprocesso de recalcamento, maior a pro-pensão a transferir, vale dizer, mais o pro-cesso normal de introjeção será acionadocomo forma de dirigir e procurar satisfa-zer pela via das reedições dos objetos ar-caicos a energia libidinal (ou agressiva)sobrante e livre. Nestes casos, não só oindivíduo está efetivamente privado deinúmeras possibilidades de satisfação le-gítima para a expressão de seus impulsose desejos, barrados pelo excesso de re-pressão, como boa parte do mundo seráconstituída como objeto de transferên-cia, o que acarreta uma sobrecarga deafetos e fantasias em objetos que seriammais bem considerados em suas proprie-dades meramente pragmáticas. Há, por-tanto, um duplo prejuízo, em termos devida afetiva e sexual e em termos de adap-tabilidade.Mas retornando ao fio da meada, nosprocessos de constituição psíquica nor-mais e neuróticos novos objetos deamor e de ódio são criados – e introjeta-dos – à medida das necessidades impos-tas pelo recalcamento a uma mente quejá funciona sob o regime do princípio deprazer e de sua forma modificada, comoprincípio de realidade. Nesta medida, osnovos objetos, embora moldados pelosvelhos padrões, são reconhecidos em sua re-lativa diferença e especificidade, comopartes de uma realidade atual e presente.Eles são novos e velhos objetos simultanea-mente.

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Ao longo de seus trabalhos iniciais sobrequestões da técnica, Ferenczi enfatizará aimportância desta propensão à introjeçãoe à transferência no tratamento psicana-lítico da neurose. É ela que confere ao ana-lista o grande poder de intervir no psiquis-mo do paciente “desde dentro”, ou seja,como um objeto incluído em suas esferasde interesses passionais e alvo de amorese ódios primitivos. Em acréscimo, é o quese reedita na relação com o analista quepoderá ser observado e analisado comouma presentificação daquele passadoque está na origem do adoecimento neu-rótico e inscrito em sua dinâmica. No entanto, Ferenczi (1924, 1928, 1930)também percebe que a importância daatualidade da relação com o analista emmuitos casos transcende o âmbito dasreedições no sentido estrito. Os movi-mentos repetitivos podem então nos re-meter a momentos da história passadaque foram marcados por acontecimen-tos traumáticos ocorridos fora do âmbi-to do sentido e das fantasias de desejo eque nada devem ao processo de recalca-mento no sentido próprio do termo. É oque o vai levar às propostas de elasticida-de da técnica, de “relaxamento” ou “indul-gência” – o “deixar rolar” doNachgiebigkeit – e à neo-catarse comotentativas de acessar estes recantos pro-fundos e mudos do psiquismo traumatiza-do. É assim que ele instaura a tradição clí-nica que elabora o conceito de “regressãoterapêutica” que terá em Balint e em Win-nicott seus maiores expoentes. Vale dizer,quanto mais o analista deve se haver compacientes portadores do que, mais tardeo discípulo Balint (1968) denominará de“falha básica”, mais o trabalho de recupe-ração das lembranças recalcadas pela via

das associações livres, relatos de sonhose interpretações cede espaço à atualizaçãodas experiências precoces na relação ana-lítica, uma atualização que deve mais àcompulsão à repetição do que à procurasubstitutiva do prazer interditado pelorecalque. Pacientes que repetem princi-palmente desta forma, ao contrário dosneuróticos, não sofrem de uma doençaintrojetiva, incrementando de modo ilimi-tado a propensão normal à introjeção e aprocura de soluções de compromisso sin-tomáticas. Ao contrário, embora possamestabelecer relações aparentemente mui-to intensas e passionais, e exigentes como analista, têm uma dificuldade enormeem introjetar novos objetos de amor e deódio. Ou bem neles se desenvolve umadoecimento projetivo – em que predo-minam fortes traços paranóides – ou bemo processo de introjeção é interrompidoe convertido no que alguns autores(Abraham e Torok, 1987) vieram a chamarde “fantasia de incorporação”. De qual-quer forma, o analista é destituído do po-der que o paciente neurótico normal-mente lhe confere na transferência emsentido estrito.

Derivações do pensamento clínicosobre a transferência e seusimpassesNa história do pensamento sobre a técni-ca, a análise da transferência veio a setornar uma prática sistemática e decisivanas elaborações de James Strachey, maisprecisamente, no seu texto “The nature ofthe therapeutic action of the Psycho-Analysis” de 1933-34. Para estas formula-ções, Strachey valia-se de seu bom co-nhecimento das obras de Freud e Ferenczie de sua apreciação positiva da obra de

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Melanie Klein, ainda incipiente mas já muitoinovadora no final da década de 1920.Um conceito sugerido por Strachey meparece particularmente esclarecedorpara compreendermos a transferência narelação terapêutica e fora dela. Segundoele, o analista na transferência tem o es-tatuto de um “objeto externo da fantasia”.Uma forma de entendermos o alcance daproposta é relacionando-a à idéia winni-cottiana de paradoxo quando aplicada aoobjeto transicional. Este tanto é um ele-mento da fantasia na área da onipotência,como algo que já incorpora a condiçãode um objeto “não-eu”. Winnicott (1962)o afirma claramente: o analista é tantoum objeto subjetivo como um suporte doprincípio de realidade, convertendo-seem uma espécie de objeto transicional.Nesta medida, se entrelaçam sem grandesdificuldades para nossa compreensão asexperiências de transferência, o brincar,o ato criativo e o relato do sonho, poistodos transitam neste espaço sui generisem que o subjetivo e o objetivo se aco-plam sem coincidir, gerando uma realida-de de nova espécie. Nesta realidade, osobjetos são ao mesmo tempo inventadose descobertos e este é justamente o esta-tuto do analista na transferência. A reali-dade assim constituída é essencialmenteo lugar em que transcorre a análise pa-drão no tratamento da neurose. Vale as-sinalar que é neste espaço que se podeconstituir o uso da linguagem qualinguagem pois os símbolos são justamen-te o que pode mediar o subjetivo e o ob-jetivo, incorporando dimensões de am-bos, mas sem se confundir com nenhumdestes pólos.É nesta realidade precária e heterogêneado espaço da transferência que vigora

uma dimensão da temporalidade comple-xa e não-consistente marcada pela coin-cidência e não coincidência simultâneasentre o passado subjetivo do indivíduo ea atualidade das suas relações de objeto,criando o presente fraturado em que sepode verificar uma propensão para oacontecimento. Neste espaço, tanto opassado irrompe no atual, como o pre-sente pode incidir sobre o passado, des-concertando-o e ressignificando-o. Há umverdadeiro acontecimento quando a tra-ma do tempo domesticado, linear e pro-gressivo é desfeita e rompida e este rom-pimento é tão mais provável quanto maisaquela trama já traz em si mesma as mar-cas de uma desconstrução. É bem isso oque se passa quando se instalam e culti-vam as transferências, quando se ampliamos horizontes para as relações transferen-ciais com sua ambigüidade e não-consis-tência características.É a partir destas condições que se podeentender a dinâmica e a eficácia das “in-terpretações mutativas”, outro conceitofundamental do autor. Segundo Strachey,quando se dá a projeção sobre o analis-ta do superego arcaico do paciente, (pro-tetor/sedutor e persecutório), criam-se ascondições para o exercício de seu poder,seja na forma de sugestão, seja na de análise.Uma interpretação mutativa é a que efe-tua o golpe da discriminação entre o ana-lista fantasiado e o novo objeto que elepode vir a ser e, em parte, já está sendo,propiciando a introjeção do analistacomo superego normal e brando (realis-ta), um superego em “mangas de camisa”.Alguns autores (por exemplo, Caper,1995), seguindo nesta direção, chegam asugerir que a meta da análise seria, even-tualmente, a abolição do superego, e não

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apenas seu abrandamento, bem como, éclaro, o esclarecimento dos mecanismose origens históricas da neurose, objetivojá bem explicitado por Strachey.Não entrarei no mérito do que dizStrachey sobre as outras formas de inter-pretação – não-mutativas – pois elas nãotêm a transferência como objeto, emboratenham sua força e eficácia nela baseada.Importa, porém, ressaltar que interpreta-ções mutativas para Strachey não ocor-rem contínua e freqüentemente, sendoque o seu foco e a sua oportunidade sãodados pelo ponto de emergência da an-gústia do paciente na relação transferen-cial. Ora, este ponto de emergência daangústia deve ser acessado com acuidadepelo analista e nisso o que mais importaé sua sensibilidade contratransferencial.Assim sendo, uma inspeção cuidadosa docampo contratransferencial é indispensá-vel para a detecção do quando e do comopropiciar uma interpretação mutativa.Em contraposição, é exatamente isso quepode acarretar as maiores dificuldadespara a elaboração e oferta de interpreta-ções mutativas. R. Caper (1995) mostraque, no jogo transferencial-contratransfe-rencial, se o paciente deve projetar seusuperego sobre o analista, este, por seuturno, caso introjete o superego arcaicodo paciente e tenha seu própriosuperego arcaico ativado (processos quesão em parte inevitáveis), permitirá quese constituam fusões superegóicas, con-luios e resistências contratransferenciaisque interditarão as interpretações desti-nadas a desfazer o conluio. O conceito de“grupo de suposto básico”, elaborado porBion (1961), e os processos analisados porFreud (1921) no seu exame da psicologiadas massas ajudam Caper a esclarecer o

que se passa no campo das transferên-cias e contratransferências quando oanalista se deixa capturar pelo que pode-ria ser um jogo ou um sonho comparti-lhado, mas que, neste momento, muda destatus e se converte em uma realidadealucinada pela dupla e a ser defendidapelo paciente e pelo analista com o recur-so a mecanismos de defesa neuróticos epsicóticos. Recordemos que em um gru-po de suposto básico, ao contrário doque ocorre em um grupo de trabalho, osmembros se reúnem exclusivamente paramanter o grupo e defendê-lo das forçasexternas ou internas de dissolução. Nadamais antagônico a essa modalidade defuncionamento grupal (ou dual) do que oefeito analítico e desconstrutivo que seespera das interpretações mutativas. As-sim sendo, é a própria condição essen-cial da relação terapêutica, aquilo mesmoque a torna apta à análise da neurose, oque vem a ser a fonte dos maiores riscosde que o processo analítico se interrom-pa. Isso ocorre quando analista e pacien-te se unem para a defesa e manutenção deum conluio que tem, por sinal, um cará-ter mais psicótico do que neurótico, mes-mo que analista e analisando sejam pre-dominantemente neuróticos.Um outro passo notável, mas igualmenteperigoso, no desenvolvimento do pensa-mento clínico e técnico sobre a transferên-cia deu-se com a proposta de Melanie Kleinde tomar a transferência como situação to-tal (Klein, 1952), conceito desenvolvidoposteriormente por Betty Joseph em 1985.Na tradição kleiniana, realmente, pensa-se a transferência como implicando atransferência de emoções, defesas e rela-ções objetais do passado para o presen-te em um sentido bastante amplo. A pre-

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missa é a de que tudo que se traz parauma sessão e tudo que nela emerge tema relação com o analista como causa e comoeixo. Mais ainda, mesmo o que se passafora de um setting analítico, ao longo deuma psicanálise, pode ser interpretadocomo referido à relação transferencial eassim interpretado. A esta ampliação doconceito de transferência correspondeu,por iniciativa de Paula Heimann (1950),uma ampliação e uma ênfase no concei-to de contratransferência: ele deixa ofi-cialmente de ser apenas um obstáculo euma ameaça para ser reconhecido comocondição, objeto e instrumento da análise.O que penso, porém, é que esta ampliaçãoconceitual do par “transferência-contra-transferência”, ao lado de seus efeitospositivos, que foram o de dar uma maioracuidade à escuta analítica e um maior al-cance ao campo das interpretações mu-tativas, implicou também algumas impre-cisões. A mais importante delas foi a dereunir sob um mesmo conceito os proces-sos estritamente transferenciais no senti-do freudo-ferencziano e os estudados enomeados por Melanie Klein e seus segui-dores como identificação projetiva (Klein,1946, 1955) No primeiro caso, o recalca-mento gera as condições mais propícias àformação de laços transferenciais, bemcomo às introjeções. No segundo, inter-vêm mecanismos de defesa mais primiti-vos, como a cisão, a idealização e a iden-tificação projetiva, entre outros, que pre-cedem ou colocam o recalcamento emsegundo plano. A identificação projetivaé, em primeiro lugar, embora não se es-

gote necessariamente nisso, uma fantasiapor intermédio da qual partes do psiquis-mo do paciente são expelidas e colocadassobre e dentro de seus objetos. Isso podeocorrer seja para colocar para fora aspartes más e insuportáveis, seja, ao con-trário, para colocar para fora as partesboas e ameaçadas de destruição no inte-rior de um psiquismo muito perturbadopelo ódio, a inveja e a culpa. Em ambos oscasos, forma-se uma confusão entre o su-jeito e seus objetos de identificaçãoprojetiva, com os quais o indivíduo esta-belece relações narcisistas muito primiti-vas e resistentes à análise. Além de suasfunções defensivas, porém, a partir deRosenfeld (1971) e de Bion (1962) foi se tor-nando consensual o reconhecimento deuma função comunicativa na identifica-ção projetiva. Além de ser uma fantasia eum mecanismo de defesa, ela passa a servista como um processo que mobiliza efe-tivamente os afetos do “objeto”, principal-mente quando este objeto é um ser huma-no.5 Nestes casos, dá-se uma comunicaçãoafetiva e inconsciente muito intensa e ime-diata entre o sujeito e o objeto que, a rigor,se mantêm narcisicamente entrelaçados.A distinção entre os processos estudadospor Freud e Ferenczi e os estudados pe-los kleinianos foi bem explicitada porKernberg (1998) quando contrapõe, porexemplo, a projeção em Freud à identifi-cação projetiva em Melanie Klein. Diz ele:

Clinicamente, a projeção importa em atribuir a

outro algo que está profundamente reprimi-

do... A repressão opera e a projeção a comple-

menta. No caso da identificação projetiva, há

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5> Vale recordar, contudo, que pode ser um animal e mesmo um aspecto do ambiente inanimado, casos

em que a identificação projetiva tem apenas o status de uma fantasia e só comporta a dimensão defen-

siva.

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uma combinação primitiva de projeção, manu-

tenção da empatia com o que é projetado, a

necessidade de controlar o objeto e uma ten-

dência inconsciente para induzir o que é pro-

jetado sobre o outro ou dentro dele... E isso

parece indicar, a meu ver, uma ausência de re-

pressão madura. (p. 21)

Uma distinção desta natureza tambémestá na base da diferença estabelecidapor Bion (1965) entre as transformaçõesem movimentos rígidos e as transforma-ções projetivas. No primeiro caso, os pa-drões do passado recalcado modelam astransformações operadas pelo pacientesobre o material oferecido pelas suas re-lações atuais com o analista, configuran-do assim, de forma padronizada e regularseu campo de experiências e relações deobjeto. No segundo, as transformaçõesenvolvem a projeção de afetos que o psi-quismo do paciente não pode conter,controlar e muito menos simbolizar epensar sobre a relação com o analista esobre ele, sobre o setting e mesmo sobre osseus arredores. Trata-se de um psiquismocuja capacidade de pensar e simbolizar estána verdade profundamente atrofiada. Emconseqüência, sua capacidade de configu-rar objetos e diferenciá-los está pouco de-senvolvida e por isso há como que um es-parrame de afetos sobre o analista, sobretudo que o cerca e tudo com que ele pode serassociado, de forma indistinta.É claro que em uma relação transferen-cial podem emergir aspectos marcadospelas transformações projetivas sem que,no entanto, perca sentido a distinção pro-posta por Bion. Transformações em mo-vimentos rígidos são características defuncionamentos predominantemente neu-róticos, enquanto as transformações pro-jetivas e, mais ainda, as transformações

em alucinose, de que falaremos adiante,são características de funcionamentos pre-dominantemente psicóticos e borderline.Uma outra dimensão do fenômeno trans-ferencial, que veio mais tarde a ser reco-nhecida em termos mais condizentes comsua especificidade, é a que envolve o de-sempenho de papéis pelo analista e pelopaciente. Até onde sei, foi em um belotexto sobre a técnica ainda no final dadécada de 1920 que a psicanalista inglesaElla Sharpe (1930) pela primeira vez acen-tuou o fato de que, na transferência, opaciente oferece e exige papéis (roles) aserem desempenhados pelo analista emprocessos de encenação tanto nos planosda realidade como na fantasia, mesclan-do passado e presente. Na década de1970 Joseph Sandler (1976) chamou aatenção para esta dimensão comporta-mental da transferência: a do roleenactment do paciente e a da roleresponsiveness requerida ao analista.Mesmo que este não chegue efetivamen-te a responder e a contracenar, a dispo-nibilidade afetiva para captar e, eventual-mente, responder de forma incipiente àsencenações do paciente, seriam condi-ções para o processo de análise cami-nhar. A role responsiveness seria uma di-mensão importante da sensibilidade con-tratransferencial que, desde que bem uti-lizada e controlada, se converteria em uminstrumento importante na condução deuma análise.Diga-se de passagem que também na tra-dição kleiniana esta dimensão de roleenactment veio a ser reconhecida comoum dos aspectos da identificaçãoprojetiva sempre que esta consegue efe-tivamente induzir no receptor (o analista,sujeito a contra-identificações projetivas)

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os afetos, a postura e os comportamentoscorrespondentes e complementares. Noentanto, predomina a convicção entre oskleinianos de que a identificação projetivapode estar ocorrendo sem que se manifestemestas dimensões de enactment, o que corro-bora a pertinência da distinção que esta-mos estabelecendo. É claro, por exemplo,que se o objeto da identificação projetivafor um animal de estimação ou uma parteinanimada do ambiente, ou, no caso de umhumano, se este não se sentir de fato in-vadido pela fantasia do paciente, nem por issovamos dizer que a identificação projetivaestá ausente ou atenuada. Isto implica reco-nhecer que a tendência a atuar a fantasiaprojetada ou a responder a ela pode serfreqüente, mas não é essencial na caracteri-zação da identificação projetiva (Bell, 2001).A partir destes textos freudianos e klei-nianos que nos chamaram a atenção paraas encenações, e com base na obra de al-guns autores americanos provenientes datradição de uma interactional psycho-analysis, a literatura sobre enactmentcresceu muito nas últimas décadas (cf.Jacobs, 1991; Elman e Moskowitz, 1998).Novamente aqui, porém, tal como ocor-rera com a literatura sobre transferênciae sobre identificação projetiva, os ganhosem termos de acuidade na escuta datransferência foram pagos com algumaimprecisão. Os conceitos de “transferên-cia” e de “identificação projetiva” em parteenriqueceram-se, mas em parte perde-ram seus contornos com a introdução ecom o uso irrestrito do conceito deenactment que, em alguns autores, tendea confundir-se no plano conceitual como de transferência e mesmo a subsumir aidentificação projetiva. Embora, como severá adiante, estes diversos processos

costumem combinar-se nas situações daclínica, acreditamos que a manutençãodas diferenças conceituais pode nos ser mui-to vantajosa.

Repondo a questão: Uma propostapara a discriminação entre tipos e/ou dimensões da “relação terapêu-tica”1) Proponho que se reserve o conceito de“transferência” ou “transformação emmovimento rígido”, e, correlativamente, ode “contratransferência”, às situações emque, efetivamente, o analista constitui-separa o paciente e por ele como objeto ex-terno da fantasia. Algumas dimensões oucaracterísticas desta relação podem serrealçadas. Nela experimenta-se, de partea parte, a linguagem como linguagem eabre-se, portanto, um espaço de sonho eum campo de jogo em que são possíveisas associações livres, as interpretações,mutativas ou não, os insights, os aconte-cimentos, as ressignificações e ressubjeti-vações etc. Apesar dos movimentos derepetição tenderem à rigidez, há aqui umpotencial de criação e os “jogos de pala-vras”, nas relações transferenciais-contra-transferenciais e nas interpretações quedaí emergem, contém um poder de reno-vação e transformação (cf. Rocha, 2002,acerca da dimensão criativa da transfe-rência). É claro que os pacientes difíceistambém são falantes. No entanto, comose verá mais tarde, o uso que fazem daspalavras pode ser bem peculiar. As situa-ções em que predominam a transferênciae a fala como fala são aquelas em que sedesenrola uma análise padrão – com os“pacientes fáceis” – e em que a contratrans-ferência primordial constitutiva do psica-nalisar é continuamente realimentada.

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2) Já quando dominam, de parte do pacien-te, as identificações projetivas ou trans-formações projetivas, do lado do analis-ta esperaríamos encontrar identificaçõesintrojetivas, continência e capacidade derêverie, vale dizer, metabolização simbó-lica. Há, porém, é claro, a possibilidadedas identificações projetivas produziremno analista contra-identificações projeti-vas, processo no qual o analista se defen-de devolvendo as projeções que lhe fo-ram endereçadas em estado bruto ou en-viando as suas próprias sobre o paciente.Nas relações marcadas pela forte incidên-cia de identificações projetivas, o analis-ta não se institui como objeto externo dafantasia, mas pura e simplesmente comoobjeto da fantasia, destinatário e deposi-tário de afetos sem mediação simbólica. Oque se observa predominantemente nes-tes casos são as atuações, as evacuações,as alucinações e os delírios que caracte-rizam as transformações projetivas e, emestados mais radicais de psicotização, astransformações em alucinose em que arealidade é construída na medida das ne-cessidades do paciente de forma a queeste não chegue nem a experimentar adiferença, a falta e a frustração. Nestamedida, as falas não são linguagem comolinguagem, mas meios de efetuação des-tas operações de defesa, eventualmentede comunicação, muito mais primitivas.As palavras não representam, elas sãopartes da vida psíquica e afetiva, são coi-sas. Por isso, aspectos não-verbais da falae da voz, como timbre, entonação, melo-dia, ritmo, colorido semântico, estruturagramatical, estilo retórico, clima e atmos-

fera do discurso (cf. Ogden, 1998 e Figuei-redo, 1998), bem como de toda a presen-ça do paciente em termos de expressõesfaciais e corporais, são elementos decisi-vos nas operações das identificações pro-jetivas e na sua recepção. Estas dimen-sões conseguem “transmitir” e provocarafetos de uma forma muito direta, insta-lando estados subjetivos nos eventuaisreceptores cujas causas e razões dificil-mente podem ser postas em palavras,mesmo quando estão originalmente asso-ciadas à fala.Como objeto da fantasia, a diferença doanalista em relação ao paciente é negadae ele comparece como objeto narcísico(um self-objeto nos termos de Kohut)sendo, em uma certa medida, vítima deuma verdadeira “desobjetalização”, talcomo sugere Green (2002), o que retoma-remos adiante. Quaisquer que sejam asfunções da identificação projetiva, seja naordem das defesas, seja no plano das co-municações, o que foi tão acentuado porBion, a sua função primordial, conformesublinha Betty Joseph (1987),6 é a de ne-gar a separação, vale dizer, é uma recusaradical da diferença, o que efetivamentese observa tanto nos pacientes franca-mente psicóticos como na “psicose bran-ca” dos chamados pacientes concretos.(cf. Bass, 2000).Nesta medida, quando prevalece a iden-tificação projetiva como defesa e comoforma de comunicação, ou seja, quandoocorre a identificação projetiva maciçanos pacientes narcisistas, verifica-se tam-bém uma ausência de transferência stric-to sensu, o que confirma, em última aná-

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6> “Na raiz mais primitiva da identificação projetiva está a tentativa de retornar ao objeto – tornar-se

como que indiferenciado e sem mente para evitar toda a dor psíquica” (Joseph, 1987, p. 178).

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lise, a posição de Freud. Cabe assinalarque muitos analistas kleinianos vieram aadmitir o fato de que “interpretações datransferência” com pacientes muito nar-cisistas são contraproducentes e inefica-zes, irritando-os e não produzindo trans-formações terapêuticas. Provavelmente,isso ocorre porque nestes casos, a rigor,não estamos lidando com relações trans-ferenciais, transformações em movimen-tos rígidos, mas sim com transformaçõesprojetivas e identificações projetivas ma-ciças ou transformações em alucinose.“Interpretações da transferência”, portan-to, não seriam apenas pouco oportunasnestas circunstâncias, mas, de fato, umequívoco técnico decorrente de uma fa-lha na conceituação do que se passa narelação terapêutica.Se empreendermos aqui um breve retor-no a Ferenczi (1909) assumindo que a pri-meira relação objetal já implica umatransferência – no caso, a transferênciada experiência auto-erótica sobre o pri-meiro objeto de amor e de ódio –, pode-ríamos sugerir que estes pacientes aindaestão contínua e repetidamente tentandoa passagem do auto-erotismo ao amorobjetal e nela fracassando. Para tratá-los,o analista deve ser capaz de assisti-los noque pode ser concebido como a procuraprimordial de um objeto apto a propiciara transição oferecendo ao paciente oapoio (holding) e um aparelho para a me-tabolização – ou simbolização – de suassensações e impulsos. Creio que todas asconsiderações de Kohut (por exemplo,Kohut 1968) sobre as chamadas “transfe-rências narcisistas” (termo que teríamospreferido evitar para não criar confusão)com self-objetos especulares e idealizadospodem nos ser muito úteis no acompa-

nhamento destes casos, bem como, é cla-ro, os conceitos de “continência” e de“rêverie” criados por Bion para descreveresta instalação primária de um “aparelhopara pensar”.3) Finalmente, quando predominam os“enactments”, espera-se e requer-se doanalista alguma disponibilidade para oscounterenactments, mesmo que toda aprudência seja necessária e, quase sem-pre, insuficiente, para lidar com estas si-tuações. Nestes casos também, o analistanão é constituído como objeto externoda fantasia em um espaço de jogo, masexiste como objeto externo com o qualuma parte do paciente “interage” conti-nuamente nos planos inconsciente econsciente para produzir efeitos e manterdistâncias (controlar), sem mediação sim-bólica. Aqui, novamente, o recurso à fala– e há pacientes que abusam dosenactments e são extremamente bem ar-ticulados no plano verbal, como tantospacientes falso self – não deve nos enga-nar quanto ao nível de funcionamentopsíquico do indivíduo.As encenações contínuas e a exigência decontra-encenações são características dospacientes esquizóides afetados pela falhabásica (Balint), portadores do falso self(Winnicott), traumatizados e vítimas doque Shengold (1999) chamou de soulmurder. A capacidade de sonhar e brin-car está seriamente afetada, pois não seconstituiu um espaço potencial no qual osubjetivo e o objetivo, o eu e os outrospossam se encontrar e se incorporar, pa-radoxalmente, a objetos transicionais.Igualmente, o uso das formas mais primi-tivas da comunicação emocional está in-terditado. Isso não significa uma ausênciade vida interior, de vida de fantasia. Ao

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contrário, ela pode existir e ser muito po-derosa, mas forma um sistema fechado eexcludente, o que nos remete a Fairbairn(1958) e seu conceito de closed system,um aparelho cujo funcionamento deixade fora os objetos do mundo real e com-partilhado. Os objetos deste mundo exte-rior precisam ser mantidos sob controlee as encenações que impõem ao analistaum papel e nele o tentam fixar, cumprembem este objetivo.O que, contudo, precisa ser continua-mente reconhecido pelo analista é queestas encenações de presença, em que opaciente ocupa uma porção muito efeti-va na “realidade” e chama o analista paraela de forma imperiosa e controladora,(ou seja, encenando-se aí formas excessi-vas de presentificação), escondem umareal ausência afetiva: trata-se da quasetotal inacessibilidade do mundo internodas fantasias e afetos nos pacientes “forade alcance” (cf. Joseph, 1975). Há uma ci-são entre a parte presente na encenaçãoe a ausente – afetos enclausurados nafantasia e em estado de congelamento(Winnicott) – em vez de, como ocorre natransferência, ausência e presença se so-breporem e coincidirem sem coincidên-cia, ou seja, ao modo de um paradoxo.Apenas como exemplo: um paciente es-quizóide quando está particularmente re-traído chega à sessão e, em um arremedodo que seria uma sessão de análise (umaencenação de “análise”), conta-me umaseqüência de sonhos. Ele os apresentacomo totalmente enigmáticos e não con-segue oferecer nem uma única associa-ção, como a me dizer que sua vida inte-rior é muito densa a ponto de ser impe-netrável. No entanto, e isto é o que trans-corre no plano inconsciente do

enactment, ele me atribui e me fixa naposição do “analista decifrador de so-nhos”, o que é, por sinal, uma posição deantemão fadada ao fracasso neste caso,inclusive porque não se trata efetivamen-te de análise o que ele está me propondo.E neste jogo de esconde-esconde podedecorrer toda uma sessão, ou mesmo fa-ses inteiras do trabalho terapêutico, quenão avança, mas também não se inter-rompe, ao menos na aparência.Enquanto o paciente narcisista nega a di-ferença e a separação, o esquizóide acei-ta a diferença, levada inclusive a extre-mos, para controlar o diferente e, tam-bém assim, proteger-se de uma verdadei-ra separação; em acréscimo, nesta moda-lidade de recusa da separação, recusa-sesimultaneamente a fusão com os objetos.Estes ficam sob controle, mas como ex-ternos, sem se confundirem com os obje-tos internos maus, sedutores e persecutó-rios, que continuam povoando a agitan-do a mente do paciente esquizóide.Se diante do paciente que abusa de iden-tificações projetivas, a dificuldade para oanalista é a de ter alguma eficácia comoobjeto externo diferenciado, aqui a difi-culdade é a de ocupar alguma posiçãocomo objeto interno no âmbito da fanta-sia, na área de onipotência. Daí a neces-sidade tão bem percebida e teorizada porWinnicott de reconhecer nestes casos oslimites da interpretação. É certo que tam-bém as fantasias atuadas dos pacientesnarcisistas requerem uma interpretaçãode novo tipo, muito mais apta a conter ea simbolizar os afetos do que propriamen-te ter acesso ao recalcado e a interpretá-lo, trazendo-o à consciência. Nos casosdos pacientes esquizóides, porém, os limi-tes da fala interpretativa podem ser maio-

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res, pois não faz sentido a tarefa de inter-pretar comportamentos dissociados defantasias e afetos congelados. No entan-to, creio que as interpretações podemocorrer com a função de holding verbal,a serviço do manejo da regressão e dainstalação da confiança como passos pre-liminares para o descongelamentoafetivo, para a superação das cisões edissociações, para o contato com o mun-do dos afetos e das fantasias na regressãoe para a instalação subseqüente da capa-cidade do sonho e do espaço de jogo.4) Tudo o que foi dito até aqui, espero,deve ter indicado a importância que atri-buo aos processos de identificaçãoprojetiva e de “enactment” na clínica con-temporânea, e o valor diagnóstico destasmodalidades de comunicação e relaçãoterapêutica.Retomando brevemente, identifico umpólo de adoecimento esquizóide com aênfase nas separações, cisões e dissocia-ções, com o objetivo de manutenção daonipotência infantil pela via da auto-sufi-ciência, gerando freqüentemente os casosde pseudomaturidade. O que se observaem geral são estados de retraimento, rigi-dez, intolerância (disfarçada, muitas vezes,em boa educação e polidez), senso de fu-tilidade e tédio e, muitas vezes, uma de-pressão de caráter autoprotetivo, umaespécie de auto-anestesiamento. Trata-se,em poucas palavras, de um aparelho psí-quico excessivamente fechado tanto paraas comunicações com o mundo externo,com a alteridade externa, como, igual-mente, para as comunicações entre suaspartes dissociadas. O inconsciente pareceemudecido. São casos em que o proces-so de introjeção foi obstruído, em que aincorporação traumática dos maus obje-

tos “entupiu” os canais de comunicação,casos, portanto, em que, como nos apon-ta Bion (1959), as formas brandas, nor-mais e saudáveis do contato afetivo pelavia das identificações projetivas foram in-validadas. Este fechamento é, portanto,de natureza quase exclusivamente defen-siva: muito pouco de Eros está operando.No outro pólo, temos o adoecimento nar-císico com a ênfase na unidade, na nega-ção da diferença, na ausência de limites,na ausência de barreiras, com o objetivode manutenção da onipotência infantilpela via da imersão fusional. O que obser-vamos em geral é a voracidade e a impa-ciência (em relação ao self-objeto especu-lar e ao idealizado), a projeção paranóidedesenfreada, a fúria destrutiva como rea-ção às feridas narcísicas e, diante dos fra-cassos e perdas irremediáveis, a melanco-lia. Nestes casos, é como se o aparelho psí-quico não se houvesse “fechado” e cons-tituído em termos de barreiras de contatocapazes de produzir tanto diferençascomo, também, mediações e trocas.Aqui cabe uma pequena observação late-ral: dada a proliferação atual do discursoacerca e dos procedimentos de controleda chamada “depressão”, acho relevantechamar a atenção para as diferenças en-tre, de um lado, a depressão narcísica emelancólica e, de outro, a depressão es-quizóide, a do tédio e da auto-anestesia.Creio que esta distinção deveria ser maisconsiderada, inclusive em termos medica-mentosos, pois venho observando que osefeitos dos chamados antidepressivos tal-vez variem em função da qualidade e danatureza da “depressão” a ser tratada.Finalmente, como venho sugerindo emdiversos trabalhos (cf. Figueiredo, 2000),na interseção dos adoecimentos narcisis-

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tas e esquizóides, encontramos o pacien-te borderline, com suas angústias e defe-sas características e, principalmente, comas oscilações abruptas entre os pólos esqui-zóide e narcisista. Vale considerar, também,que estas oscilações podem ser tão rápi-das e freqüentes que o analista se verá qua-se que simultaneamente engolfado e ex-cluído diante da vida mental do paciente.

As desordens do caráter(patologias do self) e três hipótesessobre a chamada pulsão de morteO campo acima circunscrito é, grossomodo, o das desordens do caráter noqual as psicopatologias dispõem do cor-po, seus comportamentos e processos,dos afetos e da linguagem de formas dis-tintas do que se costuma encontrar naspsiconeuroses. Nestes distúrbios, o sím-bolo como mediador inter e intrapsíqui-co – mediando entre corpo e mente, en-tre afetos e sentido e entre um e outro,vale dizer, o símbolo como instrumentoda Bindung em todas as suas dimensões,está em crise. Como se disse antes, não éa condição de falante que garante que éde linguagem que se trata quando um pa-ciente abre a boca. Isso quer dizer tam-bém que nem sempre é a transferênciano sentido estrito que teremos como ob-jeto de análise e manejo. A crise da media-ção simbólica, a crise da capacidade deligação, seja na formação de laços sociais,seja na constituição de um aparelho psí-quico capaz de mediação interna, de liga-ção e diferenciação é o que vai caracte-rizar a operação do psiquismo em um re-gime além ou aquém do princípio de pra-zer em que as funções de desligamento edesobjetalização operam com todo vigore são as mais evidentes na compulsão à

repetição, (Green, 2002), embora não se-jam as únicas, como será sugerido adiante.Chegando a este ponto de nossa trajetó-ria, podemos ensaiar uma compreensãomultifacetada destas manifestações dacompulsão à repetição.Sugerimos como primeira hipótese que arepetição, tanto nas identificações proje-tivas maciças como nos enactments con-tínuos, corresponde a manifestações dachamada “pulsão de morte”, isto é, da pul-são em busca de descarga a qualquerpreço por não ter encontrado nos obje-tos primários o apoio (holding) e a con-tinência para o exercício das operaçõesmais básicas de mediação, ligação e sepa-ração. Estas operações, efetuadas no iní-cio da vida pelos “objetos” que se dis-põem a integrar os circuitos pulsionais,são as que permitem o efetivo desenvol-vimento das funções simbólicas e da lin-guagem. Mais tarde, quando estas mes-mas funções estiverem internalizadas, adependência primária em relação aos ob-jetos poderá ser atenuada sem que o psi-quismo se veja lançado no modo de fun-cionamento mental que opera além doprincípio de prazer. Isso é o que teria fi-cado faltando nos pacientes com adoeci-mentos narcisistas e esquizóides significa-tivos. Neles, encontramos, por assim di-zer, a pulsionalidade ela mesma afloran-do, sempre lembrando que a chamada“pulsão de morte” já era identificada porFreud como o que de mais pulsional há napulsão. O que estamos sugerindo é queesta pulsionalidade só se manifesta deforma nua e crua (sem ligação e sem re-presentação possível), quando a pulsãonão encontra em seus objetos a capacida-de de exercerem as funções primáriasque são as bases de todos os processos

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de ligação e, portanto, as condições paraa manifestação de Eros e para a vigênciados princípios de prazer e de realidade. Apulsionalidade enquanto tal, a rigor, nemliga nem desliga; as pulsões pulsam, e já éo suficiente. São os objetos primáriosque, interceptando esta pulsionalidade,podem conduzi-la às ligações ou, por suaausência ou por suas insuficiências, po-dem provocar e disparar as forças dedescarga e do desligamento. Assim sendo,tendemos a concordar com Fairbairn(1958) e também com Green (2000) quevêem na chamada “pulsão de morte” umaespécie de malogro da procura de objetopela pulsão. É só então que a tendência àdescarga e à desobjetalização vem à tona.No entanto – e esta é nossa segunda hi-pótese – não se deve perder de vista ofato de que, mesmo quando, diante dasfalhas ambientais precoces, o psiquismoparece preferir o desligamento, a destrui-ção parcial ou total dos objetos (funçãodesobjetalizante) e a própria morte(como na “criança mal acolhida” descritapor Ferenczi [1929], que se entrega à não-vida com extrema facilidade), nas repeti-ções ainda se encontra uma vitalidadeprofunda. É o contrário do que se passa,por exemplo, na síndrome do hospitalis-mo descrita por Spitz (1965), em que pre-domina a apatia. Portanto, a repetição étambém, mesmo quando reduzida à pul-sionalidade mais primitiva, a testemunhade uma procura de afirmação do mesmoà revelia do outro; pode ser entendidacomo “narcisismo de morte” (Green,1983), mas é, ainda assim, narcisismo,constituição do próprio. É claro que “aafirmação do mesmo à revelia do outro”passa pela destruição do outro – e as des-cargas têm também este sentido, além de

serem formas de redução da tensão –sem que a desobjetalização seja a finali-dade última do processo. No que podeaparecer apenas como auto-aniquilamen-to, há um próprio que se constitui napura repetição do mesmo, sem que algu-ma diferença possa ser admitida, pois elaseria experimentada como desintegração.Onde não se admite diferença, nem eunem outro, nem sujeito nem objeto seconstituem e o paradoxal é que seja nes-te nível que o próprio deva se afirmar,uma auto-afirmação no limite, uma vidain extremis.Finalmente, vamos à terceira hipótese: senas operações da pulsão de morte e nasrepetições que se dão além do princípiode prazer há, certamente, “ataque aoselos de ligação”, aos afetos (-L e -H) e aoconhecimento (-K), conforme nos ensinaBion (1959), há também aí a insistência davida e mesmo a exacerbação daquela “ten-dência psicoterapêutica” que Searles iden-tificava em seus pacientes graves e quepode ser agora reconhecida em sua ver-dadeira natureza: é a repetição como in-sistência (muitas vezes, desesperada) naprocura de um objeto vivo e saudável ena restauração dos objetos danificadosou mortos. A dependência do indivíduoem relação ao ambiente – o extremo de-samparo do indivíduo humano (não só noinício da vida, mas sempre) – é o que oleva desde muito cedo a precisar cuidarde seus “objetos – curando-os e mesmoeducando-os – para que eles possam as-sumir as funções decisivas na sua consti-tuição psíquica e física”. Bebês, e criançasajudam os pais a serem pais e mães a se-rem mães, a segurá-los e a contê-los. Omesmo fazem os pacientes com seus tera-peutas. Quando isso não é possível, seja

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porque se trata de objetos incuráveis enão educáveis, seja porque a capacidadede cuidado do bebê ou do paciente nãoé reconhecida, estes se fixarão patologi-camente nas posições de inveja, ódio ou,por formação reativa, de reparadoresmaníacos, três grandes obstáculos aoprocesso terapêutico. Por isso, como su-gere Searles, é preciso deixar-se curar porestes pacientes para que eles possam serminimamente cuidados, pois, antes demais nada, será apenas na condição deobjetos vivificados ou ressuscitados poreles que poderemos tratá-los. Eles nosensinam e curam para que possamoscurá-los, inclusive curá-los, eventualmen-te, de sua fúria curativa. Talvez possamos,desde este vértice, entender a desobjeta-lização como uma tentativa canhestra dedissolução da “objetalidade” dos objetospara que os aspectos do ambiente capa-zes de proporcionar holding e continên-cia possam ser recuperados em sua di-mensão pré-objetal, condição na qual es-tas funções podem ser efetivamenteexercidas.7 Enfim, a desobjetalização podeser entendida, ao menos parcialmente,como a destruição do objeto, no sentidoestrito, destinada a reconduzi-lo à condi-ção de self objeto.Mas atenção: nossas três hipóteses nãodevem ser tomadas como alternativasmutuamente exclusivas, mas, ao contrário,como entrelaçadas segundo a lógica dasuplementaridade (Figueiredo, 1999). Acompulsão à repetição, comandada pelachamada pulsão de morte (1) reflete nãosó a tendência à descarga e ao zero de

tensão, pela via da destruição das dife-renças e da dissolução de si e do outro,como, em vez disso, (2) uma afirmação emesmo uma preservação in extremis dopróprio; e não apenas isso, como, em vezdisso, (3) uma reiterada procura do obje-to primordial, uma procura que passa,justamente, pela (1) destruição das dife-renças e dissolução de si e do outro, e as-sim por diante... De sorte que o termo“pulsão de morte” acaba se revelandobem pouco adequado e muito restritivopara dar conta de tudo que está implica-do – ainda que de forma contraditória –nos processos de repetição compulsiva.É, aliás, a conclusão a que chegara Fe-renczi em uma nota recentemente desco-berta. Dizia ele: “Nada além de instintos devida. O instinto de morte, um erro (Pessi-mista)”.E as remissões a Ferenczi não são casuaisneste momento. Foi das leituras cruzadasde Além do princípio de prazer e de Tha-lassa (Figueiredo, 1999), fecundadas pelasobservações clínicas, que pude chegar apropor esta concepção da chamada “pul-são de morte”. Descobrir a vida pulsantenos estados de quase-morte, reconhecernos estados-limite uma preservação para-doxal da vida, perceber a dialética entredesobjetalização e restauração do “obje-to” primordial, creio eu, foi a grande liçãoque (intuitivamente) nos legou Ferencziem seus últimos textos (Ferenczi, 1932-33/1985). A clínica winnicottiana com os pa-cientes esquizóides parece-me ser a gran-de herdeira desta tradição, com sua ênfa-se na capacidade de sobrevivência do

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7> É nesta direção que nos parece ir a interpretação de Octavio Souza sobre certos efeitos do consumo

de drogas, focalizando as situações em que elas produzem um movimento regressivo nas relações obje-

tais e favorecem o restabelecimento de formas mais primitivas de relação com o ambiente (Souza, 2002).

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analista às vicissitudes do processo que aanálise deflagra e tem como responsabi-lidade própria sustentar quando se depa-ra com indivíduos que até este momentose mantiveram vivos na mais absolutaprecariedade, seja a do congelamentoafetivo esquizóide, seja a da dissolução eda turbulência narcisista. Encontramostanto em Ferenczi como em Winnicott umcontraponto importante à ênfase na des-trutividade e no ataque aos elos de liga-ção que tanto marcam os pensamentosde Klein e Bion. Creio que ao conceber achamada “pulsão de morte” pelos trêsvértices acima mencionados, reconhecen-do a dimensão da descarga, a do carátermortífero do narcisismo, mas também ainsistência da vida, abre-se um horizonteclínico muito mais promissor, sem que secaia, por outro lado, em um otimismo fá-cil, pois, não há dúvidas de que se trata depacientes difíceis.Por isso, cabe aqui uma pequena obser-vação de cautela. Esta concepção menos“pessimista” da pulsionalidade que aquiestamos elaborando, nas pegadas de Fe-renczi, não nos deve iludir quanto à realdificuldade destes processos terapêuti-cos. O trágico em certas repetições co-mandadas pela chamada “pulsão de mor-te” é justamente o fato de que os três pó-los ou direções se articulam e podem sealternar sem uma real possibilidade detransformação. Um objeto primordial,por exemplo, tão sofridamente procura-do e eventualmente encontrado na figu-ra do analista pode, logo em seguida, vira sofrer um ataque violento seja pela viada fúria narcisista, em que se consuma adestruição, seja pela via do desprezo es-quizóide, em que prevalece o motivo daauto-suficiência.

Na clínica psicanalítica contemporânea,vamos encontrar áreas reconhecidascomo de ausência do pleno funciona-mento dos dispos i t ivos s imb ólicos,como no caso dos pacientes com “pensa-mento operatório” e psicossomáticos (cf.Smadja, 2001, que articula a tradição daescola psicossomática de Paris com a psi-canálise de André Green). Talvez sejamestes exemplos radicais de esquizoidia,embora em tais pacientes pareça mesmonão haver, nem mesmo em estado de dis-sociação e enquistada, uma vida afetiva ede fantasia. Contudo, sugiro como hipó-tese a vantagem de compreendermos es-tes casos a partir do paradigma da esqui-zoidia, posto que se trata, e quanto a issonão parece haver dúvidas, de uma pato-logia do self . Nesta condição, que englo-ba os adoecimentos narcisistas e os esqui-zóides, penso que os psicossomáticos seaproximam muito mais da descrição dopaciente esquizóide, com sua mortíferaestabilidade (cf. Bromberg, 1998) do quedo narcisista, com suas fúrias, dores e amo-res exaltados.Mas também nos deparamos, com gran-de freqüência na clínica contemporânea,com os “maus usos dos símbolos” nos pa-cientes narcisistas e esquizóides em geral.Bion (1963) com sua Grade nos ensinou adistinguir entre o grau de elaboração deum pensamento e a modalidade funcionalde seu uso. Símbolos muito sofisticadospodem ser usados para tarefas muitopouco nobres, como a evacuação, oumuito perniciosas nos planos intra e in-terpsíquico, como o controle puro e sim-ples da mente alheia: podem ser usadospara matar e para morrer, embora conti-nuem também servindo para manter avida nos extremos e nos limites.

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Quanto à incidência na contemporanei-dade destas patologias do self, marcadaspelo não-encontro dos objetos em suasfunções básicas – mais do que pela per-da dos objetos de satisfação, o que é o ca-racterístico das neuroses – cabem algunsassinalamentos, de forma apenas sugesti-va. Sugerimos que se considere a preca-riedade dos modos que a sociedade, asinstituições e a família oferecem hoje emdia para proporcionar aos indivíduoseste milagroso encontro da pulsão comos objetos primordiais, capazes deholding e continência. Em contrapartida,a proliferação de “objetos” excitantes ecalmantes (entre os quais, mas não só, asdrogas) dá o testemunho pelo avesso daausência a que estamos aludindo. Trata-se de um universo cultural cada vez maisrepleto de estímulos e cada vez menosapto a fazer ligação, efetuar separações,mediar e dar sentido (cf. Figueiredo,2001), cada vez mais repleto de sexo e vio-lência, por exemplo, e menos regido por Eros.Uma cultura do traumático.

FinalizandoDepois desta breve tentativa de discrimi-nar as modalidades de relações terapêu-ticas em que corpo, afeto e linguagemocupam posições muito diferentes, con-vém reafirmar o fato, tão facilmente ob-servado na clínica, de que as identificaçõesprojetivas e os enactments podem ser en-tendidos como dimensões colaterais datransferência. É sempre bom que o ana-lista cultive sua escuta e monitore suas in-tervenções levando em conta este conjun-to de falas, afetos e manifestações corporais.Mas é preciso ir além: quando as identi-ficações projetivas e os enactments assu-mem uma certa proeminência, eles po-

dem funcionar como obstruções à trans-ferência stricto sensu. Seja quando as di-mensões colaterais são muito fortes, ge-rando o que muitas vezes entendemoscomo “transferências intensas” – com aprojeção de superego arcaico sobre oanalista em neuroses de transferênciagraves – seja quando as identificaçõesprojetivas são maciças em pacientes nar-cisistas e os enactments são contínuos empacientes esquizóides, ou ainda, o que éa situação mais difícil, quando identifica-ções projetivas e enactments mostram-sealternados ou simultâneos em pacientesborderline, em todos estes casos verifica-mos e sentimos na pele e na alma os ata-ques à função analítica, sendo a psicaná-lise, afinal de contas, uma talking cure. Ébem possível que nestas ocasiões o ana-lista sinta-se como uma vítima, ele mes-mo, de um soul murder.Sofremos como que ataques às reservas(Figueiredo, 2000a), à mente própria doanalista (Caper, 1997), ou à sua linguagem(Fédida, 1992). Retomando o que disse-mos na abertura, podemos sugerir quesão, antes de mais nada, ameaças à con-tratransferência primordial: dificuldadesimensas para a preservação e reposiçãoda contratransferência primordial quepode, neste momento, ser concebidacomo uma “reserva de alma”. Nesta reser-va de alma residem nossas teorias, nossosdesejos, nossa capacidade de pensar, fa-lar, simbolizar e sonhar. Mas aí reside,fundamentalmente, nossa capacidade deser afetado e interpelado pelo sofrimen-to. É, portanto, o que de mais preciosopodemos oferecer e, como disse Caper, seconseguirmos preservar e oferecer estacondição em meio às vicissitudes e tem-pestades de uma análise difícil, mesmo

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que o paciente não melhore, não teremosexistido em vão. Creio que se formos ca-pazes de reconhecer o triplo sentido dis-to que, em um primeiro momento, senti-mos como puro ataque, estaremos certa-mente mais capacitados a este trabalho.Assim, ao menos, é o que venho experi-mentando em minha atividade clínica eque, de uma forma certamente ainda mui-to tosca e carente de maiores desenvolvi-mentos, procurei transmitir a vocêscomo matéria para pensar.

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Artigo recebido em dezembro/2002

Aprovado para publicação em março/2003