Transferência Somática A dinâmica formativa do vínculo terapêutico

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    SEO ARTIGOS PARA PROFISSIONAIS

    Transferncia Somtica: A dinmica formativa do vnculo teraputico*Artigo publicado pela Revista Hermes do

    Instituto Sedes Sapientiae, So Paulo, nmero 6, 2001, p 107-123.

    Artur Thiago Scarpato**

    Na terapia nos movemos entre sensaes, emoes, posturas, palavras,imagens, etc. Neste campo compomos cartografias junto com o cliente, tentativasde dar voz aos afetos, dar novas formas ao mundo, falar dos temores secretos,

    dos desejos, das dores profundas, de explorar caminhos....

    Criamos na terapia um espao de intimidade, intimidade no no sentido decontato com o conhecido, familiar, mas um espao singular de aberturaprotegida pelo vnculo, onde podemos deixar vir o desconhecido em ns, oestranho, o novo.

    O vnculo propicia um ambiente favorvel para enfrentar as muitas adversidades,para suportar nveis altos de angstia e falta de sentido. O vnculo um doselementos bsicos do processo teraputico.

    O vnculo teraputico tambm um campo de experimentao de modos novosde vinculao, de diferenciaes em relao aos padres conhecidos e deconfrontao com os modos habituais.

    Cartografar o territrio clnico nos permite encontrar algumas coordenadas paranavegar com mais segurana em direo a processos mais consistentes de vida.A funo deste texto explorar este territrio a partir da influncia do pensamentoformativo de Stanley Keleman. Problematizar alguns aspectos da dinmicasomtica do vnculo teraputico, notadamente a instrumentalizao das formassomticas do terapeuta como recurso clnico.

    (incio da pg 108)

    IDENTIFICAO, COMPLEMENTARIDADE E ALTERIDADE

    Podemos observar quatro modos de percepo dos afetos da relao teraputicaque indicam os diferentes lugares ocupados pelos membros neste espaodinmico.

    Vamos falar mais especificamente destes lugares a partir da perspectiva doterapeuta.

    1 - Eu sou o outro:

    Os sentimentos do cliente podem ser percebidos pelo terapeuta em si mesmo,num fenmeno de identificao.

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    Uma forma de compreender o cliente saber se colocar em seu lugar. Sair denossa posio de outro e compartilhar o olhar, ir junto. Buscar sentir o que ocliente sente, pensar o que ele pensa, desejar e temer como ele. Assim, antes queele fale algo, voc j sentiu, numa identificao de formas somticas eexperincias. Sentir o que o cliente sente nos permitir compartilhar a sua dor ecompreender o seu mundo. Muitas vezes j estamos nesta sintonia e s ento nos

    percebemos nela a partir da dinmica vincular. Em outros momentos podemosimitar o cliente, buscando nos aproximar de sua vivncia, repetindovoluntariamente posturas e formas somticas, num modo ativo e rico de colocar-se em seu lugar e compreender o seu mundo.

    O cliente pode tambm fazer o terapeuta se sentir como ele. Assim, por exemplo,um cliente est falando de situaes onde se sentiu sem espao, invadido, e aomesmo tempo fala ininterruptamente, no deixando muito espao para o terapeutaintervir, limitando o espao do terapeuta na sesso. O cliente faz, de algum modo,com que o terapeuta se sinta sem espao na sesso, invadido, como ele se sente.

    2 - Eu para o outro:

    O terapeuta pode ocupar um lugar decomplementaridadeaos afetos(pg 109) docliente, ocupando um lugar em sua dinmica (do cliente).

    Podemos perceber o modo do cliente em relao a ns e observar a nossatendncia de resposta de complementar o seu funcionamento.

    Esta uma experincia de complementaridade, matriz de aspectos importantes ddinmica transferencial e que ser mais desenvolvido adiante no texto.

    3 - O outro para mim:

    O terapeuta pode perceber o que a situao despertou em si de contedospessoais (do terapeuta), com o cliente ocupando um lugar na dinmica doterapeuta.

    O cliente pode ser o nosso outro. Podemos nos perceber paralisados, porexemplo, e explorando isto vemos o cliente ocupando um lugar em nosso teatrode dores pessoais. Explorando as nossas reaes, nossos esboos de respostasfrente a ele, podemos aprender sobre ns mesmos. E podemos compreender ocliente a partir da nossa dor, o que pode nos permitir estar com ele de um outro

    modo. a contraparte da complementaridade, agora a partir do processoformativo do terapeuta.

    4 - Eu e o outro:

    O cliente vivido comoo outro, dois mundos diferentes.

    Percebendo o cliente de fora podemos apreender este outro singular porobservaes, descries, um olhar mais diferenciado sobre a pessoa nossafrente. Na experincia da alteridade nos aproximamos do limite de apreenso doque um definitivamente outro. Neste momento podem surgir experincias de

    estranhamento, susto, distncia, respeito e o incio de um dilogo sujeito a sujeito,no mais sujeito - objeto.

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    sentir-se e ser o outro do cliente na relao, sentir que o cliente seja o outro de siou ainda viver a experincia da alteridade.

    (pg 110)O vnculo teraputico ocorre dentro de um continuum que vai daidentificao alteridade.

    Transitamos entre estes diferentes lugares na terapia: sentir junto, ocupar lugarescomplementares, diferenciar-se destes lugares, viver a alteridade. Qualquer umadestas posies esclarece elementos importantes do vnculo teraputico. A suadiscriminao e operacionalizao um dos recursos preciosos da terapia.

    Em cada um destes modos de relao estamos envolvidos e organizadossomaticamente de um modo diferente, o que implica em nveis diferentes devnculo e diferentes qualidades de presena.

    O CORPO A CORPO DO VNCULO

    A relao teraputica uma interao corpo a corpo. No sentido de que ocliente organiza um corpo frente ao terapeuta e este por sua vez responde comoutro corpo.

    As posturas, tenses e modulaes das formas somticas explicitam adistribuio da excitao emocional nos corpos que esto em relao naquelemomento, naquele campo de afetos. H um dilogo somtico anterior ao dilogoverbal.

    Um corpo ativa algo em outro corpo, um corpo convoca o outro corpo a interagirde um determinado modo, e este por sua vez responde a partir da sua realidade

    somtica, das suas camadas somticas mais ativas, seu repertrio de formas,suas experincias.

    Os corpos dialogam numa linguagem que lhes prpria, uma linguagem deformas somticas, camadas embriolgicas, tnus de tecidos, toda umafisicalidade bsica e constitutiva da vida afetiva.

    Numa determinada situao, por exemplo, o terapeuta pode sentir seu corpo searredondando, seus braos se ampliando como se fossem pegar o cliente no colo,e observa neste momento que o cliente est organizado numa forma somticaonde se faz pequeno, evocando no (pg 111) terapeuta esta forma cuidadora. Em

    outra situao, por exemplo, o terapeuta sente seu corpo contrado, diminudo,inseguro e percebe que esta sensao advm de uma atitude do cliente, que estcom seu corpo inflado e com olhar e atitude de intimidao.

    As formas somticas e a excitao emocional do terapeuta explicitam o seu lugarno campo da relao, os modos de relao daquele cliente com o mundo edaquele terapeuta com aquele cliente.

    Esta experincia se torna bastante acessvel quando o terapeuta experimenta orecurso de posturar volitivamente os efeitos do encontro sobre si, dandomais nitidez s afetaes e s atitudes organizadas no vnculo.

    Com este recurso possvel acompanhar o dilogo infraverbal das formassomticas, ajudando a explicitar os afetos, a dinmica, a criar um mapa doterritrio que permite voltar a ele, orientar-se e influenciar os processos.

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    Assim, trazemos para o plano visvel, consciente, o que se passa num plano desensaes, afetos, fluxos e nuances. Neste campo, o terapeuta usa seu prprio corpo como referencial de orientaoem relao ao que ocorre na terapia e na relao com o cliente. O corpo doterapeuta pode ser visto como um dos palcos onde se desenvolve a sesso.

    Da a importncia fundamental de uma boa discriminao do prprio corpo -sensaes, propriocepes, afetos - para o terapeuta navegar bem no universoda sesso.

    O terapeuta um intrprete de si mesmo, dos efeitos daquele encontro em suasubjetividade corporificada.

    Quanto maior a capacidade do terapeuta em se permitir ser perpassado por fluxosafetivos na relao teraputica, maiores as possibilidades de desdobramentos douniverso existencial dos clientes na terapia.

    (pg 112)H uma certa dana, um dilogo de corpos durante a sessoteraputica e podemos pensar como podemos acompanhar esta dana, aprenderesta linguagem danante, interativa e formativa e poder instrumentalizar estadimenso do vnculo como um recurso para a clnica.

    TRANSFERNCIA, PASSADO E FUTURO

    Transferncia e contratransferncia so fenmenos do vnculo que fazem umgrande sentido a partir do dilogo das formas somticas.

    A transferncia uma experincia de complementaridade na relao teraputica.

    um fenmeno de vinculao onde o modo de ser de algum chama o co-participante a ocupar um lugar complementar numa certa dinmica.

    H um campo emocional criando os lugares a partir do encontro. Assim, por exemplo, um cliente pode evocar um pai no terapeuta. Oscomportamentos, modo de falar e se mover do cliente evocam no corpo doterapeuta um modo paternal. O terapeuta comea a se perceber com sentimentose esboos motores de atitudes paternais.

    Por um lado, isto poderia dizer do passado daquele cliente, da reativao de suarelao com o seu pai. A transferncia, neste sentido, poderia ser pensada como

    uma transposio de processos relacionais passados, uma transferncia detempo e lugar dos personagens de um drama.

    Porm, mais do que isto, a transferncia contm a histria presentificada, ela areativao recorrente de modos e formas somticas que se construram a partirda relao com um pai. Mais do que chamar o pai, o que se ativa a memria somtica de um modode existncia, ou seja, uma forma somtica.

    Esta forma somtica, este modo de existncia, se criou a partir das experinciascom um pai, determinando um modo de ser com uma certa configurao

    somtica. No vnculo com o terapeuta aparece a histria(pg 113)que sepresentifica nas formas somticas.

    O que se repete uma dinmica vincular, um modo de existncia, um repertrio

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    determinado de formas somticas, muitas vezes fixados e paralisados pelasexperincia que a pessoa no pde assimilar em sua vida. Estas formassomticas cristalizadas interrompem o processo formativo e levam uma pessoa aresponder s situaes diversas com um repertrio limitado de comportamentos,com modos reiterantes de sentir, pensar, perceber e agir.

    A repetio destes modos somtico-existenciais na terapia, por outro lado, abre apossibilidade de confronto, conscincia e diferenciaes dentro do processo devida. Permite a desorganizao de comportamentos limitantes e a emergncia denovas formas somticas a partir do vnculo teraputico. Uma oportunidade de sairde um labirinto armado no passado, que paralisa o andamento do futuro.

    AS VERTENTES DE FUTURO

    O vnculo contm tambm uma funo formativa, de gestao de novos territriosexistenciais.

    Um cliente, por exemplo, suscita no terapeuta coisas prximas do lugar de umirmo mais velho, mais formado, que possa ajud-lo a entrar na vida adulta commais recursos.

    Cabe ao terapeuta poder ocupar este lugar neste campo de gestao de ummodo de existncia, permitindo a passagem de um momento ao outro doprocesso formativo do cliente, assim como cabe, ir desocupando este lugar emoutro momento, quando este modo j no favorece mais o processo do cliente.

    No vnculo teraputico o terapeuta vai ocupar diferentes lugares para o cliente, deacordo com o que esteja em evidncia no processo formativo do cliente naquele

    momento.

    A partir da percepo dos afetos, atitudes e lugares da relao, o (pg 114)terapeuta pode reconhecer os tipos de vnculo que o cliente estabelece, o que eleformativamente est precisando.

    O vnculo tem assim uma funo formativa, de ajudar na desconstruo deformas desatualizadas e na construo de formas corporaiscontemporneas.

    No processo vincular h uma necessidade daquele lugar do outro, daquele

    funcionamento do outro para que o processo do cliente possa ser gestado ematurar. Acompanhar ao longo da terapia o processo vincular fornece umareferncia importante das vrias fases do processo teraputico e do processo devida do cliente.

    O vnculo teraputico um laboratrio onde novas formas podem emergir,diferenciaes dos padres habituais de comportamento, um lugar deexperimentao e maturao vincular.

    O vnculo, portanto, pode tanto apresentar uma reedio de uma dinmicarelacional cristalizada quanto criar uma dinmica necessria naquele momento da

    vida da pessoa. O vnculo assim tanto uma derivao do passado quantouma vertente de futuro. Este processo movido pelo impulso formativo, a forade criao de novas formas em direo atualizao do passado e composio do futuro.

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    O CAMPO GESTATIVO VINCULAR

    Trabalhando com o cliente, podemos ir aprendendo sobre o seu funcionamento,seu modo de serhabitual e o quanto isto restringe a sua vida. Observamos suasmodalidades de relacionamento com o mundo, seu lugar na teia de relaespessoais, seus modos de dar e receber, mandar e obedecer, pedir e tomar, agir e

    esperar, etc. Podemos ajudar a esclarecer estes modos e estar juntos paraampliar os seus limites e criar novos caminhos de vida.

    necessrio discriminar as sutilezas do vnculo, as variaes que permitemidentificar que um cliente est buscando aceitao, outro (pg 115) orientao,outro confronto e outro ainda, testando confiana. A cada momento do vnculo hquestes diferentes sendo maturadas.

    O terapeuta ocupa um lugar no mundo do cliente e este ocupa um lugar nomundo do terapeuta. H um encontro do processo formativo do cliente com oprocesso formativo do terapeuta, criando um processo formativo daquele vnculo,

    numa inter-relao naquele espao clnico.

    Um elemento singular do espao teraputico que o terapeuta est l parafavorecer o processo formativo do cliente, para instrumentalizar o vnculo comorecurso de compreenso e interveno na terapia.

    A RESPOSTA TERAPUTICA

    Muitas vezes um cliente no percebe os tipos de vnculo que estabelece e quecontribuem, por exemplo, para que vrias coisas em sua vida acabem dandoerrado.

    Por exemplo, uma cliente veio para primeira entrevista contando histrias derejeio, de no ser aceita pela famlia, de ser abandonada pelos amigos, etc. Aolongo da entrevista, ela foi provocando uma sensao muito ruim ao terapeuta,fazendo com que este sentisse vontade de mand-la embora. Aquela pessoaestava repetindo com o terapeuta, j na primeira entrevista, uma dinmica que elarepetiu muitas vezes em sua vida e da qual no conseguiu se diferenciar. Elaestava levando o terapeuta a querer rejeit-la tambm. Caso o terapeuta fosseapenas re-agir ao seu sentimento, a teria mandado embora, dando qualquerdesculpa de que no poderia atend-la e repetindo o que acontecia no cotidianodaquela mulher. Ela sairia do consultrio com as suas crenas confirmadas, seu

    sofrimento aumentado, seu comportamento reeditado.

    Porm o terapeuta no est na situao numa posio ingnua, apenasinteragindo com o cliente, mas numa posio de observao e explicitao doque est acontecendo, atento aos fenmenos em si prprio e no cliente, nestecampo que vai se formando.

    (pg 116) Percebendo em seu corpo as tendncias ao, porm retardando are-ao automtica, o terapeuta pode discriminar o que o move e o que sente eassim esclarecer o funcionamento daquele cliente: em que posio o coloca, secoloca, que afetos circulam, etc.

    O que caracteriza a resposta teraputica a capacidade do terapeuta em contera sua reao, discriminar o que sente e eventualmente apontar para o cliente asua atitude.

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    Devolver para o cliente a percepo sobre a dinmica do vnculo, como no casodesta mulher, abriria uma porta para ela perceber seus modos frente ao mundo,iniciar diferenciaes frente ao seu prprio funcionamento, trazendo de volta parasi o que ela s via projetado nos outros, etc.

    Quando um cliente pode discriminar como v o terapeuta, que lugar este est

    ocupando naquele momento para o cliente, ele est abrindo um espao paraaprofundar a auto-percepo e dialogar com suas formas, percepes e afetos.

    O auto-dilogo um dos elementos centrais do processo teraputico formativo,onde a pessoa vai se tornando capaz de identificar as prprias formas somticase suas relaes com a sua experincia subjetiva. A partir da ela pode aprendermodos de interagir consigo mesma e influenciar os seus processos internos,trabalhando com as prprias formas, dando incio a um processo de participaoativa na construo de sua existncia.

    COMUNICAO DE CAMPO

    Algumas vezes na terapia corre-se o risco do cliente ser atravessado por umexcesso de excitao e insights que no so produtivos porque ultrapassam acapacidade elaborativa da pessoa naquele momento.

    Por exemplo, em certa sesso em que caminhavam em terreno novo na terapia, oterapeuta sentiu uma certa presso que forava as suas costas contra a suapoltrona, na altura do diafragma. Acentuando voluntariamente (pg 117) estapresso, percebeu organizando-se nele uma forma somtica de conteno queenrijecia as suas costas e lhe dizia algo como: pare a, no v mais, deixe eleelaborar o que j tem, v devagar. Enfim, estava sendo dito ao terapeuta o limite

    da capacidade de assimilao daquele cliente naquela sesso, o que pde serconfirmado ao devolver ao cliente algumas observaes sobre como estavavivendo aquele momento.

    Este um exemplo de comunicao de campo, onde o terapeuta e o clientetrocam mensagens no verbais que atingem um ao outro em sua corporeidade ese afetam mutuamente.

    Em muitos momentos na terapia no possvel falar em minhas sensaes,mas apenas de sensaes em mim. Os afetos, sensaes e modulaes daforma so elementos do campo, do entre, e s possvel entend-los a partir

    daquele campo formativo e seus processos.

    O campo da relao teraputica extremamente rico de afetos e sentidos, deelementos visveis e invisveis. A relao teraputica atravessada por afetos dediversas ordens, o que faz do espao teraputico, o espao do sentir pornatureza. O acolhimento do sentir uma das marcas maiores deste espao, ondepodemos receber em ns mesmos as sensaes e sentimentos mais obscuros,sutis, indiretos e aceitar a vida em ns e em relao a ns.

    Espao do sentir ilimitado mas do agir cuidadoso. Esta singularidade permite umagrande explorao de muitas vertentes do existir lideradas por um compromisso

    tico de ajuda.

    Os afetos e sensaes vividos pelo terapeuta na sesso podem ser grandesorientadores sobre a dinmica do cliente. Assim, se um terapeuta est se

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    sentindo desconfortvel na sesso, ausente, com sono, etc., deve perceber o queaquela reao diz daquele cliente naquele momento da sesso e de sua terapia,ao invs de logo pensar que a questo sua, pessoal do terapeuta, que nodormiu direito, comeu algo que no lhe fez bem, etc. No que estes fatos noparticipem da sesso, determinando em parte a qualidade de presena doterapeuta, mas focar logo sobre (pg 118) estes eventos externos sesso pode

    desviar o terapeuta de algo muito importante que est se desenrolando naquelemomento.

    Numa determinada sesso, por exemplo, um cliente falava de sua inquietaopelo "momento agitado" que vivia em seu trabalho. Seu modo de falar, no entanto,no expressava muito de agitao, alis, era de um tom mais contido do queagitado. Ao longo da sesso, o terapeuta foi sentindo um certo cansao. Para oterapeuta, este cansao comeou a representar idias como: estou cansado deter atendido muito ao longo deste dia, estou trabalhando muito, etc.. O terapeutaestava vendo neste cansao algo em si prprio e isto o deixava mais distante docliente, um pouco ausente da sesso e tomado pelo seu cansao. At que o

    terapeuta ponderou se este cansao tambm teria algo a ver com aquele cliente.Ao sugerir ao cliente algo relacionado a cansao, este comeou a falar dedesnimo, e veio tona uma situao de depresso que j tinha alguns anos eque no tinha surgido ainda naquele incio de terapia. Essa depresso mascaradamostrou-se depois como uma das questes centrais da terapia daquele cliente.Assim, mesmo sensaes do terapeuta que podem parecer simples, como umacansao, precisam ser observadas em suas possveis relaes com o estado docliente e do vnculo deste com o terapeuta.

    AS FORMAS SOMTICAS SO TERRITRIOS EXISTENCIAIS

    Podemos apreender a dinmica da sesso estando atentos aos efeitos em nossocorpo daquilo que est ocorrendo.

    Segundo Nina Bull, toda ao precedida por uma pr-organizao motorapreparatria. Esta pr-organizao, que Keleman denomina de forma somtica,permite os arranjos somticos necessrios para a construo de todocomportamento.

    As formas somticas organizam a presena, a resposta s afetaes e as aessubsequentes. Por exemplo, quando o terapeuta tem a forma de (pg 119) seucorpo se arredondando frente a presena do cliente, organizando em seu corpo

    uma atitude acolhedora, esta forma estaria preparando um comportamento deacolhimento, com suas respectivas falas, gestos, sentimentos, assim comodeterminando a sua percepo sobre aquele cliente.

    Porm, se o terapeuta retarda esta reao automtica de acolhimento,observando em seu corpo os estados produzidos pela forma, pode discriminar asatitudes organizadas, os afetos presentes e compreender a dinmica do vnculo,antes de agir e falar. Assim ele desautomatiza o processo para operacionaliz-lo terapeuticamente.

    As formas somticas ocorrem antes da percepo consciente, pois primeiro

    respondemos internamente e ento nos damos conta destes efeitos seprocessando em ns.

    Quando uma forma somtica no se realiza imediatamente em ao, possibilita a

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    emergncia da auto-percepo mais discriminada. Da a importncia de se inibir eretardar voluntariamente a ao para clarear os afetos e os sentidos daexperincia.

    As formas somticas so organizaes motoras que criam os "modos de lidar"com os acontecimentos, so territrios existenciais organizados somaticamente.

    As formas somticas so a prpria construo dos territrios existenciais.

    Algumas formas somticas vo se estabilizando com o passar do tempo, criandoalguns padres motores que expressam os "modos de ser" mais caractersticosde cada um. Estas "formas duradouras" tambm nascem, fenecem e setransformam para dar conta de experincias em diferentes fases de vida.

    Os territrios existenciais tem linhas de tempo prprias, no sentido de que hformas mais duradouras e formas mais efmeras. As formas somticas secomplexificam e se diferenciam a partir dos desafios dos encontros.

    (pg 120) Certas formas somticas podem se paralisar e perpetuar pelaexperincia do excessivo. Asexperincias excessivas ultrapassam a capacidade"de lidar" de um territrio existenciale levam cristalizao de formas somticas,criando modos mais estereotipados de comportamento, produzindo estagnaesno processo formativo de criao contnua de formas somticas.

    Estes estados de paralisia so os estados recorrentes na clnica em busca derecuperar o processo formativo de diferenciao, desterritorializao ereterritorializao contnuos e necessrios.

    O olhar para o processo formativo explicita quais formas somticas esto se

    criando neste momento da vida do cliente, quais formas no do mais conta dosacontecimentos, que conflitos de formas e estratgias de vida esto presentes equais experincias excessivas paralisaram o processo de vida e esto impedindoa criao de novas formas e respostas frente s novas situaes.

    DESAFIOS FORMATIVOS AO TERAPEUTA

    Cada terapeuta vive a situao de atendimento a partir de sua realidadeformativa, do seu repertrio de formas somticas, dos seus modos de lidar comas situaes e vnculos. Um terapeuta vai sempre encontrar alguns modos maiscaractersticos do seu jeito de estar com seus clientes, sempre haver aquelas

    atitudes mais "naturais" para aquele terapeuta, a partir de seu corpo, suas formase sua histria.

    Cartografar seus modos de clinicar, suas posturas corporais que se repetem nassesses, pode ser um recurso valioso para um terapeuta acompanhar e poderinfluir em seus corpos de terapeuta.

    Na relao com o cliente, o terapeuta tambm cresce. O terapeuta solicitado ase deixar ser afetado pelo cliente, para poder lev-lo por caminhos novos, ajud-lo a crescer, a aceitar novas afetaes e buscar novas experincias.

    (pg 121) Lidar com estas experincias do cliente traz tambm desafios forma doterapeuta. Ele precisa caminhar para que o cliente caminhe. Por isto algunsprocessos teraputicos paralisam num ponto em que o terapeuta tambmparalisou.

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    O corpo do terapeuta se coloca na terapia com suas preferncias, seus modosdominantes, seus limites de tolerncia, seu momento formativo.

    Assim um terapeuta de algum modo tambm escolhe seus clientes. Isto vai poderexplicar por exemplo, porque um terapeuta em diferentes momentos de suaclnica se d conta que tem um nmero X de clientes com uma mesma temtica

    tal e alguns anos depois, por exemplo, tem um nmero Y de clientes com outratemtica predominante. Estas so temticas do processo pessoal do terapeuta,vividas e elaboradas no processo clnico com os seus clientes. O terapeutatambm chama clientes com tal e tal perfil. So estes clientes que so mandadospelo "acaso". Entre outras questes envolvidas, so estes clientes que ficam apartir das entrevistas iniciais. A terapia um desafio tambm ao processoformativo do terapeuta.

    CONCLUSO

    Atender em psicoterapia encontrar um modo de estar ao lado do cliente, buscar

    uma compreenso de seu universo, esclarecer o seu mundo, as suasdificuldades, reconhecer com ele os modos habituais, as estratgias conhecidas,cartografar o processo formativo, o que no d mais conta dos acontecimentos, oque est em vias de surgir, as transies em andamento e ajud-lo a buscarnovos modos de viver, criando novas experincias, gerenciando formas, matrizesde novos comportamentos.

    As formas somticas so relacionais. A forma de cada um vai construindo o outroe neste processo vai surgindo um dilogo de formas somticas. Trabalhamosdiscriminando e atuando sobre estes processos.

    Toda forma somtica vincular, toda forma somtica pressupe um outrocomplementar. Sendo assim, querendo ou no, percebendo ou(pg 122)no, oterapeuta sempre chamado a uma presena somtica em relao sformas do cliente.

    Atentar para os efeitos da presena somtica do cliente em seu corpo, permite aoterapeuta, entre outras coisas:

    - Reconhecer o sentido da experincia interna do cliente pelo efeito deste naorganizao somtica do terapeuta.

    - Reconhecer o tipo de vnculo que est se estabelecendo naquele momento doprocesso teraputico e o sentido formativo deste vnculo.

    O terapeuta aprende a conter os afetos da relao para devolver de formamais organizada para o cliente.

    Este um processo de instrumentalizaoda relao teraputica.

    A relao teraputica uma interao de afetao contnua, onde cliente eterapeuta esto se afetando mutuamente. O terapeuta pode reconhecer os efeitosdeste campo de afetao em seu corpo e assim cartografar os processos em

    andamento e operacionalizar o que percebe dentro do processo formativo eclnico no espao privilegiado da terapia.

    A terapia uma incubadora de processos formativos.

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    BIBLIOGRAFIA:

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    Keleman, S. Corporificando a Experincia, Summus, So Paulo, 1995 Keleman, S. Amor e Vnculos, Summus, So Paulo, 1996 (p. 123) (pg 123)Keleman, S. Mito e Corpo, Summus, So Paulo, 2001 Rolnik, Suely, Cartografia Sentimental, Estao Liberdade, So Paulo, 1989

    Notas:

    * Este texto pode ser parcialmente reproduzido desde que se faa a referncia doautor e da fonte. (p.___) Os parnteses marcam o incio da pgina na publicaoimpressa, para fins de citao.

    * * Autor: Artur Thiago Scarpato : Psiclogo clnico (PUC SP). Mestre em Psicologia Clnicapela PUC SP. Possui quatro especializaes na rea de Psicologia: em Psicologia da Reabilitaopelo Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da USP, em Cinesiologia Psicolgica peloInstituto Sedes Sapientiae, em Teoria e Tcnica Reichiana pelo Pulsar - Centro de Estudos

    Energticos e Especializao pelo Centro de Educao Somtica Existencial. Trabalha emconsultrio particular com psicoterapia individual e de grupo. autor de diversos artigos na rea.

    Artur Scarpato - Psicologia ClnicaRua Artur de Azevedo, 1767

    Pinheiros So Paulo SP(Prx. da Av. Rebouas)

    Fone (0xx11) 3067 5967

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    Modo de citao sugerido: Scarpato, Artur. Transferncia Somtica: A dinmica formativa do vnculo teraputico, RevistaHermes, So Paulo, nmero 6, 2001, p. 107-123.

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