Tragédia em Mato Grosso - cbo.com.br · sional quando a dor se torna in- ... verificaram que meu...

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JOTA ZERO 10 Quatro pessoas foram hospitaliza- das no Hospital Regional de Cáceres/MT, na primeira quinzena de dezembro, aco- metidas por uma infecção decorrente de cirurgia de catarata. Todas elas foram ope- radas em outubro deste ano por médicos estrangeiros que estão atendendo na ci- dade de San Mathias, na Bolívia, locali- zada na faixa de fronteira, a 80 km de Cáceres. Tragédia em Mato Grosso A equatoriana Paola Tereza Ponce Banalcazar e o boliviano Fernando Dias Maranon, médicos formados em Cuba, foram detidos pela Polícia Federal no final de outubro deste ano, quando atendiam no município de Cáceres/MT, e autuados por exercício ilegal da profissão, uma vez que não apresentaram documentos que comprovassem a legalidade da situação profissional perante o Conselho Federal de Medicina. Na foto, eles faziam a triagem de pacientes no distrito do Caramujo, a 30 km de Cáceres. Muitas pessoas de lá foram encaminhadas para a cirurgia de catarata, realizada na Bolívia. Eles operam no único hospital da cidade. A cirurgia gratuita despertou o interesse de muita gente. Embora não haja uma estatística confiável, a estima- tiva é que mais de 3 mil pessoas tenham sido operadas, a maioria de catarata, e outras de ptirígio. Em Cáceres, as pes- soas estavam sendo orientadas por li- deranças evangélicas e comunitárias, que inclusive cuidavam de fretar ônibus e organizar caravanas levando os pacientes para a cirurgia. No final do mês de novembro, come- çaram a surgir pacien- tes com complicações decorrentes da cirur- gia. Os quatro oftalmo- logistas que atuam em Cáceres confirmam ter atendido pessoas com endofitalmite, uma in- fecção considerada bastante grave. Quatro delas passaram por ci- rurgia de evisceração, com a retirada do glo- bo ocular e colocação de prótese. Elas foram operadas no Hospital Regional de Cáceres pelo oftalmologista Odenilson José da Silva, através do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ele, os casos continuam a aparecer, e há infor- mações de pacientes que segui- ram para a capital, Cuiabá, em busca de atendimento. “Essas pessoas estão procurando aten- dimento tardiamente. Tentam an- tes tratamentos alternativos, até mesmo com remédios caseiros. Só procuram atendimento profis- sional quando a dor se torna in- suportável”-afirma o médico. Os oftalmologistas de Cáce- res, tão logo viram o que estava acontecendo, procuraram as au- toridades locais para alertar so- bre os riscos deste tipo de atendimento. O Hospital de San Mathias é um local acanhado e sem a estrutura adequada a este tipo de procedimento cirúrgico. “Enviamos ofícios ao Conselho Brasilei- ro de Oftalmologia, ao Conselho Fede- ral de Medicina, à Polícia Federal. Mas eles estão atendendo em um outro país e as pessoas têm o direito de ir e vir. Nin- guém está sendo forçado. Por isso tenta- mos apenas alertar”- explica Odenilson Silva. A equipe, formada por 25 médicos bolivianos, equatorianos e cubanos, che- gou na região há cerca de três meses, e começou a realizar um trabalho de tria- gem nas cidades brasileiras localizadas na fronteira, buscando pacientes para a cirurgia, que é oferecida gratuitamente. Esses médicos fazem parte da “Opera- ción Milagro”, um convênio assinado en- tre Cuba e Bolívia. São médicos forma- dos em Cuba e fazendo especialização. No final do mês de outubro, um médico e uma médica que fazem parte da equipe foram detidos pela Polícia Federal quando atuavam no distrito do Caramujo, a 30 km de Cáceres. Eles es- tavam atendendo em uma sala dos fun- dos de uma igreja evangélica, fazendo a triagem das pessoas para encaminha- mento cirúrgico. Na delegacia, não apre- sentaram documentos que comprovas- sem a legalidade profissional junto ao Conselho Federal de Medicina e foram autuados por exercício ilegal da profis- são, tendo que assinar um termo de com- promisso de que voltarão a se apresen- tar à justiça quando convocados. Após, foram liberados e voltaram a atuar em San Matias, deixando o trabalho de tria- gem para as lideranças executarem. Num levantamento feito pela repor- tagem, a constatação é que essas pes- soas que estão fazendo o trabalho de buscar pessoas são, sem exceção, pré- candidatas a cargos políticos nas próxi- mas eleições. A aposentada Lucinda Gomes de Campos, 76 anos, perdeu o olho direito. Ela afirmou que depois que surgiu a in- fecção, não suportava mais a dor. Opera- da no dia 11 de outubro, ela foi a San Mathias em um ônibus fretado por uma igreja evangélica. Acompanhada por uma filha, gastou 25 reais. O pacote incluía uma refeição. Foi de manhã e às 18 ho- ras estava de volta, com o olho operado. Um mês depois surgiu a infecção. O aposentado Manoel de Azevedo, 83 anos, foi operado um dia depois. Foi levado por familiares. Com catarata nos dois olhos, operou o direito, mais preju- dicado. Sua filha, que o acompanhou, conta que levou o pai para uma avalia- ção. “Lá o atendimento foi rápido. Eles verificaram que meu pai estava com a pressão arterial um pouco alta, deram (*) Clarice Navarro Diório

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JOTA ZERO10

Quatro pessoas foram hospitaliza-das no Hospital Regional de Cáceres/MT,na primeira quinzena de dezembro, aco-metidas por uma infecção decorrente decirurgia de catarata. Todas elas foram ope-radas em outubro deste ano por médicosestrangeiros que estão atendendo na ci-dade de San Mathias, na Bolívia, locali-zada na faixa de fronteira, a 80 km deCáceres.

Tragédia em Mato Grosso

A equatoriana Paola TerezaPonce Banalcazar e o bolivianoFernando Dias Maranon,médicos formados em Cuba,foram detidos pela PolíciaFederal no final de outubrodeste ano, quando atendiam nomunicípio de Cáceres/MT, eautuados por exercício ilegal daprofissão, uma vez que nãoapresentaram documentos quecomprovassem a legalidade dasituação profissional perante oConselho Federal de Medicina.Na foto, eles faziam a triagemde pacientes no distrito doCaramujo, a 30 km de Cáceres.Muitas pessoas de lá foramencaminhadas para a cirurgiade catarata, realizada naBolívia.

Eles operam no único hospital dacidade. A cirurgia gratuita despertou ointeresse de muita gente. Embora nãohaja uma estatística confiável, a estima-tiva é que mais de 3 mil pessoas tenhamsido operadas, a maioria de catarata, eoutras de ptirígio. Em Cáceres, as pes-soas estavam sendo orientadas por li-deranças evangélicas e comunitárias,que inclusive cuidavam de fretar ônibus

e organizar caravanaslevando os pacientespara a cirurgia.

No final do mêsde novembro, come-çaram a surgir pacien-tes com complicaçõesdecorrentes da cirur-gia. Os quatro oftalmo-logistas que atuam emCáceres confirmam teratendido pessoas comendofitalmite, uma in-fecção consideradabastante grave. Quatrodelas passaram por ci-rurgia de evisceração,com a retirada do glo-

bo ocular e colocação de prótese. Elasforam operadas no Hospital Regional deCáceres pelo oftalmologista OdenilsonJosé da Silva, através do Sistema Únicode Saúde (SUS). Segundo ele, os casoscontinuam a aparecer, e há infor-mações de pacientes que segui-ram para a capital, Cuiabá, embusca de atendimento. “Essaspessoas estão procurando aten-dimento tardiamente. Tentam an-tes tratamentos alternativos, atémesmo com remédios caseiros.Só procuram atendimento profis-sional quando a dor se torna in-suportável”-afirma o médico.

Os oftalmologistas de Cáce-res, tão logo viram o que estavaacontecendo, procuraram as au-toridades locais para alertar so-bre os riscos deste tipo de atendimento.O Hospital de San Mathias é um localacanhado e sem a estrutura adequadaa este tipo de procedimento cirúrgico.“Enviamos ofícios ao Conselho Brasilei-ro de Oftalmologia, ao Conselho Fede-ral de Medicina, à Polícia Federal. Maseles estão atendendo em um outro paíse as pessoas têm o direito de ir e vir. Nin-guém está sendo forçado. Por isso tenta-mos apenas alertar”- explica OdenilsonSilva.

A equipe, formada por 25 médicosbolivianos, equatorianos e cubanos, che-gou na região há cerca de três meses, ecomeçou a realizar um trabalho de tria-gem nas cidades brasileiras localizadasna fronteira, buscando pacientes para acirurgia, que é oferecida gratuitamente.Esses médicos fazem parte da “Opera-ción Milagro”, um convênio assinado en-tre Cuba e Bolívia. São médicos forma-dos em Cuba e fazendo especialização.

No final do mês de outubro, ummédico e uma médica que fazem parteda equipe foram detidos pela PolíciaFederal quando atuavam no distrito doCaramujo, a 30 km de Cáceres. Eles es-tavam atendendo em uma sala dos fun-dos de uma igreja evangélica, fazendoa triagem das pessoas para encaminha-mento cirúrgico. Na delegacia, não apre-sentaram documentos que comprovas-sem a legalidade profissional junto aoConselho Federal de Medicina e foramautuados por exercício ilegal da profis-são, tendo que assinar um termo de com-promisso de que voltarão a se apresen-tar à justiça quando convocados. Após,foram liberados e voltaram a atuar emSan Matias, deixando o trabalho de tria-gem para as lideranças executarem.

Num levantamento feito pela repor-tagem, a constatação é que essas pes-soas que estão fazendo o trabalho debuscar pessoas são, sem exceção, pré-candidatas a cargos políticos nas próxi-mas eleições.

A aposentada Lucinda Gomes deCampos, 76 anos, perdeu o olho direito.Ela afirmou que depois que surgiu a in-fecção, não suportava mais a dor. Opera-da no dia 11 de outubro, ela foi a SanMathias em um ônibus fretado por umaigreja evangélica. Acompanhada por umafilha, gastou 25 reais. O pacote incluía

uma refeição. Foi de manhã e às 18 ho-ras estava de volta, com o olho operado.Um mês depois surgiu a infecção.

O aposentado Manoel de Azevedo,83 anos, foi operado um dia depois. Foilevado por familiares. Com catarata nosdois olhos, operou o direito, mais preju-dicado. Sua filha, que o acompanhou,conta que levou o pai para uma avalia-ção. “Lá o atendimento foi rápido. Elesverificaram que meu pai estava com apressão arterial um pouco alta, deram

(*) Clarice Navarro Diório

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um remédio e mandaram aguardar. Per-guntaram se ele era diabético. Em umahora chamaram de volta e em seguidaele foi operado”. Quinze dias depois sur-giu a infecção. A família levou o aposen-tado pelo menos cinco vezes ao hospi-tal boliviano, onde ele recebia injeçõesdentro do olho, uma tentativa de contera infecção. Até que ele próprio, não su-portando mais o tratamento, pediu paraser levado a um médico de Cáceres. Fi-cou hospitalizado por uma semana lu-tando contra a infecção, mas a gravida-de do quadro não deixou outra alternati-va se não a evisceração.

”Queremos que o número de cirurgias de cataratas através do Sistema Únicode Saúde volte a ser crescente. Nos dois últimos anos tivemos um decréscimo, de400 mil para 210 mil cirurgias/ano, quando deveríamos ter 450 mil cirurgias ouainda, considerando o Brasil continental, 600 mil cirurgias/ano para atender ademanda, sem filas de espera. Temos que rechaçar publicamente o que estáocorrendo na região de Cáceres e cobrar providências do governo federal”.

O presidente do Conselho Brasilei-ro de Oftalmologia Hamilton Moreira afir-mou ser “lamentável” o que está aconte-cendo com as pessoas que estão procu-rando atendimento médico na Bolívia. Elese referiu às cirurgias oftalmológicas quevêm sendo realizadas na cidade de SanMatias, a 80 quilômetros de Cáceres, poruma equipe de médicos estrangeirosformados em Cuba. As cirurgias de cata-rata e pterígio são gratuitas, e aconte-cem há cerca de dois meses. Nas últi-mas duas semanas, começaram a sur-gir pacientes que passaram pela cirur-gia e estão sendo acometidos por umainfecção grave. Quatro pessoas já tive-ram que fazer a cirurgia de evisceraçãoem Cáceres, que é a retirada do globoocular afetado e a colocação de umaprótese. Mesmo com o fluxo de pessoastendo diminuído um pouco nos últimosdias, a procura por atendimento no paísvizinho ainda é grande. São pacientesde várias cidades brasileiras da regiãode fronteira do Estado com a Bolívia,como Cáceres, Curvelândia, São José

dos Quatro Marcos, Mirassol D´Oeste,Pontes e Lacerda, entre outras. A esti-mativa é que cerca de 3 mil cirurgias te-nham sido realizadas.

Para o presidente do CBO, a medi-cina que está sendo praticada lá é “nomínimo questionável”. Relatos de pa-cientes informam que não é feita a este-rilização adequada do instrumental ci-rúrgico. O método adotado -com incisão- também estaria ultrapassado, uma vezque atualmente a cirurgia de catarata éfeita através do laser.

“Tivemos este mesmo tipo de ocor-rência tempos atrás no Maranhão, comuma equipe que também faz parte daOperação Milagro, mas a situação foi

rapidamente resolvida. Só que agoraeles estão atuando em uma área fron-teiriça em outro país. Estamos enviandouma carta ao Ministério das RelaçõesExteriores solicitando uma ação rápida.A população está correndo um risco des-necessário”.

O médico afirmou que essa prática- operar num país vizinho - é uma formade burlar a autonomia das autoridadesbrasileiras e criticou a atitude das pes-soas que apóiam esse tipo de ação, “di-rigentes e lideranças políticas que sepreocupam apenas com a promoçãopessoal”. Hamilton Moreira disse aindaque tão logo foi informado do problema,fez contato com o Ministério da Saúde.

Situação é considerada lamentável por CBO, que comunicará a MinistérioClarice Navarro Diório - Da Sucursal de Cáceres

Bolívia. No Mato Grosso, o fato tem rece-bido a atenção do Conselho Estadualde Medicina , da Procuradoria da Repú-blica e da Polícia Federal, que estão es-tudando em conjunto quais as açõespossíveis a serem efetuadas.

A cirurgia de catarata é feita no Brasiltambém de forma gratuita, pelo SistemaÚnico de Saúde e embora em 2007 tenhahavido problemas, o Ministério da saúdecomprometeu-se a ampliar o número decirurgias disponíveis nos próximos meses.

(*) Clarice Navarro Diório é jornalista doDiário de Cuiabá (DRT/MT 522)

Os profissionais de Cáceres sepreocuparam em esclarecer que a objeti-vo deles é alertar e conscientizar as pes-soas sobre a falta de estrutura para arealização dessas cirurgias, e os riscosque essas pessoas estão correndo. Ospacientes que tiveram problemas rela-taram que não existe higiene e que tudoé feito muito rápido. Já os profissionaisbrasileiros informam que, além disso, atécnica que vem sendo usada pela equi-pe é ultrapassada.

Mesmo com o registro dos casosde infecção e o alerta dos médicos bra-sileiros, a equipe continua operando na

O presidente do CBO concedeu a seguinte entrevistaao jornal Diário de Cuiabá sobre o assunto:O presidente do CBO concedeu a seguinte entrevistaao jornal Diário de Cuiabá sobre o assunto: