Tradução de PEDRO SÜSSEKIND 1ª edição - record.com.br · Nu ma tarde de fevereiro ouvi um...

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Tradução de PEDRO SÜSSEKIND 1ª edição RIO DE JANEIRO – 2017

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Tradução dePEDRO SÜSSEKIND

1ª edição

Rio de janeiRo – 2017

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Schlink, Bernhard, 1944-S37L O leitor / Bernhard Schlink; tradução Pedro Süssekind. – 1ª ed. –1ª ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2017. 176 p.; 12 × 18cm.

Tradução de: Der Vorleser ISBN 978-85-7799-513-4

1. Romance alemão. I. Sussekind, Pedro, 1973-. II. Título.

CDD: 83316-33755 CDU: 821.112.2-3

O leitor, de autoria de Bernard Schlink.Título número 402 das Edições BestBolso.Primeira edição impressa em setembro de 2017.Texto revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Título original inglês:DER VORLESER

Copyright © 1995 by Diogenes Verlog AG ZürichCopyright da tradução © by Editora Record Ltda.Direitos de reprodução da tradução cedidos para Edições BestBolso, um selo da Editora Best Seller Ltda. Editora Record Ltda. e Editora Best Seller Ltda. são empresas do Grupo Editorial Record.

Design de capa: adaptação da capa originalmente publicada pela Editora Record em 2008 (© The Weinstein Company).

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia por escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil em formato bolso adquiridos pelas Edições BestBolso, um selo da Editora Best Seller Ltda. Rua Argentina, 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: (21) 2585-2000.

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-7799-513-4

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Parte I

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Aos 15 anos eu tive hepatite. A doença começou no outono e terminou na primavera. Quanto mais frio e escuro o velho ano se tornava, mais fraco eu ficava. só com o novo ano houve uma me-lhora. Janeiro foi quente, e minha mãe instalou minha cama na varanda. Eu via o céu, o sol, as nuvens e ouvia as crianças brincan-do no pátio. Nu ma tarde de fevereiro ouvi um melro cantando.

Em meu primeiro passeio andei da Blumenstrasse, na qual morávamos no segundo andar de um prédio im po nen te cons-truído na virada do século, até a Bahnhofstrasse. Foi ali que eu tinha vomitado, numa se gun da-feira de outubro, no caminho da escola para casa. Já havia alguns dias que eu estava fraco, mais fraco do que nunca em minha vida. Cada passo me exigia um grande esforço. Quando subia escadas em casa ou na escola, minhas pernas quase não me aguentavam. também não queria comer. Mesmo quando me sentava à mesa com fome, logo sentia náuseas. de manhã acordava com a boca seca e com a sensação de que os meus órgãos estavam pesados e fora de lugar. En ver-go nhava-me estar tão fraco. Envergonhei-me espe cial mente quando vomitei. isso também nunca havia acon tecido comigo. Minha boca se encheu, eu tentei segurar, apertando os lábios, a mão diante da boca, mas tudo saiu por entre os dedos. Então me apoiei no muro de uma casa, olhando o que tinha vomitado a meus pés, e cuspi um líquido claro e pegajoso.

A mulher que cuidou de mim o fez de um jeito quase bruto. Ela pegou meu braço e me levou pela porta escura da casa até o pátio. Havia varais esticados de janela a janela e roupas pendu-

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radas. No pátio armazenava- se madeira; numa oficina aberta, a serra rangia e as farpas voa vam. Ao lado da porta para o pátio havia uma torneira. A mulher abriu a torneira, lavou primeiro a minha mão e então jogou no meu rosto a água que tinha mantido nas mãos em concha. Enxuguei o rosto com o lenço.

– Pegue o outro! – Ao lado da torneira estavam dois baldes, ela apanhou um deles e o encheu. Eu apanhei e enchi o outro e a segui pela porta. Ela levantou o braço, a água jorrou na calça-da levando o vômito para o ralo. tirou o balde da minha mão e lançou mais água sobre a calçada.

Ela se endireitou e viu que eu estava chorando.– Menino – disse admirada –, menino.Ela me envolveu nos braços. Eu era pouco mais alto do que

ela, senti seus seios no meu peito, cheirei na estreiteza do abra-ço meu hálito ruim e seu suor fresco e não sabia o que devia fazer com os braços. Parei de chorar.

Perguntou-me onde eu morava, pôs os baldes na entra da e me levou para casa. Andou ao meu lado, uma das mãos segu-rando a minha pasta e a outra sobre o meu braço . A distância da Bahnhofstrasse até a Blumenstrasse não é grande. Ela an-dava depressa e com uma decisão que me ajudava a manter o passo. À frente de nossa casa despediu-se.

No mesmo dia minha mãe trouxe o médico, que diag-nosticou a hepatite. Em algum momento contei à minha mãe sobre a mulher. Não acredito que a teria visitado se não fosse isso. Mas para minha mãe era evidente que eu, logo que pu-desse, iria comprar com meu dinheiro um buquê de flores, apresentar-me e agradecer. desse modo, fui no fim de fevereiro à Bahnhofstrasse.

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o prédio na Bahnhofstrasse não existe mais. Não sei quando nem por que foi demolido. Por muitos anos não estive na mi-nha cidade natal. o edifício novo, construído nos anos 1970 ou 1980, tem cinco andares e uma cobertura ampla, sem sacadas nem varandas, com um reboco liso e claro. Muitas campainhas mostram muitos pequenos apartamentos. Apartamentos para os quais as pessoas se mudam e dos quais se mudam, como se apanha e larga um carro alugado. No térreo existe agora uma loja de infor mática; antes houve ali uma farmácia, um mercado e uma locadora de vídeos.

o prédio antigo tinha a mesma altura e quatro andares, um piso de blocos de arenito com partículas afiadas como diamantes no térreo e três andares superiores de paredes atijo-ladas com arcadas de arenito, varandas e janelas gradeadas. os degraus de acesso ao térreo e à escadaria, mais largos embaixo, mais estreitos em cima, engastados dos dois lados por paredes que tinham corrimãos de ferro, ter minavam em espiral. A porta era ladeada por colunas, e do canto da arquitrave um leão dirigia o olhar Bahnhofstrasse acima, e o outro, rua abaixo. A entrada pela qual a mulher tinha me levado ao pátio, até a torneira, era uma entrada lateral.

desde menino já reparava nesse prédio. Ele dominava a fileira de edifícios. Eu costumava pensar que, se ele fosse ainda mais pesado e largo, os prédios adjacentes teriam de se afas-tar para o lado e dar mais espaço. No interior eu ima ginava uma escadaria com ornamentos, espelhos e uma passadeira

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de decoração oriental, presa nos degraus por barras de latão polidas. Eu esperava que num prédio imponente também mo-rassem pessoas imponentes. Mas como ele se tornara escuro com os anos e com a fumaça dos trens, também imaginava os moradores imponentes de modo sombrio, como estranhos, talvez surdos ou mudos, corcundas ou aleijados.

Voltei a sonhar, anos depois, com o prédio. os sonhos eram semelhantes, variações de um mesmo sonho e tema. Estou em uma cidade estrangeira e vejo o prédio. Num bairro que não conheço, ele fica numa fileira de edifícios. sigo em frente, perturbado, porque conheço a construção mas não o bairro. Então me ocorre que já a vi antes. Com isso, não penso na Bahnhofstrasse de minha cidade natal, mas sim em outra cidade ou outro país. No sonho me encontro, por exemplo, em Roma, vejo lá o prédio e me lembro que já o vi em Berna. Com essa lembrança sonhada me acalmo; rever o prédio em outra vizinhança não me parece mais esquisito do que o reencontro acidental com um velho amigo em terra estranha. Faço a volta, retorno para a casa e subo os degraus. Quero entrar. toco a campainha.

Quando o vejo no campo, o sonho dura mais, ou depois me lembro melhor de seus detalhes. dirijo um carro. Vejo à direita o prédio e continuo dirigindo, primeiro estranhando apenas que um imóvel claramente urbano se encontre em campo aberto. Então me ocorre que já o vi antes, e fico duplamente perturbado. Quando me lembro de onde o conhecia, retorno e dirijo de volta. A rua sempre está vazia no sonho, posso fazer a curva cantando pneus e voltar em alta velocidade. tenho medo de chegar tarde demais, e vou mais depressa. Então o vejo. É cercado por campos; repolho, trigo ou vinhas no Palatinado, alfazema na Provence. A região é plana, apenas levemente aci-dentada. Não há árvores. o dia está completamente claro, o sol brilha, o ar vibra, e a rua cintila de calor. As paredes mestras fazem a casa parecer dividida, insuficiente. Poderiam ser as

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paredes mestras de qualquer casa. o prédio não é mais som-brio do que na Bahnhofstrasse. Mas as janelas estão totalmente empoeiradas e não deixam que se reconheça nada nos aposen-tos, nem mesmo cortinas. o prédio é cego.

Paro na beira da rua e caminho até a entrada. Não se vê ninguém, não se ouve nada, nem mesmo um motor distante, um vento, um pássaro. o mundo está morto. subo os degraus e toco a campainha.

Mas não abro a porta. Acordo e sei apenas que encostei a mão na campainha e a toquei. Então me vem à lembrança o sonho todo e também o fato de eu já tê-lo sonhado.

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