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Tradução de menino ou Jorge Amado grapiúna:
uma análise antropológica sobre memória e subjetividade1
Maria Raquel Passos Lima
PPGSA/ IFCS/ UFRJ
__________________________________________________________________________ RESUMO: O trabalho tem como foco o livro O menino grapiúna de Jorge Amado, que trata das
memórias de infância do autor. Nesta narrativa são articuladas categorias de pensamento e
valores constitutivos de sua subjetividade e de sua visão de mundo. Meu objetivo se concentra
em apresentar algumas hipóteses interpretativas que ajudem a mapear a lógica da construção
da auto-imagem do escritor. Pretendo, portanto, analisar a construção literária do personagem
Jorge Amado, isto é, a forma pela qual sua identidade é configurada através da sua narrativa,
partindo da interpretação dos possíveis sentidos que a perspectiva do “menino” assume,
explorando assim o significado conferido por tal perspectiva aos acontecimentos descritos.
Neste processo, a noção de experiência parece adquirir especial importância, por isso
procurarei, ao longo da análise, qualificar a experiência infantil de que trata o livro, buscando
compreender o que está em jogo na concepção de infância do autor. Na conclusão, discorro
sobre as possíveis ressonâncias da tradição cristã na sua concepção de homem, através de uma
reflexão sobre imagem da “carne”.
PALAVRAS-CHAVE: Jorge Amado; Subjetividade; Memória.
1 Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil.
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1- Introdução Este trabalho tem como foco o livro O menino grapiúna de Jorge Amado, que trata das
memórias de infância do autor. Publicado inicialmente em 1980, no número que a revista
Vogue dedicou ao seu trabalho, teve no ano seguinte, uma edição não comercial organizada
pela MPM Propaganda, ganhando ilustrações de Floriano Teixeira. Atendendo aos pedidos
dos leitores que não foram beneficiados com a edição não comercial, Jorge Amado pediu à
Record, responsável pelos seus direitos autorais na ocasião, que reproduzisse a edição
ilustrada para a venda. As ilustrações dão um caráter inegavelmente lúdico ao livro, ampliado
pela diagramação de margens generosas e letras gigantes.
Essa atmosfera infantil poderia contribuir para um descrédito de seu conteúdo aos
olhos de muitos sob o rótulo de “literatura de criança”, mas creio que o livro possua uma
importância especial já que nele não encontramos memórias fortuitas de uma infância, mas
uma espécie de mito de origem de Jorge Amado como autor. Ao construir este mito, o escritor
se coloca ao mesmo tempo como personagem, sendo obrigado a lançar mão de uma estratégia
narrativa para descrever a si próprio. Nessa narrativa são articuladas categorias de pensamento
e valores constitutivos de sua subjetividade e de sua visão de mundo. Meu objetivo neste
trabalho é apresentar algumas hipóteses interpretativas que ajudem a mapear a lógica da
construção da auto-imagem do escritor.
Pretendo, portanto, analisar a construção literária do personagem Jorge Amado, isto é,
a forma pela qual sua identidade é configurada através da sua narrativa, partindo da
interpretação dos possíveis sentidos que a perspectiva do “menino” assume, explorando assim
o significado conferido por tal perspectiva aos acontecimentos descritos. Neste processo, a
noção de experiência parece adquirir especial importância, por isso procurarei, ao longo da
análise, qualificar a experiência infantil de que trata o livro, buscando compreender o que está
em jogo na concepção de infância do autor.
Partindo de uma consciência do caráter construído, e portanto dotado de significados
múltiplos, de noções como “memória”, “experiência”, e mesmo “infância”, se faz necessário
um exame atento da forma como elas são articuladas dentro de sistemas cognitivos e
estratégias literárias específicas, para que se possa tentar uma interpretação mais fina, ou uma
descrição mais densa, das ontologias com que nos deparamos, neste caso específico, a
subjetividade amadiana. Discorrendo sobre a imagem da “carne”, termino por refletir sobre as
possíveis ressonâncias da tradição cristã na concepção de homem do autor.
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2- A aventura grapiúna
Rapazola, meu pai abandonara a cidade sergipana de Estância, civilizada e decadente, para a aventura do desbravamento do sul da Bahia, para implantar, com tantos outros participantes da saga desmedida, a civilização do cacau, forjar a nação grapiúna. (Amado, 1982: 14)
Os acontecimentos narrados em O menino grapiúna, como é possível perceber com o
trecho supracitado, são enquadrados dentro do registro da aventura. Gostaria de iniciar
explorando esta idéia e seus rendimentos analíticos a partir do ensaio do pensador alemão
Georg Simmel, que em seu estudo, assim como numa parte expressiva de sua obra, acaba por
construir uma espécie de estética da vivência. Isto se dá pelo fato de o autor buscar iluminar a
aventura em sua forma, vendo nela uma modalidade específica do que denomina ‘experiência
vital’.
Simmel começa sua reflexão a partir da constatação de uma dupla significação da
experiência social: a primeira adquire sentido ao girar em torno de si mesma, seu significado
provém de seu próprio centro interior; já o que confere significado à segunda é a sua inserção
num movimento global. Este movimento global é definido por uma continuidade, que acaba
por configurar uma certa homogeneidade, pois estaria ligado ao curso normal da vida, aos
seus encaminhamentos racionais, aos ciclos que terminam simplesmente porque outros estão
por começar, enfim, à rotineira e ordinária vida cotidiana.
Em relação a este movimento contínuo, a aventura se definiria como algo à parte, algo
situado no domínio do extraordinário, e que por isso, teria inicio e fim nitidamente
delimitados, como um fragmento auto-suficiente, cuja força provém de seu centro interior.
Esta ruptura não impede, no entanto, que tal situação se vincule estreitamente com o âmago
da experiência social.
Para Simmel, o que caracteriza o conceito de aventura e o distingue de meras
eventualidades é o fato de que algo acidental e separado possa abrigar um sentido. Como o
jogador, o aventureiro faz com que o acaso, que reside à margem da regularidade, seja
incorporado pelo curso regular da vida. Este sentido provém da capacidade de operar um
compromisso singular entre o que o autor chama de as grandes formas nas quais
configuramos os conteúdos da vida, que são as sínteses e os antagonismos. Esta “terceira via”
proporcionada pela aventura não seria uma amálgama das duas últimas, mas “uma vivência de
tonalidade incomparável que só cabe interpretar como um envolvimento peculiar do
acidental-exterior pelo necessário-interior”. (Simmel, 1988: 15).
Este envolvimento peculiar se desdobra ainda entre a passividade e a atividade, entre o
que conquistamos com nossas próprias forças e o que nos é dado, assim como entre a
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segurança e a insegurança, entre o certo e o incerto. Por isso a aventura se coaduna com o
gesto do conquistador, àquele que tudo fia à oportunidade volátil, ao destino e ao incerto. O
aventureiro age acreditando no poder das suas próprias forças, mas também na sua sorte, na
combinação de ambas. A premissa de sua ação é tratar o incalculável como se fosse
calculável, o incognoscível como se conhecido fosse. Daí a analogia da aventura com o
relacionamento amoroso, em que as faculdades próprias e o calculo individual da conquista
não bastam sem uma intervenção do acaso, sem a “mão da sorte”, sem uma graça concedida
pelo destino.
Tudo isso se relaciona com a dimensão temporal da aventura: seu tempo é o agora, o
tempo do presente incondicional, no qual não existe nem antes, nem depois, sendo passado e
futuro desprovidos de valor. Da semelhança entre o caso amoroso e a aventura provém um
duplo aspecto temporal no qual o momentâneo, entusiasmo do presente, a fugacidade da
paixão, se articula diretamente com o imperecível, com a capacidade de inscrever-se na
eternidade. Assim, pela especificidade de sua natureza e pelo seu poder de sedução, a
aventura constitui uma forma do experimentar. O conteúdo com o qual se reveste se apresenta
secundário em vista do processo. Uma vivência qualquer se transforma em aventura quando a
coloração, a temperatura e o ritmo particular do processo vital predominam sobre a sua
substância.
Simmel, ao conceituar a aventura como a forma do experimentar, e contrapondo-a aos
processos que enfatizam as substâncias e os conteúdos, como os que se ligam à velhice e ao
espírito histórico, evidencia a natureza subjetiva da aventura, na qual reside a sua premissa
dinâmica. Pois é somente sendo um sujeito – ou seja, agindo em vista da vontade e força
próprias e ao mesmo tempo sujeitando-se ao imponderável, às surpresas do acaso, ao risco
mesmo de ser – que se pode experimentar esta vivência. Somente com o sentimento
proveniente da conjunção das tensões contraditórias que são constitutivas da experiência vital,
que se pode captar este significado especial, como um simbolismo oculto, cuja agudeza deriva
da consciência de se estar passando por algo único.
Por isso a sedução da aventura é precisamente a forma aventureira de sua vivência, a
intensidade e a tensão com que particularmente nesse caso podemos sentir a vida em sua
radicalidade. É por isso que esse fragmento da existência parece resumi-la e esgotá-la, e nele
podemos vislumbrar o contraste próprio da aventura, no qual algo totalmente separado do
contexto global da vida possa suscitá-la em toda a sua intensidade.
Em vista da acepção da aventura simmeliana, procurarei explorar a forma como Jorge
Amado constrói esta idéia em seu livro de memórias de infância, e analisar as decorrências
semânticas implicadas nesta versão grapiúna da experiência aventureira.
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Desbravador de terras, meu pai erguera sua casa mais além de Ferradas, povoado do jovem município de Itabuna, plantara cacau, a riqueza do mundo. Na época das grandes lutas. (Amado, 1982: 12)
A “época das grandes lutas” referida na citação é a época na qual se construía a
“civilização do cacau”, a “nação grapiúna”. A despeito da impressão grandiosa passada pela
descrição, o registro no qual esta ‘nação’, esta ‘civilização’ e estas ‘grandes lutas’ são
relatadas se inscreve num plano totalmente distinto daquele no qual repousa a narrativa épica,
cuja abordagem monumental e a postura reverente frente a valores “imortalizados” aparecem
como características marcantes (Bakhtin, 1998).
Estas grandes lutas são abordadas não enquanto um objeto de representação acabado,
absoluto, distante e inequívoco, mas no seu processo de construção, no seu estado de
inacabamento e, portanto, de forma plurívoca. Com o foco neste processo de construção, o
autor privilegia o presente em detrimento do passado, compondo um quadro permeado por
inúmeras ambigüidades, no qual aparece aquela tensão típica da experiência vivida de que
falava Simmel. No centro destas tensões e contradições reside a idéia de progresso, base na
qual assentam as noções de civilização e nação. Tentarei examinar mais de perto os elementos
que compõem esta imagem do progresso daqui em diante.
A luta pela posse das matas, terra de ninguém, se alastrava nas tocaias, nas trincas políticas, nos encontros de jagunços no sul do Estado da Bahia; negociavam-se animais, armas e a vida humana. (...) As cruzes demarcavam os caminhos do alardeado progresso da região, os cadáveres estrumavam os cacauais. (Ibid., p. 12,13).
Logo de início nos deparamos com esta contradição inerente à obtenção da “riqueza do
mundo”: nas primeiras décadas do século passado, a marcha do progresso, os caminhos da
construção desta nova civilização sobre a “mata virgem, inóspita e antiga” (Ibid., p. 12),
instituem uma luta sem precedentes, cujo preço é a “vida humana”. Os cadáveres, como
adubo, fertilizam a terra da qual brotará a nação do cacau. A busca desenfreada pelo seu
plantio assume as conotações de uma praga, “alastra-se”. Com as negociações que passam a
permear sub-repticiamente os encontros na “terra de ninguém”, tudo adquire seu preço, com
animais, armas e pessoas valendo pouco.
Nos capítulos seguintes, a descrição do universo grapiúna continua e esta atmosfera
lúgubre é ampliada com a descrição de uma enchente, em 1914, que teria arrasado todas as
plantações daquela região. Sugerindo uma certa ‘revanche’ do ambiente, “as águas crescendo,
(...) restaurando o mistério violado da mata” (Ibid., p. 17), o autor conta que, carregado pelos
seus pais foragidos, foi enviado junto à muitos outros, para um lazareto que abrigava
provisoriamente as vítimas da cheia. Com ela veio também a “febre”, designação vaga para
referir-se a um mal que não se conhecia e que no entanto fazia grandes estragos, dizimando a
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maioria da população. “Bexiga negra”, “impaludismo”, “tifo”, não sabendo como designá-la,
e dado o seu grau de contágio, a moléstia fatal “tornava-se epidêmica, deixava de ser a febre,
passava a ser peste”. (Ibid., p. 24).
Portanto, a narrativa inicial do livro, muito longe de configurar um cenário de glórias
em decorrência das “grandes lutas”, compõe um quadro de miséria, em que a condição já
inóspita do lugar é agravada pela cobiça, pelas doenças, pela morte. A cobiça pela riqueza não
implicava falta de “vontade construtora” e “energia”, como Sérgio Buarque de Holanda na
sua obra clássica escreveu a respeito do caráter dos portugueses em relação aos espanhóis
(Buarque de Holanda, 1956). No universo aqui tratado, o trabalho não se opunha à aventura,
já que a riqueza era constituída através do plantio, sua fonte era a lavoura do cacau. “Na
região grapiúna não havia lugar para vagabundos, a luta era sem tréguas.”2 (Amado, 1982: 66)
A primeira cena, de alguma forma, sintetiza este universo, trata-se de uma emboscada.
“A égua tombando morta, meu pai, lavado em sangue, erguendo-me do chão” (Ibid., p. 11).
Tendo somente dez meses de idade, Jorge Amado participa do episódio em que seu pai, por
um golpe de sorte, escapa com vida de uma tocaia, na mesma roça de cacau onde nascera.
Com a indagação “O que teria salvo o condenado?” (Ibid., p. 13) vemos com nitidez a
presença do acaso intervindo numa situação previamente calculada segundo um objetivo
específico, o assassinato de seu pai. Ao final do capítulo, o autor conclui: “naquele então,
minha mãe dormia com a repetição sob o travesseiro” (Ibid., p. 14).
Mas porque esta cena de estréia se mostra tão significativa? Não obstante a
configuração de um quadro marcado por doenças, morte e guerra, onde é preciso dormir com
a arma sob o travesseiro, é precisamente esse suspense, essa presença do incerto, essa
inconstância perigosa inerente ao risco, que confere uma intensidade singular a essas
experiências vividas, tornando-as significativas. Essa sujeição ao imponderável, fruto da
atmosfera aventureira e da vivência do presente, é o que imprime um caráter extraordinário e
um sentimento único a um fragmento arbitrário de nossa existência. Por esse prisma podemos
compreender declarações como: “Na varanda, com dona Eulália, ficavam o menino e a morte.
A morte, companheira de toda a minha infância” (Ibid., p. 45) ou “Entre Pontal e Pirangi,
antevi o amor e tratei com a morte. A vida do menino foi intensa e sôfrega” (Ibid., p. 50).
2 Na verdade, para Jorge Amado, o principal contraste é entre a aventura e a vagabundagem. Entretanto, ele faz uma distinção, a partir de determinado momento, entre o aventureiro e o coronel do cacau. Embora inscreva, no início do livro, seu pai como um desbravador e aventureiro, mais tarde, falará destes últimos: “Conheci e tratei com aventureiros de todas as condições: vinham no rastro do cacau, em busca do dinheiro fácil, usavam os títulos mais diversos, na esperança de enrolarem os ingênuos coronéis. Mas os coronéis do cacau não eram tão ingênuos assim”. (Amado, 1982: 66). Neste sentido, o que parece definir, segundo o autor, a condição do aventureiro é este impulso frente ao desconhecido, e aí concordando com Simmel, em vista do aproveitamento rápido das oportunidades. Sendo o momento no qual o aventureiro se instala e inicia o trabalho um momento de transição para uma outra condição social, de fazendeiro, coronel, etc.
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3- Da experiência à memória: caminhos da narrativa, percurso simbólico
A noção de experiência no livro de Jorge Amado é construída através de inúmeras
estratégias narrativas. Vale a pena agora nos determos sobre a concepção de memória do autor
e analisar a importância que o processo de construção simbólica da memória adquire, no
sentido de extrapolar os limites da experiência objetiva do personagem, através do que Walter
Benjamin chama de “arte narrativa”.
Segundo ele, esta arte traria consigo uma espécie de “poder inato”: “a capacidade de
trocarmos pela palavra experiências vividas” (Benjamin, 1975; 63). Na construção de sua
reflexão, o gênero épico é contraposto ao romance enquanto um fenômeno totalmente distinto
deste, por ter como característica principal a transmissão oral. A memória aparece como
central neste processo pois “narrar estórias é sempre a arte de transmiti-las depois, e esta
acaba se as estórias não são guardadas” (Ibid., p. 68). Para o autor, a memória se apresenta,
antes de tudo, como a “capacidade épica”, é seu elemento artisticamente formador, já que é
uma recordação de eventos esparsos, cuja origem já se perdeu e, por isso, mesmo quando
esses acontecimentos já se extinguiram, ela é capaz de desvelar compreensão, um sentido
frente a eles.
É preciso, para entender o caráter contrastivo que constitui a análise, recuperar a
concepção de Benjamin sobre o romance, o que, como não poderia deixar de ser, possui
estreitas ligações com a sua experiência e a sua subjetividade. O cerne da obra deste autor é
articulado pela idéia de modernidade, que acarretaria agudas conseqüências para a vida social
e para a adequação do homem ao novo mundo que surgia. Num dos trechos do ensaio, é
possível vislumbrar o retrato que o autor tece do homem em meio ao avanço da modernidade:
Uma geração que ainda usara o bonde puxado por cavalos para ir à escola, encontrou-se sob céu aberto em uma paisagem em que nada continuava como fora antes, além das nuvens e debaixo delas, num campo magnético de correntes devastadoras e explosões, o pequenino e quebradiço corpo humano. (Ibid., p. 64)
O romance então, aparece como uma das conseqüências deste processo incontornável
cuja marcha se mostra irreversível. Ele seria o primeiro indício da decadência da narrativa, já
que apresenta uma distinção em relação a todas as demais formas da literatura em prosa por
“não proceder da tradição oral nem a provocá-la” (Ibid., p. 66). Ao depender inteiramente do
livro, a sua formação só pode efetuar-se a partir das condições históricas que propiciaram o
surgimento da imprensa. Além desta característica, o romance se vincularia à idéia de finitude
e de morte alheia e contrária à narrativa épica, na qual vigoraria a idéia de eternidade, baseada
no movimento perpétuo de sua retransmissão. Por necessariamente chegar ao fim, o romance
convidaria o leitor a tomar consciência da finitude da vida.
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Este retrato sombrio da forma artística romanesca se explica pela visão fatalista e
trágica de Benjamin em relação à experiência social moderna, pautada pela guerra. É a guerra
que fundamenta o sentido do romance e o que alicerça a sua razão de ser. Num cenário
marcado pela solidão e pelo silêncio, por uma vivência na qual não se encontra nenhum
sentido, como a instaurada pela guerra, o romance aparece como instrumento através do qual,
atônito, se procura o “sentido da existência”.
As definições do autor como: “o local de origem do romance é o indivíduo na sua
solidão” (Ibid., p. 66) ou “o romance atesta a perplexidade profunda de todos os seres
humanos” (Ibid.) testemunham uma concepção marcada indelevelmente pela experiência da
guerra, expressão mais acabada da modernidade e seus efeitos. É assim que do início ao fim
do texto, Benjamin não deixa de alardear o fim da arte narrativa, não como um fenômeno
particular, mas como uma decorrência do processo generalizado de empalidecimento e
achatamento das formas de experimentar vivências reais, significativas, decorrentes da
modernidade. Para ele, “as experiências perderam muito do seu valor” (Ibid., p. 63).
Ao contrário da narrativa, a informação pauta-se pela sua ligação com a vida prática,
pela verossimilhança e verificabilidade dos acontecimentos relatados, que devem ser
facilmente inteligíveis e, vindo sempre permeada por inúmeras explicações. É em grande
parte este caráter explicativo da informação e da história que os afasta profundamente da
narrativa. “Pois a metade da habilidade de narrar reside na capacidade de relatar a estória sem
ilustrá-la com explicações” (Ibid., p. 67).
Na narrativa, a ornamentação psicológica que articula os acontecimentos não é
fornecida e assim o ouvinte é convidado a preenchê-lo através da interpretação. Isto dá ao
relato a profundidade do oculto, a sedução do segredo, que instiga, convida à busca de um
sentido. Daí o caráter artístico da memória épica e daí a sua capacidade de ser assimilada e
guardada, pois facilmente se adapta à própria experiência de quem a escuta, fazendo-se
significativa, e assim conservando-se mais facilmente na desmesurável rede com a qual as
estórias narradas são tecidas no fio da perenidade. Para Benjamin, esta é uma “forma
artesanal de comunicação”, pois “sua intenção primeira não é transmitir a substância pura do
conteúdo, como o faz uma informação ou uma notícia. Pelo contrário, [ela] imerge essa
substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio.” (Ibid., p. 69).
Vimos então que a narrativa articula memória e experiência de forma singular,
borrando as fronteiras entre o lembrar, o narrar/ouvir e o experienciar. No caso de Jorge
Amado, a idéia de qualquer objetividade é preterida em vista do caráter significativo que a
narrativa exerce na construção da memória. Neste sentido, muito mais importante do que ter
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estado presente em algum acontecimento, é o fato de se recordar dele, o fato de determinada
situação ter-se feito significativa ao sujeito, mesmo que seja através de relatos ouvidos.
Assim, a narrativa assume uma importância fundamental, não se desvinculando da
própria concepção de memória, já que ela promove a articulação entre o “acontecido” e o
“vivido”. Tal dimensão narrativa, constitutiva da memória, ao contrário de invalidar a
“autenticidade” do relato, é o que permite a própria existência de determinado fato, pois o
dota de sentido, permitindo-o que se mantenha “vivo” (significativo). Em o menino grapiúna,
esta relação aparece com nitidez através do papel da mãe do escritor e da importância que os
seus relatos adquirem na formação da memória do menino.
De tanto ouvir minha mãe contar, a cena se tornou real como se eu houvesse guardado memória do acontecido: a égua tombando morta, meu pai, lavado em sangue, erguendo-me do chão. (...) nas costas do coronel João Amado de Faria vieram incrustar-se caroços de chumbo que ele jamais retirou, visíveis sob a pele até o fim da vida. Exibidos com certa relutância e alguma vaidade para ilustrar a repetida narrativa de minha mãe. (Amado, 1982: 11, 13)
Esta importância vem expressa desde a epígrafe, quando ao dedicar o livro a Zélia
Gattai, o autor diz: “Para Zélia que ouviu Lalu3 contar peripécias do menino grapiúna”. Ao
longo de todo o relato, o narrador tenta desvincular da memória o caráter realista/factual no
qual a história poderia ser enquadrada. Seja através da expressão de dúvidas ou pela admissão
do esquecimento, Jorge Amado a todo momento remete o leitor a essa dimensão simbólica e
narrativa, e portanto, bastante instável e dinâmica, da memória:
Existirá mesmo alguma lembrança guardada na retina do infante – (...) – ou tudo resulta de relatos ouvidos? (Ibid., p. 17, 18) Como se chamava? Perdeu-se o nome, na memória ficou apenas a imagem da cavalgada, de mistura com as histórias de fadas e piratas, em curiosas versões de dona Eulália. (Ibid., p. 31). Memória verdadeira e completa guardo de outra cena, essa não mais de ouvir dizer e sim de tê-la vivido em meio à noite cálida e assustadora da Tararanga. Menino de quantos anos? Cinco, talvez um pouco mais, não sei; é difícil estabelecer as medidas da primeira infância. (...) Como fiz para esconder-me na varanda, para não ser visto, não me lembro. Recordo, sim, com absoluta nitidez, a visão exaltante. (Ibid., p. 41,42) É importante reter aqui, em vista do prosseguimento da discussão, a imagem do
narrador, que incorpora a matéria narrada à sua própria experiência, para, posteriormente, ao
retirar de si mesmo esta matéria, conseguir transmiti-la à subjetividade de quem o ouve,
fazendo com que a sua performance seja em si uma maneira de reexperienciar vivências, de
torná-las significativas a outrem. Assim, seja através do registro da aventura, seja através do
registro da imaginação, o que está em jogo é a natureza cognitiva da experiência social, da
memória e da subjetividade, que são formadas a partir do experimentar um significado
especial, da percepção e incorporação de um sentido, que se realiza por meio da interpretação.
3 Lalu é Eulália Leal, a mãe de Jorge Amado.
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4- Sobre a humilitas: ressonâncias da tradição cristã
4.1- O estilo humilde
Erich Auerbach, em duas obras clássicas, reflete sobre as conseqüências da tradição
cristã na representação literária da antiguidade. O ponto de partida, como é recorrente, centra-
se na comparação das escrituras judaico-cristãs com a poesia épica. Ao comparar o estilo
homérico ao estilo do antigo testamento, percebe-se a profunda mudança que as escrituras
sagradas geraram para a própria concepção de homem.
Na definição do estilo homérico do autor, a descrição se apresenta de forma bem
ordenada e uniformemente iluminada, tudo é modelado com exatidão e relatado com vagar. O
texto tem a suas articulações sintáticas plenamente expressas, o que não permite que nenhum
contorno se confunda. Uma das conseqüências mais importantes desta perfeita conformação
de todas as coisas, na qual não fica nenhuma conexão entre elas omitida, é o fato de nada ficar
no escuro, o relato se passa sempre em pleno presente, em primeiro plano.
Tal necessidade de exteriorização dos fenômenos, responde ao interesse na construção
de uma representação acabada e unívoca, tanto no que concerne às relações espaço-temporais,
quanto aos processos psicológicos. Assim, os personagens deixam transparecer
completamente o seu interior, falando para si mesmo o que não falam para os outros, de modo
que o leitor tome conhecimento das informações. Esta estratégia ajuda a compor a ordenação
clara do texto, e para isso, um processo subjetivo-perspectivista deve ser evitado a todo custo.
As inúmeras interpolações da narrativa, o avançar e retroceder espaço-temporalmente, cumpre
a função de manter a descrição dentro de um plano unívoco e objetivo.
Para esta univocidade e objetividade persistirem, os heróis não devem cair em situações
psicologicamente problemáticas e seus destinos devem ser determinados de antemão. Dessa
maneira, o personagem homérico permanece o mesmo ao longo do tempo, sendo tanto a sua
imagem como a sua relação frente à vida, simples. Tudo se passa como um agradável passeio,
não há ensinamentos, não há verdades ocultas, nada existe para além de seu próprio conteúdo.
Já no Antigo testamento, como por exemplo a descrição do sacrifício de Abraão, o
contraste se mostra nítido, já que nada é contextualizado, nem lugares, nem causas, nem
interlocutores. Só o que deve ser conhecido no aqui e agora, dentro dos limites da ação, é
iluminado, de resto, tudo fica no escuro. Toda essa obscuridade carrega o relato com uma
tensão ininterrupta e densa, em vista do ‘todo’ permanecer enigmático e carregado de
segundos planos. Os personagens bíblicos, em comparação com os homéricos, são ricos
subjetivamente, constituídos por uma multiplicidade de camadas interiores, de situações
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psicológicas intricadas, que os fazem com mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à
consciência.
Esta profundidade, fruto das inúmeras camadas da consciência sobrepostas
simultaneamente e do conflito entre elas, a possibilidade de enfrentar, ao longo de uma vida,
situações problemáticas internamente, faz com que os acontecimentos anteriores provoquem
alterações no ponto de vista e no modo de agir dos personagens. Como conseqüência, eles
apresentam um cunho individual absolutamente alheio aos heróis homéricos, sendo
fortemente carregados pela sua história vital.
A amplidão da oscilação pendular está em relação com a intensidade da história pessoal – justamente as situações extremas, nas quais somos abandonados ou lançados ao desespero extremo, nas quais, além de toda a medida, nos sentimos felizes ou exaltados, conferem-nos, quando as superamos, um cunho pessoal que se reconhece como resultado de intenso desenvolvimento, de uma rica existência (Auerbach, 2007b: 15).
O velho testamento apresenta então um caráter de “história das personalidades”, já que,
mesmo se tratando de personagens escolhidos pela vontade divina, mesmo sendo seus
portadores, eles continuam sendo falíveis, sujeitos à desgraça. Não existe uma coincidência
entre a eleição divina e a modelagem dos personagens porque esta é histórica, vai se
configurando ao longo da vida terrena dos escolhidos. “Só no decorrer de uma vida rica em
lances de fortuna os homens se diferenciam até a plena caracterização” (Ibid.).
A religião cristã é condicionada por uma exigência de verdade histórica, cuja autoridade
se quer absoluta. Sua estrutura histórico-universal pretende abarcar todos os acontecimentos
de todos os tempos e em relação à vida de todos os homens. Assim, situações horizontalmente
esparsas e desconexas podem sempre ser inseridas dentro da verticalidade de seu modelo
interpretativo, “o que não pode ser encaixado nessa estrutura, não possui lugar algum” (Ibid.,
p.18). E para abarcar as mudanças históricas inerentes aos acontecimentos, seu conteúdo deve
sofrer constantemente processos re-interpretativos.
O realce de algumas partes e escurecimento de outras, o efeito sugestivo do tácito e a
falta de conexão, ajudam a constituir esse efeito de profundidade, que vai de encontro a uma
nova concepção de homem. Nela, os homens passam a ser portadores de mistérios ocultos, sua
natureza não consegue desvencilhar-se das contradições e ambigüidades próprias de uma
existência histórica. Essa alusão ao implícito, ao que permanece inexpresso, é o que dá
sentido também à mensagem bíblica, segundo a qual a mensagem e a graça divinas nunca se
mostram clara e objetivamente, pois Deus não pode ser compreendido ou somente concebido
em sua totalidade, sempre haverá a alusão aos seus mistérios, ao caráter oculto do divino.
As escrituras introduziram, portanto, um movimento na observação do acontecer, alheio
não apenas aos poemas homéricos, mas a toda a literatura antiga. Mesmo o sofisticado
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romance de Percênio ou a historiografia antiga de Tácito possuem limites bem estreitos no seu
realismo, seja pelo moralismo ou pela retórica, e consequentemente, uma também limitada
consciência histórica (Ibid., p.34, 35). A apresentação dos personagens em seu devir
histórico, sujeita à oscilação do pêndulo do desenvolvimento pessoal, insere um
inacabamento que diz respeito à própria construção do homem em seu presente, um presente
tecido dentro da vida cotidiana, inseparável da substância conflitiva inerente a ela.
Esta historicidade e mobilidade são próprias de uma nova concepção de sublime
introduzida pela sagrada escritura, a partir da história de Cristo e configurada pelas releituras
dos pais da Igreja, especialmente Santo Agostinho. É preciso salientar, antes de tudo, que a
tradição acadêmica da antiguidade, condizente com o gosto das camadas letradas, como os
círculos dos pagãos cultos, era marcada pelo modo retórico de expressão e constituída pela
regra geral da hierarquia dos temas. Estes deveriam concordar com o estilo próprio a cada
forma de expressão, que eram fixadas de acordo com a dignidade do tema, estabelecida
segundo valores absolutos. Desta forma, os três níveis de estilo (parva, modica, magna)
deveriam corresponder, respectivamente: ao baixo, a fala sobre coisas pequenas,
insignificantes, cotidianas, obscenas; ao médio, as coisas medianas; e ao elevado, as coisas
grandiosas e sublimes.
Entretanto, a própria figura de Cristo, insere neste quadro uma contradição e um
paradoxo inextrincáveis, encerrados pelo seu realismo de origem, pela sua paixão, pela
ressurreição. Para a eloqüência cristã, não faz sentido tal separação de estilos, já que todos os
temas passam a conter uma seriedade própria à possibilidade de salvação, não havendo
nenhum indigno, já que tornam-se uma via de acesso em potencial à grandiosidade divina.
Segundo Auerbach, foi precisamente Santo Agostinho que vislumbrou de modo mais aguçado
o sentido de humilis presente na imagem de Cristo e em todo o estilo das sagradas escrituras.
Ele foi o maior responsável por desvelar o sermo humilis, fundando a cultura medieval e
lançando as bases desse realismo trágico e de uma mistura de estilos cuja orientação servisse
aos propósitos da pregação cristã, podendo somente o contexto e, sobretudo, a intenção serem
capazes de determinar quais níveis de estilo usar. Assim, Santo Agostinho se tornou um
mestre da retórica, que se valia da tradição clássica para os propósitos cristãos.
O termo humilis sempre teve conotação pejorativa, remetendo ao baixo, reles, simples,
inferior, sendo a denominação mais usual e ampla para designar o estilo baixo. Até que ela
tornou-se o termo mais importante para designar a Encarnação, sofrendo uma inversão de
significado no âmbito moral com a literatura cristã, ganhando, então, relevo positivo. Humilis
passa a remeter não só à humilhação concreta da divindade, como ao estilo humilde da
Escritura, sendo justamente nesta “baixeza” que se passa a reconhecer uma nova forma de
12
sublime. Pois, se a sua aparência é simples, já que tem o propósito de ser acessível a todos os
homens, seu conteúdo não se mostra imediatamente compreensível, contendo inúmeros
mistérios, sentidos ocultos e passagens obscuras. A dignidade desta nova forma de sublime
reside precisamente nesses mistérios, nesse segredo.
4.2- Olhar de menino: uma visão do “baixo”
Por este prisma, o caráter infantil do livro ganha um outro relevo e uma significação
mais profunda, pois não se torna algo fortuito o fato da perspectiva que constitui a narrativa
ser a do “menino”. Apesar de tratar dos acontecimentos da infância, e justamente por ter como
protagonista, uma criança – símbolo recorrente da inocência e da humildade - é que tais
situações terminam por se revestir de uma dignidade ímpar, e até de seriedade.
Neste caso, da mesma forma que, na doutrina cristã, a salvação do homem inerente à
universalidade da intenção religiosa, poderia provir de qualquer matéria, de qualquer ocasião
ou ato, justificando assim a abolição da hierarquia temática tradicional em vista da seriedade e
grandiosidade que todos os temas passam a ter, em Jorge Amado, a condição de criança,
ligada ao processo de formação da personalidade, que se dá através do desenvolvimento da
história pessoal, parece pôr em jogo a mesma importância. Portanto, a modelagem que a
história pessoal imprime ao menino, o que se mostra sublime aos seus olhos humildes, o que
marca com intensidade e coloração a sua trajetória, se revela significativo e mesmo
imprescindível, para a própria existência do homem.
Na narrativa, o cotidiano do menino grapiúna, permeado por doenças, guerras e
mortes, infunde uma intensidade particular à sua experiência infantil. Ao tratar da criação de
uma cultura particular, de uma “nação” específica em seu processo de devir histórico, as
ambigüidades e contradições não são escondidas, o que acaba por incutir uma densidade
específica a esses conceitos. Com isso, a narrativa termina por promover um movimento de
rebaixamento da idéia de progresso e de civilização, que, não tomados como postulados de
valores univocamente estáveis e positivos, através da expressão de suas contradições e das
conseqüências ambíguas de sua implantação, são retirados da áurea monumental com a qual
tais noções tendem a se revestir, passando a atuar numa esfera ambígua, constituída por
tensões.
Na infância do menino, a praia aparece como um pólo alternativo, mas igualmente
significativo da experiência infantil. Os pais de Jorge Amado vão para a praia do Pontal, após
terem perdido tudo com a enchente, para trabalhar e juntar economias com o intuito de
atirarem-se à aventura do plantio de cacau novamente, indo desta vez para o embrionário
13
povoado de Pirangi, hoje cidade de Itajuípe. Neste entretempo passado na praia, o menino
entra em contato com um outro tipo de experiência, também nela aparecendo o rebaixamento
como o princípio pelo qual as vivências cotidianas se tornam significativas. Desta vez, não
seriam mais as situações extremas (morte, doença, guerra) as ressignificadas dentro do plano
sedutor, quase mágico, da aventura. Pelo contrário, esse processo se daria através do
enaltecimento das situações mais simples e ordinárias.
Da praia do Pontal, de infinita beleza, o menino cavalga em cacho de cocos verdes, eleva-se nos ares, sobrevoa o porto e os navios, vive entre realidade e imaginação. Na garupa do improvisado ginete conduz a fada, a princesa, a estrela, a esfarrapada vizinha; nos olhos e no riso da companheira de viagem aprende as primeiras noções de amor. (Ibid., p. 29,30)
Nesta representação da experiência ‘praiana’, um cacho de coco transforma-se num
cavalo alado, um passeio torna-se uma viagem, a vizinha esfarrapada vira uma princesa,
enquanto canoas convertem-se em transatlânticos e navios piratas. A imaginação torna-se
parte constitutiva da experiência infantil. “A tropa armada partiu, certamente um pequeno
grupo de homens, pareciam-me um exército” (Ibid., p. 44). A perspectiva do menino, apesar
de proceder através de uma operação de enaltecimento e monumentalização, ao ter seu foco
nos objetos e acontecimentos corriqueiros e simples, acaba por aprofundar a representação do
“baixo” enquanto valor. Neste sentido, o menino acaba se tornando uma metáfora da
representação do baixo enquanto princípio cognitivo e moral, e a partir do qual é possível
encontrar a grandeza nas coisas banais e um sentido profundo nos acontecimentos mais
simples.
Talvez seja uma operação análoga à empreendida por Michel Leiris (1979), que ao
ressignificar os objetos e as situações prosaicas de sua infância, pôde vislumbrar o
extraordinário e perigoso no cotidiano banal, extraindo daí sua noção de “sagrado”. Um
sagrado que, justamente pelo seu deslocamento de sentido, é capaz de permear e brotar da
vida cotidiana e que, devido a esse encontro de significados alternativos nos pequenos atos e
objetos da experiência corriqueira do dia-a-dia, ao serem retirados de seu domínio de
significação normal, passam a revelar novas realidades, isto é, novos sentidos na realidade
existente.
O legado da doutrina cristã proporcionou a criação de uma linguagem própria,
trazendo conseqüências para os sentidos da noção do “baixo”. Esta nova acepção abre
caminho para uma construção séria e realista da esfera do cotidiano, com a idéia do sublime
abarcando indissoluvelmente o baixo, o prosaico, através do denominador comum da idéia de
humildade. Eliminando as barreiras entre os estilos, de forma a alcançar a alma individual e a
atuar na construção do presente, a oratória cristã, pelo uso do apelo direto ao leitor, consegue
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operar uma destruição das barreiras entre eu e tu, instaurando uma proximidade inédita, um
contato humano impensável no estilo elevado da Antiguidade.
4.3- Diga-me com quem andas e te direi quem és: humiles personae
A idéia deste sublime abrange, não somente a humildade do ânimo cristão, a
simplicidade popular do estilo das escrituras ou a natureza concreta da divindade, mas
também a condição social dos destinatários a quem a doutrina se dedica. Deus elegeu, antes
de todos, pessoas simples, pescadores e publicanos, que foram seus primeiros discípulos, que
se depararam com o aparecimento extraordinário da divindade no curso normal de suas vidas,
sendo a própria vida de Cristo passada nos lugares comuns, em meio a gente simples.
É interessante atentar de modo mais preciso para os personagens que circulam no livro
de Jorge Amado e que habitam o universo infantil do autor. Mapeando, de modo bem
esquemático, as figuras que sucessivamente aparecem ao longo da narrativa, encontramos:
desbravadores/aventureiros; coronéis e seus jagunços, “mão-de-obra, vinda do alto sertão das
secas ou do Sergipe, da pobreza e da falta de trabalho - os “alugados”, os bons de foice e
enxada e os bons de pontaria” (Ibid., p. 12); leprosos e bexigosos; canoeiros;
valentes/bandidos; prostitutas; vagabundos; jogadores; trabalhadores. O cotidiano do menino
é permeado por pessoas de baixa extração social, pessoas de condição humilde. Em algum
momento ele lança uma auto-definição muito sugestiva:
Que outra coisa tenho sido senão um romancista de putas e vagabundos? Se alguma beleza existe no que escrevi, provém desses despossuídos, dessas mulheres marcadas com ferro e brasa, os que estão na fímbria da morte, no último escalão do abandono. (Ibid., p. 58) Sua descrição dos bordéis, lugares onde tendo apenas dez anos de idade já freqüentava
às escondidas na companhia dos jagunços que trabalhavam para seu pai, pinta um quadro
maternal. Da convivência com as putas, ele herda bens preciosos como “puro carinho”,
“comovida ternura”, “calor, agasalho e alegria” (Ibid., p. 56), sendo que “nenhuma delas,
jamais, teve gesto ou anelo que não fosse puro e maternal.” (Ibid., p. 57), todas possuindo
“incomensurável capacidade de amor.” (Ibid.). A síntese entre o sublime e o humilde
empreendida pelo termo humilis parece vigorar com toda intensidade na experiência do
menino com estes despossuídos:
Nada tinham de prostíbulos, a palavra pesada e torpe não serve para designar interiores tão familiares e simples, onde toquei os limites extremos da miséria e da grandeza do ser humano. (Ibid., p. 56 – grifo meu) No seu relato, a convivência com as “mulheres-da-vida” assume uma enorme
importância na construção da sua subjetividade, em especial através da noção de
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aprendizagem. O contato com estas pessoas imprimiu uma intensidade ímpar ao seu cunho
pessoal, fazendo com que ele entendesse, de maneira profunda, os sentidos da existência.
Mulheres perdidas, assim eram chamadas, o rebotalho da humanidade. Para mim, de começo foram maternais, depois amigas fraternas, tímidas e ardentes namoradas. Acalentaram meus sonhos, protegeram minha indócil esperança, deram-me a medida da resistência à dor e à solidão, alimentaram-me de poesia. (Ibid., p. 57)
Seja num simples passeio à feira, seja observando partidas de pôquer na companhia de
seu tio, ou a vivência de uma epidemia de varíola – “A bexiga e os bexigosos povoam meus
livros, vão comigo pela vida afora” (Ibid., p. 25), o que se mostra relevante é o fato de que o
contato e a convivência com pessoas simples deixam marcas na personalidade do personagem,
constituindo e transformando, consequentemente, sua visão de mundo, sua percepção sobre a
vida. E de que o meio legítimo de aprender é experimentando, vivendo.
Uma festa, um deslumbramento. Entre os sacos de feijão e farinha, as mantas de jabá, as jacas, as abóboras, os cachos de bananas, as raízes de inhame e aipim, no meio do povo, homens e mulheres que possuíam a cor e o odor da terra, o menino ia aprendendo sem se dar conta. (Ibid., p. 50) Entre jagunços, aventureiros, jogadores, o menino crescia e aprendia. Aprendeu a ler antes de ir à escola, nas páginas do jornal “A Tarde”, nos anos de Pontal. Aprendeu as regras do pôquer sentado atrás de seu tio Álvaro Amado (...) até hoje não me explico porque aqueles rudes senhores não mandavam embora o menino curioso e inquieto, interessado no jogo. (Ibid., p. 68)
De maneira curiosa, a partir do que foi exposto até aqui, as declarações de Jorge Amado
em torno da representação da sua identidade, soam profundamente cristãs. Na descrição que
apresenta dos personagens que cruzaram a sua história, encontramos com nitidez o sentido
pleno da concepção cristã de sublime, cuja existência reside nos acontecimentos simples e
cotidianos, nas pessoas humildes. Assim, a noção de experiência do autor alcança uma
ressonância que parece ter seu fundamento na figura de Cristo e na concepção de homem
engendrada por ela. Após apresentar brevemente o episódio no qual reside um “mito de
origem” de Jorge Amado enquanto escritor, tentarei recuperar ainda outros sentidos que
ajudem a compor de forma mais pungente os contornos desta subjetividade amadiana
estruturada pela noção de humilis.
5- Pensamento Encarnado: sobre os sentidos de ser homem
O clímax da narrativa se dá quando o personagem é posto num internato jesuíta para
completar seus estudos. Ao longo da sua descrição, a imagem do internato vai se estendendo,
havendo um transbordamento dos seus sentidos para um campo de significação bem mais
amplo, que configura ao mesmo tempo a visão de mundo do escritor e a construção da sua
subjetividade.
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Em vista da liberdade das ruas, a ida para o internato foi entendida pelo menino como
uma prisão, uma violência, “a tentativa de domá-lo, de reduzi-lo, de obrigá-lo a pensar pela
cabeça dos outros” (Amado, 1982: 102). Por uma obra do acaso, devido a uma doença, ele
tem seu professor de português substituído pelo “padre Cabral”, que faz o personagem
descobrir a literatura, o que teria aberto “as portas da cadeia” para ele. Mas o interessante é
prestar atenção a como o fato se deu e o que o autor entendeu como as suas causas:
(Era) Aplaudido orador sacro, o padre Luiz Gonzaga Cabral, (...) seus métodos de ensino nada tinham de ortodoxos. Em lugar de nos fazer analisar “Os Lusíadas”, tentando descobrir o sujeito oculto e dividir as orações, reduzindo o poema a complicado texto para questões gramaticais, fazendo-nos odiar Camões, o padre Cabral, para seu deleite e nosso encantamento, declamava para os alunos episódios da epopéia. Apesar do sotaque de além-mar, a força do verso nos tomava e possuía. (...) despertava nossa sensibilidade, retirando-nos do poço da gramática portuguesa (cujas rígidas regras nada tinham a ver com a língua falada pelo povo brasileiro) para a sedução da literatura, das palavras vivas e atuantes. As aulas de português adquiririam outra dimensão. (Ibid., p. 112,113)
A mudança substancial do “encarceramento” para a “liberdade” se deu por uma
aparentemente simples mudança de método. Devido a pouca ortodoxia do novo professor, que
não seguia os padrões pedagógicos da época, pôde ser descoberta essa “outra dimensão” da
aula de português, que se dá ao passar da gramática para literatura, da regra inerte para as
palavras vivas e atuantes. O que estaria em jogo aí é a relação entre ortodoxia e heresia, entre
regra e transgressão. Pois mesmo se tratando de uma “pequena rebeldia”, “revelou-se positiva
e criadora. A heresia é sempre ativa e construtora, abre novos caminhos. A ortodoxia
envelhece e apodrece idéias e homens” (Ibid., p. 103).
Essa linha de raciocínio continua e se estende num comentário sobre a figura do herói.
A esse respeito, o autor diz: “na literatura e na vida, sinto-me cada vez mais distante dos
líderes e dos heróis, mais perto daqueles que todos os regimes e todas as sociedades
desprezam, repelem e condenam” (Ibid., p. 58). Nesse caso, à idéia de heterodoxia se alia a
representação de um vigoroso ideal anti-heróico. Para explorar seus sentidos, vou me valer da
reflexão de Todorov sobre o heroísmo, pois me parece adequada para iluminar aspectos
fundamentais da concepção amadiana.
Segundo o autor, o “espírito heróico parecia ter agido como uma droga” entre os
líderes da insurreição de Varsóvia em 1944 (Todorov, 1995: 13). Tal espírito seria constituído
pelos seguintes princípios: a preponderância do “dever-ser” frente ao “ser”; preferência do
“ideal”, sempre abstrato e impessoal, ao “real”. Não importa que milhares de varsovianos
morram para que se salve a “Varsóvia”. Não é o povo, mas algumas de suas qualidades que
importam, a “vontade de liberdade”, o “orgulho nacional”. No heroísmo, a convicção vem
antes da responsabilidade e a morte tem um valor superior à vida. Desta forma, o mundo dos
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heróis se mostra unidimensional, abstrato, inequívoco e dualista. A dignidade para o herói é
um fim, encarna um valor absoluto.
Os líderes e os heróis são vazios, tolos, prepotentes, odiosos e maléficos. (...) Em qualquer posição que assumam, em qualquer sistema de governo ou tipo de sociedade, o líder e o herói exigirão obediência e culto. Não podem suportar a liberdade, a invenção e o sonho, têm horror ao indivíduo, colocam-se acima do povo, o mundo que constroem é feio e triste. (Amado, 1982: 61,62)
Em vista do que chamou de “virtudes heróicas”, Todorov contrapõe as “virtudes
cotidianas”, cuja principal característica dos atos orientados por ela seria dirigirem-se sempre
a seres humanos particulares, sendo que tais atos devem ser sempre assumidos pelo agente,
tornando-se também subjetivos. A partir disso, define-se o domínio da moral entre uma “de
princípios”, a heróica, e uma “de simpatia”, referente ao domínio da socialidade. “O domínio
da moral só começa a partir do momento em que a regra abstrata é assumida por um
indivíduo particular, aquele mesmo que o enuncia” (Todorov, 1995: 129).
Esta passagem, da regra abstrata ao indivíduo particular, se mostra relevante pelo fato
de remeter à noção de concretude. Na narrativa de Jorge Amado, essa dimensão concreta da
experiência parece assumir um lugar central, aparecendo como principio fundante da sua
literatura na descrição do seu “mito de origem”. Em consonância ao espírito humilde da
infância, o episódio aparece de forma bem singela, em torno de uma redação sobre o mar,
depois da qual o padre Cabral revela à turma a vocação para escritor do personagem. O que se
mostra significativo é o fato de que, tendo que fazer a descrição do mar como tema,
a classe se inspirou toda ela, nos encapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados, o episódio do Adamastor foi reescrito pela meninada. Prisioneiro no internato, eu vivia na saudade das praias do Pontal onde conhecera a liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema de minha descrição (Amado, 1982: 61,62)
Novamente, a concepção daqueles mares “nunca dantes navegados”, os mares de
Camões, apenas “reescrito”, se contrapõe ao mar que tinha saudade, no qual “conhecera a
liberdade e o sonho”. O valor dessa dimensão concreta dos eventos da vida aparece com
clareza. A imagem do internato como o “encarceramento” configura uma experiência descrita
pelas sensações de “sufoco”, “limitação”, e é estendida a duas outras ocasiões, quando “no
desejo de bem servir a causas generosas e justas” (Ibid., p. 102), aceitou encargos e
desempenhou tarefas para os quais não tinha vocação nem gosto (tornando-se deputado
federal) e quando admitiu e repetiu conceitos, regras e teses que não eram dele. Então conclui
“pensei pela cabeça dos outros.” (Ibid.).
A longa e dura experiência ensinou-me, no passar dos anos, a importância de pensar pela própria cabeça. Para pensar e agir por minha cabeça, pago um preço muito alto, alvo que sou do patrulhamento de todas as ideologias, de todos os radicalismos ortodoxos. Preço muito alto, ainda assim barato. (Ibid., p. 103)
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Gostaria de me deter, por fim, no significado desse pensar pela própria cabeça, pois
acredito que os sentidos assumidos por essa idéia costuram de maneira exemplar as noções
abordadas até aqui, e nela podemos ver o princípio estrutural da subjetividade amadiana, cujos
contornos vão se tornando mais inteligíveis, conforme a lógica de seu pensamento vai se
iluminando através da articulação de todos os seus elementos. O livro acaba, de forma muito
sugestiva, com o menino, aos treze anos, fugindo do internato e “atravessando o sertão da
Bahia rumo a Sergipe, iniciando minhas universidades” (Ibid., p. 120).
A fuga, neste sentido, é uma imagem na qual se cristalizam os valores constituídos
pelo distanciamento da prisão. Esta prisão não é somente o lugar físico do internato, mas é
sobretudo uma prisão simbólica, representada pela ortodoxia, pelas teorias, pelos conceitos
rígidos, pelas regras, pelos heróis e líderes, pela cabeça dos outros. Explorando os contornos
semânticos desta imagem da prisão, chegamos a uma concepção na qual uma importância
crucial é dada à noção de forma. Não me refiro à forma como algo prefixado e objetivo, me
aproximo à formulação de James Weiner (2001) que recupera o sentido grego da palavra
techne como uma forma de poiesis, uma revelação, algo que permite trazer à tona (bring-
forth). O autor põe em evidência, assim, o caráter cognitivo da forma, inerente ao modo como
nos engajamos no mundo, que determina a nossa percepção, logo, a existência, dos
fenômenos sociais.
A antropologia vem cada vez mais prestando atenção ao aspecto da materialidade
inerente ao processo cognitivo, ao caráter mediador fundamental que os objetos materiais
exercem na constituição e expressão dos sistemas sociais e simbólicos da cultura, assim como
na construção das identidades individuais e coletivas (Gonçalves, 2007). Neste sentido, não só
os objetos, os patrimônios, mas também o corpo seria um mediador sensível crucial à
experiência humana, articulando o aspecto sensorial ao cognitivo, as práticas objetivas aos
processos simbólicos, dando a eles movimento. Uma dinâmica inerente à necessidade
permanente do eu de constituir-se, de recriar-se a todo momento, própria da qualidade
transformacional, plástica deste estado de “ser” ou de “estar sendo”.
Buscando agora iluminar a noção de experiência de Jorge Amado, volto à discussão
sobre a tradição cristã através da imagem da carne. Ela remete ao caráter material de Cristo, a
partir dela, foi constituída a antítese paradoxal mais profunda da doutrina cristã, homem e
Deus, corpo e espírito, baixeza e altura. Santo Agostinho encontra na noção de humilis o
sentido da Encarnação, afirmando a natureza corpórea de Cristo, a sua humildade, em
contraposição ao desprezo pela carne dos platônicos, a sua soberba. Deste “Deus encarnado”
surge a nova acepção de humilis, de valor positivo, se constituindo como o fundamento da
importância dada aos eventos concretos na doutrina cristã (Auerbach: 2007a: 47).
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A noção de humilis é denominador comum desse sublime que, por se expressar através
do simples, do insignificante, é sempre velado de mistérios, de segredos e significados
ocultos. Esse segredo parece ir de encontro com a concepção de pensar pela própria cabeça,
no sentido de que incita um movimento cognitivo que necessariamente deve passar pela
apreensão subjetiva. No caso bíblico, o conteúdo da revelação de Cristo se oculta atrás da
“baixeza” estilística, assim, ela se torna acessível a todos, sem, no entanto, tornar seu sentido
objetivamente apreensível. Sua compreensão se dá à medida do envolvimento, da postura
humilde de cada um frente à profundidade dos ensinamentos da graça divina.
No caso de Jorge Amado, a humildade se liga à possibilidade de transformação, ao
movimento criativo das formas assumidas pelo próprio eu diante da convivência com os
outros. A soberba da forma que não precisa ser ‘retocada’, a univocidade da forma enrijecida
é contraposta à multiplicidade própria das formas em movimento, abertas à transformação. A
idéia da universidade, sempre no plural, ao mesmo tempo em que é uma metáfora a respeito
do conhecimento, qualifica a noção de experiência do autor, pois o aprendizado provém do
contato e da interação com as pessoas - “os personagens das obras de ficção resultam da soma
de figuras que se impuseram ao autor, que fazem parte de sua experiência vital” (Amado,
1982:71). A relação social é a condição inerente ao conhecimento, contudo, este não deve ser
apreendido por meio de um processo objetivo, exterior, uma simples reprodução carente de
sentido, desprovida de ressonância (Gonçalves, 2007).
O que permite não submergir às ‘maneiras de pensar dos outros’, às teorias alheias, o
que é capaz de tornar uma experiência significativa subjetivamente é uma reflexividade
permanente frente à relação com a alteridade – uma relação na qual sempre existe a
possibilidade de uma “predação”, uma abdução pelo ponto de vista alheio, pronto para
enrijecer e cristalizar dentro de seus moldes, as subjetividades cujo sentido interno não se faz
atuante (tornando-se ‘presa fácil’, “alvo” do “patrulhamento de todas as ideologias, de todos
os radicalismos ortodoxos”). Essa reflexividade é o que permite que a forma assumida pelo eu
não se cristalize, não se objetifique em uma forma automática cuja existência não seja mais
significativa, não gerando mais esse sentimento de intensidade inerente a uma existência rica.
Esta concepção se aproxima à idéia de “cultura autêntica” formulada por Edward Sapir
(1949), segundo a qual a “autenticidade” das formas da experiência social estaria na harmonia
e coerência dos sentidos internos aos indivíduos frente às suas vidas.
Entretanto, esta exigência do processo reflexivo não encerra a experiência dentro de
um plano estritamente consciente, e estavelmente controlado. Pois, para entrar em contato
com aquele “sublime”, para vislumbrar um rasgo de luz na obscuridade do oculto, para, em
meio a um emaranhado de conexões múltiplas e dinâmicas de sentido, fazer-se significativo, é
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preciso lidar com o acaso. É a conjugação proveniente desse lançar-se ao mundo, do risco
inerente ao imponderável da existência em seu devir, com um engajamento consciente e
reflexivo frente às formas que se apresentam, que dá o sentido desse pensar pela própria
cabeça da subjetividade amadiana.
O narrador benjaminiano, para fazer a substância narrada significativa para seus
ouvintes, precisa imergi-la em si para, em seguida, “retirá-la dele próprio.” (Benjamin, 1975:
69). A moral de Todorov, “não existe em si mesma, mas apenas depois de relacionada a seu
autor, em determinado momento e lugar” (Todorov, 1995: 133). A aventura de Simmel, se
constitui somente na “radicalidade que se sente como tensão da vida mesma, como expoente
do processo vital” (Simmel, 1988: 26). De mesmo modo, é como condição material através da
qual o homem experiencia plenamente sua existência, que a carne adquire sentido.
Em Jorge Amado, a lógica de construção da sua subjetividade parece se adequar a essa
imagem do pensamento encarnado, cuja construção ontológica passa pela tradução
permanente de si em vista da experiência reflexiva com a alteridade, do engajamento que o eu
assume frente à vida. É esse “sentir na pele” inerente ao que Simmel chamaria de
“problemática de nossa posição no mundo” (Ibid., p. 25) que dá o sentido da “encarnação”.
Curiosamente, através deste sentido da imagem da “carne”, chegamos a uma idéia muito
semelhante à concepção ameríndia de construção ontológica, na qual o “corpo é a sede da
perspectiva” (Viveiros de Castro, 2002).
O corpo, a carne constitutiva do homem, é o que forneceria a condição paradoxal e
ambígua da existência sendo, ao mesmo tempo o que permite e o que limita a vida. A
condição encarnada é o que possibilitaria a profundidade significativa da vida, o que dá a ela
singularidade e unicidade, o que acarreta a transformação do sujeito a cada vez que
descobrimos seus sentidos ocultos, a cada vez que pela condição da nossa existência nos são
revelados alguns de seus segredos.
Ao longo da narrativa, o autor fala de si de diversas maneiras. As auto-designações
oscilam entre o “menino”, o “autor”, o “filho”, o “infante”, um “romancista”. Além disso, os
pronomes pessoais são usados ora na primeira ora na terceira pessoas. Estas estratégias de
tratar o “eu” como “outro”, de se definir a partir de várias perspectivas, parecem apontar para
uma ontologia que abriga em si uma alteridade. Este processo de criação de camadas
múltiplas internamente pode ser uma maneira de produzir uma autoconsciência, de construir
uma reflexividade sobre a própria subjetividade, que reforça a idéia de que o personagem, o
escritor e o menino, ao dialogarem, buscam revelar, e ao mesmo tempo, construir a figura
mais complexa, e englobante, o homem.
21
Referências Bibliográficas
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