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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS MESTRADO EM LETRAS NEOLATINAS TRADUÇÃO DE HUMOR: PRÁTICAS DE TRADUÇÃO EM ASTÉRIX Michele Sodré Gonçalves RIO DE JANEIRO 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

MESTRADO EM LETRAS NEOLATINAS

TRADUÇÃO DE HUMOR: PRÁTICAS DE TRADUÇÃO EM

ASTÉRIX

Michele Sodré Gonçalves

RIO DE JANEIRO

2014

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TRADUÇÃO DE HUMOR: PRÁTICAS DE TRADUÇÃO EM

ASTÉRIX

Michele Sodré Gonçalves

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos

Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa)

da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para

a obtenção do título de Mestre em Letras

Neolatinas.

Orientadora: Profa. Doutora Angela Maria da Silva Corrêa

FACULDADE DE LETRAS – UFRJ

Rio de Janeiro

2014

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Dedico este trabalho

A Deus, o grande Mestre

À minha família, minha mãe, Neli, minha rocha, minhas irmãs Alba e Dayse pelo

apoio e a meu marido Rafael pelo incentivo e pela ajuda que me deu em todos os aspectos.

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AGRADECIMENTOS

À professora Angela Maria da Silva Corrêa, orientadora no sentido original da palavra,

sem a qual não teria concluído esse trabalho. Ao professor Fernando Afonso Almeida por me

apresentar aos estudos acerca da comicidade.

A todos que tiveram a paciência de ouvir minhas histórias a respeito de gauleses

irredutíveis e sua aldeia.

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Michele Sodré Gonçalves

TRADUÇÃO DE HUMOR: PRÁTICAS DE TRADUÇÃO EM

ASTÉRIX

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos

Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa)

da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para

a obtenção do título de Mestre em Letras

Neolatinas.

Aprovada em ____/____/_____

________________________________________________

Orientadora: Profa. Dra. Angela Maria da Silva Corrêa

Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Afonso Almeida

Universidade Federal Fluminense

________________________________________________

Profa. Dra. Márcia Atálla Pietroluongo

Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________

Profa. Dra. Maria Aparecida Lino Pauliukonis - suplente

Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________

Profa. Dra. Júlia Christina Nascimento A. Waite – suplente

FAETEC

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RESUMO

A tradução de humor é a principal fonte de análise do presente trabalho. A razão de ser

do texto humorístico é fazer rir, seja ele em sua língua de origem ou de forma traduzida. No

trabalho, os textos escolhidos para análise foram dois exemplares da revista de história em

quadrinhos francesa Astérix. Os álbuns selecionados, Astérix chez Rahàzade e Astérix chez

les Bretons são analisados a partir de uma comparação entre o original e sua tradução para a

língua portuguesa falada no Brasil. Pretende-se encontrar possíveis problemas de tradução

que resultariam na perda da razão de ser dos textos analisados, o humor. As categorias

analisadas em cada texto são: jogos de palavras e mal-entendidos culturais. No trabalho são

abordadas ainda a definição de humor, a linguagem dos quadrinhos e o humor como campo

de estudos.

Palavras-chave: tradução, humor, quadrinhos, Astérix

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RÉSUMÉ

La traduction de l'humour est la principale source d'analyse de cette étude. La raison

d’être des textes humoristiques est celle de faire rire, que ce soit dans sa langue originale ou

à partir d’une traduction. Dans cette étude, les deux textes choisis pour l'analyse font partie

de la bande dessinée française Astérix. Les albums sélectionnés, Astérix chez Rahàzade et

Astérix chez les Bretons sont analysées à partir de la comparaison entre l'original et sa

traduction en langue portugaise parlée au Brésil. Le but de l’étude est celui de trouver les

problèmes potentiels de traduction qui pourraient entraîner la perte de la raison principale

des textes analysés, l’humour. Les catégories analysées dans chaque texte sont: jeu de mots,

et les malentendus culturels. Il est aussi abordé la définition de l'humour, la langue de la

bande dessinée et l'humour comme un domaine d'étude.

Mots-clés: traduction, humour, bande dessinée, Astérix

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ABSTRACT

Humour translation is the present study’s main source of analysis. The reason of being

of the humorous text is to make laugh, be it in its mother tongue or in a translated form. In the

subject, the chosen texts for analysis were two examples of the French comics “Astérix”. The

selected albums, “Astérix chez Rahàzade” and “Astérix chez les Bretons” have been

analyzed from a comparison between the originals in French and their translations to the

Brazilian Portuguese. The goal is to find possible translation problems which could lead to

the loss of the reason of being of the analyzed texts, humour. The categories analyzed in each

text are: wordplays and cultural misunderstandings. The author also approaches the

definition of humour, the comics’ language and the humour as a field of studies itself.

Keywords: translation, humour, comics, Astérix

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................... 15

2.1 O que é traduzir? ..................................................................................................... 15

2.1.1 A fidelidade do tradutor ............................................................................................. 19

2.2 Considerações sobre o humor .................................................................................. 20

2.2.1 O princípio com Bergson ........................................................................................... 20

2.2.2 Rosas e as três principais teorias ............................................................................... 23

2.3 Textos humorísticos e tradução ............................................................................... 27

2.4 Jogos de palavras e mal-entendidos culturais ......................................................... 29

2.4.1 Uma análise sobre jogos de palavras ......................................................................... 29

2.4.1.1 Tipologia dos jogos de palavras ............................................................................. 30

2.4.1.2 Características linguísticas dos jogos de palavras .................................................. 32

2.4.2 O mal-entendido cultural ........................................................................................... 35

2.5 A tradução de humor ............................................................................................... 37

2.5.1 Tradução de humor na prática ................................................................................... 39

2.6 A história em quadrinhos e Astérix ......................................................................... 46

2.6.1 A origem dos quadrinhos ........................................................................................... 46

2.6.2 O gênero quadrinhos ................................................................................................. 47

2.6.3 Ficção e realidade nos quadrinhos ............................................................................ 48

2.6.4 Contexto histórico e a criação de Astérix ................................................................... 49

3 METODOLOGIA .................................................................................................... 54

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4 RESUMO E APRESENTAÇÃO DOS ÁLBUNS ANALISADOS.......................... 55

4.1 Astérix chez les Bretons (Asterix entre os Bretões) ................................................... 55

4.2 Astérix chez Rahàzade (As mil e uma horas de Asterix) ........................................... 56

5 CATEGORIZAÇÃO E ANÁLISE DOS EXEMPLOS PROPOSTOS .................. 58

5.1 Jogos de palavras com nomes de personagens ........................................................ 59

5.1.1 Personagens presentes em todas as histórias ............................................................. 59

5.1.2 Nomes dos personagens em Astérix chez les Bretons .................................................. 60

5.1.3 Nomes dos personagens romanos ............................................................................... 61

5.1.3 Nomes dos Personagens em Astérix Chez Rahàzade ................................................... 61

5.2 Jogos de palavras presentes nos enunciados ........................................................... 62

5.2.1 Astérix chez les Bretons ............................................................................................. 62

5.2.1 Astérix chez Rahazade / As 1001 horas de Asterix ...................................................... 65

5.4 Mal-entendidos culturais ......................................................................................... 70

5.4.1 Astérix chez les Bretons / Asterix entre os bretões ...................................................... 70

5.4.2 Astérix chez Rahàzade / As 1001 horas de Asterix ...................................................... 72

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 74

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 77

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1 INTRODUÇÃO

O trabalho de tradutor é permeado de acertos, erros, escolhas e dúvidas. Ao traduzir

um texto o profissional precisa ter em mente as regras e nuances da língua de chegada tanto

quanto da língua de partida. É preciso ter conhecimento de mundo, saber para qual público

será direcionado o texto traduzido.

E o texto de humor? Mais ainda, as histórias em quadrinhos? Como traduzir

determinadas situações de humor sem que percam a comicidade original no texto traduzido?

Quais as técnicas usadas pelos tradutores para que o humor não se perca em seus textos? Por

que o tradutor usa determinada expressão em detrimento de outra? Até que ponto é possível

distanciar-se do texto original sem, no entanto, transformar sua tradução em uma adaptação

ou algo parecido?

Serão analisadas criticamente as traduções feitas no Brasil de dois exemplares da

revista em quadrinhos francesa Astérix1. A primeira aparição do personagem Astérix deu-se

em 29 de outubro de 1959 em Paris, na revista Pilote2. A revista continha histórias em

quadrinhos, pequenos romances e piadas; e começou a circular com edições semanais e

posteriormente mensais. Era uma publicação direcionada aos jovens. Dentre os fundadores

figuram os nomes de Albert Uderzo e René Goscinny, criadores de Astérix. As histórias em

quadrinhos eram uma constante nas edições de Pilote; porém, não eram mais importantes que

os textos jornalísticos.

A cerca das traduções de Astérix no Brasil, os dados são os seguintes3: as aventuras de

Astérix chegaram em 1967, através da editora portuguesa Ibis/Bertrand, importados pela filial

brasileira da espanhola Bruguera. Os primeiros álbuns que chegaram aqui foram Asterix o

Gaulês, e Asterix entre os Bretões. No ano seguinte, a Bruguera passou a lançar regularmente

os demais álbuns. Após isso, a editora Record começou a publicá-los no país e suas primeiras

edições datam da década de 1980. Asterix e Cleópatra, por exemplo, está em sua décima

primeira edição (2010), pela mesma editora (a primeira edição foi em 1985).

1 Será usada a grafia original do nome do personagem principal da obra (Astérix). As formas em itálico farão

referência aos títulos dos álbuns. Ex.: “Em Astérix le Gaulois, Astérix faz sua primeira aparição.”.

2 FONTE: http://tvmag.lefigaro.fr.

3 FONTE: http://hamaniacs.uol.com.br.

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Toda a coletânea da série Astérix4 conta com 34 álbuns e 8 edições especiais. Serão

analisados os seguintes álbuns: Astérix chez les Bretons, de 1966 (Asterix entre os Bretões), e

Astérix chez Rahazade, de 1987 (As mil e uma horas de Asterix). A escolha desses em

detrimento dos outros se deu pelo fato de que nos textos escolhidos os personagens entram em

contato com outras culturas, uma europeia e uma de outro continente, por intermédio de

alguns de seus representantes. Tais características tornam-se fontes de conflitos no que diz

respeito à tradução, uma vez que, em sua totalidade estão ligadas à cultura e ao conhecimento

prévio do destinatário, ou seja, do leitor.

Jogos de palavras e mal-entendidos culturais são baseados em situações advindas do

cotidiano. Esse cotidiano pode ser restrito a um grupo pequeno ou mesmo fazer parte da

cultura de um país inteiro. Por exemplo: no Brasil, existe o estereótipo conhecido do

português que seria o de alguém desprovido de inteligência e um tanto ingênuo. Esse

estereótipo é atribuído aos belgas pelos franceses. Ao traduzir uma piada na qual o belga é

alvo de brincadeira, o tradutor precisa lançar mão de um entre dois recursos: traduzir a piada

literalmente e recorrer às notas de pé de página, ou substituir a nacionalidade do personagem

pela nacionalidade na qual o leitor identifica o estereótipo atribuído à ela.

Segundo a definição do dicionário TLF (Le Trésor de la Langue Française) 5, jogo de

palavras é um procedimento linguístico baseado na semelhança fônica das palavras,

independentemente de sua grafia. Tem como finalidade animar a assistência pelo equívoco

que propicia. a arte de criar jogos de palavras não consiste em jogar com o duplo sentido de

uma palavra e sim em forçar o equívoco, seja pela decomposição de uma palavra em várias,

seja pela reunião de várias palavras em uma, respeitando apenas a ortografia.

A tradução de jogos de palavras, assim como os textos poéticos, necessita de

reformulação, uma vez que é importante manter a musicalidade da frase bem como seu

significado com relação ao texto. Quanto às expressões idiomáticas, é necessário

conhecimento prévio de expressões análogas no idioma para o qual o texto será traduzido.

O propósito principal das análises é observar como essas duas categorias são tratadas

pelos tradutores: se as categorias foram mantidas a partir de uma tradução literal, se houveram

mudanças na tradução para que fosse mantida determinada categoria ou ainda se a tradução

realizada descartou o perfil original dessa ou daquela passagem do texto.

4 FONTE: http://www.asterix.com.

5 FONTE: http://atilf.atilf.fr/ (Trésor de la Langue Française Informatisé).

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Pretende-se analisar cada um dos textos anteriormente citados e suas respectivas

traduções na tentativa de encontrar possíveis problemas de tradução que resultem na perda da

razão de ser dos textos analisados, o humor. Com essa análise será possível desmistificar a

ideia de que o humor, devido ao seu embasamento cultural seria intraduzível.

Propõe-se uma análise com o intuito de responder a alguns questionamentos acerca

das traduções feitas: quais seriam as técnicas usadas pelos tradutores para que o humor não se

perca em seus textos? Em que momento da tradução o tradutor não teria obtido o efeito de

humor presente no texto original? Pretende-se observar também a temática dos textos

originais e suas traduções.

Os tradutores de Astérix no Brasil teriam optado, em determinados momentos, por

duas possibilidades de tradução: a primeira seria a tradução literal das passagens de humor

nos textos, tendo como resultado a perda do elemento cômico nos jogos de palavras e nos

trocadilhos; a outra possibilidade seria a escolha de um equivalente cômico na língua de

chegada, nesse caso, o português. Tal escolha deu-se provavelmente a partir da decisão de

manter o fundo cômico, tendo como consequência certo afastamento da versão original. Há

ainda uma terceira possibilidade de tradução: o fato de os textos traduzidos serem histórias em

quadrinhos obriga o tradutor a manter a mesma quantidade de enunciados verbais existentes

nos textos originais. Tal fato implica a utilização, em determinados momentos das narrativas,

de expressões pouco usuais na língua de chegada ou mesmo incompreensíveis para um leitor

que busca encontrar situações cômicas, uma vez que os álbuns são essencialmente

humorísticos.

O objetivo geral do presente trabalho é comprovar que a tradução de humor às vezes

implica mudanças na estrutura do texto e que o mais importante, quando se traduz um texto de

humor, é manter seu perfil cômico, de forma que o texto não perca sua finalidade. Para que o

objetivo seja alcançado, serão desenvolvidas as seguintes etapas:

Detectar jogos de palavras e mal-entendidos culturais presentes no texto original

dos álbuns citados anteriormente;

Observar as modificações presentes no texto de chegada;

Qualificar as mudanças feitas;

Avaliar a escolha feita pelo tradutor com relação às expressões de efeito cômico, se

tais expressões foram desconstruídas ou traduzidas literalmente.

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O artigo intitulado Uma abordagem discursiva da tradução, de Angela Maria da Silva

Corrêa (2007) servirá como base para a definição de tradução. No texto a autora afirma que

traduzir é passar um texto de uma língua para outra, procurando manter no TLC (texto em

língua de chegada) o mesmo sentido do TLP (texto em língua de partida).

A análise dos textos será baseada nos estudos efetuados por Marta Rosas (2002) e

Sírio Possenti (2010). Marta Rosas aborda em seu livro um tema pouco explorado no Brasil, o

estudo da tradução de textos humorísticos. A questão de aceitar ou não como operação

propriamente tradutória uma transformação acentuadamente radical do texto de partida e a

decisão entre a possibilidade de se traduzir literalmente uma piada e a necessidade de se fazer

uma tradução funcional como único meio de atingir a finalidade visada, nas quais estão

baseadas as análises da autora, servem como embasamento teórico para as análises propostas

no presente trabalho.

Quanto à Possenti (2010), no capítulo intitulado É um campo: um programa, no qual é

abordada a linguagem de textos humorísticos, o autor faz uma análise da “língua” do humor

ao sugerir uma reclassificação do humor e sua caracterização como um campo. Essa

reclassificação proposta pelo autor é útil para análise dos textos propostos no trabalho, uma

vez que, ao considerar o humor como um campo pode-se recorrer às regras específicas desse

campo.

Antes de observar a maneira como foi traduzida essa ou aquela passagem de humor,

será necessário abordar a definição de humor, seus mecanismos e finalidades, a partir dos

textos de Bergson (2010) e Lustosa (2011).

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 O que é traduzir?

Antes de tentar responder a essa pergunta é necessário que se façam alguns

comentários sobre “contrato comunicativo”, termo usado por Corrêa (2007) para indicar um

acordo tácito que rege práticas comunicativas.

O “contrato comunicativo” ou de comunicação é, segundo Charaudeau (2010),

constituído pela legitimidade dos sujeitos falantes fundada na situação de comunicação. A

situação de comunicação é o lugar das instruções discursivas que têm sua origem na

“identidade” dos parceiros e no lugar que eles ocupam, na finalidade que os religa e nas

circunstâncias materiais nas quais as trocas se realizam. É essa situação que determina o

espaço da troca linguageira e suas condições de produção. O sujeito falante deve respeitar as

“instruções discursivas” apresentadas no contrato de comunicação; dessa forma poderá ser

compreendido pelo interlocutor.

O contrato de comunicação é um espaço de abertura de campos de possibilidades

estratégicas e demanda a ação dos sujeitos interlocutores. Ele regula as expectativas

recíprocas dos Sujeitos Comunicantes. A necessidade do reconhecimento recíproco das

restrições da situação, por parte dos parceiros da troca linguageira gera uma espécie de acordo

prévio. Os parceiros precisam reconhecer-se como tal sustentar-se em uma base comum de

referências. Dessa forma haverá o estabelecimento do laço comunicativo. Cada situação de

comunicação demanda atributos específicos em seu contrato. Existem restrições de espaço,

tempo, relações e palavras que funcionam como regulações e normas possibilitando a

interlocução na medida em que a governam. (Charaudeau, 2010)

É necessário, segundo Charaudeau (2010), considerar um conjunto de dados fixos. Os

dados externos que constituem o discurso são considerados a partir de um componente

linguístico (material psicossocial). Existem quatro espécies de dados externos: identidade dos

interlocutores; finalidade das trocas estabelecidas; domínio de saber do que se trata; e

dispositivo e ambiência; que permitem a materialização da comunicação.

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Os componentes linguísticos (material verbal) constituem a criação de dados internos

da comunicação. Existem três espaços de comportamento linguageiro que constituem essa

criação: o espaço da locução, que diz respeito à justificativa, de acordo com Charaudeau

(2010); o espaço de relação, que se refere ao tipo de laço estabelecido pelos interlocutores; e o

espaço de tematização, no qual se organiza o discurso (descritivo, argumentativo, narrativo).

Para Charaudeau (2010) contratos se constroem e se atualizam nas próprias relações a que se

referem.

Segundo Corrêa, tradução é o resultado estático do ato de traduzir a que se faz

referência quando se diz que uma tradução é boa ou ruim. A definição para tradução de um

ponto de vista dinâmico seria a seguinte: “tradução é o processo pelo qual se efetua a

passagem de um texto de uma língua para outra”. (CORRÊA 2007, p.01)

Corrêa (2007) cita Charaudeau (1983), ao abordar as noções de ato de linguagem e a

posição do Sujeito Comunicante. O texto que foi traduzido é considerado como TLP (texto

em língua de partida) e o texto resultante como TLC (texto em língua de chegada). Essa

nomenclatura foi adotada por enfatizar que o objetivo da tradução é manter o conteúdo do

TLP no TLC. Dessa forma, seria possível afirmar que traduzir é passar um texto de uma

língua para outra, procurando manter no TLC o mesmo sentido do TLP. Em uma concepção

discursivo-pragmática da tradução a autora classifica o processo tradutório em duas fases. A

primeira é a interpretação do TLP e a segunda é a produção do TLC.

Fonte: CORRÊA 2007

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Na primeira fase o TLP resulta de um “ato de linguagem” produzido por um “Sujeito

Comunicante”, levando-se em consideração todas as circunstâncias da produção deste ato.

Dessa forma o leitor de um texto torna-se o Sujeito Interpretante em um contrato

comunicativo. Daí é possível concluir que todo ato de linguagem, seja como produção ou

interpretação, é sobredeterminado por um contrato comunicativo. (Corrêa, 2007)

Ao adquirir um álbum de histórias humorísticas em quadrinhos, por exemplo, o

indivíduo reconhece que o contrato comunicativo sobredeterminante é o da leitura de um

texto de humor. São criadas expectativas diretamente ligadas a esse tipo de contrato. Os

“projetos de leitura” são determinados pelos diferentes tipos de relações interpessoais que o SI

(Sujeito Interpretante) reconhece entre ele e seu correspondente. Cada projeto faz o SI

recorrer a diferentes estratégias interpretativas. Segundo Corrêa (2007), o tradutor, ao entrar

em contato com o TLP, é um Interpretante e assume o papel que lhe é reservado dentro do

contrato comunicativo posto em cena pelo TLP que seria o papel de destinatário do ato de

linguagem produzido pelo Comunicante-1. O fato de assumir esse papel implica para o

tradutor a necessidade de atualizar uma série de saberes que lhe permitirão interpretar o TLP

em um processo de formulação de hipóteses a respeito das intenções comunicativas do

Comunicante. “As pistas linguísticas textuais, discursivas e situacionais proporcionam ao

Interpretante a possibilidade de verificação de sentidos no TLP”. (CORRÊA, 2007, p. 04)

A partir dessas afirmações conclui-se que a primeira fase do processo tradutório é

interpretativa, uma vez que, para se traduzir um texto é necessário, principalmente,

compreendê-lo. A mensagem não é um dado do TLP, é uma reconstrução feita pelo

Interpretante, é o que resulta de um processo interpretativo. (Corrêa, 2007)

A segunda fase caracteriza-se pelo processo de produção do TLC no qual o

Comunicante-2 assume o papel de mediador de um texto da LP para a LC. Esse papel está

previsto no contrato tradutório que envolve uma fase de compreensão do TLP e uma fase de

produção do TLC. O mediador, papel assumido pelo tradutor, está ligado simultaneamente a

dois diferentes contratos de comunicação: um projeto de leitura, no qual é o Interpretante do

TLP e um projeto de escrita no qual assume o papel de Comunicante no contrato

comunicativo do TLC. Dessa forma, são atualizados ao mesmo tempo, os saberes necessários

ao processo interpretativo do TLP e ao processo produtivo de um TLC. (Corrêa, 2007)

Considerando-se que as circunstâncias de produção de uma tradução diferem daquelas

que presidem a produção de textos tidos como originais, o contrato tradutório presume que o

tradutor está ligado ao autor do TLP por um contrato de fidelidade, segundo Corrêa (2007),

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retomando as categorias expostas em sua tese de doutorado (Corrêa, 1991). Espera-se, por

parte dos Interpretantes do TLC, que se mantenha uma relação de equivalência semântica,

pragmática e sociocultural com o TLP. Surgem questionamentos sobre a fidelidade do

tradutor ao TLP ao se considerar a mensagem como o resultado do processo interpretativo e

não um dado pronto. “O tradutor seria não apenas Sujeito Interpretante, mas também Sujeito

Analisante. Esse papel o leva a fazer a ‘melhor leitura possível’ em um dado momento sócio-

histórico-cultural”. (CORRÊA, 2007, p. 05)

Para Corrêa (2007), a avaliação prévia do tradutor como Sujeito Analisante abrange os

seguintes questionamentos: onde, como, por quem, para quem e para que o TLP foi

produzido? As respostas a esses questionamentos constituem uma representação pragmática

do TLP. Ainda como Sujeito Analisante, o tradutor avalia o tipo de leitor interessado no TLC

e os tipos de saberes que serão mobilizados para a sua produção. Se o TLP for um texto

cômico, por exemplo, o tradutor terá que mobilizar os componentes linguísticos, discursivos,

pragmáticos e enciclopédicos necessários à reconstrução no TLC, dos efeitos de sentido

interpretados no TLP. Observa-se que as capacidades interpretativa e produtiva aliadas à

capacidade de encontrar possibilidades de sentidos equivalentes ao TLP no TLC contribuem

para o que se reconhece como uma boa tradução.

Corrêa (2007) faz referência a determinados problemas recorrentes em algumas

traduções. São citados erros por falhas na competência linguística, nos quais são observados

problemas gerados pela semelhança fônica, ignorância da idiomatização de processos de

derivação e de composição, exemplos de lexias (unidades lexicais formadas da reunião de

outras unidades lexicais) que foram traduzidas erradamente, provavelmente por ignorância de

que seu significado global e erros na estruturação de sintagmas e enunciados na LC que

infringem as regras gramaticais do português. Existem ainda “erros por falha na articulação

das competências linguísticas” que poderiam ter sido detectados pelo tradutor se este tivesse

tido consciência de que sua tarefa era a de produzir um texto, e de que, para isso, deveria ter o

cuidado de manter, no TLC, o mesmo tipo de coerência encontrada entre os componentes do

TLP. Por fim a autora aponta para os “erros por falhas na competência discursiva” para os

quais é abordado o aspecto da estratégia discursiva presente no TLP que não foi seguida no

TLC. Verifica-se então que a questão da fidelidade do tradutor é crucial ao se propor uma

crítica de tradução. Tal questão será abordada a seguir.

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2.1.1 A fidelidade do tradutor

O ponto de vista de Arrojo (2007, p. 14), sobre a fidelidade do tradutor, parte do

seguinte princípio: “todo leitor ou tradutor não poderá evitar que seu contato com os textos (e

com a própria realidade) seja mediado por suas circunstâncias, suas concepções, seu contexto

histórico e social.”, ou seja, a interpretação do texto está sempre ligada às experiências vividas

por seu tradutor (ou leitor), bem como ao contexto histórico e social nos quais está inserido. A

autora cita o exemplo de um concurso de fantasias ocorrido na década de 1920 em São Paulo.

As fantasias que representavam Cleópatra estavam de acordo com a imagem da Rainha, e de

sua cultura, que se fazia em São Paulo na década de 20. Se o mesmo concurso fosse proposto

na década atual, a imagem de Cleópatra (mesmo com alguns indícios fixados no inconsciente

coletivo) seria a imagem da rainha do Egito feita por alguém com referências socioculturais

dos anos 2000.

Daí a ideia de texto/palimpsesto que Arrojo (2007) aborda. O palimpsesto é um tipo de

pergaminho usado por copistas da Idade Média, que ao ser raspado poderia ser usado

novamente, porém é possível observar aquilo que foi escrito anteriormente.

No caso do exemplo da fantasia de Cleópatra, algumas informações permanecem

intactas (o tipo de vestimenta, o penteado, etc.); essas seriam, em um palimpsesto, as

primeiras informações inscritas no pergaminho. As outras inscrições teriam sido feitas após a

raspagem do pergaminho, são aquelas que acrescidas de transformações quanto à forma de

expressar o conhecimento sobre a rainha, constituem as informações sobre a rainha,

influenciadas pelo momento atual. O tradutor, em sua leitura do TLP, atinge apenas sua visão

sobre o autor e sobre as possíveis intenções que o autor teria ao produzir o TLP. A tradução é

fiel não ao texto original, mas àquilo que o tradutor/leitor considera ser o texto original e a sua

concepção de tradução. A autora conclui que as traduções não são imortais, uma vez que não

são definitivas nem unanimemente aceitas por todos, em qualquer época e em qualquer lugar

(Arrojo, 2007). Feitas as considerações a respeito da tradução passaremos ao próximo ponto

fundamental à pesquisa, a noção de humor.

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2.2 Considerações sobre o humor

2.2.1 O princípio com Bergson

O trabalho aborda a tradução de humor. O humor provoca o riso, mas como surge uma

situação cômica, seja de forma escrita ou oral? A seguir, são observadas algumas concepções

de humor, desde Henri Bergson, filósofo francês que primeiro abordou o assunto até Marta

Rosas, que trata da tradução de humor, passando pela concepção de Sírio Possenti do humor

como campo de estudo, até Patrick Charaudeau e suas categorias para o humor.

A obra Le rire (Bergson, 2010) é uma coletânea de três artigos de Henri Bergson sobre

o riso apresentada em capítulos. Os artigos foram apresentados pela primeira vez na revista

francesa Revue de Paris, em 01 e 15 de fevereiro e 01 de março de 1899. Os métodos

abordados consistem em determinar os procedimentos de fabricação do cômico e em

enquadrar os efeitos cômicos de maneira ampla e simples. Segundo o autor, o primeiro

método se mantém fixo, não importa qual seja o resultado do segundo.

O primeiro capítulo trata do cômico em geral, do cômico das formas e dos

movimentos e da força de expansão do cômico. No segundo capítulo são abordados o cômico

de situação e cômico de palavras6, e finalmente, o terceiro capítulo trata do cômico de

caráter7. Abordaremos os conteúdos dos dois primeiros capítulos, uma vez que esses

apresentam informações relevantes para a concepção de humor à qual se pretende chegar.

Bergson (2010) começa o primeiro capítulo com uma pergunta: o que significa o riso?8 Em

seguida o autor explica que para compreender o sentido daquilo que se diz cômico parte-se do

princípio de que esse sentido é algo vivo e por esse motivo será observado em todas as suas

formas. O texto tem como finalidade a possibilidade de um conhecimento prático e íntimo e

não apenas uma definição teórica do que seja o cômico, o engraçado.

Segundo Bergson (2010), o sentido cômico (fantaisie comique) pode fornecer

informações importantes sobre o processo de funcionamento da imaginação humana, mais

6 Le comique de situations et le comique des mots.

7 Le comique de caractere.

8 Que signifie le rire?

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particularmente da imaginação social, coletiva e popular. Ele vem da vida real e é comparado

à arte. Por esse motivo, quando se fala de sentido cômico é preciso falar de arte e vida. São

apresentadas três situações fundamentais que abordam os lugares nos quais o cômico é

encontrado:

i. Atenção: somente é cômico aquilo que é propriamente humano. Uma paisagem

pode ser bela ou feia, nunca engraçada (risible). Pode-se rir de um animal, mas

pelo fato de que ele, em algum momento, teve uma atitude humana. Pode-se rir

de um chapéu, não por ele em si e sim pela forma como o homem o utiliza. Antes

de ser um animal que sabe rir, o homem é um animal que faz rir, uma vez que, se

um animal ou algo inanimado nos faz rir, é por causa da semelhança ou do uso

que o homem atribui a ele;

ii. Insensibilidade: o riso é acompanhado de indiferença, seu meio natural enquanto

que seu grande inimigo é a emoção. Mesmo que haja afeição para com o objeto

de riso, ela é deixada de lado para que seja encontrado algo de risível na situação

na qual o objeto se encontra. Quanto mais se identifica com o problema dos

outros, mais difícil torna-se a capacidade de rir do outro;

iii. Repercussão: o cômico não faz parte de uma situação isolada. É necessário que

ele ecoe. O riso de um indivíduo é sempre o riso de um grupo. Ocorrem situações

em que aquilo que é engraçado para um grupo não tem sentido cômico para

outros grupos. É preciso que haja um tipo de conivência para que o riso aconteça,

quanto maior a audiência, maior o riso.

Várias situações cômicas são intraduzíveis de uma língua para outra por causa de sua

relação com os hábitos e as ideias da sociedade na qual tais situações tiveram origem. O riso é

contagioso e também pode ser incompreensível. Esse fato duplo muitas vezes não é

considerado. E por causa dessa atitude, não teria sido dada a importância necessária às

situações cômicas, como se elas não tivessem nenhuma relação com as outras atividades

humanas. Porque o cômico nos faz rir? E porque outras situações não nos atingem dessa

forma? Bergson (2010) atenta para o fato de que, para que o riso seja assimilado, é preciso

enquadrá-lo na sociedade e determinar sua função útil e social. É necessário que o riso tenha

uma razão de ser.

Com referência às situações identificadas como iniciais, Bergson (2010) apresenta as

seguintes sínteses:

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A partir do momento em que se compreende o riso cômico como algo que nasce

quando os homens reunidos em um grupo dirigem sua atenção para um deles e

descartam a sensibilidade em relação ao outro usando apenas a inteligência;

O que faz rir não é uma mudança brusca dos acontecimentos e sim a forma

involuntária com a qual ela se deu;

Exemplo de um homem que tropeça e cai. Ele tropeça, mas os músculos continuam

fazendo o mesmo trabalho, mesmo que as circunstâncias peçam outra resposta. O

que faz desse exemplo uma situação cômica é o fato de que existe uma rigidez de

mecanismo. Algo não muda. Uma circunstância exterior causou o efeito, mas não

mudou a atitude do homem. Por isso o cômico é acidental, ele reside na superfície

da pessoa;

A distração pode ser cômica pelo fato de apresentar uma rigidez relacionada a

ações passadas que não se adaptam à situação presente. A distração não é a origem

do cômico, ela faz parte da fonte na qual o cômico é criado. Quando determinado

efeito cômico deriva de uma determinada causa, o efeito nos parece mais

engraçado (cômico) que a causa;

É possível rir de uma simples distração, mas a situação torna-se ainda mais cômica

quando é possível acompanhar uma história da qual a distração faz parte. Uma

queda é sempre uma queda, será cômica se for possível saber como ela se deu.

Nesse momento o cômico profundo alia-se ao cômico superficial;

O vício é uma curvatura da alma antes rígida. O vício que se torna cômico quando

não faz parte da personalidade de alguém, ele é um personagem, é ele quem faz os

outros personagens interagirem;

A função comum do riso está relacionada a duas forças complementares: tensão e

elasticidade, presentes na falta de adaptação relacionada à vida social. A sociedade

não se satisfaz com um simples acordo entre as pessoas para manter o equilíbrio

em uma relação. Ela pede um esforço constante de adaptação recíproca. Toda

rigidez de personalidade, de espírito e mesmo física, será suspeita perante a

sociedade;

Quando as ações que merecem ser castigadas são destacadas, resta uma rigidez que

a sociedade precisa eliminar para proporcionar maior elasticidade à seus membros.

A rigidez seria o cômico e o castigo para ela, o riso.

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No capítulo que trata do cômico de situações e de palavras, Bergson (2010) afirma que

é preciso distinguir o cômico que a linguagem exprime daquele que a linguagem cria. O

cômico que é expresso pela língua constata certas distrações particulares. Ao ser traduzido,

ele pode mudar um pouco a partir do contato com outras culturas. O cômico criado pela

língua põe em evidência as distrações da própria língua. Ele é o que é graças à estrutura das

frases ou à escolha das palavras. Por esse motivo é geralmente intraduzível.

Para Bergson (2010), existe no cômico de palavras a repetição, a inversão e a

interferência. Na repetição as mesmas expressões são reproduzidas em situações diferentes.

As ideias são expressas em seu meio natural e transportadas para outro meio. Na inversão o

meio não muda, e é utilizado para refutar uma ideia em termos mais ou menos engraçados. A

interferência é produzida entre dois sistemas e consistiria em dar à mesma frase dois

significados diferentes que se sobrepõem. O mais simples é o trocadilho. Nele, a mesma frase

parece apresentar dois sentidos diferentes. Na verdade existem duas frases diferentes,

compostas por palavras diferentes que se confundem aos ouvidos pelo fato de apresentarem o

mesmo som. No significado produzido a partir de um jogo de palavras os dois sistemas de

ideias realmente se encontram na mesma frase. O que se aproveita é a diversidade de sentidos

que uma palavra pode apresentar.

2.2.2 Rosas e as três principais teorias

Bergson é citado por Rosas (2002) como o autor da primeira teoria mais ambiciosa

sobre o riso. Antes de apresentar aquelas que considera as três principais teorias de humor, a

autora apresenta a seguinte distinção, retirada do dicionário Aurélio (ed. 1999), entre o

cômico e o espirituoso: “Cômico é aquilo que faz rir por ser engraçado, ridículo ou burlesco”

e “Espirituoso é o que tem ou denota espírito, graça, vivacidade.” (ROSAS, 2002, p. 25)

A primeira teoria de humor abordada por Rosas (2002) é a de Sigmund Freud9, que

defende o papel importante do humor na vida psíquica do indivíduo. A construção do chiste

(uma espécie de válvula de escape de nosso inconsciente, que o utiliza para dizer, em tom de

9 FONTE : FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. Trad. C. Magalhães de Freitas e Isaac

Izecksohn. Rio de Janeiro: Delta, 10v, 1959. Parte 1: O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente, p. 3-242.

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brincadeira, aquilo que verdadeiramente se pensa), tem analogia com a elaboração onírica: em

ambos encontram-se condensações, deslocamentos, unificações e representações. Quanto à

função, o chiste se destina à produção do prazer. No chiste tendencioso sempre está em vigor

uma finalidade substitutiva da ação – a realização de um desejo recalcado, seja agressivo ou

sexual. O chiste inocente não visa substituir a ação. Ele contém em si mesmo seu fim, ou seja,

não oculta um tabu nem um conteúdo recalcado ou interdito.

Rosas (2002) atenta para a diferença entre a teoria de Freud e a teoria de Dascal.

Enquanto Freud classifica dois tipos de chiste, o tendencioso e o inocente, Dascal considera

tendencioso o chiste inocente anunciado por Freud. Dascal afirma que todos os chistes são

dirigidos à língua, que é uma instituição, e quando se trata do uso da língua em um chiste, o

autor explica: “A língua como instituição não funciona como as gramáticas dizem que deveria

funcionar”. (DASCAL, citado por POSSENTI, 1998, p. 127-128). Compreende-se com essa

afirmação que, se a língua é uma instituição, ela deve funcionar segundo algumas diretrizes,

que nesse caso vêm das gramáticas. Geralmente o chiste não funciona conforme as regras da

gramática, talvez por isso Dascal considere todos os chistes tendenciosos.

A autora se detém mais demoradamente na terceira teoria, a “teoria dos dois scripts”

de Raskin. Ela cita Franco e Brandão (1998, p. 9) na apresentação da teoria: “Essa teoria é

uma tentativa de explicar a competência humorística dos falantes nativos de uma língua,

segundo a qual um texto humorístico tem necessariamente dois scripts. Esses scripts, embora

necessariamente distintos e opostos, têm que ser compatíveis”.

Segundo Rosas (2002), a noção de competência linguística formulada por Chomsky

serve como base para a ideia de competência humorística defendida por Raskin. A noção de

script vem da psicologia e seria um feixe de informações sobre determinado assunto ou

situação. As rotinas consagradas e os modos difundidos de realizar atividades são exemplos

de scripts.

Na formação dos scripts observa-se uma “estrutura cognitiva internalizada” que

facilita a compreensão e funcionamento do mundo que cerca o falante. Geralmente são

informações apresentadas de forma sequenciada, estereotipada e predeterminada. Qualquer

diferença observada no repertório dos padrões propostos é considerada desviante. (Rosas,

2002)

Para que se considere um desvio é preciso que este esteja presente desde o princípio de

economia na relação esforço/resultado até a adesão do emissor ao conteúdo do enunciado

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proposto. Rosas (2002) afirma ainda que Raskin apresenta uma distinção entre scripts

dependentes de informação puramente linguística (conhecimento lexical) e conhecimento de

mundo do qual provêm os scripts que dependem de informações enciclopédicas. O texto é

considerado humorístico por Raskin quando é compatível, integral ou parcialmente com dois

scripts que se oponham em um sentido especial: real/não real; bom/mau; sexual/não sexual.

(Rosas, 2002)

De acordo com Rosas (2002, p. 32), o componente pragmático foi levado em

consideração por Raskin quando o autor retomou o tema da teoria do humor. Ele cita as

seguintes condições exigidas para a configuração dos chistes:

i. “Uma mudança do modo de comunicação bona-fide para o modo

não bona-fide de contar piadas;

ii. O texto considerado chistoso;

iii. Dois scripts parcialmente superpostos compatíveis com o texto;

iv. Uma relação de oposição entre os dois scripts;

v. Um gatilho, óbvio ou implícito, que permite passar de um script a outro.”

Rosas (2002, p. 32) cita o princípio de cooperação definido por Grice, que implica

quatro subprincípios qualificados em termos de relação, qualidade, quantidade e modo.

“1. relação: seja pertinente

2. qualidade: a) não diga algo que você considere falso

b) não diga nada que não seja suscetível de

comprovação

3. quantidade: a) torne sua contribuição tão informativa quanto necessário (aos objetivos do intercâmbio em

questão)

b) não torne sua contribuição mais informativa que o necessário

4. modo a) evite obscuridade

b) evite ambiguidade

c) seja conciso

d) seja organizado (GRICE, citado por

COULTHARD, 1989, p. 31)”

As condições exigidas para configuração do chiste remetem, segundo Rosas (2002), ao

princípio da cooperação com relação à condição a (mudança no modo de comunicação) e a

condição e (a presença de um gatilho). A mudança do modo bona-fide para o modo não bona-

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fide está relacionada à qualidade no principio de cooperação, não se pode afirmar que o chiste

seja fruto de um fato verídico. A obscuridade e a ambiguidade citadas no item e, estão sempre

presentes no chiste, assim como a quantidade de informações define os scripts abordados.

(Rosas, 2002)

Segundo Rosas (2002, p. 33), Raskin, baseado nas máximas de Grice, propôs o que

seriam as máximas do modo não-confiável, o modo próprio à transmissão de uma piada:

“1. relação: diga apenas o que for pertinente à piada

2. qualidade: diga apenas o que for compatível com o universo da

piada

3. quantidade: dê a informação que for estritamente necessária à piada

4. modo conte a piada com eficiência. (1985, p. 103)”

Ainda baseada na teoria de Raskin, Rosas (2002) apresenta a definição de gatilho. O

gatilho seria o ponto, em uma piada, por exemplo, em que se passa do explícito ao implícito.

Seria o elemento que promove a passagem de um script a outro. As atitudes que fazem parte

de determinado script podem ser sobrepostas às atitudes de outro script. Em todas as piadas,

foco da autora para a tradução de humor, o emissor não se compromete com a verdade de sua

mensagem, nem fornece a informação necessária ao receptor. O emissor, baseado no

conhecimento compartilhado, elabora ou veicula um discurso no qual é possível o

preenchimento das lacunas. (Rosas, 2002)

Em 1991, Raskin passou a chamar sua teoria semântica de scripts no humor (SSTH)

de teoria geral do humor verbal. Ele teria começado seus estudos sobre o assunto pela

semântica até chegar à linguística, uma vez que essa compreende, de forma abrangente, outras

áreas. (Rosas, 2002)

A partir da definição de que script é uma estrutura cognitiva internalizada pelo falante

que lhe permite saber como o mundo se organiza e funciona, Rosas (2002) apresenta duas

propostas de Raskin: o macroscript, aglomerado de scripts organizados cronologicamente; e o

script complexo, constituído de outros scripts e que não obedece a uma ordem cronológica.

Segundo Rosas (2002) existe uma interligação entre os scripts lexicais e não-lexicais. Essa

ligação é feita a partir de elos com natureza semanticamente distinta (sinonímia, antonímia,

paronímia, hiponímia, etc.).

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Rosas (2002) admite que a simples sobreposição de dois scripts não é necessariamente

a causa do humor. Os textos ambíguos só serão engraçados, segundo a autora, se os dois

scripts presentes nele forem opostos. Ela afirma ainda que é preciso conhecer traços da

cultura para entender piadas e rir delas. Porém, o fato de que, segundo Possenti (1998), citado

por Rosas (2002), as piadas versam sobre poucos tópicos, constata-se que elas podem

constituir um tipo de texto transcultural. A construção da interpretação da mensagem pelo

receptor é processada de forma involuntária e contínua, com o auxílio do contexto. A autora

atenta para a diferença na formulação do enunciado; é necessária a presença de um terceiro

elemento a quem é relatado aquilo que foi observado anteriormente diferentemente da relação

cômica na qual a ação em si contém o humor. Terminaremos a apresentação das teorias do

humor sob o ponto de vista de Rosas (2002) com as seguintes considerações da autora: “a

piada representa uma enunciação-limite, que ilumina um aspecto potencialmente ‘falho’ do

sistema da língua; o que é engraçado para um grupo ou para um falante pode não ser

engraçado para outro; o tempo pode alterar a definição daquilo que um mesmo grupo ou

falante considera engraçado e finalmente, há enunciados potencialmente humorísticos, mas

seu efeito nunca poderá ser garantido de antemão”. (ROSAS, 2002, p. 42). Veremos mais

adiante, na análise dos textos selecionados, a possibilidade de emprego das teorias sobre o

humor citadas pela autora.

2.3 Textos humorísticos e tradução

O presente trabalho aborda o tema humor e mais precisamente a tradução de textos

humorísticos. Possenti (2010), ao dissertar sobre a linguagem de textos humorísticos, afirma

que o que se faz normalmente é interpretar tais textos, sua função, alvo, origem e técnicas e o

que se pretende mostrar é uma análise da “língua” do humor ao sugerir uma reclassificação do

humor e sua caracterização como um campo, o qual apresenta como traço principal o fato de

seus membros seguirem regras específicas. São essas regras que constituem e caracterizam

um campo.

A partir desse conceito de regras seguidas pelos membros de um grupo, não se pode

considerar que um discurso seja uma ação ou decisão de um indivíduo (sujeito, pesquisador,

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autor). Segundo Possenti (2010), discurso é o resultado de um conjunto de regras que os

indivíduos seguem em um campo específico. O humor, por ser um campo, é constituído de

discursos.

Os campos se organizam de maneiras diferentes. O percurso típico da formação dos

membros de cada campo é diferente. Os discursos presentes em um campo circulam através

de textos, a partir de gêneros propostos por seus membros e em espaços distintos. Por conta

dessa característica pode-se citar como exemplo o discurso científico que se “atualiza” mais

rapidamente que o discurso político. Haveria uma extensão do conceito de campo na qual os

campos passam a ser vistos como campos discursivos. Alguns exemplos de campos

discursivos seriam o religioso e o político nos quais se incluem diversas formações

discursivas (ideologias).

Todos os campos são internamente heterogêneos. Assim é com o campo literário com

tendências que vão e voltam. Mesmo com a heterogeneidade, o campo literário apresenta

procedimentos relativamente claros como a edição, circulação, escolarização, crítica,

demanda por leitores e consagração de autores. O campo humorístico segue regras análogas

ao campo literário: em ambos os campos o autor não se forma como um biólogo. Escritores e

humoristas podem ser jornalistas, médicos, professores, juristas, etc. (Possenti, 2010)

Possenti (2010) apresenta em seu texto as características atribuídas ao campo

humorístico. Ele cita Maingueneau (2008b) ao mencionar unidades transversais que, ao lado

das formações discursivas, atravessam textos de múltiplos gêneros de discurso. As

subdivisões dessas unidades transversais seriam as linguísticas (discurso/ história) proposta

por Benveniste, as funcionais propostas por Jakobsone as comunicacionais (discurso cômico,

de divulgação e didático).

O discurso humorístico é um campo menos organizado que o campo científico, mas

que apresenta as mesmas configurações por conta dos textos e das práticas às quais o sujeito

adere ou resiste. O humor trata de qualquer assunto, tenta fugir da proibição e do controle do

que é politicamente correto. Assim já se pode observar a delimitação de seu espaço com

relação à sociologia, à história ou à política. O humor é um campo em que se praticam

gêneros numerosos, comédia, charge, crônicas, narrativas, histórias em quadrinhos, tiras,

piadas, dentre outros. (Possenti, 2010)

O humor, segundo Possenti (2010), apresentaria duas formas. O humor (mais) popular

que circularia em festas, botecos, revistas e o humor (mais) erudito que seria apresentado em

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programas noturnos de horário tardio, edições caras e teria como exemplos de autores Millôr,

Veríssimo e Woody Allen. Esse dois tipos de humor se aproximam bastante dos tipos de

literatura conhecidos, a popular, com vocabulário simples e edições mais baratas e a erudita,

com autores consagrados e público restrito. Para Possenti (2010), seria necessário, para

melhor caracterizar o campo humorístico, separar o que é anônimo (piadas) do que é assinado

(charges, textos, frases, comédias). Os jornais já consideram as charges cultura, uma vez que

as publicam nas páginas de opinião, ao lado dos editoriais e das colunas. Na internet é

possível observar as charges animadas assinadas por caricaturistas que são reconhecidos seja

por seu traço, seja pelo tema que abordam.

Para Possenti (2010), o humor não pretende ser realista nem eficaz nem prega a

violência, por exemplo, ele a retrata. O personagem de humor e o tipo literário guardam

analogias por serem personagens. O humor tem suas regras, seu universo, suas funções. Há

uma relação com a realidade, mas essa relação é construída segundo as regras do humor. O

fato do humor não mudar muito quando circula em novos suportes,de continuar sendo humor

mesmo se explora as fantasias exploradas em outros campos ou estabelece intertextualidade

com questões morais, históricas ou políticas, de apresentar temas que não desaparecem e

finalmente, de o humor explorar um conjunto diverso de “gêneros” sem deixar de ser humor,

lhe confere a possibilidade de ser visto como um campo.

2.4 Jogos de palavras e mal-entendidos culturais

2.4.1 Uma análise sobre jogos de palavras

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Segundo Druetta (2007), a maior dificuldade em analisar um jogo de palavra reside no

fato de tratar-se de uma categoria vasta com critérios tão variados que o tratamento linguístico

unitário parece impossível. O autor lança mão de três critérios propostos por Todorov (1978)

que seriam comuns a todos os jogos de palavras:

i. Os jogos de palavras tem dimensão textual reduzida;

ii. Resultam da aplicação de uma regra explícita; e

iii. Concernem de preferência o plano do significado.

Uma caracterização adequada ao jogo de palavras deve integrar as modalidades

pragmático-textuais de apresentação e de circulação que são constitutivas e definidoras de

diferentes formas de ludismo verbal. A partir desse critério pode-se fazer uma divisão na qual

de um dos lados encontram-se os enigmas (charadas, adivinhações, palavras cruzadas e outros

jogos linguísticos relacionados à atividade cerebral) e de outro lado encontra-se o humor

linguageiro (trocadilhos e antífrases). A função comunicativa das sequências homofônicas

seria o elemento que permite a formação dessas duas categorias. O objetivo dos enigmas

consiste em encontrar palavras ou frases escondidas. Os locutores não atribuem uma real

função comunicativa às palavras ou aos enunciados, ambos constituem somente o material a

partir do qual os participantes do jogo poderão reconstruir o que foi escondido e deve ser

adivinhado. Nos enunciados irônicos, as sequências homofônicas não são separadas de seu

conteúdo semântico, ao contrário, mantêm essa primeira dimensão que permite uma segunda

leitura do enunciado.

2.4.1.1 Tipologia dos jogos de palavras

Conforme Druetta (2007) a tipologia do jogos de palavras é baseadana homofonia e

apresenta os seguintes parâmetros:

Tipo de colisão paradigmática;

Intencionalidade do procedimento;

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Presença de uma “chave” formal para ativar o “jogo”;

Possibilidade de multitranscriação a partir da cadeia fonêmica linearizada pelo

enunciado de origem; e

Respeito às unidades acentuais presentes nas duas sequências homofônicas.

2.4.1.2 O trocadilho

Druetta (2007) afirma que o trocadilho trata-se de um jogo de palavras baseado na

homofonia entre duas palavras ou dois sintagmas ortograficamente diferentes (não

homógrafos) e geralmente muito distantes no que diz respeito ao semantismo. A

especificidade do trocadilho reside no fato de que ele reúne em uma mesma cadeia fônica

linear ao menos dois paradigmáticos alternativos e não necessita de “chave” para fazer

emergir o sintagma virtual. A hilaridade é desencadeada por uma decodificação não rotineira

da cadeia fônica produzida, uma decodificação ativa que pretende calcular todas as

transcrições grafemáticas (ortográficas) possíveis.

Do ponto de vista formal é possível distinguir três tipos de trocadilhos, seguindo o

nível linguístico no qual se situa a homofonia. O primeiro tipo é o que não modifica a

fronteira da palavra. Nesse trocadilho explora-se a homofonia entre duas palavras não

homógrafas que pertencem a duas séries diferentes. Geralmente a homofonia se dá em apenas

uma palavra enquanto o resto do enunciado pode ser lido da mesma forma, em qualquer nível

de leitura.

Ex.: Entre deux mots, il faut chosir le moindre. (Paul Valéry)

No exemplo apresentado, a palavra mots (palavras) é homófona da palavra maux

(males) e não houve modificações no restante do enunciado.

O segundo tipo de trocadilho seria aquele que modifica as fronteira entre as palavras,

cada leitura é possível pela meta-analise da sequência fonética. O deslocamento da fronteira

da palavra resultante pode ser feito através de um número limitado de palavras ou em todo o

enunciado. No exemplo a seguir a junção de duas palavras (lit e vide) propiciou a origem da

palavra livide (lívido) e a segunda parte do enunciado.

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Ex.: Il rentra chez lui,il vit le lit vide, il le devient aussi. (Alphonse Allais)

O trocadilho apoiado nas características de pronúncia regional constitui o terceiro tipo

citado por Druetta (2007). As diferenças na pronúncia podem ser utilizadas tanto como

instrumento de zombaria quanto de adivinhação. Nos jogos interlinguísticos, tão próximos do

trocadilho, a mesma cadeia fonética tem duas leituras diferentes seguindo o sistema

linguístico de referência. O enunciado apresenta apenas uma leitura em cada um dos idiomas

envolvidos e a homofonia só pode ser ativada por locutores que apresentam certo

conhecimento dos dois idiomas.

A homofonia que se encontra nos fundamentos do trocadilho está presente em outras

formas de ludismo verbal, elas se aproximam do trocadilho quanto ao mecanismo usado, mas

se afastam sob o ponto de vista do funcionamento pragmático. Na charada não se trata de

suscitar o riso pela descoberta e sim de adivinhar uma palavra desconhecida anteriormente

desmembrada em um número variável de componentes fônicos posto em relação homofônica

com outras palavras isoladas. A regra do jogo prevê que seu condutor enuncie uma definição

para cada palavra homófona dos componentes fônicos da palavra final que também deve ser

definida. O verso holorimo é usado por escritores muitas vezes como forma de virtuosismo.

Trata-se da sucessão de dois versos perfeitamente regulares (alexandrinos, por exemplo),

ortograficamente distintos, porém homófonos.

Um outro tipo de jogo de palavras seria uma forma de anagrama de um trocadilho

criptografado que precisa de uma “chave” de acesso. A diferença entre esse tipo de anagrama

e o trocadilho é que no primeiro, apesar de manter o princípio da homofonia entre duas

palavras ou duas cadeias fônicas mais longas, a cadeia fônica linearizada não permite as duas

leituras alternativas de forma simultânea. No spoonerismo o decodificador da mensagem

assume o papel de co-codificador.

2.4.1.3 Características linguísticas dos jogos de palavras

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A possibilidade estritamente material do jogo de palavras depende de certas

características do idioma utilizado, no caso do estudo feito por Druetta (2007) a língua

francesa. Foram identificadas cinco características da língua francesa baseadas na existência

de palavras homófonas e na possibilidade de formar sequências homofônicas de um nível

superior ao nível do lexema, indo do grupo rítmico ao enunciado.

A primeira característica diz respeito à falta de correspondência entre fonemas e

grafemas. Por causa da modificação ocorrida entre grafema e fonema surge a possibilidade de

uma multitranscrição a partir de uma única cadeia fônica, o que estaria na origem da maioria

dos erros ortográficos. A homonímia é a segunda característica identificada. Trata-se da

existência de inúmeras palavras homófonas e a cristalização da falta de univocidade na

relação grafema/fonema. No exemplo a seguir são apresentados dois grupos de palavras com

sentido diverso que apresentam exatamente o mesmo som.

Ex.: Grupo I: cent, sans, s’en, (je) sens, c’en, sang

Grupo II: ver, vers, vert, vair, verre

As unidades acentuais representam a terceira característica. A prosódia da frase em

francês é baseada em um agrupamento de palavras em unidades acentuais. O efeito desse tipo

de pronúncia é a geração de sequências de fonemas suficientemente longas e que podem ser

segmentadas de várias maneiras diferentes no momento da decodificação (ação presente na

origem da ambiguidade e dos trocadilhos). No exemplo proposto por Druetta (2007) os verbos

descendre e monter foram segmentados de outra forma e transformaram-se em outras (des,

cendres, mon e thé):

Ex.: Tu veux monter descendre ou descendre monter? Ou bien tu veux monter des

cendres ou descendre mon thé?

As consoantes de encadeamento e ligação correspondem à penúltima característica.

Trata-se da pronúncia de determinadas palavras que pertencem a um grupo no qual é

permitido adicionar um fonema suplementar entre duas palavras gráficas. Dessa forma é

possível favorecer o surgimento de uma nova palavra fonética. No exemplo, a homofonia

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presente entre a palavra thésaurisons (verbo thésauriser conjugado na primeira pessoa do

plural no modo imperativo) e o sintagma tes horizonts só é possível pela presença da

consoante de ligação /z/:

Ex.: Ah! Thésaurisons! Vers tes horizonts! Alaska, filons! (A Allais, Nous nous

étalons)

A quinta característica identificada por Druetta (2007) é a neutralização dos fonemas

vocálicos centrais. A neutralização seria a falta de contraste entre dois fonemas distintos, por

exemplo, os fonemas [e] e [i] na posição final átona da palavra chave. A série central de

alguns fonemas da língua francesa foram afetados pela evolução fonética dos últimos

cinquenta anos. Algumas neutralizações não são compartilhadas por um grande números de

falantes do idioma francês e por esse motivo não se pode chegar a um consenso sobre as

convenções ortográficas que remetem a esses novos arquifonemas(resultado da neutralização

entre dois fonemas). Druetta (2007) cita dois exemplos existentes em mensagens e blogs

franceses:

Ex.: Chuis 2 Paris (Je suis de Paris)

@2m1 (À demain)

Druetta (2007) termina seu artigo tratando do balizamento discursivo dos jogos de

palavras, que seria a utilização de um sistema discursivo que favorece uma decodificação não

rotineira da cadeia sequencial falada. Isso se dá pelo fato de o humor verbal se caracterizar

por um amálgama de formas fonéticas que, por sua vez, recobrem importantes diferenças

morfológicas e semânticas. Quando o jogo de palavras é proposital seu balizamento é apoiado

geralmente nas máximas de quantidade e relação que obrigam o destinatário a efetuar uma

série de operações semânticas que o permitem justificar as transgressões como recurso para

um segundo nível de compreensão. Segundo Druetta (2007) a conivência resulta da

cooperação e do compartilhamento das intenções comunicativas do criador do jogo de

palavras; inversamente, se o destinatário não se dispõe a participar, a dimensão lúdica da

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enunciação é bloqueada. A seguir daremos continuação ao significado e utilização das

categorias de humor analisadas no presente trabalho.

2.4.2 O mal-entendido cultural

De acordo com Gumperz (2002, p. 153, citado por Waite, 2008, p. 19), ocorre mal-

entendido quando dois ou mais interlocutores interpretam de forma divergente o mesmo

vocábulo, enunciado ou situação:

“Ao contrário das palavras, que podem ser discutidas fora de

contexto, os significados das pistas de contextualização são

implícitos.

Geralmente não nos referimos a eles fora do seu contexto. O

valor sinalizador depende do reconhecimento tácito desse

significado porparte dos participantes. Quando todos os

participantes entendem enotam as pistas relevantes, os processos

interpretativos são tomadoscomo pressupostos e normalmente

têm lugar sem ser percebidos.Entretanto, quando um ouvinte

não reage a uma das pistas, ou nãoconhece sua função, pode

haver divergências de interpretação e mal-entendidos.

É importante observar que, quando isso acontece e quando se

chama a atenção de um dos participantes para uma interpretação

diferente, há uma tendência a reações em termos de uma questão

de postura ou atitude. Dizemos que o falante é antipático,

impertinente, grosseiro, não cooperativo, ou que não está

entendendo."

O mal-entendido é inserido no mesmo campo que os seguintes fenômenos

conversacionais: gafe, ruídos na comunicação, engano e ironia. Waite (2008) aborda diversas

teorias sobre mal-entendido, a teoria que mais se aplica ao presente trabalho seria a de

Kerbrat-Orecchioni (1994), uma vez que, para a formação da qual foram realizadas análises

contrastivas sobre o mal-entendido em diferentes culturas e entre falantes de comunidades

linguístico-culturais distintas (abordagem intercultural). Nos dois álbuns analisados os

personagens fixos, os gauleses, entram em contato com indivíduos de outras culturas, daí o

interesse pelas análises no âmbito intercultural. Para a autora é importante conhecer as regras

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gramaticais que estruturam uma língua, ser capaz de inseri-las de forma coerente e adequada

no contexto interativo; administrar a interpretação do material verbal e não verbal e estar

sensível à união dos saberes linguísticos e socioculturais. Kerbrat-Orecchioni (1994) concebe

o mal-entendido como “defasagem entre o sentido codificado pelo locutor (sentido

intencional, que o emissor deseja transmitir ao destinatário) e o sentido decodificado pelo

receptor”. Essa defasagem pode ser dividida em três tipos: subinterpretação, na qual o

receptor demonstra interpretar somente o sentido literal da sentença ignorando

deliberadamente outra acepção para o enunciado; sobreinterpretação, em que o exercício de

interpretação do enunciado é explorado ao máximo, e interpretação incorreta, que seria a

reunião dos erros na realização do cálculo interpretativo dos falantes, decorrentes de uma

interpretação incorreta do receptor dos atos indiretos realizados pelo locutor. Waite (2008)

apresenta ainda as principais causas de mal-entendidos culturais citadas por Kerbrat-

Orecchioni (1994):

Os sistemas interacionais e as regras de polidez que variam sensivelmente de uma

cultura para outra;

A crença dos falantes na universalidade das regras linguístico-comportamentais e

sua consequente inconsciência da existência de variações;

Falhas na codificação: a ocorrência de decalques prosódicos, retóricos ou

pragmáticos;

Falhas na decodificação: é o mal-entendido que ameaça por dois lados; pode até

mesmo ocorrer mal-entendido sobre mal-entendido quando o problema

comunicativo é imputado a um domínio deficiente da língua ou interpretado

negativamente em termos psicológicos (má vontade, hostilidade, grosseria,

obsequiosidade, etc.).

Waite (2008, p. 77) cita Kerbrat-Orecchioni (1994) a respeito do surgimento dos

estereótipos: “Os membros de uma dada cultura são geralmente inconscientes das variações

que afetam as convenções comunicativas por acreditarem que são universais [...]”. O outro

seria um “mau comunicante” e essa atitude estaria na origem dos estereótipos. De acordo com

as observações feitas por Waite (2008), os estereótipos, segundo Kerbrat-Orecchioni (1994),

são mais uma consequência da repetição de mal-entendidos interculturais do que promotores

do mesmo. Ela cita ainda a definição de Amossy (1991, 1997) na qual o estereótipo é a

representação coletiva cristalizada: ele é recuperado e reconstituído no discurso pelo

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alocutário em função de um modelo cultural preexistente, e a de Stangor e Schaller (1996),

em que o estereótipo é definido como uma crença sobre atributos típicos de um grupo e sobre

o grau com que tais atributos são compartilhados. Finalmente para Waite (2008), a

interiorização dos estereótipos criados a partir de mal-entendidos e sua manifestação nas

interações atuam como causas promotoras de novos mal-entendidos.

Os exemplos apresentados por Waite (2008) em sua tese fazem parte do resultado de

entrevistas, ou seja, contam episódios que podem acontecer com qualquer pessoa a partir do

momento em que é necessária a interação intercultural. São situações que bem poderiam fazer

parte de um álbum de histórias em quadrinhos voltado para o humor, como é o caso da série

Astérix. O primeiro exemplo ilustra o problema encontrado por dois brasileiros em uma

padaria na França pedem ao comerciante que “parta” o pão e para isso utilizam o verbo partir,

que em francês significa apenas mover-se para outro lugar. As partes só entram em um acordo

quando um dos brasileiros faz o gesto de cortar algo. Segundo Waite (2008), esse é um

exemplo de mal-entendido linguístico, uma vez que é baseado em um falso cognato.

Mais adiante, na análise dos textos propostos será possível identificar os mal-

entendidos presentes e suas origens.

2.5 A tradução de humor

Para Rosas (2002) na tradução de humor existe um desafio estimulante que requer a

precisa decodificação de um discurso humorístico e sua reformulação em um novo enunciado

de forma que seja suscitada no público-alvo uma reação de prazer e divertimento

equivalentes. Em seu livro Tradução de humor: transcriando piadas, a autora aborda a

tradução, da língua inglesa para a língua portuguesa, de textos humorísticos a partir de alguns

de seus aspectos linguísticos. A base da análise dos textos é o tecido cultural das línguas de

partida e de chegada, ou seja, as línguas-culturas envolvidas. Segundo a autora, a tradução é

uma prática que tem na linguagem tanto seu ponto de partida quanto de chegada. Levando-se

em consideração que a linguagem constitui objeto de investigação multidisciplinar, a validade

do estudo teórico da tradução depende de uma perspectiva multidisciplinar. Essa perspectiva

aplica-se também ao estudo do humor verbal. É citada a noção de relação na qual a

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caracterização dos significados ou conceitos que as palavras podem expressar e de suas

reações com os significados expressos por outras palavras exige uma abordagem integrada.

Rosas (2002) afirma que os estudos que unem tradução e humor encontram ainda

resistência para definir-se como objetos dignos de pesquisa acadêmica diante da falta de

interesse que tinham conceitos com contexto e interpretação para o gerativismo, que foi a

linha dominante na linguística por mais de 40 anos. A tradução era vista apenas pelo aspecto

irredutivelmente material. Lançava-se mão da literalidade e da inviabilidade. Seria uma visão

mecanicista que reduz o ato tradutório ao transporte de significados equivalentes de uma

língua para outra. Sua obra é dividida em duas partes: “A tradução de humor na teoria” e “A

tradução de humor na prática”. Na primeira parte do livro a autora faz um histórico dos

estudos da tradução e do humor. Seria uma revisão comentada da trajetória dos estudos

ligados ao humor e à tradução. É apresentada uma lista mínima dos tipos de informação que o

falante deve ter a respeito de uma palavra:

i. Pronúncia (e ortografia, no caso de línguas escritas)

Fonologia (inclusive características acentuais)

Morfologia (inclusive flexões e derivações)

ii. Categorização sintática

Categoria principal (substantivo, verbo, etc.)

Subcategorização (contextos sintáticos)

iii. Significado

Definição (conceito expresso; relação com outros conceitos)

Restrições seletivas (contextos semânticos)

iv. Restrições pragmáticas

Situação (relação com o conhecimento geral)

Retórica (relação com contextos discursivos)

Acerca das diferenças das constantes existentes na tradução e no humor, Rosas (2002)

afirma que na tradução a única constante verificável é o fato de que ela representa uma função

do momento histórico e que, no humor, a única constante é a de que ele sempre escapa a toda

tentativa de definição e estudo. A interpretação é essencial ao estudo do humor e da tradução.

Ela é condicionada por contingências culturais, econômicas, sociais, ideológicas, históricas,

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etc. É citada a noção de comunidade interpretativa na qual a comunidade é um grupo social,

econômico, cultural em que o indivíduo se insere. A autora dá um exemplo de um professor

que deixa uma lista de autores que seus alunos de linguística deverão ler. Para a turma

seguinte, de lírica religiosa inglesa do século XVII, o professor diz que aquela lista seria de

um poema religioso do tipo que os alunos estudavam. A partir da informação dada pelo

professor os alunos de lírica vão encontrar inúmeras interpretações para a lista de nomes.

É abordada no livro a visão teórica da autora a respeito do tratamento de qualquer tipo

de texto e especificamente de textos humorísticos na tradução. São levados em conta a

indissociabilidade entre o elemento linguístico e o cultural, a função do texto traduzido e o

papel de intérprete que cabe ao tradutor. Rosas (2002) apresenta seu embasamento teórico

apoiado na teoria do escopo (finalidade/objetivo) de Reiss e Vermeer (1996). Uma abordagem

funcionalista e pragmática que parte de uma situação em que já existe um texto de partida

como “primeira ação” e na qual se trata de se e como continuar uma ação. O escopo (o "para

quê") tem primazia sobre o modo (o "como") de uma ação e pode ser definido como uma

variável dependente dos receptores, tendo como regra o fato de uma ação ser determinada por

sua finalidade. A tradução funcional do humor deverá obedecer à determinação do escopo, à

possível atribuição prévia de novos “valores” às distintas partes do texto de partida e à busca

de alternativas na língua-cultura de chegada que permitam a obtenção de um efeito análogo ao

que o texto provoca na língua-cultura de partida.

2.5.1 Tradução de humor na prática

Rosas (2002) apresenta traduções e textos humorísticos em inglês. A análise dos

exemplos selecionados é baseada principalmente nos gatilhos, mecanismos linguísticos

agenciados para a produção de um efeito humorístico e também no tipo do humor retratado e

nas questões culturais que esses exemplos levantam para tradução. A princípio, o principal

objetivo é ilustrar tipos de humor, a ênfase recai nos recursos mais comuns à construção de

humor e as amostras apresentam uma tradução “literal”. Em um segundo momento são

apresentados exemplos em que os gatilhos, inseridos numa situação que a autora chama de

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coincidência linguística, não exigem traduções funcionais. Em razão da falta de

correspondência no plano semântico, sintático e/ou fonético, uma vez que na maioria das

vezes os gatilhos envolvem ao mesmo tempo vários planos linguísticos, são apresentados

exemplos cujas traduções devem ser funcionais. Por fim são apresentados exemplos que

envolvem a tradução de forma indireta e exemplos que constituem declarações e perdem a

graça quando traduzidas “literalmente”.

Sobre as vertentes na construção do humor, os recursos mais comuns à construção do

humor seriam os fatores culturais e linguísticos, a representação e a lógica, a quebra de

expectativas, a quebra do princípio de cooperação, a inadequação de registro, a ironia, o PC

(politicamente correto), os estereótipos e o reacionarismo. A autora dá exemplos da tradução

literal (L) de algumas piadas nas quais os fatores culturais e linguísticos constituem a fonte do

humor:

Ex. 1: Cow 1: “So, what do you think about this mad cow disease?”

Cow 2: “Terrible, absolutely terrible. I am just glad I am a penguin.”

(Rentzell, 1997)

(L): Vaca 1: Então, o que acha dessa doença da vaca louca?

Vaca 2: Terrível, terrível mesmo. Ainda bem que sou pinguim.

Nesse exemplo, o gatilho está no nome da doença. Se no Brasil a doença não fosse

conhecida como o “mal da vaca louca”, a compreensão da tradução literal da piada seria

impossível.Observa-se que a piada, exemplo de humor verbal, depende de fatores

linguísticos.Vejamos o segundo exemplo:

Ex.2: Winter is nature’s way of saying ‘Up yours’. (Ross, 1998, p. 3)

(L): O inverno é o modo que a natureza encontra de dizer ‘No seu’.

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A autora afirma que nesse exemplo a tradução literal é perfeitamente plausível e

compreensível, porém, não é tão engraçado para alguém que mora em um país tropical no

qual o inverno não é rigoroso. É sugerida a mudança da tradução de “Up yours” por uma

expressão menos eufêmica.

Ex. 3: What did the Polish mother say to her pregnant, unwed daughter?

“Look at the bright side, maybe it’s not yours”. (Knott, 1987, p. 17)

(L): O que é que a polonesa disse à filha, solteira e grávida?

“Veja as coisas pelo lado bom; talvez o bebê não seja seu”.

No terceiro exemplo, mesmo que o humor seja perceptível, a nacionalidade da mãe em

questão, confunde o leitor/receptor. O problema reside na função semântica do substantivo

“polonês”. Para um norte-americano, esse substantivo equivale ao adjetivo burro. Rosas

(2002) admite que inserir uma nota de rodapé não seria a melhor opção para a plena

compreensão da piada.

Quanto à quebra de expectativas é apresentado o seguinte exemplo:

Ex.4: I have an intense desire to return to the womb. Anybody’s. (Woody Allen,

citado por Mackenzie, 1994, p. 39)

(L): Tenho um imenso desejo de voltar ao útero. Não importa de quem.

A combinação de palavras e sentidos, que de alguma forma são incongruentes ou

inesperados, possibilita a quebra de expectativas promovida pelo humor. A expressão “voltar

ao útero” é conhecida, a quebra das expectativas se deu pelo fato de o autor não utilizar o

adjetivo “materno”. No próximo exemplo cria-se uma “lógica paradoxal” quando a frustração

das expectativas criadas por implicaturas conversacionais é inerente aos textos humorísticos

em geral.

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Ex.5: ‘Does your dog bite?’

‘No.’

(Bends down to strike dog and gets bitten)

‘I tought you said your dog didn’t bite?’

‘It’s not my dog.’ (Billy Connolly, citado por Ross, 1998, p. 41)

(L): ‘Seu cachorro morde?’

‘Não.’

(Abaixa-se para acariciar o cão e é mordido)

‘Você disse que seu cachorro não mordia?’

‘Esse não é meu cachorro.’

A ironia, segundo Rosas (2002), constitui uma característica marcante do humor

inglês. Seria uma maneira elegante de dar vazão ao sarcasmo e à zombaria, como mostra o

próximo exemplo:

Ex. 6: Dinner at the Huntercombes’ possessed only two dramatics features: the wine

was a farce and the food a tragedy. (Anthony Powell, citado por Daintith,

1994, p. 350)

(L): Jantar na casa dos Huntercombes tinha apenas duas características dramáticas:

o vinho era uma farsa e a comida, uma tragédia.

O humor étnico tem por objetivo inferiorizar o alvo através de sua ridicularização.

Rosas (2002) afirma que esse tipo de humor se caracteriza pelas invectivas contra

determinado grupo racial ou nacionalidade, o que nos leva à questão dos estereótipos. O

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humor étnico, ao lidar de forma aberta e direta com os estereótipos, reforça ao mesmo tempo,

os vínculos entre os membros do grupo dominante e entre os membros do grupo-alvo e ainda

pode representar uma maneira aceitável de dissolver tensões, contribuindo para a coesão

social. É exigido pelo humor étnico o reconhecimento e a aceitação dos estereótipos

apresentados, o que não significa que haja concordância na veracidade de um estereótipo nos

dois lados de uma equação desse tipo. Na grande maioria das culturas verifica-se a existência

de estereótipos que são similares e variam apenas o alvo específico em cada cultura. Como

apresentado anteriormente, a burrice para o americano corresponde ao polonês, já para o

brasileiro é o português e para o francês, o belga. Rosas (2002) acredita que banir as piadas

étnicas é tarefa desnecessária e impossível, uma vez que, a priori o humor só pode ser

analisado em relação à situação do emissor e do receptor e à maneira e ao propósito com que

é utilizado. Vejamos o seguinte exemplo:

Ex. 7: ‘We don’t serve coloured people.’

‘That’s fine by me. I just want some roast chicken.’ (Ross, 1998, p. 23)

(L): ‘Não servimos negros.’

‘Por mim, tudo bem. Eu só quero frango assado mesmo.’

No exemplo infere-se que o emissor está se referindo a uma pessoa negra, seria um

gatilho de ordem sintática, o verbo servir é bitransitivo. O termo “coloured people” sai do

emissor como objeto indireto e chega ao receptor como objeto direto. Em português, o verbo

servir apresenta as mesmas características possibilitando assim a tradução literal da piada.

Rosas (2002) nos lembra de que as línguas tendem a ser muito diferentes em termos de

sua estrutura semântica: a polissemia de uma palavra em uma língua pode não estar presente

na palavra equivalente em outra língua. Existem, no entanto, as coincidências linguísticas. A

autora apresenta o seguinte exemplo:

Ex.8: My brain: it’s my second favorite organ. (Woody Allen)

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(L): Meu cérebro é meu segundo órgão favorito.

Na declaração de Woody Allen o gatilho envolve apenas o plano semântico, trata-se

de um caso em que o humor se baseia primariamente no aspecto verbal, porém, existem

equivalências de sentido entre os elementos-chave do gatilho nas línguas-culturas envolvidas.

Quando um texto humorístico apresenta problemas no compartilhamento de

referências culturais, na correspondência em alguns níveis linguísticos (sintático,

morfológico, fonético, semântico, ou pragmático) entre as estruturas das línguas-culturas

envolvidas, Rosas (2002) sugere duas traduções funcionais (F) desse texto. Vejamos o

seguinte exemplo:

Ex.9: Marriage is like a bank account. You put it in, you take it out, you lose interest.

(Ross, 1998, p. 64)

(F) a: Qual a semelhança entre o casamento e uma conta bancária?

Nos dois você põe, tira e vai perdendo rendimento.

(F)b: Qual a diferença entre o casamento e uma conta bancária?

Nos dois você põe e tira. Só que, no casamento, o que vai pro espaço são as

juras e, na conta, os juros.

A primeira proposta mantém total similaridade entre os elementos por conta da

ambiguidade semântica. Na segunda proposta joga-se com a semelhança parcial para tirar

partido de uma característica de uma língua que não se verifica na outra: a existência de

palavras de gênero masculino e feminino. Vejamos a seguir exemplos de traduções funcionais

de piadas que apresentam respectivamente ambiguidade sintática (Exemplo 10) e fonética

(Exemplo 11):

Ex.10: Why are monkeys like acid rain?

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They both fuck up trees.

(F): Qual a diferença entre a chuva ácida e os macacos?

Uma fode (com) as árvores; o outro, nas árvores.

O verbo foder reúne duas acepções: prejudicar e copular. A proposta de Rosas (2002)

é explicitar a diferença dessas acepções na própria pergunta.

Ex.11: Teacher: “What are you:animal, vegetable or mineral?”

Student: “Vegetable, I‘m a human bean!” (Phillips, 1974, p. 80)

(F): Professora: Você é animal, vegetal ou mineral?

Joãozinho: Mineral, eu sou de Minas.

A tradução conserva em tudo o contexto presente no texto de partida. O gatilho está

presente na homofonia das palavras (being e bean). A autora propõe outra homofonia com

relação ao substantivo mina (jazida de minério) e o estado de Minas Gerais. No final de seu

livro, Rosas (2002) apresenta exemplos de textos que exigem tratamento especial por que: a)

envolvem apenas indiretamente a tradução, embora pressuponham o conhecimento da língua-

cultura estrangeira, ou b) constituem declarações de veracidade atestadas pelas fontes

consultadas que perdem a graça quando traduzidas “literalmente”. O exemplo apresentado a

seguir exige do receptor algum conhecimento da língua inglesa:

Ex. 12: O boxeador Maguila embarcou para os Estados Unidos para participar de uma

luta. Ao descer do avião, foi recebido por um grupo de admiradores que

traziam uma faixa com os dizeres: “WELCOME MAGUILA’. Enfurecido,

voltou-se para seu treinador e perguntou: “Quem é esse Well? Vou acabar com

ele!”.

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2.6 A história em quadrinhos e Astérix

2.6.1 A origem dos quadrinhos

Assim como existem as histórias contadas oralmente e as histórias escritas, existem as

histórias em imagens, desenho, pinturas ou fotografias. Uma simples imagem pode contar

uma história, porém, a história será desenvolvida de forma mais ampla se for contada a partir

de uma sequência de imagens, formando uma tira (strip em inglês e bande em francês), uma

página ou um livro (álbum).

Segundo Rahde (2006) em seu projeto de pesquisa intitulado Origens e evolução da

história em quadrinhos, de 1996, as histórias em quadrinhos “são formadas por dois códigos

de signos gráficos: a imagem e a linguagem escrita” (LUYTEN, 1985, p. 11), em uma

sequência narrativa contínua. Os desenhos encontrados em cavernas pré-históricas teriam sido

as primeiras histórias em quadrinhos de que se tem notícia. Constata-se que o desenho, a

pintura e a modelagem não eram executados, apenas, sem nenhum propósito, mas “contavam”

um fato percebido pela ótica do homem primitivo.

Rahde (2006) observa que na história em quadrinhos que conhecemos hoje, a

sequência narrativa vem acompanhada de um prolongamento do personagem, os balões, que

proporcionam maior dinamização na leitura. Esses prolongamentos não faziam parte dos das

histórias contadas através de desenhos até a Idade Média. No século XV, a utilização da

xilogravura em ilustrações de livros tornou-se um elemento essencial da conjugação

imagem/texto.

A partir de 1830 a ilustração obteve um desenvolvimento marcante graças, entre

outros fatores, segundo Rahde (2006), às ilustrações do famoso desenhista da época, o inglês

George Cruikshank, da obra Oliver Twist, cujo autor, Charles Dickens, era quase

desconhecido. Os comics verdadeiramente modernos começaram a aparecer: em 1889 na

França e em 1896, com a forma atual, nos Estados Unidos da América.

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2.6.2 O gênero quadrinhos

Ramos (2010) afirma que os quadrinhos gozam de uma linguagem autônoma com

mecanismos próprios para representar seus elementos narrativos. Ainda que possuam

linguagem autônoma, os quadrinhos compartilham, segundo o autor, características com

outros gêneros. São elas: Tempo, espaço, personagem e discurso.

O tempo é percebido pela disposição dos balões e dos quadrinhos. Quanto maior o

número de vinhetas que descrevem uma ação, maior o prolongamento do tempo. A figura do

personagem também pode funcionar como indicador de tempo, como por exemplo, a imagem

de um personagem jovem seguida da imagem do mesmo personagem com características de

alguém idoso. O narrador com enunciados como: um ano depois... ou na semana seguinte...

tem papel importante no que diz respeito ao tempo, bem como a época histórica, roupas e

objetos dos personagens e o tempo astronômico que indica o período do dia e meteorológico

que indica o clima. O tempo da narração em história em quadrinhos é o mesmo que da

maioria dos textos literários, é o momento da narração em si, se torna presente enquanto é

lido.

Quanto ao espaço, Ramos (2010) observa que ele está associado ao tempo, uma vez

que, nos quadrinhos o tempo é espacial. Ele é contido no interior de um quadrinho e é cercado

pela linha de contorno. A referência em geral é o corpo do ser humano, mesmo que existam

diferentes planos e ângulos possíveis.

O personagem, segundo Ramos (2010), tanto nas histórias em quadrinhos quanto em

qualquer outro tipo de narrativa, é o responsável pela ação e também atua como ponto de

referência para orientar o leitor sobre o rumo da história. Nos quadrinhos, o rosto dos

personagens é um dos principais recursos para dar expressividade à imagem representada.

Segundo Almeida (1999), a linguagem visual, presente nos quadrinhos, é superficial e

depende de uma organização gráfica superficial que evidencie aspectos relevantes para o

conhecimento do conceito conhecido como discurso icônico.

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2.6.3 A realidade nos quadrinhos

Observamos até aqui o gênero e as características dos quadrinhos. Antes de

apresentarmos a série Astérix, abordaremos a coexistência da ficção e da realidade nas HQ.

Barbosa (2009) começa o capítulo com a análise dos fatores de ligação entre as HQ e a

realidade. Os fatores seriam, segundo Barbosa, a linguagem, o estereótipo e o cotidiano. É

identificada a forma de explanação do criador da HQ sobre o momento histórico no qual a HQ

foi concebida, dessa forma seria possível perceber o grau de informação e percepção que

cerca o artista no momento da criação.

Barbosa (2009) começa sua análise a partir de pinturas que seriam o resultado do

registro da percepção de mundo do homem pré-histórico. da imagem como ferramenta usada

pelo homem ainda no período paleolítico, seria uma forma de aprisionar o momento por meio

da pintura e da escultura. Por esse motivo o autor considera a HQ inserida em um processo

narrativo imagético. O artista, quando cria uma HQ transforma em ficção as informações

obtidas sobre a história e o cotidiano, sua finalidade é informar ao mesmo tempo em que

entretém. Nesse processo, o artista mescla as informações que recebe com seus próprios

parâmetros de subjetividade e abstração, fazendo surgir assim a ficção histórica, uma nova

visão das informações coletadas.

Agnes Heller (1985) é citada por Barbosa (2009) sobre o conceito de cotidiano ao qual

se deve a sucessão dos fatos gerados pelo reconhecimento de imagens e situações. A carga de

informações criada a partir desse conhecimento foi denominada por Heller de estereótipos. A

informação nos quadrinhos, segundo Barbosa, tende muitas vezes para o entretenimento e não

para os fatos históricos propriamente ditos. Ele cita o exemplo das histórias de Astérix nas

quais o fato histórico é utilizado apenas como pano de fundo para a correlação com a situação

do cotidiano que se deseja retratar.

Barbosa (2009) enfatiza que as HQ podem assumir um fator importante na construção

da realidade por apresentarem, ao mesmo tempo, a ficção e elementos que constatam a

realidade. Nelas, o autor remete o leitor a documentos que são tidos como verdadeiros pela

visão subjetiva de seu autor. A cada momento uma nova história é produzida uma vez que, o

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artista é influenciado por novos estereótipos ou por novos ícones da cultura de massa.

(Barbosa, 2009)

A mitologia original, que criou os elementos para a criação de determinada HQ não é

descaracterizada pela atualização dos conceitos que servem como parâmetros de realidade.Ao

citar Adam Schaff (1978), Barbosa (2009, p. 107) aponta três formas de observar a história:

“Em um primeiro caso pode-se deixar que o objeto de pesquisa

fale sobre si próprio, o historiador não procura se aprofundar nos

fatos; no segundo, o historiador ou agente observa o objeto mas

sua conclusão é movida por seu ponto de vista particular, não

levando em conta os fatores do objeto de pesquisa; e, por fim,

no último caso, a forma ideal em que existe uma interação entre

o objeto analisado e o agente. Os fatos e o tempo também são

levados em consideração.” (BARBOSA 2009, p. 107)

No primeiro caso, é narrada apenas uma visão, consequentemente certos fatos são

mascarados. Nos outros dois casos existe um reflexo de que faz a análise histórica ligado ao

momento vigente. (Barbosa, 2009)

Barbosa (2009) apresenta um exemplo de análise histórica em HQ. Seria a versão do

Barão de Taunay sobre a Guerra do Paraguai do ano de 1956 publicada pela editora EBAL

(Editora Brasil América Ltda.). As referências comerciais e iconográficas dos artistas

nacionais da época vinham do mercado norte-americano de quadrinhos. Barbosa (2009)

associa essa referência ao fato de alguns personagens paraguaios lembrarem um ator

mexicano muito conhecido nos Estados Unidos. A abordagem narrativa da obra tenta,

segundo análise de Barbosa (2009), seguir o texto original do Barão de Taunay, porém acaba

seguindo os parâmetros dos anos 1950. Barbosa (2009) conclui que o artista de HQ trabalha

com um bem cultural de massa e que durante o percurso da criação esse artista irá legitimar as

ideologias que o cercam. Os fatores que influenciaram o artista entrarão em contato com os

parâmetros do leitor gerando uma intertextualidade. (Barbosa, 2009)

2.6.4 Contexto histórico e a criação de Astérix

O chefe gaulês chamado Vercingétorix, filho de Celtill chefe dos Arvernos, nascido

em Arverne (atual Auvergne, região situada no maciço central da França) por volta de 72a.C.

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e morto em Roma em 46 a.C. poderia ser o personagem de uma das aventuras de Astérix e

Obélix, porém este nobre cujo nome significa “o grande rei dos bravos” foi uma figura

importante na tentativa de reunir toda a Gália na época em que César, imperador romano

chegou a essa região com o firme propósito de conquistá-la. Vercingétorix recebeu os

ensinamentos da escola de druidas e lá ele aprendeu, sob a forma de poemas e versos, que sua

alma é imortal. A imagem que se tem desse herói é a de alguém de estatura imponente,

sentado em seu cavalo com uma túnica brilhante, o peito cravejado de enfeites dourados, uma

espada e um elmo com uma crista impressionante. Tratava-se de um homem lúcido e lógico,

grande orador de coragem e sangue-frio inegáveis. Vercingétorix reuniu em torno de si os

lideres das principais aldeias em um exército poderoso usando métodos altamente

questionáveis, tomando reféns e vingando-se contra os rebeldes.

Quando Cesar chega à Gália, a fim de ganhar a confiança dos gauleses, distribui títulos

para os “amigos de César” aos chefes dos clãs mais influentes. Vercingétorix fez parte desse

grupo. Com o tempo, porém, desejo de liberdade e o sentimento patriótico dos gauleses fala

mais alto e aqueles que antes eram os “amigos de César” tornaram-se seus inimigos ao lado

de Vercingétorix. Em agosto de 52 a.C. César destrói a cavalaria gaulesa perto de Dijon

(região de Borgonha) e Vercingétorix recua com seus 80.000 homens fracos e famintos que se

rendem após dois meses de cerco. O próprio Vercingétorix depôs suas armas perante César.

Foi levado à Roma, acorrentado, como se tivesse sido capturado pelo imperador e morreu

estrangulado na prisão em 46 a.C.10

Não foi esquecido em nenhum momento que o presente trabalho tem como objetivo a

análise da tradução feita em dois álbuns da série de história em quadrinhos intitulada Astérix.

Porém, como dito anteriormente, o criador de histórias em quadrinhos (HQ) transforma em

ficção as informações obtidas sobre a história e o cotidiano (Barbosa, 1999). Com o álbum

Astérix não foi diferente, os personagens que representam os gauleses de um vilarejo que

resistiu às invasões romanas são fruto da união de fatos históricos, ações do cotidiano e da

visão de mundo apresentada por seus criadores.

Goscinny e Uderzo sempre foram muito claros quanto à criação de Astérix: “Nous

avons créé Astérix afin qu’il devienne um classique de la littérature française. Il a été pensé

pour être lu par des adultes. Tout, dans ses aventures, n’est que symbole, gravité et sérieux.

Croyez-vous qu’en 1959 nous avions du temps à perdre à dessiner des petits Mickeys?”

(GOSCINNY e UDERZO, 1999, p. 17)

10 FONTE: http://www.histoire-en-ligne.com/article.php3?id_article=279.

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“Criamos Astérix para que se tornasse um clássico da literatura francesa, foi pensado

para ser lido por adultos. Em suas aventuras tudo é um símbolo de seriedade e gravidade.

Você acha que em 1959 nós tínhamos tempo a perder desenhando pequenos Mickeys?”

(GOSCINNY e UDERZO, 1999, p. 17, tradução minha).

A partir da declaração dos criadores de Astérix, passemos ao contexto histórico no

qual está inserida a criação do álbum.Em 1950, a economia francesa passa por uma evolução

aparentemente favorável depois de ter naufragado durante a Segunda Guerra Mundial. A

partir de 1948, a produção industrial retorna a seu nível de antes da guerra seguida da

produção agrícola em 1950. Durante a década seguinte a economia francesa apresenta níveis

desregulares de crescimento, porém com números ainda positivos. O estado começa a intervir

na economia por razões práticas, ele encarna o interesse geral de fixar as grandes orientações

e efetuar as escolhas indispensáveis; por razões políticas, repúdio ao liberalismo, acusado

como responsável pela crise dos anos 1930 e por razões ideológicas, para muitos altos

funcionários e políticos, o Estado deveria expandir a economia do subemprego e manter o

crescimento.

Quanto às transformações sociais, na França dos anos 1950 são observados traços

característicos das sociedades industriais: progresso do nível de vida, as pessoas começam a

adquirir aparelhos que facilitam o cotidiano; a implantação do descanso remunerado com a

“semana inglesa” e a possibilidade de não trabalhar aos sábados; o surgimento de estações de

rádio, a compra de aparelhos fotográficos, criação da FNAC, etc. A vida cultural passou por

uma democratização nesse momento com a criação do livro de bolso em 1953. Várias

empresas do ramo audiovisual voltam sua atenção aos jovens. As transformações econômicas

e sociais sofridas pela França durante os anos 1950 alinharam o país aos outros países

industrializados, por conta disso, alguns estudiosos dizem que o país perdeu um pouco de sua

originalidade suscitando certa nostalgia em certas obras literárias e artísticas. (Eck, 2009)

É nesse contexto histórico que se dá a criação da revista Pilote. A revista, criada por

René Goscinny, Albert Uderzo e Jean-Michel Charlier, foi lançada em outubro de 1959 e em

pouco tempo tornou-se leitura indispensável para os amantes de história em quadrinhos

(bande-dessinées). Era uma publicação que seguia as tendências culturais da época e ao

mesmo tempo tinha um lado didático na seção pilotorama na qual era explicado, por exemplo,

como funcionava o metrô em Paris ou de onde vieram os vikings11

. A seguir a apresentação

do primeiro número da revista feita por François Clauteaux:“‘Pilote’ sera un journal

11 FONTE: http://tvmag.lefigaro.fr/programme-tv/article/documentaire/67394/la-belle-histoire-du-journal-pilote.html.

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souriant, qui vous amusera pendant des heures mais vous y trouverez également des articles

signés des noms que vous trouvez habituellement dans les grands magazines de vos parents :

Lucien Barnier, Raymond Kopa, Pierre Véry, pour n'en citer que quelques-uns.”12

“‘Pilote’ será um jornal sorridente que te divertirá durante horas, mas você também

encontrará artigos assinados por nomes que são normalmente encontrados nas grandes

revistas que seus pais leem: Lucien Barnier, Raymond Kopa, Pierre Véry, para citar alguns.”

(tradução minha)

Astérix é o personagem principal que dá nome série de álbuns de história em

quadrinhos. Segundo os próprios criadores, trata-se do exemplo típico do anti-herói: pequeno,

não muito bonito, o retrato fiel do gaulês. Próximo do francês dos anos 1950 por seus defeitos

(intolerante, teimoso, colérico) e por suas qualidades (simpático, corajoso, fiel, honesto e

generoso). O segundo personagem mais importante da série é Obélix, intitulado por seus

criadores como um ingênuo gentil que não é estúpido, é apenas um adulto que teria reações

infantis. (Goscinny e Uderzo, 1999). Tudo o que cerca a criação dos personagens foi pensado

de forma a auxiliar na criação de sua personalidade, desde o nome dos personagens principais

– Astérix e Obélix representam símbolos tipográficos; Astérix ou asterisco, simbolizado por

uma pequena estrela, indica geralmente uma referência; e Obélix ou obelisco, simbolizado por

uma adaga, é uma marca utilizada para marcar uma passagem duvidosa nos antigos

manuscritos – até o chapéu de Astérix, que demonstra o estado de espírito do dono.

Existem outros personagens fixos que são secundários como o druida Panoramix, o

bardo Assurancetourix e o chefe do vilarejo, Abraracourcix. As histórias são apresentadas em

álbuns de aproximadamente quarenta páginas e giram entorno das aventuras de Astérix para

proteger seu vilarejo ou ajudar representantes de outros vilarejos ou outras nações. Os

romanos fazem parte de todos os álbuns, de forma mais ou menos direta e sempre

representam o grande inimigo a ser derrotado. O vilarejo gaulês não tem nome e foi situado na

Bretanha por escolha de Albert Uderzo. (Goscinny e Uderzo, 1999)

Quanto aos nomes gauleses terminados por “–ix”, não existem muitos, segundo os

criadores de Astérix. Os mais conhecidos são: Vercingétorix, Dumnorix e Ambiorix (chefes

gauleses), Albiorix e Caturix (deuses) e Vix e Euffigneix (lugares). Mais adiante será feita

uma análise dos nomes que aparecem nos álbuns analisados e a relação dos sufixos que os

acompanham.

12 FONTE: http://bdoubliees.com/journalpilote/annees/1959.htm.

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A poção mágica criada pelo druida Panoramix, proporciona àquele que a bebe uma

força sobre-humana. Obélix é proibido de tomá-la porque caiu no caldeirão da poção quando

criança e tornou-se incrivelmente forte. Esse episódio é lembrado frequentemente por

Panoramix quando Obélix tenta tomar a poção.

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3 METODOLOGIA

O presente trabalho é de natureza qualitativa pela existência de classificações e de

análises predominantemente dissertativas. Trata-se de uma análise exploratória capaz de gerar

hipóteses para pesquisas futuras. Quanto à sua amplitude e profundidade trata-se de um

estudo de caso com amplitude reduzida em função do baixo número de elementos de pesquisa

e as conclusões desses estudos de caso não podem ser generalizadas por apresentarem um

perfil particular.

Propõe-se uma análise de traduções feitas no Brasil da revista em quadrinhos Asterix,

criado por Albert Uderzo e René Goscinny. Qual a solução encontrada pelo tradutor para

traduzir as passagens dos textos selecionados que configuram as amostras das categorias

analisadas? É possível perceber por que o tradutor optou por determinada tradução para a

passagem escolhida como amostra? A comicidade presente no texto em língua francesa foi

mantida na tradução para a língua portuguesa?

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa é possível observar os três tipos de variáveis

existentes. Quanto á variável independente trata-se da tradução de álbuns de história em

quadrinhos de fundo cômico da língua francesa para a língua portuguesa. A variável

dependente diz respeito aos possíveis problemas encontrados pelos tradutores ao se depararem

com as três categorias escolhidas. E finalmente a variante interveniente conjetura sobre a falta

de conhecimento das categorias propostas.

Foram coletadas amostras dos álbuns Astérix chez les Bretons e Astérix chez

Rahazade, bem como de suas respectivas traduções feitas no Brasil: Asterix entre os Bretões e

As mil e uma horas de Asterix. As amostras analisadas foram divididas em duas categorias:

jogos de palavras e mal-entendidos culturais.

Não se trata de uma pesquisa com o objetivo de encontrar soluções para os problemas

encontrados e sim da observação do tratamento dado por parte dos tradutores à tradução das

categorias selecionadas. Ao final de cada exemplo serão feitas algumas observações a partir

da visão de um leitor de língua portuguesa falada no Brasil.

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4 RESUMO E APRESENTAÇÃO DOS ÁLBUNS ANALISADOS

4.1 Astérix chez les Bretons (Asterix entre os Bretões)

Astérix chez les Bretons é o oitavo álbum da coletânea. A trama gira em torno do

personagem Jolitorax, primo de Astérix que vem à Gália pedir a poção mágica criada pelo

druida Panoramix, para expulsar os romanos. Acompanhado de Astérix e Obélix, o bretão

retorna a sua região (a Bretanha), que no momento está sob o comando do governador romano

Caius Roideprus. Ao chegarem, os gauleses entram em contato com hábitos bretões: temperar

pratos com molho de menta, tomar cerveja em temperatura ambiente no lugar de vinho,

trabalhar cinco dias e descansar dois, o hábito dos bretões de cultivar jardins e finalmente,

parar o que estiverem fazendo para tomar água quente (o chá foi apresentado a eles depois por

Panoramix). Os gauleses, juntamente com o bretão, se refugiam em uma estalagem que pouco

depois é invadida por soldados romanos a procura dos gauleses. O barril que contem a poção

mágica é levado pelos romanos, assim, Jolitorax, Astérix e Obélix começam a procurar o

barril. Os romanos por sua vez, não sabem em qual barril se encontra a poção. A caça ao

barril os leva a uma partida de futebol e após uma batalha contra os romanos na qual a poção

é perdida e os gauleses são dados como mortos pelos romanos, Astérix e Obelix retornam a

aldeia bretã e prometem ajudar Jolitorax mesmo sem a poção. Porém, Astérix encontra

algumas ervas com as quais consegue preparar a poção e a distribui entre os bretões e os

habitantes das aldeias próximas. A batalha contra os romanos é vencida e os heróis gauleses

voltam para sua aldeia.

Quanto à personalidade dos bretões, tem-se a impressão de que são pessoas polidas,

comedidas que raramente se irritam e quando isso acontece não se compara às explosões

sentimentais dos gauleses.

Os bretões, assim como os gauleses, têm nomes que terminam com sufixo –ix, já os

habitantes de onde hoje é a Escócia têm o prefixo Mac-. A forma de falar dos bretões guarda

uma semelhança estrutural com a língua inglesa, os adjetivos vem antes dos substantivos. O

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bretão usa uma roupa confeccionada em tweed, tecido que apresenta estreita relação com o

guarda-roupa inglês.

Na página 5 acontece o encontro dos piratas, personagens que aparecem em alguns

álbuns e que são as grandes “vítimas” dos gauleses, e o imperador Julio César em sua galera.

Como normalmente acontece, o navio dos piratas afunda.

Entre os tripulantes está um personagem negro, provavelmente um representante do

continente africano, que não pronuncia a letra “r”. Na tradução do álbum fo i mantida a

supressão da letra. O tipo físico do personagem (negro, forte, lábios grossos) e sua forma de

se expressar levam o leitor a criar a imagem estereotipada de um africano.

O tradutor do álbum não precisou recorrer a grandes mudanças quanto à forma de falar

dos personagens bretões. As línguas francesa e portuguesa apresentam estrutura semelhante:

adjetivo após o verbo. Por esse motivo tanto o leitor francês quanto o leitor brasileiro são

capazes de identificar a ascendência inglesa por parte dos bretões.

Em alguns momentos foi necessária a mudança de sinônimos, na página 6 quando em

francês é usado o termo “fin de semaine” para diferenciar do termo usado normalmente

(weekend), em português o tradutor optou pela expressão “semana-fim” com o intuito de

manter a estranheza provocada pela expressão na língua original do álbum.

4.2 Astérix chez Rahàzade (As mil e uma horas de Asterix)

Em Astérix chez Rahàzade, vigésimo oitavo álbum da coleção, o faquir Kiçàh aterrissa

com seu tapete voador na aldeia gaulesa de Asterix em busca do bardo Assurancetourix por

sua capacidade de fazer chover quando canta. Kiçàh explica ao chefe Abraracourcix, ao

druida Panoramix e aos guerreiros Astérix e Obélix que vem de um reino situado no vale do

rio Ganges onde o clima é quente e seco na maior parte do ano e que durante alguns meses,

durante a época das monções, é irrigado pelas chuvas. O problema segundo o faquir é que

mesmo em época de monções sua região não recebeu nem uma gota de chuva. O guru

Kiwoàlàh, que segundo o faquir tem contato direto com os deuses, disse que se não chover em

mil e uma horas a princesa Rahàzade, filha do rajá Cékouhaçà, será sacrificada para que a ira

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dos deuses seja amainada.Após o consentimento do chefe, Astérix, Obélix acompanhado de

seu cãozinho Idéfix, Assurancetourix e o faquir, partem no tapete voador até o reino de

Rahàzade.

Durante a viagem os personagens encontram o grupo de piratas que aparecem em

alguns álbuns e que temem os gauleses, passam por Roma, encontram um comerciante grego,

sobrevoam a Grécia, a Fenícia, fazem uma rápida parada na Pérsia para consertar o tapete e

finalmente chegam ao vale do Ganges. Lá chegando, depois de tantas aventuras e mudanças

de temperatura, Assurancetourix fica afônico e sua cura, segundo os médicos do rajá, se dará

quando o bardo passar uma noitemergulhado em uma mistura de leite de elefanta,

excrementos de um jovem elefante e pelos de um elefante ancião. O bardo é levado à floresta

onde mora o criador de elefantes chamado Pourkoipàh. Assurancetourix é sequestrado a

mando do guru malfeitor e recuperado por seus amigos com a ajuda do faquir. Finalmente,

faltando cinco minutos para o término do prazo, Astérix salva a princesa do cadafalso, o bardo

recupera sua voz e canta provocando a tão esperada chuva. Os gauleses voltam para sua aldeia

com os agradecimentos do faquir, do rajá e de sua filha.

O fato de a cultura do faquir ser tão distante da cultura gaulesa proporciona inúmeras

situações nas quais o estranhamento, principalmente por parte de Obélix, com referência a

algumas atitudes, começa com a imagem do faquir, magro, barba branca, pele escura, ele usa

um turbante e veste uma calça tipicamente indiana. O turbante é confundido pelo peixeiro da

aldeia com uma atadura na cabeça do indiano. Quando o faquir diz que estava há vinte dias

sem comer, Obélix, grande glutão desmaia de emoção. Quando partem no tapete, Obelix é

impedido de carregar uma carroça de javalis assados como suprimento. Mais uma vez, os

nomes dos personagens os identifica como pertencentes a determinada cultura, o nome dos

indianos apresentam a letra k e / ou terminam por – ah (Kiçàh, Kiwoàlàh, Pourkoipàh, etc.), o

nome do grego é Karédas. Obelix fica curioso ao ver algumas vacas e Kiçàh explica que são

sagradas. Os gauleses encontram na floresta indiana animais desconhecidos para eles, um

tigre, cobras gigantes, macacos. O tratador dos elefantes se encanta pela força de Obélix e

tenta a todo custo mantê-lo consigo para ser “treinado”. A grande quantidade de deuses da

religião hindu é retratada no embate dos faquires Kiçàh e Mercikhi (assecla do guru vilão).

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5 CATEGORIZAÇÃO E ANÁLISE DOS EXEMPLOS PROPOSTOS

As análises dos álbuns anteriormente apresentados foram feitas a partir da união de

dois textos apresentados no capítulo teórico: o texto de Patrick Charaudeau sobre as

categorias de humor e o texto de Rosas (2002) sobre a tradução de piadas. Começaremos por

situar os dois álbuns de forma mais ampla e em seguida faremos a classificação das passagens

destacadas entre as duas categorias propostas (jogo de palavras e mal-entendido cultural).

Nos álbuns analisados a visão deslocada do mundo criada pelos autores é

compartilhada pelo leitor, que se torna cúmplice ao ler os textos propostos. O recorte do

mundo no domínio da experiência que vem a ser a temática da série Astérix gira ao redor da

identidade. A cultura gaulesa é confrontada com a cultura hindu (Astérix chez Rahàzade) e

com a cultura inglesa (Astérix chez les Bretons). O resultado do choque entre duas culturas

configura a temática principal de ambos os álbuns.

Em Astérix chez Rahàzade a falta de talento do bardo Assurancetourix é o fator que

possibilitará o salvamentoda princesa Rahàzade, ou seja, uma situação negativa que se torna

positiva por uma determinada razão.

Em Astérix chez les Bretons a ironia marca presença na própria história em si, os

ingleses representados pelos bretões e franceses, representados pelos gauleses são tão

próximos que poderiam ser considerados da mesma família e, no entanto, apresentam atitudes

completamente diferentes quanto à cultura e aos hábitos rotineiros. É sabido que ingleses e

franceses sempre tiveram uma relação conturbada ao longo da História, todavia, no universo

de Astérix eles se unem para combater um inimigo em comum, o império romano.

Passemos agora à análise dos álbuns a partir do esquema proposto por Rosas (2002). A

princípio é apresentada uma lista com os nomes (em francês e português) de diversos

personagens, fixos ou não, dos dois álbuns analisados que representam ora a origem do

personagem, ora sua profissão ou ainda um traço de sua personalidade. Quase todos os nomes

podem ser classificados como trocadilhos criados a partir da modificação da fronteira das

palavras. Em seguida, será feita a análise dos álbuns na seguinte ordem: jogos de palavras,

trocadilhos e mal-entendido cultural.

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5.1 Jogos de palavras com nomes de personagens

5.1.1 Personagens presentes em todas as histórias

Os principais personagens da série, além de Astérix, são gauleses habitantes da aldeia.

Os nomes gauleses levam em sua maioria o sufixo – ix:

Astérix (FR) / Asterix (BR)13

– O nome do personagem principal da série perdeu

apenas o acento em sua tradução para o português. Astérix vem, segundo seus

criadores, da junção de duas palavras: aster (estrela) e rix (rei em celta).

Obélix (FR) / Obelix (BR) – Assim como no nome de Astérix, a única mudança

feita foi a retirada do acento. Obélix vem de Obelisco (coluna de pedra que celebra

o culto ao Sol entre os egípcios)14

Panoramix (FR) / Panoramix (BR) – O druida da aldeia gaulesa tem em seu nome

a palavra panorama, que significa visão ampla15

Idéfix (FR) / Ideiafix (BR) – O cãozinho de Obélix foi batizado por um grupo de

leitores que participaram de um concurso proposto pela revista Pilote. A expressão

ideia fixa aponta para um traço da personalidade do personagem, que não suporta

ver uma árvore ser arrancada.

Assurancetourix (FR) / Chatotorix (BR) – O bardo da aldeia, cujo nome em

francês vem da expressão seguro total (assurance tous risques), tem a confiança

(assurance) de que é um grande artista. Seu nome em português é um jogo de

palavras em que a repetição do som e a palavra “chato” agrupam dois pontos da

personalidade do personagem.

Abraracourcix (FR) / Abracurcix (BR) – O chefe da aldeia tem grandes qualidades,

porém não apresenta a diplomacia esperada de um governante. A expressão À bras

raccourcis significa fazer algo com grande violência16

. Sua tradução é apenas uma

forma mais fácil, para os falantes da língua portuguesa, de pronunciar o nome do

chefe.

13 LEGENDA: FR: francês / BR: português falado no Brasil.

14 FONTE: Le livre d’Astérix le Gaulois.

15 FONTE: Le Petit Larousse, ed. 2005.

16 FONTE: Le Petit Larousse, ed. 2005.

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Bonemine (FR) / Naftalina (BR) – A esposa do chefe da aldeia tem no nome um

traço de sua personalidade, faire bonne mine em francês significa receber alguém

com boas maneiras. O nome, além de um jogo de palavras, também é exemplo de

um dito irônico, a personagem é extremamente rabugenta e desconfiada com

relação a qualquer novidade.

5.1.2 Nomes dos personagens em Astérix chez les Bretons

Cassivellaunos (FR) / Godseivzekingos (BR) – O herói dos bretões, que se

chamava Caswallawn, é apresentado no álbum com uma versão de seu nome

original. Em português o tradutor optou pelo jogo de palavras da expressão God

save the king, de origem inglesa.

Zebigbos (FR) / Zebigbos (BR) – Chefe bretão cujo nome vem da expressão em

inglês The big boss. O som da palavra the para um francófono soa como ze. A

expressão também é conhecida em português e a partícula ze pode ser

compreendida como o apelido dado pelos falantes da língua portuguesa ao nome

José.

Jolitorax (FR) / Cinemax (BR) – O primo bretão de Astérix tem o porte da imagem

de um inglês feita por um francês, alguém empertigado, com o peito estufado. O

nome em francês significa belo tórax, que corrobora a imagem atribuída ao

personagem.

MacAnotérapix (FR) / Macarronix (BR) – O nome original faz alusão à

mecanoterapia, uma das vertentes da fisioterapia e indica um tratamento possível

para o personagem, que ao contrário dos outros bretões, não apresenta uma postura

ereta. O personagem é um representante da Caledônia, leva no nome a partícula

Mac reconhecida como escocesa e não apresenta nenhuma relação com o

macarrão, alimento usado pelo tradutor para a criação do trocadilho.

O'Torinolaringologix (FR) / Otorrinolaringologix (BR) – Tanto em francês quanto

em português foi usado o nome de uma profissão, que nada tem a ver com o

personagem, o que marca sua origem (irlandesa) é a letra “O” seguida de um

apóstrofe, que foi suprimido pelo tradutor.

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Surtax (FR) / Sintax (BR) – O nome em francês é um jogo de palavras sobre a

expressão surtaxe que significa taxa suplementar. Em português foi usado um

trocadilho da palavra sintaxe.

Petula (FR) / Petula (BR) – O nome é uma alusão a Petula Clark: cantora, atriz e

compositora inglesa. No álbum a personagem é vizinha do homem que roubou o

barril de poção.

5.1.3 Nomes dos personagens romanos

Caius Roideprus (FR) / Caius Aimeuscalus (BR) – Governador romano da

Bretanha, o personagem, assim como a maioria dos personagens romanos tem em

seu nome o sufixo –us. Em francês o nome significa rei da Prússia. Em português

o tradutor optou por um jogo de palavras com a expressão conhecida como “não

pise nos meus calos!”

Tullius Stratocumulus (FR) / Tullius Cumulonimbos (BR) – Stratocumulus e

cumulosnimbus são dois tipos de nuvens, o primeiro é um tipo de nuvem pequena

de espessura regular, o segundo é o tipo de nuvem grande que geralmente dá

origem a tempestades. O nome em francês do centurião romano já demonstra que

ele não terá grande relevância na história do álbum.

5.1.3 Nomes dos Personagens em Astérix Chez Rahàzade

Rahàzade (FR) / Jade (BR) – O nome em francês faz alusão ao conto das “Mil e

uma noites” no qual a heroína se chama (na grafia francesa) Shéhérazade. O

tradutor não se propôs a fazer um jogo de palavras com o nome da personagem em

português (Sherazade) e optou por Jade, nome conhecido no Brasil como

pertencente a uma mulher de origem árabe ou hindu. O jogo de palavras presente

nesse nome vem da palavra rasade que significa quantidade de bebida

(normalmente alcoólica) contida em um copo cheio até a borda.17

Kiçàh (FR) / Khenhé (BR) – Mercikhimerciqui (FR) / Khiorassam (BR) –

Kiwoàlàh (FR) / Khenvenlah (BR) – Pourkoipàh (FR) / Porkhenam (BR) –

17 FONTE: Le Petit Larousse, ed. 2005.

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Cékouhaçà (FR) / Kheissaih (BR) – Nos cinco exemplos optou-se tanto em francês

como em português por trocadilhos originados em perguntas (Qui ça? / Quem é? –

Merci qui? / Que horas são? – Qui voit là? / Quem vem lá? – Pourquoi pas? /

Porque não? – C’est quoi ça? / Que é isso aí?). Os nomes de origem hindu para um

francófono apresentam no final ora a letra h ora a letra i. Em português esse traço

não foi acompanhado.

Seurhàne (FR) / Irmana (BR) – A aia da princesa Rahazade recebeu o nome que

faz alusão ao personagem Soeur Anne no conto “Barbe Bleue” de Charles Perrault.

No conto a personagem ajuda a vítima do vilão a se salvar.

Karédas (FR) / Asdeouros (BR) – O som da letra r para os franceses é uma das

marcas dos nomes gregos. O tradutor traduziu literalmente o nome sem se

preocupar se em português o nome teria a sonoridade de um nome que o leitor

identificaria como um nome grego.

Alguns dos nomes apresentados são exemplos do processo de funcionamento da

imaginação dos autores, processo esse citado por Bergson (2010), através do qual é possível

observar o funcionamento social, coletivo e popular de um determinado grupo, nesse caso os

franceses.

5.2 Jogos de palavras presentes nos enunciados

5.2.1 Astérix chez les Bretons

Ex.1: Mon jardin est plus petit que Rome mais mon pilum est plus solide que votre

sternum. (Astérix chez les Bretons, p. 18)

(Trad): Pode ser que meu jardim seja menor que Roma, mas minha lança é mais firme

que sua pança. (Astérix entre os Bretões, p. 18)

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Fonte: http://ocatarinetabellatchitchix.tumblr.com

O jogo de palavras nesse exemplo consistia em dois pontos: a rima entre duas palavras

e a utilização em latim das palavras rimadas que significam respectivamente lança e peito. O

tradutor encontrou uma rima apropriada em português (pança / lança). O uso das palavras em

latim poderia ter sido uma forma que os autores encontraram para deixar claro o fato de que o

bretão queria ser bem compreendido pelo romano. Na tradução em português esse fato foi

suprimido.

Ex.2: Soldado romano: - C’hest ton monneau!... Meau tonnon. (Astérix chez les

Bretons, p. 23)

(Trad): Soldado romano: - Eche barreu é mil!... Beu marril. (Asterix entre os bretões p.

23)

O soldado em questão estava embriagado, daí a confusão ao pronunciar as palavras. A

pronúncia correta seria: C’est mon tonneau!... Mon tonneau. (FR) e Esse barril é meu!… Meu

barril. (BR). Esse jogo de palavras só foi possível porque o leitor, mesmo que as frases não

tenham sido ditas (escritas) corretamente, pode reconhecê-las e compreender por que foram

apresentadas daquela forma. Nesse exemplo é possível observar a utilização do vício como

personagem que faz os outros interagirem, confirmando as análises de Bergson (2010). O

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excesso de álcool fez com que os soldados romanos articulassem frases desconexas, mas

totalmente compreensíveis a partir do momento em que se considera a ação do álcool na cena.

Ex.3: Qu’on me mange, mais qu’on cesse de crier. (Astérix chez les Bretons, p. 28)

(Trad): Quousque tandem aimeuscalus abutere patientia nostra. (Astérix entre os

Bretões, p. 28)

Fonte: http://ocatarinetabellatchitchix.tumblr.com

O tradutor optou por uma versão em latim da expressão: Quousque tandem abutere

Catilina patientia nostra. A tradução dessa frase seria “Até quando Catilina abusarás da nossa

paciência?”

Seria uma expressão usada no meio acadêmico e jurídico para refutar alguém turrão e

teimoso que insiste em abraçar uma causa perdida. Esta é a primeira frase do primeiro dos

quatro discursos de Cícero, acusando Lucio Sergio Catilina, cônsul romano, de pretender

derrubar o governo republicano e apoderar-se do poder e das riquezas.18

O tradutor trocou o nome Catilina por Aimeuscalus, que seria o governador romano

responsável pela cidade de Londinium (Londres). Na verdade, a frase foi dita por um soldado

romano após um forte grito proferido por Aimeuscalus. Para chegar a essa expressão

18 FONTE: http://jorgecarrano.blogspot.com.br.

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pesquisei em vários sites de Internet nos quais figuram expressões em latim. Será que o jovem

leitor idealizado pelos criadores de Astérix teria interesse em fazer esse tipo de pesquisa? E se

tivesse interesse em procurá-la, a expressão provocaria seu riso? Talvez nesse caso fosse

interessante inserir uma nota de pé de página.

Ex.4: Narrador: Les plus petits poissons font boire la tasse aux pêcheurs. (Astérix

chez les Bretons, p. 44)

(Trad): Narrador: Pois qualquer trairazinha lhes dá um bom caldo. (Astérix entre os

Bretões, p. 44)

A expressão em francês boire la tasse significa engolir água involuntariamente. A

situação na qual a frase foi proferida mostra dois pescadores bretões pescando às margens do

Rio Tâmisa no qual foi derramada uma grande quantidade da poção mágica de Panoramix.

Por esse motivo os peixes desse rio adquiriram uma força excepcional, sendo capazes mesmo

de arrastar um dos pescadores.

O tradutor compreendeu o jogo de palavras para o qual a imagem, no caso de uma

história em quadrinhos, tem grande importância. A escolha do peixe traíra se deu pelo fato do

conhecimento empírico adquirido que permite a ideia de que o peixe citado é de pequeno

porte. É possível observar com esse exemplo que o humor também se faz através da utilização

literal de determinadas expressões.

5.2.1 Astérix chez Rahazade / As 1001 horas de Asterix

Ex.5: Astérix chez Rahàzade

(Trad): As 1001 horas de Asterix

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O título do álbum é resultado de uma modificação de fronteira entre as palavras. Como

já foi dito anteriormente, O nome da personagem na qual a princesa do álbum foi baseada é

Shéhérazade (FR) ou Sherazade (BR), os autores fizeram uma separação da primeira silaba da

versão francesa do nome e trocaram de lugar as duas sílabas seguintes. Dessa forma, o

resultado obtido foi a palavra she, homófona da palavra chez que em língua francesa significa

a casa, a moradia ou ainda o país de origem de alguém. O tradutor substituiu o jogo de

palavras pela expressão As 1001 horas, pretendendo fazer uma alusão ao Conto das mil e uma

noites. Nesse caso a escolha feita pelo tradutor exclui outros jogos de palavras que surgem no

decorrer da narrativa e que foram excluídos na tradução.

Ex.6: Abraracourcix: C’est vrai! J’oubliais qu’Assurancetourix a une nouvelle corde

à sa harpe! (Astérix chez Rahazade, p. 10)

(Trad): É verdade! Esqueci que Chatotorix tem o poder de encher até um rio! (As 1001

horas de Asterix, p. 10)

Nessa passagem, Panoramix descobre a razão da visita do faquir, ele acredita que o

bardo tem o poder de fazer chover e pretende levá-lo a seu país. Em francês existe uma

expressão (avoir plusieurs cordes à son arc) que significa ter diversos recursos para se sair

bem em diferentes situações. O tradutor optou por fazer alusão ao fato de Assurancetourix

fazer chover quando canta. Ao optar pela expressão encher até um rio, o tradutor perdeu a

oportunidade de usar o verbo encher no sentido de acabar com a paciência de alguém.

Ex.7: Serviçal romano 1: - Cesar et le médecin sont couchés et dans leur délire ils

parlent de je ne sais quels gaulois irréductibles!

Serviçal romano 2: - César a vraiment pris les Gaulois en grippe! (Astérix

chez Rahàzade, p. 17)

(Trad): Serviçal romano 1: - César e o médico estão deitados e deliram! Falam de uns

tais de gauleses irredutíveis!

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Serviçal romano 2: - Eu sempre disse que a Gália ia dar o maior galho! (As

1001 horas de Asterix, p. 17)

A expressão prendre en grippe significa ter ou tomar antipatia por alguém.19

Trata-se

de um jogo de palavras homófonas e homógrafas no qual a mesma palavra apresenta níveis de

leitura diferentes. O tradutor preferiu usar duas palavras de raízes aparentemente próximas

para criar o efeito humorístico.

A partir do sentido cômico citado por Bergson (2010), é possível observar nos

exemplos 1 a 6 a forma como o francês é visto pelo próprio francês e como o outro (bretões e

romanos) é visto por esse francês.

Ex.8: Soldados romanos: - Vive la Rome, vive l’arome du bon vin! (Astérix chez les

Bretons, p. 23)

(Trad): Soldados romanos: - Vamos a Roma… Vamos a Roma… Sentir o aroma do

bom vinho! (Asterix entre os bretões, p. 23)

Esse é um exemplo em que a mudança de fronteira da palavra gerou o jogo de

palavras. A letra a, que fazia parte da palavra la (artigo definido singular feminino) foi

agregada à palavra Rome (substantivo que indica o nome de uma cidade) dessa forma, obteve-

se como resultado a palavra arome antecedida pela letra l’ (artigo definido singular usado em

palavras que comecem por vogais ou pela letra H). O tradutor repetiu a terminação da palavra

Roma quando optou pela palavra aroma, mas não levou em consideração que as duas palavras

não são pronunciadas da mesma forma na língua portuguesa falada no Brasil. Mesmo que o

leitor fosse um genuíno “carioca da gema”, que ao falar pronuncia a letra “r” como se fosse

um dígrafo, a frase traduzida não surtiria o efeito alcançado no texto original.

19 FONTE: Le Petit Larousse, ed. 2005.

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Ex.9: Narrador: (…) nous ne sommes qu’à trois cent heures de l’heure “H” l’heure

du sacrifice de la princesse Rahàzade. (Astérix chez Rahazade, p. 25)

(Trad): Narrador: (…) e faltam apenas trezentas horas para a hora “H”, hora do

sacrifício da princesa Jade.

Nesse caso a imagem faz parte da formação do trocadilho, a palavra hache (machado)

é homófona do som da letra H e logo abaixo da fala do narrador é apresentada a imagem de

um machado, objeto reconhecido como ferramenta de sacrifício em várias culturas. Nesse

caso o tradutor não teve outra escolha se não ignorar o desenho que fazia parte do enunciado.

Ex.10: Assurancetourix: - Percer un tapis en Perse, faut le faire! (Astérix chez

Rahàzade, p. 26)

(Trad): Chatotorix: - Essa é boa, furar um tapete na Pérsia! (As 1001 horas de Asterix,

p. 26)

Aqui é possível considerar que foi feito um jogo de palavras baseado em homofonia

mesmo que as palavras percer e Perse não sejam realmente homófonas. O tradutor considerou

apenas a ironia do destino observada por Assurancetourix, uma vez que, os tapetes persas são

reconhecidos no mundo inteiro. Em alguns casos a ironia pode figurar na origem da situação

cômica. Nesse caso o jogo de palavras é a origem da situação cômica.

Ex.11: Kiwoàlàh: - Hé! Hé! La clepsydre nous indique que nous ne sommes plus qu’à

cent quatre-vingts heures de L’heure ‘’H’’!

Mercikhi: - De l’heure hache sur le billot, mon divin maître! Hi! Hi! Hi!

(Astérix chez Rahàzade, p. 27)

(Trad): Khenvenlah: - Rê! Rê! A clepsidra indica que faltam apenas cento e oitenta

horas para a hora “H”! O tempo foi-se!

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Khiorassam: - Foi-se como o machado do carrasco, divino mestre! Ri! Ri! (As

1001 horas de Asterix, p. 27)

Novamente observa-se um jogo de palavras com a palavra hache (machado) e a letra

H. A frase dita por Mercikhi é um exemplo de trocadilho resultante de modificação de

fronteira e homofonia ao mesmo tempo. A frase: De leur hache sur le billot (do seu machado

(deles) sobre o cadafalso) seria uma homófona da frase dita pelo faquir. As palavras ditas

foram: l’ (artigo definido singular usado antes de substantivos que comecem pela letra H) e o

substantivo heure (hora), com a mudança de fronteiras obteve-se a palavra leur (adjetivo

possessivo que indica um objeto e vários possuidores). O tradutor fez um jogo de palavras a

partir da homofonia das palavras foi-se e foice, associando essa última ao machado por serem

ambas instrumentos usados em sacrifícios.

Ex.12: Rahàzade: - Soit confiant, père! Kiçah n’est pas n’importe qui! (Astérix chez

Rahàzade, p. 30)

(Trad): Jade: - Tenha fé! Khenhé sabe quem é! (As 1001 horas de Asterix, p. 30)

O tradutor compreendeu o jogo de palavras existente nessa passagem, no qual a

palavra o nome do personagem foi alvo de duas leituras simultaneamente, como seu nome

realmente e como forma interrogativa (Qui ça?) que poderia ser seguida da resposta n’importe

qui. Na tradução foi possível criar um trocadilho a partir da homofonia da frase quem é o

nome do personagem em português (Khenhé).

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5.4 Mal-entendidos culturais

5.4.1 Astérix chez les Bretons / Asterix entre os bretões

Ex.13: Astérix: - Jolitorax mon cousin germain!

Obélix: - Mais c’est ce germain qui m’a dit (…)

Astérix: - Ce n’est pas germain c’est un breton (…) (Astérix chez les Bretons,

p. 08)

(Trad): Asterix: - Cinemax! Meu contraparente bretão!

Obelix: - Mas foi seu parente do contra quem mandou (...)

Asterix: - Não é parente do contra, é contraparente (...) (Asterix entre os

bretões, p. 08)

Cousin germain, segundo o dicionário Trésor de la langue Française informatisé20

,

significa nascido do irmão ou da irmã do pai ou da mãe. Já a expressão contraparente, no

dicionário Aulete21

, significa parente afastado cujo vínculo ocorre em decorrência de

casamento com algum parente direto. O tradutor considerou apenas a primeira definição, que

é a mais difundida entre os falantes da língua portuguesa do Brasil. No texto original o mal-

entendido partiu do personagem Obélix e originou-se no fato de que Jolitorax (FR) / Cinemax

(BR) é estrangeiro, quando Astérix o apresenta como seu cousin germain (primo germânico),

Obélix associa germain à sua origem e não à expressão. O tradutor conseguiu manter o mal-

entendido seguindo a mesma direção, Obélix confundiu-se com a palavra contra e se referiu

ao primo de Astérix como alguém que nunca concorda com a maioria.

Ex.14: Jolitorax: - Non, quelques pieds... les romains mesurent les distances em pas,

nous en pieds.

20 http://atilf.atilf.fr 21 FONTE: http://aulete.uol.com.br.

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Obélix: - En pieds?

Jolitorax: - Il faut six pieds pour faire un pas.

Obélix: - Ils sont fous ces bretons! (Astérix chez les Bretons, p. 18)

(Trad): Cinemax: Não, alguns pés… os romanos medem as distâncias em passos e nós

em pés.

Obelix: - Em pés?

Cinemax: - Cinco pés perfazem um passo.

Obelix: - Esses bretões são mesmo loucos! (Asterix entre os bretões, p. 18)

O fato de que no Brasil não se usa esse tipo de nomenclatura fez com que o

leitor se identificasse com Obélix em sua confusão. E um dos fatores que geram o riso

é a identificação do espectador com aquilo que foi apresentado.

Ex.15: Obélix (ao ver dois bretões discutindo o preço do melão): - Tu as vu Astérix?

Ce londinien est coiffé d’un melon! (Astérix chez les Bretons, p. 24)

(Trad): Obelix: - Viu só, Asterix? Aquele londiniano usa um melão no lugar do

chapéu! (Asterix entre os bretões, p. 24)

Ainda segundo o dicionário Trésor de la langue Française informatisé, chapeau

(chapéu) melon (melão) trata-se de um chapéu pequeno cujas abas são estreitas, o equivalente

em português seria chapéu coco. Quando diz Ce londinien est coiffé d’un melon, Obelix

acredita que o outro personagem tem o objeto na cabeça como se fosse sua escolha utilizá-lo,

nesse momento os autores levam o leitor a crer que o estereótipo do inglês com seu chapéu

coco foi criado por um gaulês sem que este se desse conta. O tradutor apenas registrou a cena

com o comentário feito por Obélix. É por causa de uma tradução desse tipo que o personagem

Obélix é visto pelo leitor brasileiro como alguém que apresenta algum tipo de retardo mental.

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5.4.2 Astérix chez Rahàzade / As 1001 horas de Asterix

Ex.16: Obélix: - En somme, tu veux poéter plus haut que les autres, quoi!

Assurancetourix: - Je veux chanter quand ça me chante, môssieu Obélix!

(Astérix chez Rahàzade, p. 18)

(Trad): Obelix: - Em resumo, quer cantar de galo até no tapete!

Chatotorix: - Quero cantar quando me dá na telha, senhor Obelix! (As 1001

horas de Asterix, p. 18)

O verbo poéter utilizado por Obélix não é o verdadeiro, seria poétiser (ato de criar

poemas) e foi apresentado de forma incorreta, talvez para dar a ideia de que ou Obélix não

compreende nada do universo da poesia ou ele não considera a arte de Assurancetourix arte de

verdade. Na fala de Assurancetourix é possível perceber um jogo de palavras com a expressão

ça me chante (Isso me interessa). O tradutor optou por utilizar uma expressão, cantar de galo,

ao invés de algo mais próximo de um mal-entendido e usou outra expressão, quando me dá na

telha para completar a passagem seguinte.

Ex.17: Obélix: D’abord, nous, on ‘est pas des étrangers, on est de gaulois! (Astérix

chez Rahàzade, p. 27)

(Trad): Obelix: - Pra começar, não somos estrangeiros, somos gauleses! (As 1001

horas de Asterix, p. 27)

Nesse caso, o mal-entendido foi mantido pelo tradutor, Obélix não compreende o

sentido da palavra étrangers (estrangeiros) e por isso não se considera como tal. A palavra

étranger em francês também é usada como sinônimo de estranho ou ainda diferente, a partir

daí pode-se imaginar que Obélix queria dizer que não há nada de estranho com os gauleses.

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Ex.18: Kiçàh:- Heureusement pour toi, le sanglier n’est pas sacré chez nous, Obélix!

Obélix: - (Glop! Scrontch!) ben moi, je le trouve sacrement bon!... (Astérix

chez Rahàzade, p. 48)

(Trad): Khenhé: - Felizmente para você, os javalis não são sagrados para nós Obelix!

Obelix: - (Nhoc! Glup!) Para mim, são o manjar dos deuses!... (As 1001 horas

de Asterix, p. 48)

A expressão sacré, além de significar algo com sentido religioso, divino, também pode

significar um reforço a um dito injurioso ou admirativo.22

O personagem Kiçàh / Khenhé usou

a expressão com a primeira significação e Obelix compreendeu que na cultura do outro o

javali não era tão apreciado. O tradutor fez um jogo de palavras o qual leva a crer que Obélix

compreendeu aquilo que o outro personagem disse e fez um comentário a partir da segunda

leitura possível.

Os exemplos de mal-entendidos culturais apresentados acima demonstram as

principais causas citadas por Waite (2008). A falha na decodificação, que pode ocorrer através

de uma deficiência do domínio da língua, está presente nos exemplos 13 e 18. Nos exemplos

14, 15 e 17 o personagem Obélix ignora que existam variações linguístico-comportamentais

entre a sua cultura e as outras. A falha na codificação da mensagem na qual ocorrem

decalques prosódicos está presente no exemplo 16.

22 FONTE: Le Petit Larousse, ed. 2005.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na presente dissertação abordamos o tema da tradução de humor e o foco da análise

foram dois álbuns da série de história em quadrinhos Astérix. A hipótese, levantada ainda no

projeto de pesquisa, seria a de que os tradutores dos álbuns analisados teriam optado por três

tipos de tradução: a tradução literal, a tradução feita a partir da escolha de um equivalente

cômico no texto de chegada e a tradução que seria o resultado da junção das duas práticas

anteriores. Após a análise, podemos afirmar que a hipótese levantada foi validada.

O objetivo da pesquisa era comprovar que a tradução de humor, por vezes, implica em

mudanças na estrutura do texto e também comprovar que o mais importante é manter o perfil

cômico para que o texto não perca sua essência. Tais objetivos foram alcançados como

podemos observar mais adiante ao falarmos dos resultados das análises.

Durante a elaboração do trabalho verificou-se, quanto ao jogo de palavras, que, a rima,

a paródia e o trocadilho foram as categorias presentes nos enunciados analisados. Os

exemplos de mal-entendido cultural foram analisados principalmente a partir das falas do

personagem Obélix. A escolha se deu pelo fato de que o personagem encarna o estereótipo do

gaulês (francês) que ignora traços marcantes das culturas diferentes da sua.

Os álbuns analisados são histórias em quadrinhos e nesse tipo de literatura a imagem é

muito importante, por esse motivo tomou-se o cuidado de não analisar determinadas

passagens do texto em que a fala dos personagens é reforçada por uma imagem, excluindo-se

duas situações: o exemplo 9 no qual existe o desenho de um machado cujo nome em francês é

homófono do som da letra H, e o exemplo 14 no qual uma fruta (um melão) é vista como um

chapéu.

A análise dos exemplos escolhidos foi feita a partir das duas categorias abordadas.

Foram escolhidos 18 exemplos, dos quais doze exemplos de jogos de palavras e seis

exemplos de mal-entendidos culturais. No exemplo em que o personagem bretão usa o latim,

língua dos soldados romanos, dando a entender que ele “falava a língua” dos soldados. O

tradutor considerou simplesmente a rima que poderia ser obtida, embora tivesse a opção de

deixar os dois termos em latim. Quando os soldados romanos trocam a primeira letra das

palavras que pronunciam, a comicidade se dá a partir do jogo de palavras que denota a

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embriaguez dos personagens, nesse caso o tradutor compreendeu a intenção dos autores e

criou jogos de palavras em português. O tradutor teria tentado “melhorar” o texto quando, no

exemplo 3, fez uma paródia de uma expressão latina conhecida, uma vez que, a tradução

literal da passagem causaria estranhamento para o leitor de língua portuguesa no Brasil. No

exemplo 4, o tradutor partiu do princípio de que todos os leitores conhecem o peixe chamado

traíra e o sentido da palavra caldo nesse contexto. O tradutor usou no exemplo em que o

personagem do chefe dos gauleses usa a expressão “avoir une nouvelle corde à sa harpe” uma

frase que, para os falantes de língua portuguesa não passa de uma frase comum ao invés de

uma expressão idiomática como no texto de partida. No exemplo em que o soldado romano

usa a expressão “prendre en grippe” assim como no exemplo do bretão que faz rima com

duas palavras em latim, o tradutor escolheu priorizar a rima em detrimento ao jogo de

palavras composto por uma homografia e uma homofonia ao mesmo tempo.

No exemplo em que os soldados romanos cantam e naquele que constitui o nome de

um dos álbuns (Astérix chez Rahàzade), o jogo de palavras consistia em uma mudança de

fronteira de palavras. Para o exemplo sobre a utilização da palavra hache (machado), o

tradutor não encontrou uma solução para o jogo de palavras resultante da homofonia entre

duas palavras. Sobre o exemplo que faz alusão ao tapete furado na Pérsia, também um caso de

homofonia, o tradutor tratou como um simples comentário sobre a ironia do destino. No

exemplo em que pela segunda vez houve a utilização da palavra hache, a dificuldade ignorada

no exemplo anterior reaparece e o tradutor consegue encontrar ao menos um exemplo de

homofonia. No exemplo em que a personagem da princesa hindu fala com seu pai,

originalmente seria um exemplo de jogo de palavras, porém, o tradutor preferiu criar um

trocadilho para manter sua comicidade. Percebeu-se durante a análise dos trocadilhos o maior

número de conflitos em sua tradução.

Como citado anteriormente, foram escolhidos os exemplos de mal-entendidos culturais

“cometidos” pelo personagem Obélix. A escolha se deu pelo fato de que, provavelmente aos

olhos dos leitores de língua portuguesa no Brasil, o personagem seria alguém idiotizado

quando na verdade segundo os próprios autores dos álbuns, Obélix tem uma visão particular

de tudo o que acontece a sua volta e, principalmente, seu ponto de vista é um contraponto ao

ponto de vista de Astérix, sempre tão sensato e realista. No exemplo sobre a expressão “cousin

germain”, bem como naquele em que o personagem explica como os bretões medem a

distância e aquele no qual Obélix não se considera estrangeiro, o tradutor conseguiu captar a

origem do mal-entendido. No exemplo em que Obélix, ao invés de usar o verbo poétiser usa o

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verbo poéter,o tradutor superestimou o personagem e atribuiu a ele uma expressão idiomática

correta, descartando a ideia de que Obélix teria criado, sem saber, um novo verbo.

Finalmente, a tradução do exemplo em que Obélix responde à observação feita pelo faquir

sobre o hábito de comer javalis é o resultado de dois equívocos: o jogo de palavras proposto

nas duas leituras possíveis da expressão “sacré” e a atribuição a Obélix de uma frase que teria

sido dita por Astérix.

Conclui-se que a tradução de humor precisa ser tratada seriamente (sem jogo de

palavras!). Antes de começar a tradução seria interessante se o tradutor fizesse um

levantamento das categorias de humor presentes no texto de partida. Dessa forma, mesmo que

seja necessário mudar a categoria de determinada expressão, a comicidade original seria

mantida. Nesse trabalho não se pretendeu analisar todas as categorias de humor por se tratar

de uma dissertação resultante de leituras pessoais. Não se pretendeu tampouco indicar esse ou

aquele caminho que seria o melhor a ser tomando pelo tradutor, pelo simples fato de que, em

algumas passagens, compreende-se que o tradutor não teria outra saída. O que se pretendeu

foi demonstrar que é possível melhorar a tradução de textos de humor através de um

tratamento mais específico.

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INFORMAÇÕES SOLICITADAS APÓS A DEFESA DE MESTRADO

Nome do autor da dissertação: MICHELE SODRÉ GONÇALVES

Endereço: Rua professor Otacílio, 23 apartamento: 401 - Santa Rosa – Niterói – Rio de

Janeiro – CEP: 24240670

E-mail: [email protected] – telefone: (21) 99918-4022

Nascimento: 02 /11 /1978

Mês e ano do início do curso: março / 2011

Data da defesa: 13 / 03 / 2014

Orientadora: Professora Doutora Angela Maria da Silva Corrêa

Programa: Pós-graduação em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos neolatinos – Opção língua

francesa)

Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Examinadores: Professor Doutor Fernando Afonso Almeida (UFF) e Professora Doutora Márcia

Atálla Pietroluongo (UFRJ)

Título da dissertação: TRADUÇÃO DE HUMOR: PRÁTICAS DE TRADUÇÃO EM ASTÉRIX

Número de páginas: 79 - número de volumes: um

Resumo e palavras-chave:

A tradução de humor é a principal fonte de análise do presente trabalho. A razão de ser do

texto humorístico é fazer rir, seja ele em sua língua de origem ou de forma traduzida. No trabalho, os

textos escolhidos para análise foram dois exemplares da revista de história em quadrinhos francesa

Astérix. Os álbuns selecionados, Astérix chez Rahàzade e Astérix chez les Bretons são analisados a

partir de uma comparação entre o original e sua tradução para a língua portuguesa falada no Brasil.

Pretende-se encontrar possíveis problemas de tradução que resultariam na perda da razão de ser

dos textos analisados, o humor. As categorias analisadas em cada texto são: jogos de palavras e

mal-entendidos culturais. No trabalho são abordadas ainda a definição de humor, a linguagem dos

quadrinhos e o humor como campo de estudos.

Palavras-chave: tradução, humor, quadrinhos, Astérix

Programa, área de concentração e linha de pesquisa: Programa de Pós-Graduação em Letras

– Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua francesa – Tradução.

Atividade exercida na época da defesa: professora de língua francesa – Aliança Francesa do Rio

de Janeiro