Tradições africanas e sincretismo religioso: Introdução ao ...

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Tradições africanas e sincretismo religioso: Introdução ao Mvett .media Ao decifrar o Mvett, percebemos sua semelhança com outros textos da Sabedoria Universal. Texto: Martin AMBARA Imagem: Henk Cruz A ideia do sincretismo religioso, tal como queremos abordá-la, só fica clara se desconsiderarmos a visão atual, popularizada ao longo de séculos pela tradição judaico-cristã. 25 Março 2019

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Tradições africanas e sincretismo religioso: Introdução ao Mvett

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Ao decifrar o Mvett, percebemos sua semelhança com outros textos da Sabedoria Universal.

Texto: Martin AMBARA Imagem: Henk Cruz

A ideia do sincretismo religioso, tal como queremos abordá-la, só fica clara se desconsiderarmos a visão atual, popularizada ao longo de séculos pela tradição judaico-cristã.

25 Março 2019

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Sabendo que a iniciação é a base que regulou e continua a regular a maioria das sociedades africanas, a questão é: qual foi a doutrina substancial dessas tradições iniciáticas? Apenas um estudo não complacente de seus ensinamentos secretos e sagrados pode ajudar a estabelecer um elo entre sua abordagem religiosa e os fundamentos do pensamento cristão ortodoxo.

Os etimologistas citam duas fontes da palavra "Religião": relegere (coletar, reunir) e religare (vincular, ligar).

O Antigo Testamento menciona uma ruptura entre Adão, o homem primordial, e seu primeiro lar, o Éden. O Novo Testamento, por seu turno, estabelece o plano de redenção, reconversão, o retorno ao lar, plano cujo iniciador é Cristo.

A estrutura proposta por esta alegoria do Antigo e do Novo Testamento não é exclusiva da Bíblia. Vários relatos descrevem essa situação, apresentando o homem, em sua condição atual, como uma entidade isolada de sua matriz original. Além disso, se partirmos dessa ruptura, e se tomarmos a religião como previamente definida, ou seja, um conjunto de lições e práticas que permitem ao Homem (Adão, no caso da Bíblia) se conectar a esse habitat hoje perdido (Éden), a religião poderia ser considerada e definida como um Caminho de iniciação, o conhecimento e implementação desse caminho, em suma, uma Gnose, um renascimento. Assim, as noções de iniciação e religião estariam integradas.

Nesse sentido, existe entre as "tradições iniciáticas africanas" uma que se alinha ao seguinte diagrama libertador: Separação do lar primordial (Adão expulso do paraíso, de acordo com os termos bíblicos) e depois o processo de Religare, que possibilita ao homem expulso do paraíso retornar a ele.

A referida tradição é o Mvett, que passamos a analisar.

 

Definições de Mvett

Definir o Mvett imediatamente nos coloca diante de um problema linguístico, uma vez que a área geográfica em que ele nasceu e floresceu (Camarões, Gabão, Guiné Equatorial e parte do Congo-Brazzaville) compartilha mais de três centenas de idiomas, incluindo o Fang, o Ntumu e o Bulu. Essas três línguas irmãs são aquelas usadas nas narrativas dos épicos de Mvett. O domínio absoluto de seu campo

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onomástico, metafórico, semântico e polissêmico é necessário para se mergulhar no paradigma conceitual de Mvett.

O Mvett como narração é, antes de tudo, um épico. E como épico, inclui três tipos:

1.O Mvettbibone, Mvett dos amantes, que expõe as anedotas conjugais, as escapadas libidinosas do jogador de Mvett ou de uma personagem fictícia.

2.O Mvettengubi ou bingubi, um gênero menor que lida com canções de ópera, fábulas, contos históricos e histórias infantis.

3.O Mvett Ekang, grande gênero, também chamado Mvettbeyem ou Mvett “daqueles que sabem”. Este Mvett conta a história de dois povos. Um, mortal (o OKÜ), que tenta roubar do outro, imortal (o EKANG), o segredo da imortalidade.

É sobre este último Mvett que vamos nos concentrar.

 

O Mvett Ekang, luta épica

O enredo trágico entre o Ekang e o Oku funda o épico de Mvett Ekang. Além disso, para que este seja acessível, é requerido que o público informado tenha algum conhecimento da língua sagrada e seus códigos, sem os quais a apreensão dos mistérios Ekang poderia ser inviabilizada. Deve ser dito que Mvett-Ekang compartilha este primeiro traço com a Bíblia, o Mahabharata e o Livro do Dia, também chamado Livro Egípcio dos Mortos.

Em si mesmo, o termo Mvett abrange as expressões Ave'e (acordado), Avet(ascensão, estiramento para cima) e Mvebe (respiração).

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Gregory Biyogo (2004)* afirma que o Mvett "é perfeito do ponto de vista do conteúdo, recusando finitude e incompletude, toda a limitação original, qualquer morte (tanto a do corpo como a do espírito). O Mvett recusa a morte. Ele é AQUILO que é conquistado pelo desejo de crescer, de se transformar quantitativa e qualitativamente. É o impulso em direção à perfeição, à eternidade, à abertura para o absoluto, para Eyo'o. O Mvett quer imitar Eyo'o no ato inaugural da criação pela extensão da criação, na repetição da eternidade, na obra de arte.”

Se o termo Ekang, na expressão Mvett-Ekang, significa imortal, seu campo isotópico pode fornecer uma rede de significados, cujo sentido remete para a ideia de uma raça singular, um ideal, um protótipo. Ekanga também significa ponte, Nkang significa raiz, e Ekang, Imagem, escrita. No entanto, no épico, o termo Ekang refere-se ao povo dos imortais que se opõem às aspirações dos mortais de Okü.

Quem são os Okü? O termo Okü é composto do radical Kü ou Kui, que significa fora. Küou Kui também podem ser declinados em Ku, cair, ou Nkua ou Nkwa - aquele que caiu.

Dissemos acima que o Mvett-Ekang conta a história de um povo mortal, Oku (lançado, caído), que deseja roubar o segredo da imortalidade cuidadosamente guardado pelos Ekang, imortais. Ficamos imaginando de onde os mortais Okü teriam "saído ou caído" para serem constrangidos a mendigar o segredo da Imortalidade para os Ekang (raiz racial, imagem racial, ponte racial). Diante disso, é fácil traçar paralelos com expressões como "portador da imagem", "raça raiz" ou "maçons e construtores", bem conhecidas no cristianismo gnóstico.

Mais anedótico é o personagem Mebegue Me Nkwa, que aparece na escala genética dos Mvett. Mebegue significa literalmente "eu uso" ou o fato de usar ou "aquele que usa". Ao confrontar Ekang e Okü, surge a ideia de uma dualidade no sentido ontológico. Em outras palavras, o conflito entre Ekang e Okü ocorre em um campo de batalha existente no interior de um certo "Mebegue", que será abordado mais adiante. O confronto entre Ekang e Oku não se refere apenas à ideia de dois campos opostos, mas à ideia de um homem, um Ekang - Mebegue - Me - Nkwa, transportando duas naturezas diametralmente opostas dentro do próprio peito: um microcosmo em que um imortal e um mortal lutam.

Se nosso objetivo é apresentar o Mvett como Caminho, Conhecimento e Gnose, é necessário ampliar o escopo da análise. Pensar o Mvett como um Beti (Fang, Tumu, Bulu) também será fundamental, inserindo-o no Ciclo Migratório deste último com as

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fases:

Amata (migração)

Odjambogha (a árvore ou o obstáculo)

Coma d'OYONO Ada Ngono ou revelação de Mvett.

O próximo artigo desta série abordará a Gênesis de acordo com o Mvett ou Mistério de OYONO ADA NGONO. Esta apresentação, para ser sucinta, reduzirá os dois primeiros pontos para melhor focar no último.

 

 

*. BIYOGO Grégoire, Enciclopédia de Mvett, Paris, Ed Menaibuc, 2004, P. 124.