Tradição e Crise em Devir

7
MATRIZES CULTURAIS GRECO-LATINAS EM UM MUNDO PÓS-MODERNO Tradição em Crise e Devir Brian Gordon Lutalo Kibuuka* Já não falo de gregos e romanos: ninguém hoje tem bastante génio para compor um coro de Ésquilo ou uma página de Virgílio [...] Eça de Queirós, Cartas da Inglaterra E como ficou chato ser moderno / serei eterno Carlos Drummond de Andrade Na desordem do pensamento, nasce, por exemplo, a poesia [...]. Há algo de profundamente poético em toda desordem do pensamento. Georges Bataille, Entrevista radiofônica a André Gillois, 1951 A cultura ocidental é devedora de duas matrizes fundamentais, a greco- romana e a judaico-cristã, as quais forjaram a identidade de grupos sociais europeus e, por extensão, dos grupos sociais europeizados das Américas, a saber, dos majoritariamente urbanos. Foi sob a influência dos valores greco- romano-cristãos que a sociedade e a cultura ocidentais foram mensurados e redimensionados pelo fluxo e influxo, durante séculos, de valores e ideais atribuídos à Hélade clássica, ao Lácio e a Jerusalém. 1 Tais matrizes da cultura ocidental foram, com a emergência da modernidade, fortalecidos até eclodir uma nova ordem, de natureza transitória, ainda não pós-religiosa, que conservava elementos medievais concomitantes à valorização da cultura clássica. A tal ordem correspondem os nomes renascimento e humanismo dos séculos XIV, XV e XVI. 2 * O autor é Professor Substituto de Língua e Literatura Grega da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestrando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (UC), em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em História Antiga pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É ainda membro colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da UC e pesquisador discente dos grupos de pesquisa Discurso e Antiguidade Grega e Nereida. É orientado pelos professores doutores Maria do Céu Fialho (UC), Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF), Ricardo de Souza Nogueira (UFRJ). 1 Para G. STEINER, a Europa se define, entre outros, pela “descendência dupla de Atenas e Jerusalém” (A ideia de Europa, Lisboa, Gradiva, 2004, 44). Somaríamos a essas Roma, cujo significativo legado está presente no direito, na arquitetura, na literatura e outras manifestações da cultura europeia. 2 Sobre o renascimento, ver: J. C. L. SISMONDI, Historical View of the Literature of the South of Europe, 2ª ed, 1846, tr. Roscoe, vol. I, 246, 276s, 304, 311; D. HAY, Italian Renaissance in its historical Background, C.U.P., 1966, 119; M. F. JERROLD, Francesco Petrarcha, Poet and Humanist, London, 1909, 49, 208, 210s, 232s. Para uma visão panorâmica do renascimento e de suas bases filosóficas, ver E. CASSIRER, P. O. KRISTELLER e J. H. RANDALL JR. (Eds.), The Renaissance Philosophy of Man, Chicago, University of Chicago Press, 1948. Essa obra mostra a importância da literatura clássica no renascimento, especialmente o italiano, destacando as obras de Petrarca, Valla, Ficino, Pico, Pomponazzi e Vives. Nesse período,

description

Artigo: Brian Kibuuka

Transcript of Tradição e Crise em Devir

Page 1: Tradição e Crise em Devir

MATRIZES CULTURAIS GRECO-LATINAS EM UM MUNDO PÓS-MODERNO Tradição em Crise e Devir

Brian Gordon Lutalo Kibuuka*

Já não falo de gregos e romanos: ninguém hoje tem bastante génio para compor um coro de Ésquilo ou uma página de Virgílio [...]

Eça de Queirós, Cartas da Inglaterra

E como ficou chato ser moderno / serei eterno Carlos Drummond de Andrade

Na desordem do pensamento, nasce, por exemplo, a poesia [...]. Há algo de profundamente poético em toda desordem do pensamento.

Georges Bataille, Entrevista radiofônica a André Gillois, 1951

A cultura ocidental é devedora de duas matrizes fundamentais, a greco-

romana e a judaico-cristã, as quais forjaram a identidade de grupos sociais

europeus e, por extensão, dos grupos sociais europeizados das Américas, a

saber, dos majoritariamente urbanos. Foi sob a influência dos valores greco-

romano-cristãos que a sociedade e a cultura ocidentais foram mensurados e

redimensionados pelo fluxo e influxo, durante séculos, de valores e ideais

atribuídos à Hélade clássica, ao Lácio e a Jerusalém.1

Tais matrizes da cultura ocidental foram, com a emergência da

modernidade, fortalecidos até eclodir uma nova ordem, de natureza transitória,

ainda não pós-religiosa, que conservava elementos medievais concomitantes à

valorização da cultura clássica. A tal ordem correspondem os nomes

renascimento e humanismo dos séculos XIV, XV e XVI.2

* O autor é Professor Substituto de Língua e Literatura Grega da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestrando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (UC), em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em História Antiga pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É ainda membro colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da UC e pesquisador discente dos grupos de pesquisa Discurso e Antiguidade Grega e Nereida. É orientado pelos professores doutores Maria do Céu Fialho (UC), Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF), Ricardo de Souza Nogueira (UFRJ). 1 Para G. STEINER, a Europa se define, entre outros, pela “descendência dupla de Atenas e Jerusalém” (A ideia de Europa, Lisboa, Gradiva, 2004, 44). Somaríamos a essas Roma, cujo significativo legado está presente no direito, na arquitetura, na literatura e outras manifestações da cultura europeia. 2 Sobre o renascimento, ver: J. C. L. SISMONDI, Historical View of the Literature of the South of Europe, 2ª ed, 1846, tr. Roscoe, vol. I, 246, 276s, 304, 311; D. HAY, Italian Renaissance in its historical Background, C.U.P., 1966, 119; M. F. JERROLD, Francesco Petrarcha, Poet and Humanist, London, 1909, 49, 208, 210s, 232s. Para uma visão panorâmica do renascimento e de suas bases filosóficas, ver E. CASSIRER, P. O. KRISTELLER e J. H. RANDALL JR. (Eds.), The Renaissance Philosophy of Man, Chicago, University of Chicago Press, 1948. Essa obra mostra a importância da literatura clássica no renascimento, especialmente o italiano, destacando as obras de Petrarca, Valla, Ficino, Pico, Pomponazzi e Vives. Nesse período,

Page 2: Tradição e Crise em Devir

Nos séculos XVII e XVIII, porém, as matrizes culturais responsáveis pela

identidade cultural europeia foram submetidas, cada vez mais, à crítica e à

revisão: desde os impulsos de secularização do cristianismo no racionalismo

de Socino e Amyraud até o surgimento do liberalismo teológico de

Schleiermacher, Ritchl e a Escola de Tübingen;3 passando pela crítica ao mito

e, consequentemente, à grande parte do escopo da literatura e da arte

clássica. A crítica pautava-se na aceitação da eficiência da experiência dos

sentidos, da razão como meio de obtenção de um conhecimento exato e

objetivo, e do progresso e libertação social advindos do esclarecimento. Não

havia espaço significativo para narrativas míticas nesse modelo – mas também

não o havia para a moral clássica, nem para a disseminação da cultura

segundo modelos tradicionais, considerados inferiores pelos iluministas.4

Ao mesmo tempo em que passava por revisão quanto aos seus

conteúdos míticos e quanto à serventia de seus valores artísticos, a tradição

clássica servia de fundamento para as revoluções do fim do século XVIII,

especialmente no campo da política. A Revolução Francesa consiste

provavelmente no exemplo mais pungente disso, dada a possibilidade de

observar o fascínio causado por Licurgo, Milcíades, Aristides, Fócion, Cévola,

Horácio Cocles, Fabrício, Camilo, Cincinato, Catão, Marco Bruto e Traseas em

revolucionários importantes como Robespierre, Barère, Courtois, Villetard,

Billaud-Varennes, Saint-Just entre outros.5.

como demonstra os autores, o interesse na literatura, moral e política clássicas foram reavivados. Sobre o humanismo, A. GIDDENS, Modernity and self-identity. self and society in the late modern age, Stanford, Stanford University Press, 1991. 3 Sobre o nascimento do liberalismo, consultar F. SCHLEIERMACHER, On Religion. Speeches to its Cultured Despisers, trad. Richard Crouter, Cambridge, CUP, 1988; The Christian Faith, ed. H.R. Mackintosh e J.S. Stewart, Edinburgh, T&T. Clark 1948; K. W. CLEMENTS, Friedrich Schleiermacher, Pioneer of Modern Theology, London, Collins e Minneapolis, Fortress Press, 1991; B.A. GERRISH, A Prince of the Church. Schleiermacher and the Beginnings of Modern Theology, Philadelphia: Fortress Press e London, SCM Press, 1984. Sobre Ritschl e a Escola de Tübingen, consultar: ‘Über geschichtliche Methode in der Geschichte des Urchristenthums’, in: Jahrbücher für Deutsche Theologie 6 (1861), 429-459 (= F.Chr. BAUR, Gesammelte Werke in Einzelausgaben, ed. K. Scholder, vol. 5, Für und wider die Tübinger Schule, Stuttgart-Bad Canstatt 1975), 474-76. A. RITSCHL, The Christian Doctrine of Justification and Reconciliation, transl. Black, vol. ii, 8. 4 Segundo CONDORCET, a poesia, o teatro, o saber, a cultura e o direito dos modernos são superiores aos antigos. J. R. FERREIRA, Plutarco e o conceito de virtude nos revolucionários franceses, 58. 5 Idem, ibidem, 57-67.

Page 3: Tradição e Crise em Devir

No caso particular da cultura clássica, rompera-se na modernidade mais

uma vez o seu estatuto, e isso após tal cultura sobreviver às grandes

recensões medievais que ora preservaram, ora vitimaram o legado greco-

romano.6 Estabeleceu-se na modernidade uma fissura que, imposta sobre esse

patrimônio cultural, perdurará até o advento da pós-modernidade.

Ainda assim, é possível observar a apreciação, em resposta ao

radicalismo iluminista, dos mitos e das obras clássicas pelos proponentes de

um novo helenismo aberto aos mitos, com Goethe, Schiller, Chènier, Hölderin

e, posteriormente, Rudolf Otto e Walter Friedrich Otto.7 Ainda assim, o século

XX vem a lume com muitos adeptos de um helenismo expurgado dos mitos em

favor do projeto iluminista ou,8 ao menos, da objetividade que conduza à

supressão da metafísica concomitante à tentativa de “pensar os gregos ainda

de modo mais grego.”9

O projeto moderno de racionalidade, concebido a partir da crença em

uma razão positiva, plenipotenciária, teve o mérito de redimensionar os

problemas humanos e procurar as soluções para os mesmos, adotando uma

posição antitética e de força contrária aos mitos.10 Porém, gerou também o que

Anthony Giddens chamou de “segregação da experiência”, em que a vida

6 Segundo M. H. da ROCHA PEREIRA, há quase a perda total do legado da Antiguidade Clássica no que ela chama de “Idade Obscura”, quando as invasões bárbaras provocam, primeiro no Império Romano do Ocidente, depois do Oriente, o desaparecimento das obras clássicas. Tais obras, porém, só foram legadas aos modernos por conta da sua conservação por iniciativas de eruditos, dentre os quais são dignos de menção Boécio e Cassiodoro. Estudos de história e cultura clássica, v. I., 8ª Ed., Lisboa, 24. 7 Schiller, por exemplo, em um poema sobre os deuses da Grécia, chora pela Arcádia, por uma idade de ouro grega em que os instintos do homem e seu amor à beleza são plenamente satisfeitos. R. R. BOLGAR, O legado grego (In: M. FINLEY, O legado da Grécia. Uma nova avaliação. [Trad. Yvette Pinto de Almeida]), Brasília, Editora UnB, 1998, p. 508. Sobre a interpretação romântica do mito, L. DUCH, Mito, interpretación y cultura. Aproximación a la logomítica, Barcelona, Herder, 122-138. Sobre a crítica romântica ao iluminismo, consultar M. H. ABRAMS, Natural Supernaturalism, New York, Norton, 1971; C. TAYLOR, Hegel, Cambridge, Cambridge University Press, 1979; e A. GOULDNER, “Romanticism and Classicism: Deep Structures in Social Science” (In: For Sociology), New York, Basic Books, 1973. 8 Walter Benjamin, por exemplo, afirma, quanto à tradição greco-latina, que “todo o terreno deve ser reclamado para a razão e limpado da vegetação rasteira da ilusão e do mito. Isto é para ser cumprido aqui para o século XIX” BENJAMIN, Walter, Gesammelte Schriften, V, 571. 9 HEIDEGGER, M., Unterweg zur Sprache, Pfullingen, 1960, p. 134. 10 Segundo Jürgen Habermas, a razão opõe-se ao autoritarismo das tradições através da coação não-coercitiva do melhor argumento – daí a sua natureza antitética. A razão também é força contrária, quebrando o feitiço das forças coletivas por meio dos discernimentos conquistados individualmente e convertidos em fonte de motivação. Ver: J. HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade, São Paulo, Martins Fontes, 154.

Page 4: Tradição e Crise em Devir

ordinária está separada da loucura, criminalidade, doença ou morte.11 A

bifurcação estabelecida alcançou, em casos extremos, a expressão totalitária.

O sistema racional subjacente às culturas modernas, por vezes pós-religiosas

(ou míticas), une o vigor científico, a convicção racional e as mais argutas

estratégias administrativas, entre outros tantos recursos. Todos eles juntos não

excluem o fato de que não foi possível construir uma “sociedade ideal” ou, ao

menos, igualitária. Nesse sistema racional ou, nas palavras de Adorno e

Horkheimer, nesse esclarecimento, subsiste a possibilidade de se reverter a

uma mitologia, já que o fruto da racionalidade pode ser tão mítico quanto há

racionalidade na especulação mitológica.12

Sendo assim, não é de se estranhar que os objetivos dessa

racionalidade positiva, auto-suficiente e otimista quanto às suas

potencialidades, não tenham sido plenamente atingidos. E ainda mais, é

possível perceber que há uma vinculação inegável entre a barbárie e a

potencialização da racionalidade, quando a última se destitui do seu leme e

cumpre propósitos não solidários, regidos autonomamente. O século da busca

da razão autônoma (o século XX) foi também o século de duas guerras

mundiais. Ruiu o edifício moderno e emergiu em seu lugar uma estrutura

caótica, onde habita o vazio da falta de absolutos. A tal edifício convenciona-se

chamar de pós-modernidade. Nesse contexto, a tradição representada pelas

matrizes clássicas, já vitimadas pela intervenção reducionista da modernidade

e desprestigiada ao ter que partilhar o espaço com ideologias orientalistas,

agora padece pela mudança do estatuto de um período em que a tradição

generalizante é rechaçada em favor de novos valores. Para a análise de tal

fenômeno, recorre-se neste trabalho aos dois pressupostos de Lyotard, os

quais permitem, em linhas gerais, a caracterização da pós-modernidade: a

mudança do estatuto social e cultural,13 e o esvaziamento de grandes relatos.14

11 A. GIDDENS, Modernidade e Identidade (trad. Plínio Dentzien), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002, 145 12 T. ADORNO & M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 15. 13 “Nossa hipótese de trabalho é a de que o saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade dita moderna.” J.-F. LYOTARD, O pós-moderno, Rio de Janeiro, José Olympio Editor, 1986, 3.

Page 5: Tradição e Crise em Devir

A mudança do estatuto social e cultural torna as matrizes clássicas

apenas mais uma das reconhecidas como originárias da civilização ocidental –

e, não mais, a principal, pois ela perde essa condição privilegiada.

Semelhantemente à secularização da teologia,15 há um processo contínuo de

universalização e particularização da cultura clássica, o qual rompe as suas

fronteiras e permite a identificação de suas narrativas, mitos e expressões com

vários outras procedentes de diversos matizes. Sendo assim, ao mesmo tempo

em que há nas matrizes greco-romanas elementos que refletem uma “cultura

nacional como uma ‘comunidade imaginada’”, e em que coexistem “as

memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da

herança”;16 está em curso um “processo de identificação, através do qual nos

projetamos em nossas identidades culturais”, tornando a identificação das

raízes culturais um processo “mais provisório, variável e problemático.”17

O que se pode observar, portanto, é a atuação de forças ao mesmo

tempo centrífugas e centrípetas. Estas são responsáveis pela crise da tradição

clássica, que, por ser rompida em sua integridade pela utilização

indiscriminalizada juntamente com outras metanarrativas da cultura de massa,

perdem quase que integralmente sua identidade. Aquelas, devido à renovação

que representa tal intercâmbio e devido à força da tradição clássica –

decorrente, é claro, do tempo que a sedimentou e a fixou em cada parcela da

identidade ocidental –, são responsáveis pelo constante devir em

transformação das categorias, mitos, narrativas, valores da tradição clássica.

Portanto, observa-se que, de fato, como afirma Foster:

“Na política cultural existe hoje uma oposição básica entre um pós-modernismo que se propõe desconstruir o modernismo e opor-se ao status quo, e um pós-modernismo que repudia o

14 “Na sociedade e na cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido: relato especulativo, relato de emancipação.” Idem, Ibidem, 69. 15 Sobre a secularização da teologia, é possível encontrar uma descrição satisfatória em H. COX, A cidade do homem. A secularização e a urbanização em perspectiva teológica (trad. Jovelino Pereira Ramos e Myra Ramos), São Paulo, Paz e Terra, 1971. 16 S. HALL, A identidade cultural na pós-modernidade (trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro), Rio de Janeiro, DP&A, 1998, 58. 17 Idem, Ibidem, 12.

Page 6: Tradição e Crise em Devir

primeiro e elogia o segundo: um pós-modernismo de resistência e outro de reação.”18

Diante de tal condição imposta às matrizes clássicas, submetidas à crise

de identidade pós-moderna ao mesmo tempo em que está na condição de vir-

a-ser, observa-se que não é por acaso que “esse caráter imprevisível do futuro

tem sido, como já disse, a origem de boa parte de nosso desânimo e do nosso

desconcerto.”19 Tal perplexidade diante da incerteza do futuro aberto,

imprevisível, o único possível de ser narrado na condição imposta em um

mundo praticamente despojado de absolutos, explica a inaceitação das radicais

transições na cultura ocidental, em especial a europeia. Daí, a coerência, em

meio ao caos, da afirmação de Steiner de que “a Europa esquece-se a si

própria quando se esquece de que nasceu da ideia da razão e do espírito da

filosofia.”20 Ou então a acertada observação de Fialho, quando reconhece que

a “superfluidade do humano esvaziou a vida de assassinos e assassinados,

esvaziando-os e esvaziando o próprio contexto da cultura em que nasceram.”21

E isso porque é verdade que “as identidades modernas estão sendo

descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas.”22 E é também verdade

que, estranhamente “[...] o século XX assistiu ao declínio dos estudos clássicos

como disciplina educacional [...] paradoxalmente, porém, esse declínio surgiu

em uma época em que o nosso conhecimento do mundo antigo é mais extenso

do que jamais o foi.” 23

Percebe-se, pela conjuntura, que a incômoda transitoriedade entre o que

foi e o que será da cultura clássica grega e romana procedente da Antiguidade,

quando for superada a modernidade – a qual, agora, é ‘pós’ porque, dotada de

transitoriedade, gravita entre a crise e o devir – deve ser entendida como um

hiato importante, que redefinirá a forma como se apreende a identidade

18 FOSTER, H., La Postmodernidad, Barcelona, Kairós, 2002, p. 11. 19 FONTANA, Josep, História. Análise do passado e projeto social, 1986. 20 STEINER, George, A ideia de Europa, Lisboa, Gradiva, 2004, p. 46. 21 FIALHO, Maria do Céu, a denegação pós-moderna das matrizes culturais, p. 2. 22 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro: Rio de Janeiro: DP&A, 1998. p. 8. 23 BOLGAR, R. R., O legado grego (In: FINLEY, M. O legado da Grécia. Uma nova avaliação. [Trad. Yvette Pinto de Almeida]), Brasília, Editora UnB, 1998, p. 508.

Page 7: Tradição e Crise em Devir

ocidental, em especial, a partir de suas matrizes. Portanto, reafirma-se o que

disse Benjamin nos conturbados tempos entre guerras:

“A transitoriedade não é apenas significada, representada alegoricamente, como também significante, oferecendo-se como material a ser alegorizado: a alegoria da ressurreição.”24

Que tal transitoriedade enriqueça a iniciativa daqueles que, imbuídos de

admiração pela cultura clássica, entendam, como Shakespeare, que, nessa

ordem caótica, deve-se responder afirmativamente à questão que interpela: "O

mundo está fora dos eixos./ Oh! Maldita sorte! ... / Por que nasci para colocá-lo

em ordem?...25

24 BENJAMIN, Walter, Trauerspiel, I, p. 405. 25 W. SHAKESPEARE, Hamlet, I,V.