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Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em Jornalismo realizado sob a
orientação científica do Professor António Granado
3
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, por tudo.
Ao professor António Granado que sempre incentivou todas as minhas aventuras
prolongadas desde o início deste mestrado.
Ao Leandro França, por ter feito comigo o interrail pelos Balcãs que eu tanto desejava
e que me levou até este projecto.
À Catarina Durão Machado, por toda a paciência, troca de frustrações, e extras
teatrais.
À Chelsea Charles e o Xili Ismaili, por me terem recebido e apoiado no Kosovo, em
tudo que lhes era possível. Espero voltar a encontrá-‐los em breve.
4
Web-‐documentário “Quem és tu, Kovoso?”
Fábio Jorge Monteiro Lino
PALAVRAS-‐CHAVE: Kosovo, Identidade, Web-‐documentário, Registo de história oral,
Nostalgia.
KEYWORDS: Kosovo, Identity, Web-‐documentary, Register of oral stories, Nostalgia.
RESUMO
O Kosovo declarou-‐se independente a 17 de Fevereiro de 2008, sendo, neste
momento, o segundo país mais recente do mundo, só ultrapassado pelo Sudão do Sul
em 2011. Após a desintegração da ex-‐Jugoslávia e todos os conflitos militares que se
sucederam, a história do Kosovo, as suas origens, é talvez a que apresenta ainda mais
questões por responder. O web-‐documentário “Quem és tu, Kosovo?” trata-‐se de um
projecto documental de recolha de histórias de vida, onde o ponto central de cada
entrevista é a procura de uma paralelismo entre a identidade dos seus cidadãos e o
seu país. Este projecto, e o trabalho desenvolvido pelo jornalista no país, propõem-‐se a
ser uma experiência piloto para ser apresentado à população do Kosovo, e não só, com
o objectivo de criar um arquivo de histórias do país e aumentar a diversidade de
perspectivas identitárias.
ABSTRACT
Kosovo declared its independence on 17 February 2008. Currently it is the
second newest country in the world, only surpassed by South Sudan which became
independent in 2011. After the disintegration of the former Yugoslavia and the military
conflicts that followed, Kosovo’s history is perhaps the one that left more has more
questions unanswered. The web-‐documentary "Who are you, Kosovo?" is a project
that aims to collect life stories. The focus of each interview lays in the parallelism
between citizen’s identity and the country they live in, Kosovo. This project, as well as
the field work developed in site by the journalist, is a pilot experience to be presented
to the people of Kosovo and others. “Who are you, Kosovo?” aims to create an archive
of stories of the country and increase the diversity of identity perspectives.
5
Índice
Introdução ......................................................................................................... 6
Pressuposto inicial ........................................................................................... 11
Capítulo I .......................................................................................................... 14
I.1 -‐ Estudo de caso: a Identidade Kosovar ................................................ 14
I.2-‐ Questão de partida .............................................................................. 16
I.3-‐ O projecto ............................................................................................ 19
I.3.1-‐ Enquadramento ................................................................................ 19
I.3.2 Publicação do projecto ...................................................................... 21
I.4 -‐ Contextualização histórica do Kosovo ................................................ 23
I.4.1 – Localização geográfica .................................................................... 23
I.4.2-‐ Origens do Kosovo ............................................................................ 25
I.4.3-‐ O Kosovo no contexto da ex-‐Jugoslávia ........................................... 28
I.4.3 – Kosovo, hoje .................................................................................... 35
Capítulo II ......................................................................................................... 37
II.1. Entrevista e Etnografia ........................................................................ 37
II.2-‐ Nostalgia e Memória .......................................................................... 40
II.3-‐ Documentário e Modos de Representação ....................................... 42
II.4-‐ Utilização de imagens de arquivo ....................................................... 44
Capítulo III ........................................................................................................ 45
III.1-‐ Amostras do projecto ........................................................................ 45
III.1.1 Exemplo 1: Prekaz e o potencial da utilização de imagens de arquivo 45
III.1.2. Exemplo 2: Excerto da entrevista de Shaip Ismail .......................... 45
III.1.3. Registo do material recolhido ......................................................... 46
Conclusão ......................................................................................................... 47
Referências bibliográficas ............................................................................... 49
Anexos ............................................................................................................. 51
ANEXO I ...................................................................................................... 52
6
INTRODUÇÃO
O projecto “Quem és tu, Kosovo?” surgiu por culpa dos meus olhos,
curiosidade, e vontade de pensar.
Pensar não é um dos verbos mais comuns em jornalismo, infelizmente. Fala-‐se
muitas vezes no reportar – colar factos se quiser ser pejorativo –, objectividade,
integridade, mas pensar é um luxo. O relógio é um chicote que invade as redacções
todos os dias, na urgência de comunicar o que se está a passar no mundo.
É engraçado lembrar a etimologia do verbo pensar: “formar uma ideia” vem do
latim pensare, com o mesmo significado, mas originalmente querendo dizer “pendurar
para avaliar o peso de um objecto”, de pendere, “Pendurar, pesar.” Este tipo de
processo implica a disponibilidade de tempo.
Porém, uma redacção jornalística tem uma velocidade e o mundo tem outra.
Não podia estar mais empático com a visão de Marc Deuze, quando descreve algumas
características que os jornalistas consideram ser o seu trabalho:
“De acordo com os jornalistas, o trabalho deles é dar as
notícias. Isto transmite ao trabalho deles uma aura de
instantaneidade e imediatismo, como “notícia” sublinhe-‐se a
novidade da informação como princípio definidor. O trabalho dos
jornalistas, portanto, envolve noções de velocidade, tomada de
decisão rápida, precipitação, e trabalhar numa velocidade
superior ao tempo real.” (Deuze 2005)
Pensar sobre a própria profissão e os seus meios de acção está essencialmente
relegado para o meio académico – salvo os casos em que o jornalista é também
professor universitário, por exemplo.
Em 2011, quando comecei a minha jornada no jornalismo e me auto-‐propus a
um estágio no Jornal Público, estava longe de pensar que esse seria um ponto de
viragem na minha carreira académica e profissional. Na época, o jornal era
7
assombrado por uma nova vaga de despedimentos prestes a ocorrer e uma mudança
de instalações. Desta experiência, tenho na memória gravada a imagem de um dia de
greve que ocorreu contra os despedimentos: uma estagiária, tal como eu, que se tinha
juntado em acto de solidariedade com os membros restantes da redacção à entrada
do edifício, tinha ao peito um papel que dizia: “Nós somos escribas, não escravos.”
Eu não quero ser escriba, pensei – escriba no sentido de copista, não criador.
Hoje, sem ser a minha reacção inicial, penso também outra coisa: como é possível que
alguém que tenha acabado de sair do meio académico não tenha a capacidade de
reflexão sobre a própria profissão e seja capaz de carregar aquilo ao pescoço? Nenhum
jornalista que se digne gosta de ser retratado como um escriba, acho eu.
Prossigamos. Até ao mês de Julho de 2013 nunca tinha estado no Kosovo. Não
foi o acaso que me levou lá – estava de férias e a fazer um interrail pelos Balcãs -‐, mas
foi a curiosidade sobre tudo que encontrei que me fez lá ficar mais tempo do que o
previsto: tinha encontrado a história que andava à procura para a componente não-‐
lectiva do meu mestrado. A escolha de fazer um web-‐documentário sobre as histórias
de vida do Kosovo foi uma decisão orgânica, pouco reflectida, ou melhor: uma
inspiração momentânea que decidi não desperdiçar.
Descobri um país, estranho a si próprio, e aos seus cidadãos, nascido há menos
de cinco anos – o segundo mais recente do mundo. E porquê web-‐documentário? O
primeiro choque ao chegar ao país foi visual. Depois, as histórias de vida que ouvi
durante a minha primeira estadia no país eram tão variadas, que parecia que muitos
deles sofriam de síndrome bipolar – daí a opção de isolar cada testemunho num vídeo
singular. Pristina, a capital, era uma cidade distante de todas as que já visitara nos
Balcãs – era mais fácil encontrar uma bandeira americana que uma do Kosovo. “Ainda
não existe algo que se possa denominar como cultura kosovar”, escrevi meses depois
numa reportagem para o suplemento Fugas do jornal Público. (Monteiro 2013)
T.S. Elliot, celebrizado pelo seu trabalho poético, também se debruçou sobre as
noções do surgimento de uma cultura numa dada região e o seguinte parágrafo pode
ser elucidativo para interpretar o cenário que encontrei no Kosovo:
8
“(...) para que uma cultura floresça, um povo não deve ser
demasiado unido ou demasiado dividido. O excesso de unidade
por vezes resulta do barbarismo e pode conduzir à tirania; o
excesso de divisão pode ser um efeito da decadência e também
pode levar à tirania – qualquer destes excessos impedirá o
desenvolvimento cultural.” (Elliot 1996)
O grau adequado de unidade e diversidade não pode ser determinado
igualmente para todos os povos em todos os tempos – o caso do Kosovo e os
acontecimentos que se sucederam após desmoronamento da ex-‐Jugoslávia devem ser
interpretados nesta perspectiva. Nem propositadamente, Elliot remata esta ideia com:
“Depois da experiência da guerra, não é preciso recordar
as vantagens da unidade administrativa e de sentimentos.
Contudo, supõe-‐se frequentemente que a unidade do tempo de
guerra deve ser mantida em tempo de paz. Entre qualquer povo
entregue à guerra, particularmente quando essa guerra parece –
trate-‐se embora de uma aparência provocada – puramente
defensiva, é natural encontrarmos uma unidade espontânea de
sentimentos que é genuína e também uma imitação dessa
unidade por parte daqueles que apenas desejam escapar ao ódio,
além da submissão, por parte de todos, ao comando das
autoridades constituídas.” (Elliot 1996)
Decidi avançar. Os livros sobre o conflito e a história do país são dissonantes
entre si, talvez o relato mais exacto e abrangente da história do Kosovo possa ser
encontrado no livro do professor catedrático de Oxford, Noel Malcolm, Short History of
Kosovo. Procedi também à leitura de outros especialistas sobre o conflito do Kosovo,
como o jornalista Tim Judah, que cobriu o conflito para a revista Economist. Judah
escreveu parte essencial dos relatos jornalísticos já estudados sobre o conflito: Kosovo:
9
What everyone needs to know (2008), The Serbs: History, Mith and destruction of
Yugoslavia (1997) e Kosovo: War and Revenge (2000).
Li literatura de ficção e não-‐ficção, para me embeber no espírito da ex-‐
Jugoslávia e Albânia, que apresento na bibliografia, apesar de não citar passagens. Na
coletânea, Burn This House – que me foi oferecida por Chelsea Charles -‐ encontrei
diversos relatos jornalísticos e históricos sobre o efeito em cadeia do
desmoronamento da ex-‐Jugoslávia nos Balcãs. Explorei os livros do filósofo Noam
Chomsky sobre a concepção de intervenções militares humanísticas e fiz mesmo uma
entrevista via Skype ao próprio, para esclarecer alguns pontos e questionar a
perspectiva do especialista 14 anos após o fim “oficial” do conflito.
O questão principal que me guiou neste web-‐documentário foi tentar
perceber como é que os relatos de história oral dos seus cidadãos reflectem a
identidade Kosovar, se é que existe tal coisa, e a história do seu país.
Por sorte, não consigo encontrar melhor termo para descrever a situação, foi-‐
me concedido acesso ao arquivo histórico de vídeo do Kosovo, onde encontrei diversas
imagens de arquivo inéditas da época do conflito – todo o arquivo estava “esquecido”
numa caixa de papelão num móvel, nos escritórios da administração interna do país.
Tive o privilégio de retirar o plástico aos DVD que ia consultar e copiar; comprei os
direitos de utilização pelo preço simbólico de 10 euros.
O Kosovo existe oficialmente há 6 anos, trata-‐se de uma criança a espernear, e
só 106 países no mundo o ainda reconhecem. Por exemplo, Espanha não reconhece o
Kosovo e diversos cidadãos comuns, não ligados a instituições políticas, ao falarem
comigo justificam essa posição face à situação da Catalunha.
Para terminar a introdução, acho importante assinalar que a maioria dos meus
colegas de mestrado escolheu durante o segundo ano de mestrado fazer um estágio
num meio comunicação já estabelecido e ganhar experiência naquele “espaço”, ou
fazer uma dissertação académica. Especialmente na primeira escolha, são sujeitos a
produzir dezenas de notícias e reportagens durante um período de três ou seis meses.
Não querendo desconsiderar a opção tomada por eles – se eu não tivesse já
tido oportunidade de estagiar numa redacção, seria também a minha primeira escolha
10
-‐ optei por tentar contar uma, e apenas uma, história em profundidade, por não me
conseguir identificar com aquele tipo de velocidade de produção noticiosa. Desta
forma, espero conseguir lançar algumas luzes sobre a história enigmática do Kosovo.
11
PRESSUPOSTO INICIAL
“Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de
dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora
te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos.
Convence-‐te de que as coisas são tal como as descrevo: uma
parte do tempo é-‐nos tomada, outra parte vai-‐se sem darmos
por isso, outra deixamo-‐la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo
desperdiçado por negligência.” Cartas a Lucílio, Séneca
Comecemos pelo que é essencial: o tempo, o elemento mais importante na
produção de grande jornalismo. Esta citação inicial pode ser interessante para pensar
que os conselhos filosóficos de Séneca sobre a gestão do tempo pessoal continuam
actuais hoje, 2014, enquanto as notícias e reportagens do jornal do dia anterior
parecem o objecto mais arcaico e desprovido de sentido – pelo menos, quando
pensado na cosmologia portuguesa. No final de contas, qual dos dois objectos, o livro
de Séneca ou o jornal de ontem, é o mais actual?
Em 2012, numa entrevista ao jornal I, dada ao jornalista Nuno Ramos de
Almeida, Manuel António Pina, jornalista e escritor, reflectiu assim sobre os jornais:
”Aprendi com os grandes tipógrafos, às vezes estava na chefia de redacção cheio de
problemas com os títulos e eles diziam-‐me: ’Não se preocupe que amanhã isto é para
embrulhar o peixe’”1. O jornal de hoje é lixo amanhã, com valor zero a não ser como
testemunho histórico civilizacional. O tempo talvez seja dos substantivos mais mal
tratados no campo académico do jornalismo, pois a produção jornalística tem uma
essência perene – que acaba em si própria -‐, que não se perpetua no tempo, não
partilhando o espírito do trabalho artístico e, na maioria das vezes, a sua qualidade.
Sinceramente, apesar destes argumentos, tenho mais apreço pelos jornais que isto.
1 http://www.ionline.pt/node/181453
12
Se pensarmos os jornais como maçãs com relógios biológicos, que podemos
comprar nos quiosques ou fazer download no nosso computador/tablet-‐ temos a
certeza que a cada 24 horas uma vai estar podre e já não pode ou não interessa ser
consumida – falta saber também, desde a partida, se a queremos consumir ou não,
porque isso também é uma questão. Se perguntarmos a qualquer consumidor de
informação, raríssimo será o que lê todos os jornais, ou seja, é correcto afirmar que os
leitores criam uma ligação empática para com o meio de comunicação. Neste ponto, o
perfil editorial de uma publicação irá ser o ponto central no processo de escolha do
seu leitor, como já foi comprovado em diversos estudos.
Enquanto objecto, o jornal do dia de ontem vai ficar a ocupar espaço – físico ou
virtual – com o passar do tempo e teremos de nos livrar dele. Existem, claro,
excepções. Estes casos esporádicos de peças jornalísticas a preservar incluem o grande
jornalismo a que me refiro neste pressuposto inicial.
O tempo de produção de uma notícia mede-‐se em horas e poucos serão os
repórteres portugueses que tiveram mais de 15 dias para escrever uma grande
reportagem – isto é importante quando se compara o nível dos trabalhos produzidos
com o panorama internacional. Após uma pesquisa extensiva, não encontrei qualquer
estudo académico português que tenha compilado este tipo de informação,
demonstrando o que já tinha afirmado anteriormente. O mesmo aplica-‐se a nível
internacional, apesar de ser possível encontrar diversos testemunhos pessoais de
jornalistas sobre quanto tempo despenderam na escrita de uma história.
Outro dado relevante: Em média, uma reportagem de 50.000 caracteres numa
publicação dos EUA está avaliada num valor mínimo de 1500 dólares, enquanto em
Portugal a mesma chegaria no máximo aos 500 euros, já num caso excepcional.2 Logo,
não é de estranhar que não exista uma cultura de freelancer em Portugal, dado que é
inviável economicamente sobreviver desta forma. Existem também outras dificuldades
reais em Portugal: os editores não respondem aos pitchings, pedem as reportagens de
graça, só pela “gratificação da publicação”.
2 http://www.theawl.com/2013/06/dox-‐dox-‐dox
13
Isto tudo para chegar a este ponto: ironicamente, se pensarmos quais são os
grandes trabalhos jornalísticos que perduram no tempo, que continuam a ser lidos
como exemplos literários, expuseram escândalos ou são testemunhos históricos
inegáveis de qualidade excepcional, facilmente chegamos à conclusão que são aqueles
em que se investiu mais tempo – um pequeno paradoxo.
O jornalista Gay Talese para escrever o famoso perfil “Frank Sinatra has a
cold3”, acompanhou o artista durante um mês4, tirando notas compulsivamente. O
livro de John Jersey, “Hiroshima”, continua a ser lido como testemunho histórico da
Segunda Guerra Mundial, mesmo após 60 anos, tal como acontece com o livro “A
Sangue Frio”, de Truman Capote. Grande jornalismo leva tempo a ser
escrito/filmado/montado. Dois exemplos mais contemporâneos e de excelência: a
peça multimédia que ganhou o prémio Pulitzer de Feature Writing, Snow Fall5,
demorou nove meses6 a ser “construída”; a jornalista Andrea Elliot, responsável pela
série de grandes reportagens Invisible Child7, acompanhou os casos que davam voz às
peças jornalísticas durante mais de um ano. Isto é grande jornalismo, jornalismo com
tempo, jornalismo que pensa – não é por acaso que este é também o jornalismo que
causa mais impacto. Nem vou repisar o escândalo de Watergate e toda a investigação
envolvida, porque esse caso já foi avaliado por diversas vezes e por mentes mais
capazes do que a minha.
Fazer este tipo de jornalismo é uma ciência sem fórmulas, ou seja, apresenta
mais características de uma arte: certos procedimentos criativos base que garantem
um caminho para contar uma história da melhor forma possível que se pode
representá-‐la.
Não foi por acaso que escolhi contar só uma história para o meu projecto final
de mestrado. Escolhi pegar no tempo e fazer algo que considero útil com ele.
3 http://www.esquire.com/features/ESQ1003-‐OCT_SINATRA_rev_
4 http://www.thewrap.com/gay-‐talest-‐frank-‐sinatra-‐has-‐cold-‐annotated-‐esquire-‐story-‐new-‐journalism
5 http://www.nytimes.com/projects/2012/snow-‐fall/
6 https://source.opennews.org/en-‐US/articles/how-‐we-‐made-‐snow-‐fall/
7 http://www.nytimes.com/projects/2013/invisible-‐child/#/?chapt=1
14
CAPÍTULO I
I.1 -‐ Estudo de caso: a Identidade Kosovar
O termo “Kosovar” foi utilizado pela primeira vez na Resolução do Concelho de
Segurança das Nações Unidas (UNSCR) 1244 de 1999. (UNSCR 1999) Esta denominação
foi utilizada para se referir a toda a população do Kosovo como uma “supra-‐ethnic
category that disregards ethnicity (...) a territorial from of identity” (Andersen 2006).
Contudo, logo após esse acontecimento, o conceito de identidade Kosovar foi
“colocado em pausa” juntamente com a situação não resolvida do território.
É importante aqui dar um passo atrás: a palavra identidade parece ter-‐se
desenvolvido da expressão latina identidem, que é a contracção das palavras idem et
idem, significando literalmente, igual e igual. O sentido etimológico de uma palavra
sempre expressa uma parte do seu verdadeiro significado. No seu uso mais comum,
identidade representa e caracteriza o que significa ser uma pessoa ligando o eu
próprio com o mundo, o indivíduo com o seu país. (Bastos e Bastos 2007)
Memórias, experiências, sentimentos e emoções são processados e sumariados
no “conceito de eu”, criando um sentido de continuação nos eventos durante a vida. É
este processo que vai tornar possível a um indivíduo responder à pergunta: “Quem sou
eu?”, o que vai validar e dar sentido à vida do sujeito. Não é possível formular a
pergunta “Quem és tu, Kosovo?” a um país, mas através do reflexo das respostas dos
seus cidadãos talvez possamos encontrar algumas respostas. (Oysernan 2003)
O caso da identidade Kosovar, analisado ao abrigo da teoria de Andersen sobre
“comunidades imaginadas”, poderia só por si ser um projecto de doutoramento. No
terreno, não faltam think tanks a concretizarem este tipo de trabalho de investigação.
Contudo, não foi esse o meu objectivo com este projecto. Sendo realista à partida, esta
série de curtos documentários, não vai procurar dar respostas concretas sobre a
identidade Kosovar, mas somente lançar algumas luzes sobre o tema, através de
algumas das histórias de vida dos seus cidadãos. Deve ser considerado um estudo
exploratório para os interessados no tema.
15
O Kosovo declarou-‐se independente a 17 de Fevereiro de 2008, sendo
actualmente o segundo país mais recente do mundo. Através das entrevistas para o
documentário foi possível compreender – em pequena escala – se os habitantes do
Kosovo se identificam ou não com o país e o status de independência. Procurou-‐se
ainda perceber de que forma o conflito afectou os habitantes do Kosovo entrevistados.
Por habitantes compreendem-‐se todos aqueles que moram dentro das
fronteiras do país. De acordo com a teorização de Leca, os habitantes de um país
podem ser divididos em duas categorias: cidadãos e imigrantes; cidadãos são todos os
habitantes a quem o país dá uma série de direitos civis, sociais e políticos em relação
com o estado; imigrantes são todos os indivíduos que chegam ao país com a intenção
de se estabelecerem permanentemente ou temporariamente num local que não o seu
país de origem. Ambos são definidos pelo estado: é o país que confere diferentes
direitos e deveres para ambos os grupos, o que vai ser decisivo na distinção. É
importante sublinhar que ambas as categorias se podem sobrepor. (Leca 1995)
Encontrei diversos exemplos de trabalhos exploratórios semelhantes ao este
projecto de mestrado sobre a construção da identidade Kosovar, nomeadamente a
curta-‐documental Whose Flag is it?, que ilustra as dificuldades de encontrar uma
resposta homogénea à pergunta “quem é o Kosovo?”. (Karamuco 2012)
A questão da identidade kosovar, que dá o mote a este capítulo, remete para
uma analogia evidente e de carácter sintético: uma criança de seis anos, nascida no
mesmo ano que o país Kosovo, terá construído muito pouco da sua identidade até à
data – a própria noção de identidade ainda lhe será estranha –, podemos considerar
que o mesmo se passa com o Kosovo.
16
I.2-‐ Questão de partida
A questão central que guiou o web-‐documentário “Quem és tu, Kosovo?” foi a
tentativa de compreender se os habitantes do Kosovo, e não só, se identificam-‐se com
o país onde habitam e de que forma isso se reflecte na sua história de vida oral. Entre
outras questões, pergunta-‐se: Quais as memórias que têm do conflito? De que forma
isso os afectou?
Seguindo o conceito de comunidades imaginadas de Andersen, até que
instância será a identidade Kosovar construída? O que é que as histórias de vida dos
habitantes contam sobre o Kosovo? Enquanto procurava respostas a estas questões no
terreno deparei-‐me com uma das primeiras dificuldades que viria a sentir
sistematicamente: os estrangeiros quem vivem no Kosovo têm mais certezas sobre o
país que os próprios kosovares. Ao aperceber-‐me desta questão, cujo trabalho prévio
de preparação para o terreno não levantou, decidi alargar as entrevistas a estrangeiros
– turistas e residentes – no país, a fim de obter uma perspectiva complementar sobre
o assunto.
Afinal quem são os habitantes do Kosovo? De acordo com os termos legais são
todos os que moram dentro do perímetro das fronteiras do país. Tal como disse na
reportagem que escrevi para o suplemento Fugas, do jornal Público, (Monteiro 2013) a
comunidade internacional a viver no país é muito significativa – principalmente, o
“colonato” norte-‐americano. Existem mais de 900 Organizações Não Governamentais
(ONG), num país com menos de dois milhões de habitantes.
Segundo Leca, os habitantes de um país podem ser divididos em duas
categorias: imigrantes e cidadãos, como já foi referido. É importante denotar que, por
vezes, as duas categorias se sobrepõem: imigrantes podem tornar-‐se cidadãos no país
de chegada; cidadãos de um dado país podem também ser imigrantes naquele país,
como nos casos de movimentos de regresso – voltar ao seu país de origem após uma
estadia no exterior. (Leca 1995)
Como se tornou claro através das entrevistas para o web-‐documentário “Quem
17
és tu, Kosovo?”, nem todos os habitantes se identificam com o país ou com o status da
independência, são poucos aqueles que reflectem sobre o assunto. Contudo, todos os
indivíduos entrevistados com posições políticas activas no Kosovo revelam um discurso
mais performativo, construído e reflectido sobre o país. Esta última situação foi
especialmente notória nas entrevistas com dois representantes de ONG no Kosovo,
Luan Shllaku, directora executiva da Kosovo Foundation for Open Society, e Anja
Czymmeck, chefe regional da Konrad no Kosovo, cujas respostas denotaram uma
corrente de pensamento muito argumentativa e, de certo modo, institucionalizada.
Torna-‐se assim claro que o problema de partida se relaciona com o processo
individual de identificação com o Kosovo, o que justifica a escolha das entrevistas e do
registo oral no web-‐documentário. A definição do Kosovo enquanto estado pode ser
útil neste aspecto. A constituição da República do Kosovo define o país como
“independente, soberano, democrático, único e estado indivisível” e acrescenta que o
Kosovo é o “estado dos seus cidadãos”. Segundo o artigo 155 da Constituição da
República do Kosovo8, entendem-‐se por cidadãos:
“1. All legal residents of the Republic of Kosovo as of the date of
the adoption of this Constitution have the right to citizenship of the
Republic of Kosovo;
2. The Republic of Kosovo recognizes the right of all citizens of the
former Federal Republic of Yugoslavia habitually residing in Kosovo on 1
January 1998 and their direct descendants to Republic of Kosovo
citizenship regardless of their current residence and of any other
citizenship they may hold.”
De acordo com este perfil legal, existem duas maneiras possíveis de adquirir a
cidadania Kosovar: através do direito de residência e pelo direito de sangue (ter um
antepassado que é cidadão do país). Este último ponto, abre a hipótese do conceito de
dupla nacionalidade, e torna possível que um indivíduo da uma geração seguinte,
nascido fora do país, possa reclamar a cidadania Kosovar.
8 http://www.kryeministri-‐ks.net/repository/docs/Constitution1Kosovo.pdf
18
Analisados os pressupostos legais, o problema da compreensão da identidade
Kosovar mantém-‐se. Tendo em conta, que desde 1999 até 2008, ano da declaração de
independência do Kosovo, passaram aproximadamente 10 anos, é importante
considerar que as mudanças que ocorreram nesse espaço de tempo tiveram um papel
central no modo como os Kosovares se percebem-‐se nos dias de hoje – de modo
político, económico, cultural, social, etc.
Por um lado, ocorreu uma profunda transformação política: a separação da
Sérvia removeu muitos dos movimentos de repressão social, dando lugar à construção
de novas estruturas do estado. Pela primeira vez, os “Kosovares” foram parte de um
processo de construção de uma nação própria. Por outro lado, ocorreu uma mudança
económica com o estabelecimento do capitalismo como modelo principal, devido às
injecções de capital no território. Mas a falta de definição política do território ainda
significava que “o novo estado não era percebido como próprio”. (Pula 2005)
A identidade Kosovar está fortemente associada ao seu contexto geográfico e
por isso não faria sentido criar um web-‐documentário sobre este fenómeno sem
encontrar pontes com a sua história. Para compreender o contexto é importante ter
fontes de informação diversas, nomeadamente estatísticas sociais, contextualização
histórica, documentos importantes e, é claro, entrevistas com a população.
Ainda assim, para compreender completamente a realidade do Kosovo, um
outro elemento crucial deve ser tido em conta: as diferentes comunidades étnicas a
viver no país. Em território kosovar encontram-‐se elementos das comunidades sérvia,
bósnia, albanesa, gorani, roma e turca, as mesmas que estão simbolicamente
representadas por seis estrelas na bandeira do Kosovo.
Cada uma destas comunidades terá uma perspectiva diferente da realidade. Ou
seja, todas as entrevistas que foram realizadas no terreno devem ser interpretadas
tendo em conta a comunidade em que se insere o sujeito. Este ponto irá ser
particularmente importante na discussão final dos resultados do projecto “Quem és tu,
Kosovo?”. Por agora, é necessário compreender o modo como o problema de partida
guiou a investigação teórica e o trabalho de campo no Kosovo.
19
I.3-‐ O projecto
I.3.1-‐ Enquadramento
“Go where the silence is and say something”, Amy Goodman
Foi a ausência de narrativas, no contexto português e internacional, sobre a
história do Kosovo que aguçou a minha vontade de descobrir e criar um web-‐
documentário que compilasse o máximo número possível de narrativas de vida de
cidadãos daquele país.
De forma resumida, o projecto “Quem és tu, Kosovo?” trata-‐se de um web-‐
documentário a ser alojado na página www.whoareyoukosovo.com, onde serão
compiladas histórias de vida de cidadãos kosovares, e não só, de maneira a criar um
retrato contemporâneo do país, à luz do seu passado recente.
A página www.whoareyoukosovo.com e o processo de recolha de testemunhos
foram inspirados em projectos como Long Story Short9, uma compilação de relatos
sobre a pobreza nos EUA, Portraits D’Un Neveau Monde10, seis documentários
multimédia que falam sobre as mutações identitárias contemporâneas ao longo do
mundo, ou mesmo o trabalho exaustivo DADAASTORIES11 que ilustra o maior campo
de refugiados do mundo, o Dadaa, situado no norte do Quénia. Em Portugal, não
existem exemplos com nível de qualidade comparável a estes trabalhos.
Desde que o Kosovo se declarou independente da Sérvia, deixou de fazer parte
da agenda de grandes meios de comunicação internacionais. Sendo que as
“Primaveras” no Médio Oriente têm vido a captar grande parte das atenções
mediáticas, em detrimento de histórias como a do Kosovo, que apesar de ser recente
para parâmetros históricos, há muito perdeu a actualidade que o jornalismo de
agência procura.
9 http://longstory.us/
10 http://www.france5.fr/portraits-‐d-‐un-‐nouveau-‐monde/#/accueil/
11 http://www.dadaabstories.org/
20
Fazer um web-‐documentário direccionado apenas para a população portuguesa
seria um trabalho redundante, talvez porque os mais interessados em aceder a um
projecto deste tipo sejam os próprios habitantes do Kosovo.
Ainda assim, no caso português, pode existir um potencial interesse nas
histórias narradas no web-‐documentário, uma vez que o Kosovo aloca uma das
missões internacionais de manutenção da paz com tropas portuguesas. . E Portugal se
tem verificado um crescente interesse por narrativas digitais e vídeo não-‐ficcional,
facto que acrescenta valor a este projecto de web-‐documentário.
Existem centenas de estudos ao nível das ciências sociais que se preocupam
com o objecto filmado e o sujeito que filma, trabalhos académicos que descrevem o
percurso do documentário clássico que surgiu nos anos 1930 até aos dias de hoje.
Porém, não considero que esse seja o foco do projecto “Quem és tu, Kosovo?”.
Importa mais compreender e referir o interesse crescente em vídeo não-‐ficcional.
Barry Hampe, autor de “Making Documentary Films and Reality Videos”
(Hampe 1997), afirma que existem três tendências que justificam este interesse:
• a ideia disseminada de que, cada vez mais, as pessoas não podem, não
querem ou não têm tempo para ler;
• o crescimento exponencial de programas de televisão tipo realiy show;
• o acesso e facilidade de utilização de equipamentos electrónicos de
captação de vídeo;
21
I.3.2 Publicação do projecto
A publicação do projecto está directamente relacionada com a aquisição de
meios de produção e financiamento, que permitam fazer de “Quem és tu, Kosovo”,
não só um projecto mas o produto multimédia para o qual foi pensado. Assim, numa
primeira abordagem, será necessário angariar financiamento, para garantir que todas
as horas de material recolhido no campo são devidamente processadas e editadas.
Esta fase de inventariação de material pode levantar outras questões que condicionem
a realização do web-‐documentário, por exemplo, poderá ser necessária uma nova
deslocação ao Kosovo, para recolher novo material ou refazer algumas das filmagens.
Note-‐se que das seis etnias do Kosovo apenas foi possível entrevistar representantes
de duas (albanesa e sérvia) durante o período passado no terreno. Conseguir fundos
para uma nova deslocação e recolha de testemunhos das quatro restantes
acrescentaria valor documental e comercial ao documentário, pelo que o
financiamento é essencial.
Numa fase posterior, recolhido e editado todo o material, passar-‐se-‐ia então à
publicação, passo que implica igualmente investimento. Assim, estando este projecto
directamente dependente de fundos e tendo ele interesse para o público em geral, o
recurso a uma campanha de crowdfunding, apresenta-‐se como a opção mais viável a
fim de o levar a cabo.
Esta técnica de angariação de fundos já foi utilizada em trabalho de carácter
semelhante, com bastante sucesso e superando até as expectativas iniciais. Três
documentários sobre o Kosovo são exemplos de sucesso na plataforma Kickstarter:
The Same Moon Everywhere12 (4.843 dólares angariados), Song to Save a Child13
(17,780 dólares angariados), e An American Perspective: Kosovo (3,701 dólares
angariados)14.
É preciso sublinhar que todas estas etapas terão de ser feitas com o apoio de
uma equipa e não individualmente pelo jornalista.
12 https://www.kickstarter.com/projects/410756223/the-‐same-‐moon-‐everywhere-‐a-‐film-‐in-‐16mm-‐and-‐hd?ref=live
13 https://www.kickstarter.com/projects/2081432598/song-‐to-‐save-‐a-‐child?ref=live
14 https://www.kickstarter.com/projects/1510192538/an-‐american-‐perspective-‐kosovo?ref=live
22
I.3.3. Operacionalização do projecto a longo prazo
A longo prazo o projecto “Quem és tu, Kosovo?” pode ser escalonado ao nível
do Kosovo para aumentar a diversidade de testemunhos de vida, de forma a suprir a
deficiência de representatividade de quatro das etnias principais do Kosovo.
Conseguido o financiamento necessário, por exemplo através de crowdfunding, a
página whoareyoukosovo.com teria condições para evoluir, tornando um plataforma
de partilha de testemunhos reais por parte de todos os que tivessem histórias
relacionadas com a identidade do Kosovo para partilhar.
Através de webcams, qualquer cidadão em qualquer parte do mundo poderia
gravar um breve testemunho que, mediante análise prévia, seria publicado na página.
Os interessados poderiam deixar uma forma de contacto a acompanhar o vídeo, para
que a partilha de histórias pudesse continuar para além da página. Esta seria também
uma forma de incentivo ao debate entre cidadãos comuns. A criação de um fórum no
site seria um outro veículo a considerar, com vista à reflexão.
Com o devido apoio financeiro e logístico, o projecto “Who are you, Kosovo?”
seria capaz de dar origem a uma conferência anual em torno do tema. As ONG no
Kosovo poderiam colaborar com o projecto na organização de um ciclo de debates em
Pristina, a transmitir em directo na página, facilitando a interacção
independentemente da localização da audiência.
23
I.4 -‐ Contextualização histórica do Kosovo
I.4.1 – Localização geográfica
O Kosovo está situado no centro da península balcânica, mais comummente
conhecida como os “Balcãs”. Esta está localizada no sudoeste da Europa e encontra-‐se
rodeada por cinco mares diferentes: o Adriático, Iónico, Mediterrâneo, Egeu e o Negro.
A Eslovénia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Montenegro, Albânia, Grécia, Macedónia,
Kosovo, Sérvia, Bulgária e Roménia, fazem parte da península.
O nome “Balcãs” foi dado pelos turcos às montanhas que atravessam a região e
depois de 1918, com a queda do império Otomano, Balcãs passou a estar associado a
toda a península, do Adriático ao Mar Negro.
O Kosovo está situado exactamente no centro da península e não tem nenhum
contacto directo com mar. Faz fronteira com a sérvia a norte e este (351,6 km),
Montenegro a noroeste (78,6 km), Albânia a sudoeste (111,8 km) e a Macedónia a
sudeste (158,7 km). Tem uma área total de 10.908 km² e está dividido em 33
municípios.
Figura 1 -‐ Península Balcânica
24
Como já disse anteriormente, para melhor compreender a identidade Kosovar é
importante descrever e compreender o contexto de onde imergiu e se desenvolveu.
Razão pela qual é importante um resumo histórico sobre o país.
Figura 2 -‐ Mapa do Kosovo
25
I.4.2-‐ Origens do Kosovo
Resumir a história do Kosovo é uma tarefa complicada. Desde a chegada das
primeiras pessoas à região da península balcânica que a história da região foi uma
malha complexa de alianças e rivalidades entre clãs, reinos, impérios, províncias e
países à procura de riqueza, poder ou simplesmente paz. O mesmo pode se aplicar ao
resto dos países europeus.
Porém, o que a história desta região tem em particular é a sua localização.
Situada entre três continentes – Europa, Ásia e África – esta região, desde séculos
atrás, foi um ponto de confluência de várias e distintas culturas. Desde a primeira
expansão imperial europeia por Alexandre, O Grande, -‐ também conhecido por
Alexandre da Macedónia – no quinto século A.C., até à governação do império
Otomano e Austo-‐Húngaro, os Balcãs foram palco de diversas “invasões”, o que trouxe
à região diversas influências e pessoas com “contextos culturais” muito diferentes. Em
149 A.C. os Romanos chegaram á Grécia e foi sobre o poder do imperador romano
Theodosius I que a primeira divisão cultural e religiosa ocorreu nos Balcãs. (Rojo 1992)
Theodosius dividiu o império entre os seus dois filhos, desenhando uma linha
do Danúbio até ao Adriático: o império Ocidental ia desde a península ibérica até ao
que hoje corresponde à Croácia e a parte norte da Bósnia; o império Oriental
correspondia aos territórios da Sérvia, Albânia até à Ásia Menor. Enquanto o império
Ocidental estava sobre as ordens do bispo de Roma, o Oriental dependia no patriarca
de Constantinopla. Este deve-‐se considerar o primeiro ponto decisivo na construção de
identidade do Kosovo: os diferentes rituais, tradições e sensibilidades das duas igrejas
evoluíram em sentidos diferentes até à cisão final entre ortodoxos e católicos. (Rojo
1992)
Já no sexto século D.C., os Eslavos, oriundos do nordeste da Europa, migraram
até aos Balcãs e estabeleceram-‐se na região abaixo do Danúbio, no espaço que se iria
anos mais tarde tornar-‐se a Jugoslávia. Sem hesitação, os Eslavos adoptaram a cultura
e religião dos novos territórios. Na Croácia e Bósnia, os rituais católicos e o alfabeto
26
latino; na Sérvia, Bulgária e Montenegro, os rituais Ortodoxos e o alfabeto cirílico.
(Rojo 1992)
No século XIV os Turcos chegaram à região e com eles trouxeram uma nova
religião – o Islamismo -‐ num território já dividido. Os otomanos não tinham qualquer
regra de conversão da população ao Islamismo, mas dentro das fronteiras do império
com estados cristãos, os sultãos precisaram de confiar nas suas “tropas defensivas” e
para isso converte-‐los à fé de Alá. Foi assim que a Albânia e a Bósnia foram
transformadas em estados maioritariamente Islâmicos – o livro de ficção, A Ponte
sobre o Drina, do escritor Sérvio, Ivo Andric, é uma leitura recomendada e
profundamente inspiradora sobre os processos de conversão religiosa. Já mais tarde,
em 1739, a fronteira entre os impérios Austro-‐Húngaro e Otomano foi estabelecida
nos rios Savo e Danúbio, até ao adriático.
Até 1878, esta linha – que coincide como a fronteira actual entre a Croácia e
Bósnia – marcava fundamentalmente uma fronteira cultural: “o limite da presença
islâmica no ocidente. (Rojo 1992) O império Otomano estava organizado em ilhós,
grupos de pequenos distritos militar-‐administrativos, mais conhecidos como SANCAK.
Kosovo, tal como a maioria das províncias europeias era parte do ilhó de Rumaneli. O
Kosovo não existia como uma região especifica ou sancaks, o que torna claro que
nesta época o Kosovo não era considerado um todo. Foi já no século XIX, quando o
sistema de vilayets – pequenos distritos de impostos – que foi estendido a todo o
território Otomano, que a região onde o Kosovo estava incluída, foi considerada como
uma vilayet – a vilayet de Prizren. (Malcolm 1998)
Apesar da composição do Kosovo ser na maioria Muçulmana Albanesa, existia
também um grande grupo de população eslavo-‐ortodoxa. Este facto, supracitado não
deve ser considerado um pequeno detalhe: fazia parte da estratégia dos
administradores otomanos criar comunidades multiétnicas, de forma a limitar a
possibilidade de sentimentos de pertença ao estado. Para nós, jornalistas, pensarmos
a influência que um jornal tem na formação de uma identidade colectiva, uma das
reformas mais interessantes a ter em conta deve ser esta: a criação de um jornal local,
pertencente ao poder regente, com ambas as páginas em Turco e em Sérvio, de forma
a tentar criar um sentido de pertença e partilha ao mesmo grupo. De certa forma, foi a
27
institucionalização de um jornal que era partilhado mais a ideia que todas as pessoas
na área iam da alguma forma partilhar uma realidade que eles juntaram em pequenas
unidades. Mesmo assim, mais tarde, quando o vilayet foi movido para Pristina, e
renomeado Kosovo, o jornal foi transformado num formato somente Turco e nomeado
Kosova. (Malcolm 1998) Pode ser interessante fazer aqui um paralelismo com o
conceito de comunidades imaginadas, de Andersen, no qual a língua materna tem um
importante papel nos processos de construção-‐estado do inicio do século XIX. Através
de uma língua comum, que é partilhada e compreendida pelos membros de uma dada
comunidade, evolui o sentimento imaginado de “unidade”. Imaginada porque os
membros dessa comunidade nunca vão conhecer ou ouvir falar de todos os restantes
membros, “mas a mente de todos vive uma imagem da sua comunidade.” (Andersen
2006)
Para complicar a já evidente segmentação cultural na região, a guerra Russo-‐
Otomana (1877-‐1878) produziu novas divisões na região. A fim de consolidar os
acontecimentos da guerra, o congresso de Berlim, reconheceu a independência da
Sérvia e do Montenegro. A maioria do território do Kosovo continuou sob domínio
Otomano. Porém, o descontentamento como administração imperial estava a
aumentar e foi neste contexto que maioria albanesa da população do Kosovo criou a
“Liga de Prizren”, um movimento com um objectivo claro: ter algum tipo de auto-‐
administração no contexto do império.
Durante a primeira guerra dos Balcãs, nos finais de 1912, o Kosovo foi anexado
à Sérvia que justificou este acto com argumentos que iam desde a sua história
medieval até à mítica batalha do Kosovo em 1389. Nesse ano, no campo dos corvos
(Kosovo quer dizer terra dos corvos), o príncipe Sérvio Lazar morre e perde o Kosovo
para o império Otomano. Desde essa época, “o mártir do príncipe sérvio na defesa do
Kosovo tem um papel central na preservação da identidade nacional sérvia.
(Auerswald e Auerswald 2000)
Com o final da primeira guerra mundial, o reino dos Sérvios, Croatas e
Eslovenos foi criado, que mais tarde viria a ser reconhecido como a República Federal
Socialista da Jugoslávia – proclamada oficialmente em 1945.
28
I.4.3-‐ O Kosovo no contexto da ex-‐Jugoslávia
O Kosovo foi levado no processo de formação da Jugoslávia, uma vez que era
tido como parte integral da Sérvia. Durante a primeira guerra dos Balcãs, o Kosovo foi
anexado à Sérvia como parte integral do território que possuía a principal igreja
Ortodoxa no terreno. O problema é que o Kosovo nunca foi legalmente incorporado
como parte do estado sérvio. Quando o exército Sérvio conquistou o Kosovo dos
Otomanos, estavam a operar sobre a sua constituição de 1903. O artigo quarto da
constituição declarava que as fronteiras da Sérvia só podiam ser mudadas ou tiradas se
fosse um acto aceite pela “Grande Assembleia Nacional”. Após isso, quando um
território passa de um estado para outro através de uma conquista durante guerra,
esta transferência tem de ser validada na forma de um tratado entre os estados. O
tratado de Londres (1913) tinha o objectivo de completar este propósito;
simplesmente nunca foi ratificado pela Sérvia. Já um ano mais tarde, o Tratado de
Istambul foi criado para por um fim a este assunto ao declarar que ambas as partes
iam assumir o Tratado de Londres como ratificado. Mais uma vez, este tratado nunca
foi ratificado e, na verdade, foi anulado pela declaração de guerra mútua dos dois
estados em 1914.
Através deste contexto histórico, é possível denotar que na história do Kosovo
sempre existiu uma indefinição política que impedia a região de se consolidar a si
própria. E que não são os documentos que criam um estado, mas sim as pessoas que o
reconhecem, de uma forma muito simplificada. Quanto muito, os documentos vão
servir de base. Mais: é importante compreender dois tipos de discurso diferentes
neste contexto. O político e institucionalizado que pode criar bases na construção do
país; e o discurso popular que está em sintonia com as necessidades reais da
população.
Ao fazerem parte da Liga das Nações, uma organização intergovernamental que
resultou do tratado de Versalhes e que tinha como objectivo a cooperação entre
nações, a Jugoslávia e a Turquia estavam legalmente obrigadas a cumprir o artigo 10.º
do pacto, onde está declarado que cada nação tem de respeitar e garantir a
29
integridade territorial dos parceiros. Porém, isto nunca iria resolver o problema do
Kosovo porque o artigo só se referia aos territórios possuídos legalmente. Para os
territórios que estavam ilegalmente ocupados (este era o caso da Sérvia no Kosovo),
nenhum dos países na Liga era obrigado a reconhecer e defender qualquer ocupação
ilegal. De qualquer modo, a Turquia procedeu de modo como se reconhece-‐se o poder
Jugoslavo no Kosovo.
Porém, existe um facto importante a ter em conta: a Turquia de facto
“reconheceu” o Kosovo como parte da Jugoslávia, o país que se juntou à Liga e assinou
o tratado de Ancara, e não a Sérvia. Deste modo, os cidadãos albaneses do Kosovo
tornaram-‐se cidadãos jugoslavos e nunca sérvios – uma distinção importante.
(Malcolm 1998)
O reconhecimento externo possuiu um papel central na compreensão dos
estados. Trata-‐se do primeiro passo na construção de um estado. Só após, os cidadãos
podem reconhecer o estado como tal.
O tratado de Istambul foi o único documento que referiu a identidade nacional
Kosovar. O artigo quarto declara que “indivíduos residentes em territórios abrangidos
pela Sérvia vão tornar-‐se cidadãos Sérvios.” Mas, mais uma vez, este tratado nunca foi
ratificado, e por isso nunca teve qualquer poder legal. No contexto da Sérvia, a
população do Kosovo foi sempre tratada como uma diferente categoria que o comum
cidadão sérvio. Na verdade, as leis sérvias nunca elaboraram a questão da cidadania
dos habitantes do Kosovo. Foi só em 1928 que a lei jugoslava, não sérvia, declarou que
os albaneses que tivessem vivido no Kosovo entre 1913 e 1918 (quando o reino dos
sérvios, croatas e eslovenos foi criado) foram descritos como “os não-‐eslavos que
tornaram-‐se cidadãos do reino” (Malcolm 1998).
De alguma forma, todos estes dados legais estavam totalmente deslocados da
realidade diária dos kosovares-‐albaneses. Desde 1918, eles vinham a ser tratados
como cidadãos jugoslavos com direito a voto para a assembleia constitucional e
parlamento, sendo também chamados ao serviço militar. É óbvio que os documentos
governamentais nunca representaram a realidade do país.
30
A questão dos albaneses no Kosovo nunca foi tratada como uma questão real,
logo os albaneses no Kosovo nunca se sentiram parte de um estado que não os
reconhecia. Mas, enquanto cidadãos jugoslavos, a maioria da população albanesa não
usufruía dos direitos que possuía. A Jugoslávia, sobre o Tratado de Protecção de
Minorias, prometeu fornecer educação primária na língua materna da minoria sempre
que houvesse uma “porção considerável” da população que falasse outra língua, que
não a oficial, Sérvio-‐Croata. E a somar a isto, as minorias tinham o direito de construir,
a seu próprio custo, escolas e outros centros educacionais, e praticar a sua religião
livremente. Especialmente no que toca à língua, estes direitos nunca foram uma
realidade.
Por volta de 1930, não existiam escolas de língua albanesa, sem ser algumas
clandestinas – este cenário voltou-‐se a repetir durante o conflito dos anos 90. Uma das
entrevistadas para o documentário, Besa Luci, directora da revista KOSOVO 2.015,
relata este tipo de situação. Somando a isto, nunca existiu uma única publicação em
Albanês à venda, apesar do facto de todas as minorias terem jornais das suas próprias
comunidades e línguas. A posição oficial da Jugoslávia era clara: não existe tal coisa
como uma minoria albanesa no Kosovo.
Porém, os censos de 1921 dizem outra coisa: existiam 439,657 falantes de
Albanês no Kosovo. Em 1931, o número estimado já era de 800,000. Se estes dados
tivessem sido considerados, o Albanês seria considerado a segunda língua mais falada
no Kosovo. Era impossível não considerar a nacionalidade Albanesa como uma minoria
no Kosovo. Da parte da Jugoslávia, a resposta foi simples: não considerava falantes de
albanês como albaneses, mas meramente sérvios que falavam albanês. (Malcolm
1998)
Para lá de verem negada a sua existência enquanto minoria, os albaneses no
Kosovo estavam sobre pressão ao verem o seu território ser colonizado por falantes de
línguas eslavas. Em 1920, o “Decreto sobre a colonização das novas terras a sul” criou
bases para um processo de colonização que iria durar até ao inicio da Segunda Guerra
15 http://www.kosovotwopointzero.com/
31
Mundial. Como é óbvio, apareceram diversos conflitos entre Sérvios e Albaneses,
relacionados com títulos de propriedade de território. Em 1928, com a revisão da
constituição da Jugoslávia, as fronteiras do Kosovo mudaram mais uma vez e o
território foi dividido em três partes. Esta medida tinha o objectivo claro de dividir
potenciais movimentos nacionalistas, seguindo uma estratégia semelhante à que o
Império Otomano já havia empregado antes.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a República Socialista Federal da Jugoslávia
foi proclamada a sucessora dos Reinos dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. No ano
seguinte, a constituição jugoslava confirmou a existência de duas unidades autónomas
na Sérvia. A constituição inspirada num modelo soviético estabelecia seis repúblicas
socialistas – Bósnia-‐Herzegovina, Croácia, Macedónia, Montenegro, Sérvia e Eslovénia
– uma província socialista autónoma – Kosovo – e um distrito socialista autónomo –
Vojvodina.
Na Jugoslávia de Tito, muitos dos albaneses reaveram as suas propriedades das
mãos dos colonos eslavos e a língua Albanesa foi categorizada como uma das línguas
oficiais. Além disso, Tito e o líder albanês Enver Hoxha assinaram um tratado de
amizade que removia todos os entraves nas fronteiras entre os dois países, de modo a
aproximá-‐los nos negócios e mobilidade das populações. Contudo, mais tarde, este
facto foi usado pelos Sérvios para justificar o fluxo de Albaneses no Kosovo durante os
anos de 1945-‐48. Existiu até um plano de político de fundir a Jugoslávia com a Albânia,
dando origem “Federação dos Balcãs”.
Esta relação de proximidade entre a Jugoslávia e a Albânia, criou um corte nas
relações entre a Rússia e a Jugoslávia. E quando Hoxha decidiu renovar a sua lealdade
com Moscovo, automaticamente colocou-‐se numa posição contra a Jugoslávia, em
particular com a lei jugoslava vigente no Kosovo, onde a maioria da população era
agora albanesa. Vistos como espiões de Hoxha, os albaneses do Kosovo começaram a
ser tratados de forma suspeita pela comunidade sérvia.
Durante os anos 1980 e depois da morte de Tito, as condições sociais e
económicas do Kosovo continuaram a degradar-‐se progressivamente. De um lado, a
comunidade albanesa sentia-‐se segregada, no outro, os sérvios nacionalistas estavam
32
a alegar a última emenda da constituição de 1974, na qual a Sérvia aparecia dividida
em três partes: Vojvodina, Sérvia e Kosovo.
Já no final dos anos 1980, existiam diversas queixas vindas da população Sérvia do
Kosovo, alegando que os albaneses estavam a tentar “limpar” a sua comunidade do
país, alegando que 20.000 sérvios tinham emigrado do Kosovo. (Malcolm 1998)
Foi no contexto do conflito entre a Sérvios e Albaneses no Kosovo, em 1987,
que um jovem membro do comité central Sérvio, Slobodan Milosevic, foi enviado ao
Kosovo. Quando uma luta irrompeu entre os Sérvios zangados e a polícia, Milosevic
começou, repentinamente, a falar sobre “os direitos sagrados dos Sérvios no Kosovo.”
Este episódio, disponível na internet para quem quiser consultar, serviu de gatilho a
uma série de acontecimentos que culminaram em 1989, com emendas na constituição
que reduziram significativamente a autonomia da província do Kosovo, devolvendo à
Sérvia o controlo da região.
Nesta época, aconteceram diversas mudanças no território, sendo a mais
perdurou a “recolonização” do Kosovo devido ao regresso da população sérvia que
vivia fora das suas fronteiras. Neste caso, as guerras com a Croácia e a Bósnia tiveram
um impacto gigante na tentativa de “recolonizar” o Kosovo, numa tentativa de
aumentar o número da comunidade sérvia no território.
Frustrados com a situação do Kosovo, em 1989, apareceu a Liga Democrática
do Kosovo com Ibrahim Rugova como o líder principal do movimento Albanês. O
programa deles pretendia: 1. prevenir uma revolta violenta; 2. chamar à atenção da
comunidade internacional para os problemas do Kosovo; 3. Rejeitar a autoridade
sérvia no território.
Durante os anos 1990, a relação das duas comunidades deteriorou-‐se
progressivamente e as esperanças de Rugova por uma revolução pacífica
desapareceram. As atenções viraram-‐se então para o Kosovo Liberarion Army (KLA)
que reclamava vários protestos armados contra a polícia Sérvia no Kosovo.
O que se sucedeu a seguir ainda hoje está sobre um manto de controvérsia. De
33
forma resumida, a escalada dos conflitos entre as duas comunidades, Albaneses e
Sérvios, no Kosovo atraiu a atenção da comunidade internacional no território e um
sem número de negociações terem falhado entre as duas comunidades e com a NATO
de modo a parar os conflitos, a NATO decidiu intervir militarmente na Sérvia. A
justificação foi a escalada de acontecimentos violentos na região, as consequências
humanitárias e o risco potencial do conflito se alargar a outros países. Noam Chomsky
teorizou, na época, que este foi a primeira intervenção militar com justificação
humanística da NATO, uma ideia que mais tarde veio a ser aceite pela comunidade
internacional. (Chomsky 1999) Os argumentos que a NATO utilizou para justificar a
intervenção no Kosovo criaram bastante controvérsia, sendo que a NATO estabeleceu
uma administração da região que iria durar até ao ano de 2008.
No dia 17 de Fevereiro de 2008, o Kosovo autoproclamou-‐se independente da
Sérvia e definiu-‐se como um estado soberano, democrático, secular e uma república
multiétnica.
“(...) Answering the call of the people to build a society that
Honors Human dignity and affirms the pride and purpose of its
citizens(…) Committed to confront the painful legacy of the recent past in
a spirit of reconciliation and forgiveness (…)Reaffirming our wish to
become fully integrated into the Euro-‐Atlantic family democracies
(…)Grateful that in 1999 the world intervened, thereby removing
Belgrade ́s governance over Kosovo and placing Kosovo under the United
Nations interim administration (…) Proud that Kosovo has since
developed functional, multi-‐ethnic institutions of democracy that express
freely the will of our citizens (…) Determined to see our status resolved in
order to give our people clarity about their future, move beyond the
conflicts of the past and realize the full democratic potential of our
society.”
Todas as histórias têm sempre, pelo menos, dois lados. Uma história é sempre
ensinada de forma diferente dependendo de quais livros escolho ler ou dizem-‐me para
34
ler. Os albaneses e sérvios, no Kosovo e nos países respectivos, ensinam nas escolas a
sua História de forma diferente. (Spahiu 1999)
35
I.4.3 – Kosovo, hoje
De acordo com os dados mais recentes do gabinete nacional de estatística do
Kosovo, provenientes dos censos de 2011, estima-‐se que o Kosovo tenha uma
população de 1,739 milhões de habitantes, dos quais 92% são albaneses e os restantes
8% pertencem a minorias étnicas. Com isto, torna-‐se óbvio que a constituição étnica
da população foi-‐se alterando ao longo do tempo, como consequência directa dos
diversos poderes políticos e económicos presentes na região. Os primeiros registos
sobre a população do Kosovo datam de 1948, logo todas as comparações demográficas
do país têm de começar nessa data.
Através dos dados dos censos de 201116, pude criar uma tabela como que
demonstra a evolução da população do Kosovo:
Nos mesmos dados, podemos observar também a evolução dos segmentos
étnicos da população. Por exemplo, em 1948, 24,1% da população do Kosovo era
sérvia, mas em 2006, já depois do conflito, era 5,3%.17 Outro dado relevante, quando
em paralelo com a União Europeia, é que 52% da população do Kosovo tem menos de
16 https://esk.rks-‐gov.net/ENG/pop/tables
17 https://esk.rks-‐gov.net/eng/publikimet/cat_view/8-‐population?orderby=dmdate_published
Ano População
1948 733 034
1953 815 908
1961 963 988
1971 1 243 693
1981 1 584 440
2011 1 739 825 Tabela 1: Evolução da população albanesa no Kosovo.
36
30 anos, um dado que seria óptimo para este “nascer” do Kosovo enquanto país
independente, não fosse essa mesma faixa etária ter um desemprego de 70,6%.
Não é de estranhar que grande parte dos rendimentos financeiros da
população venha de apoios internacionais ou de familiares imigrados, situação que cria
insatisfação e instabilidade dentro do país.
37
CAPÍTULO II
II.1. Entrevista e Etnografia
Uma entrevista é definida como uma “conversa entre o informador e o
pesquisador”, pelo qual a perspectiva do informador torna-‐se acessível. (Berger 2011)
Mais ainda, entrevistas não só fornecem informação a vida social, mas também sobre
a sua compreensão. (Weiss 1994)
De acordo com a teoria de Berger, as entrevistas podem ser divididas em três
tipos: estruturadas, semi-‐estruturadas e não-‐estruturadas. No processo de trabalho no
campo no Kosovo a entrevistas foram de tipo não-‐estruturado, de forma a obter a
maior espontaneidade possível dos entrevistados, mas repetindo sempre que possível
algumas perguntas entre entrevistas para criar paralelismos. A escolha desta tipologia
baseou-‐se na intenção de procurar histórias de vida e não dados quantitativos para um
trabalho empírico, que se distanciaria do conceito de projecto.
Os entrevistados para o web-‐documentário “Quem és tu, Kosovo?” foram
seleccionados por terem a capacidade “única de serem informadores porque eles são
especialistas na área ou são testemunhas privilegiadas de um acontecimento.” (Weiss
1994)
Este método apresenta diversas fraquezas quando dentro de uma amostra
pequena. Esta fraqueza, em termos de números e perspectiva, pode ser
complementada com métodos adicionais. Diversos académicos argumentam que a
entrevista necessita sempre de um método complementar. Neste caso, eu optei pela
etnografia. Num cenário ideal: o entrevistador está em permanente contacto com a
base cultural do entrevistado. (Holstein e Gubrium 1995)
Etnografia pode ser definida como o processo de observação e interacção com
outra cultura por um período extenso de tempo. Esta compreende tanto método e os
seus resultados e tem as suas raízes dentro da antropologia cultural. E a importância
38
deste método baseia-‐se na sua capacidade de perceber o aparentemente
imperceptível. (Deacon e al 1999)
Para além disso, a etnografia baseia-‐se em experiências em primeira mão,
quando o pesquisador mergulha numa realidade particular. Isto significa que,
considerando que estão a ser geradas conclusões constantemente a partir do
processo, a hipótese inicial também vai-‐se transformando ao longo do processo.
Segundo Deacon, acredita-‐se que as interacções são cruciais para a
compreensão da população a ser estudada, bem como a crença que a imersão na
realidade alheia, o que promove uma solidez do estudo. (Deacon e al 1999)
Para complementar a ideia, Pickering refere-‐se à etnografia como um meio não
só para se familiarizar com a experiência dos outros, mas também para “reconhecer
como as narrativas de auto-‐legitimação são vitais para a formação de identidades
sociais e culturais.” (Pickering 2008) Esta perspectiva de Pickering é central neste
projecto. A etnografia é também reconhecida pela sua capacidade de criar
conhecimento genuíno da vida quotidiana de uma certa realidade.
Para este projecto, foi realizada uma etnografia piloto para tentar compreender
a história oral dos habitantes do Kosovo, ao longo do seu país. Esta configuração foi
escolhida devido à distribuição heterogénea das etnias no país. O objectivo foi
comunicado a todos os entrevistados.
Sendo que o trabalho etnográfico ocorreu num ambiente informal e na
realidade a explorar, tanto as entrevistas como a observação se apresentam como
produtoras de resultados pertinentes para analisar o tema em questão. Quanto aos
pontos fracos do método, é necessário referir que o período de 40 dias foi muito
limitado e os recursos monetários e tecnológicos – ambos assegurados por mim –
mostraram-‐se muito limitadores. Tendo consciência das lacunas decorrentes do meu
trabalho, é importante sublinhar que este não deve ser considera um projecto
acabado, mas sim piloto. Assim, é importante assumir que a reflexividade sobre o
próprio trabalho é fundamental na etnografia, pois “ implica um compromisso com o
valor de entender a vida social humana, mesmo reconhecendo os limites de tal
39
entendimento e ao seu poder no mundo”. (Hammersley e Atkinson 2007)
Desta junção da entrevista e etnografia, será correcto chamar ao meu processo
de trabalho no terreno de “jornalismo etnográfico” – um jornalismo imersivo que
apresenta características e modos de acção semelhantes à antropologia e o seu
método de trabalho.
O sociólogo Erik Neuveu, responsável por cunhar o termo em 2006, descreve o
jornalismo etnográfico com quatro características: é reportagem, não notícia; fixa-‐se
em cidadãos comuns; faz imersão na realidade; e expõe os efeitos das “grandes”
decisões em cidadãos comuns.” (Neveu 2006)
Muitas das raízes do jornalismo etnográfico podem ser encontradas nas
estratégias do jornalismo literário norte-‐americano. Veja-‐se, por exemplo, este
testemunho do jornalista Ted Conover no livro Telling True Stories:
“Anyone who leaves the comfortable role of the
traditional journalist – the company of computer and telephone,
newsroom and colleagues – risks embarrassment, awkwardness,
even injury. At the same time, taking chances in research opens
the door to insights not otherwise possible. If the reporter can
walk in another person’s shoes, why not do it?
I think some of my best work has resulted from immersion
in someone else’s world. As a college anthropology major, I
learned about participatory observation, in which a researcher
visits a group of people and learns by living with them: eating
their food, speaking their language, sharing their space and
rhythms of life. At the same time every day she takes notes,
becoming both participant and observer.” (Kramer e al 2007)
40
II.2-‐ Nostalgia e Memória
Quando pensamos em nostalgia, a maioria de nós – presumidamente – não
pensa nela como uma condição fatal ou aflição médica. Porém, esta foi a descrição de
nostalgia durante quase dois séculos, quando foi inicialmente estruturada e nomeada,
1688, pelo médico suíço, Johammes Hofer.
Confrontado com exílios, especialmente de soldados, que passavam por
estados de agonia ao sentirem falta das suas casas, seus países, que ficavam doentes,
ou no diagnóstico de Hofer, sofriam de nostalgia – um neologismo que Hofer derivou
do grego nostos, voltar a casa, e algia, um sentimento de dor.
Acreditava-‐se que os sintomas de nostalgia eram despertados por paisagens,
cheiros, sabores e que a cura para aquele estado estava nas suas velhas casas. Hoje, o
sentimento de perda da casa ou de país, de um indivíduo, continua a ser um dos
elementos definitivos da nostalgia. E enquanto o interesse médico sobre a nostalgia
desapareceu quase completamente, durante o século XX, o termo foi resgatado pela
psicologia e as ciências sociais.
O conceito de nostalgia pode nos ser extremamente útil quando intersectado
com o contexto histórico do Kosovo e o registo de história oral dos entrevistados para
o documentário. Durante as entrevistas, os sujeitos foram encaminhados para falar
sobre o passado e o presente, criando um jogo de espelhos comparativo na sua
linguagem. (Hirsch e Spitzer 2002)
Apesar de ser descrita, na maioria das vezes, como uma reacção escapista da
realidade, uma melancolia positiva, evocando imagens do passado como espelho para
as falhas do presente, a nostalgia também possui uma face negativa: pessoas que
foram deslocadas à força das suas casas, dos seus países, que por outras palavras
tornam-‐se refugiados, carregam uma noção negativa, amarga, de memórias com eles.
Memórias traumáticas de tempos onde o seguro e a realidade deles colapsou.
Esta face negativa é “a outra face da nostalgia”, a menos estudada, mas aquela que
mais importância tem neste projecto, no contexto do histórico do Kosovo e,
41
consequentemente, no web-‐documentário “Quem és tu, Kosovo?”. (Hirsch e Spitzer
2002)
A nostalgia também contribui para que no relato se crie uma distinção
identitária entre o “eu” e o “outro” nas narrativas, logo é um dos conceitos a ter em
conta ao ver o web-‐documentário. O mesmo se poderia dizer em relação à memória,
cuja ligação ao conceito de nostalgia é estreita. Um sentimento nostálgico nasce de um
pensamento desencadeado inevitavelmente pela memória. Se não recordamos nostos,
o nosso lugar, a nostalgia não tem como proliferar. Como pessoas, eventos e outras
circunstâncias acontece o mesmo: a memória e nostalgia interagem, e um desencadeia
a outra, e vice-‐versa.
Tanto no papel de realizador como de espectador de um documentário assente
na história oral, é crucial não ignorar as falhas associadas à memória, cuja capacidade
de “enganar” o indivíduo é estudada há largos anos. O mesmo evento será sempre
recordado de maneira diferente por cada pessoas, por vezes a memória altera
pequenos detalhes, mas é possível que episódios completos sejam arquivados na
mente com contornos que nunca aconteceram.
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II.3-‐ Documentário e Modos de Representação
Enquanto realizador deste web-‐documentário, uma das minhas maiores
preocupações foi estar no campo enquanto observador e não “comandar” a ordem das
filmagens. Procurei estabelecer uma relação empática para com os entrevistados,
conviver no máximo de situações possíveis, mas nunca influenciar respostas ou modos
de estar. Dado isto, considero importante falar sobre os Modos de Representação de
Bill Nichols.
Este, no livro Representing Reality: Issues and Conceptions in Documentary,
estrutura quatro modos de organização dominantes dos documentários: o modo
observacional, o modo interactivo; o modo Expositivo, o modo Reflexivo. (Nichols
1991). Estas categorias surgiram da prática de filmar e de um estudo crítico,
considerando os contextos históricos de cada um:
• O modo expositivo é o cinema documental tradicional de realizadores
como John Grieson – insatisfeito com os alheamentos e atributos do
cinema ficcional. Utiliza voz off – a chamada “voz de deus” – e é aberto
a abordagens poéticas do realizador.
• O modo reflexivo, fortemente representado por Dziga Vertov, surgiu da
vontade de tornar os contratos de representação mais aparentes e
chocar as convenções de realidade. Muito académicos, consideram que
seja o modo mais auto-‐consciente – “self awared”, pois utiliza alguns
dos recursos dos outros modos e fá-‐lo ao seu limite para direccionar a
atenção do público para o efeito desejado, não só para o dispositivo.
• O modo interactivo, de forma genérica ligada a Jean Rouch, trata-‐se de
uma técnica de filmagem que surge do aparecimento de equipamento
de filmagem móvel. Com isto, foi possível para o realizador criar pontos
de vista com base em entrevistas e acompanhar o objecto de estudo de
forma continua.
• O modo observacional, tal como o interactivo, surgiu do aparecimento
de equipamento de filmar portátil e sincronizado. (Efectivamente, para
43
filmar o “Quem és tu, Kosovo?”, só foi utilizada uma câmara DSLR). A
opção por este modo permite ao realizador filmar sem se intrometer na
cena, isto diminuí quase totalmente a reacção das pessoas ao objecto
estranho que a câmara constitui.
Após esta breve exposição, devo afirmar que o modo interactivo e o modo
observacional foram identificados como os mais apropriados para reger este projecto.
Os testemunhos de vida filmados para o web-‐documentário “Who are you,
Kosovo?” apresentam características de ambos os modos: a entrevista e criação de
pontos de vista no discurso; filmagem em diversas situações em que acompanhava os
entrevistados. É importante dizer que, apesar de um esforço constante do realizador, a
câmara acaba sempre por ser um factor externo, o que vai influenciar o
comportamento dos entrevistados, surgindo alguns discursos mais performativos.
Nenhum processo documental é perfeito.
O documentário observacional, muito associado ao cinema directo, dá valor a
questões éticas relacionadas com o estudo antropológico e procura um
distanciamento entre o observador e observado. Deste modo, um só modo de
representação não seria capaz de responder aos objectivos deste projecto. Em alguns
momentos o documentário será mais observacional, noutros também interactivo.
44
II.4-‐ Utilização de imagens de arquivo
Os arquivos são a memória de um povo, de um país e de muitas histórias. Em
2011, na 36ª Assembleia Geral da UNESCO, foi aprovada a Declaração Universal sobre
Arquivos, uma decisão que reconheceu o papel fundamental que os arquivos
desempenham na transparência administrativa e na responsabilização democrática. A
importância da preservação da memória colectiva social foi um outro aspecto
salientado pela aprovação da Declaração Universal sobre os Arquivos, que já tinha
recebido luz verde em 2010 International Conference of the Round Table on Archives
(CITRA).
Este reconhecimento da importância da memória colectiva, directamente
relacionado com o papel os arquivos, é identificável no web-‐documentário “Quem és
tu, Kosovo?”, construído através de um diálogo entre imagens contemporâneas e
imagens de arquivo. Sendo o Kosovo um país recente, com uma história toldada pelo
conflito, o trabalho no terreno revelou algumas questões particulares sobre a situação
arquivística do país, especialmente no que diz respeito a imagens e vídeo. Todos os
excerto de filmagens utilizados no web-‐documentário dizem respeito ao antes,
durante e depois do conflito, numa escala temporal que compreende esses anos. As
dezenas de CD que continham essas imagens chegaram-‐me às mãos intactas, por
inventariar e algumas ainda envoltas em plástico. Tinham estado todo aquele tempo
numa caixa de cartão no topo de um armário no edifício da Administração Interna do
Kosovo.
Podemos dizer que aquele registo, embora que precariamente arquivado,
cumpriu o desígnio que é internacionalmente reconhecido aos arquivos: tomou conta
de certos aspectos da história e deixou-‐os pronto a serem descobertos pelo primeiro a
procurar, e por todos que se seguirem.
45
CAPÍTULO III
III.1-‐ Amostras do projecto
III.1.1 Exemplo 1: Prekaz e o potencial da utilização de imagens de arquivo
O massacre de Prekaz ocorreu a 5 de Março de 1998. Durante essa operação, o
líder do exército de libertação do Kosovo (KLA), Adem Jashari, foi assassinado
juntamente com 60 familiares.
O vídeo18 mostra uma intercepção de imagens de arquivo, datadas dos dias
seguintes ao massacre, e outras captadas pelo jornalista, em Prekaz. Actualmente, o
espaço é um local turístico e um memorial a Adem Jashari. Foi um acontecimento
decisivo no desenrolar do conflito pela independência do Kosovo e uma das situações
que atraíram a atenção da comunidade internacional.
Duração: 2 minutos e 41 segundos
III.1.2. Exemplo 2: Excerto da entrevista de Shaip Ismail
Shaip Ismail foi seleccionado como testemunho para o web-‐documentário
“Quem és tu, Kosovo?”, devido a ter sido, durante o conflito, refugiado em Portugal,
juntamente com toda a sua família (Anexo I).
Trata-‐se de uma entrevista19 feita em condições adversas, pois não tinha tripé
comigo no momento, e foi necessária uma intérprete -‐ tendo noção que com a
tradução perdeu-‐se alguma informação. Não foi possível fazer uma nova entrevista,
pois só descobri Shaip nos últimos dias no Kosovo.
Duração: 1 minuto e 41 segundos
18 http://www.youtube.com/watch?v=BmET9NWe9Pk 19 http://www.youtube.com/watch?v=ZswxbyMT_CQ
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III.1.3. Registo do material recolhido
Nome Etnia Idade Profissão Tempo de Arquivo
Besa Luci Albanesa 33 Directora da revista
Kosovo 2.0
1 hora e 22
minutos
Shaip Ismail Albanês 47 Electricista 30 minutos
Marc Perry Britânico 45 Jornalista 20 minutos
Xili Smali Albanês 29 Dono do hostel Buffalo
Backpackers
34 minutos
Chelsea
Charles
Americana 27 Dona do hostel Buffalo
Backpackers
1 hora e 3 minutos
Felix Moravick Alemão 30 Fotógrafo 24 minutos
Noam
Chomsky
Americano 85 Filósofo 27 minutos
Luan Shllaku Albanesa 34 Directora da Kosovo
Foundation for Open
Society
33 minutos
Anja
Czymmeck
Albanesa 43 Chefe regional da Konrad
Adenauer Stiftung
41 minutos
Pera Atila Sérvio 23 Fazedor de rakia 55 minutos
Lulzim Hakaj Albanês 37 Coordenador regional do
National democratic
Institute
24 minutos
Naggi Atila Sérvio 64 Fazedor de rakia 42 minutos
Total da duração das imagens de arquivo: 10 Horas e 37 minutos
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CONCLUSÃO
“Quem és tu, Kosovo?” é uma pergunta aberta e sem resposta correcta, como é
óbvio, mas foi por essa mesma razão que foi escolhida como título deste web-‐
documentário. Para alguns, o Kosovo faz parte de um imaginário de conflito, perda de
familiares e outras consequências extremas, enquanto para outros é a pátria desejada
que ganhou reconhecimento internacional.
Ao longo de todas as entrevistas, tornou-‐se claro que falar sobre a história
daquele país e ao mesmo tempo sobre a história de vida individual de cada um, era
habitar um espaço nostálgico da memória – bom e mau. Por isso, lembrar as palavras
de Rosseau, em Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens, pode ser um bom ponto de partida para esta reflexão final: “Se eu tivesse
podido escolher o lugar do meu nascimento (...), teria querido nascer num país em que
o soberano e o povo não pudessem ter senão um único e mesmo interesse, a fim de
que todos os movimentos da máquina social nunca tendessem para outra finalidade
que não fosse a felicidade comum (...)”. (Rousseau 1754)
Esta citação está embebida no espírito do que Rosseau denominava como a
ideia de “pátria feliz”. Porém, como todos já sabemos, inclusive Rosseau, nós não
podemos escolher o sítio onde nascemos. E, no momento do nosso nascimento, todos
somos apátridas. A população albanesa a morar no Kosovo não escolheu lá nascer. E a
sérvia também não. O que aconteceu foi uma migração.
Todos somos estrangeiros, selvagens e pobres, ao nascer. Somos “novos seres
humanos”, “recém-‐chegados pelo nascimento”, como escreveu Hannah Arendt.
“Novos por nascimento e por natureza”, encontramos um “mundo velho, quer dizer,
um mundo pré-‐existente, construído pelos vivos e pelos mortos, um mundo que só é
novo para aqueles que nele entraram recentemente pela imigração.” (Arendt 2012)
O Kosovo, enquanto país, ainda não tem uma memória colectiva uniforme ou
distanciamento suficiente para compreender tudo o que aconteceu nos anos 1990. Se
naquele tempo, a população albanesa reclamava da opressão sérvia, neste momento,
não hesitarei em dizer que o oposto também está a acontecer. Não foi possível
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encontrar, mesmo após diversas tentativas, um cidadão sérvio a viver em Pristina –
pelo menos, que se assumisse como tal. Penso que isto pode introduzir uma das
maiores deficiências dos testemunhos recolhidos: só duas das etnias do país estão
representadas nos testemunhos recolhidos. Assim, o perfil traçado neste projecto
encontra-‐se incompleto até que se entrevistem elementos das restantes etnias.
Outras limitações, de carácter técnico, interferiram com o planeado. O web-‐
documentário saiu profundamente limitado em aspectos práticos na captação de
imagens no terreno, e posterior edição, pelo facto de eu ter feito tudo sozinho e sem
apoio de qualquer órgão de comunicação social.
A nível monetário, aconteceu o mesmo, pois tiveram que ser feitas opções na
quantidade de deslocações para fora de Pristina e encontros com certos entrevistados,
devido ao orçamento muito reduzido. Em termos práticos, o projecto “Quem és tu,
Kosovo?” só agora começou a dar os primeiros passos e só depois de outras fases,
especialmente a de financiamento colectivo, é que se poderão retirar outras
conclusões, mais ligadas ao sucesso ou fracasso deste web-‐documentário.
Porém, existe um ponto que a história do Kosovo nos pode ajudar a pensar,
tendo em conta o que está a acontecer neste momento, na Crimeia, Ucrânia. Iremos
no futuro, para não dizer já no presente, assistir a mais conflitos “provocados” por
migrações de movimentos populacionais étnicos?
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ANEXO I
Transcrição da entrevista a Shaip
Podes apresentar-‐te? Nome, idade, onde nasceste... Chamo-‐me Shaip, vivo em Pristina, tenho 47 anos e a minha profissão é electricista. Onde é que ele trabalha, mesmo? Trabalho como electricista no arquivo nacional do Kosovo. Quando é que esteve em Portugal? (O jornalista já tinha esta informação de uma conversa anterior). Fui parar Portugal em 1999 por causa da guerra. Eu e a minha família andamos fugidos de cidade em cidade, durante sete dias, até chegar a Skopia. Daí fomos enviados para Lisboa. Foi você que escolheu ir para Portugal? Sim, sim. E porquê? As condições eram muito más. Lá, em Skopia, a FKOR francesa propôs-‐nos ir para Portugal porque ia ser melhor para nós porque era um bom sítio. Onde é que ficou em Portugal? (Os saltos na conversa surgiram do entusiasmo do entrevistado ao contar a sua história à tradutora) Primeiro voamos para Lisboa e daí apanhamos um autocarro para a Apúlia. Chegamos lá à meia-‐noite e tínhamos imensas pessoas à nossa espera. Eu fiquei tão espantado e feliz. Virei-‐me para o meu irmão e perguntei: “eles são todos albaneses?” Ele respondeu: “não, são portugueses”. ... Na manhã seguinte, quando acordamos, reparamos que muitas pessoas tinham ido lá deixar coisas para nós: comida, roupa... ... Estávamos alojados numa colónia de férias, na Apúlia. Ficamos lá durante três meses. Todos os dias fazíamos algo. Jogar futebol, andebol, passear... ...
53
Um dia, fomos ver um jogo do Sporting de Braga. O relatador do estádio sabia que nós (refugiados) estávamos lá e disse a todos os espectadores: vamos aplaudir os refugiados do Kosovo presentes no estádio. Todo o estádio aplaudiu porque nós tínhamos levado para o estádio uma bandeira do KLA. Então todos sabiam que éramos nós. Até choramos. .... Em outra ocasião, alguns jovens apareceram lá e levaram-‐nos à discoteca em Vila do Conde. ... Fomos mesmo muito bem recebidos. .... Em Portugal, só tinham refugiados de África, por isso assumimos que não iam saber nada do que se estava a passar no Kosovo. Mas pelo contrário: eles sabiam muito do que se estava a passar com os Albaneses. ... Nós (Albaneses) e os Portugueses tínhamos muito em comum. Especialmente a população mais idosa, sofreram muitas guerras (coloniais) e eles sabiam o que nós estávamos a sofrer. Eram muito empáticos para connosco. ... Eles contaram-‐nos como sofreram em África, nas colónias. Eles disseram-‐nos: nós sabemos o que a guerra é. Escolheu voltar ao Kosovo ou foi obrigado a tal? Nós podíamos ter ficado mais seis meses, mas queríamos trabalhar e ganhar dinheiro. Se fossemos trabalhar em Portugal íamos receber mal. Os trabalhos que tínhamos capacidades para fazer pagavam mal. Não íamos conseguir poupar nada para o futuro. Então decidimos voltar. Como é que foi regressar ao Kosovo? No Início foi difícil porque foi logo após o final da guerra. A minha filha, que na altura tinha seis anos, a primeira coisa que disse quando chegou ao Kosovo foi: “eu quero ir à Mónica”. A Mónica era uma assistente social de Portugal.
54
Passados estes anos todos, sente-‐se Kosovar ou Albanês? Ser Kosovar é uma coisa nova. Sempre me senti albanês. Nós ainda não estamos acostumados a ser Kosovares do Kosovo. ... Sou muito grato aos portugueses e essa é a razão pela qual eu aceitei falar nesta entrevista, apesar de todos os contratempos. Tenho muito a agradecer aos Portugueses.