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Os profetas armados No século XVI, quando Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe, a Itália não era um país unificado. Ao invés disso, era uma coleção de cidades- estado, cada uma com sua própria corte e governante, e cada um deles buscando o controle de seus vizinhos. Nesse contexto nasce um manual que captura a essência do jogo político: seus reis, cortesões, súditos, exércitos, auras imaginárias e ao mesmo tempo reais de força; governantes e governados; e também seus profetas políticos, sempre dispostos a ceifar o poder e refundar Estados com novas leis. No capítulo 6 de O Príncipe, Maquiavel introduz uma noção sublime: a dos profetas armados e dos profetas desarmados. Maquiavel pede aos leitores desculpas por seus constantes exemplos provenientes da história — mas no assunto da política, ele assegura, é melhor seguir o exemplo dos homens que nos precederam. Após discutir a necessidade de se almejar à grandeza, Maquiavel coloca à frente uma sugestão objetiva: a de que os homens que conquistam domínio sobre estados através da habilidade e tática têm maior chance de sucesso do que aqueles que simplesmente tiveram sorte em atingir alguma forma de poder. Ou seja, a espinha dorsal da teoria maquiaveliana: virtù e fortuna, como virtude e sorte; opostos por vezes e complementares em outras. Aqueles que menos contaram com a fortuna governaram melhor: Moisés em Israel, Ciro na Pérsia, Rômulo em Roma e Teseu em Atenas. Estes homens não confiaram na aleatoriedade das circunstâncias ou na sorte da fortuna. Ao invés disso, a usaram para conquistar o poder. Essa noção incrível de que podemos utilizar nossa sorte e não apenas aceitar nosso destino parece permear toda a obra do italiano. Moisés teve “sorte” em encontrar os israelitas escravizados pelo Egito. Porque eram oprimidos, foram facilmente persuadidos a seguí-lo. Ciro, por sua vez, cruzou duas vezes com a fortuna: primeiro ao encontrar os persas descontentes com o governo dos medas, e depois pelos próprios medas terem se tornado “efeminados e amolecidos por uma longa paz”. Nessas circunstâncias, Ciro pôde intervir e se tornar o novo e poderoso governante da Pérsia. Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu enfrentaram as grandes dificuldades que esperam os todos homens que pretendem obter seus reinos; mas uma vez no comando, tiveram sucesso em mantê-los, uma tarefa também difícil. Segundo Maquiavel, esse sucesso se deve a uma característica específica: todos eram inovadores, capazes de estabelecer toda uma nova ordem das coisas — novas leis, novos governos e formas de

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Os profetas armados

No século XVI, quando Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe, a Itália não era um país unificado. Ao invés disso, era uma coleção de cidades-estado, cada uma com sua própria corte e governante, e cada um deles buscando o controle de seus vizinhos. Nesse contexto nasce um manual que captura a essência do jogo político: seus reis, cortesões, súditos, exércitos, auras imaginárias e ao mesmo tempo reais de força; governantes e governados; e também seus profetas políticos, sempre dispostos a ceifar o poder e refundar Estados com novas leis.

No capítulo 6 de O Príncipe, Maquiavel introduz uma noção sublime: a dos profetas armados e dos profetas desarmados. Maquiavel pede aos leitores desculpas por seus constantes exemplos provenientes da história — mas no assunto da política, ele assegura, é melhor seguir o exemplo dos homens que nos precederam. Após discutir a necessidade de se almejar à grandeza, Maquiavel coloca à frente uma sugestão objetiva: a de que os homens que conquistam domínio sobre estados através da habilidade e tática têm maior chance de sucesso do que aqueles que simplesmente tiveram sorte em atingir alguma forma de poder. Ou seja, a espinha dorsal da teoria maquiaveliana: virtù e fortuna, como virtude e sorte; opostos por vezes e complementares em outras.

Aqueles que menos contaram com a fortuna governaram melhor: Moisés em Israel, Ciro na Pérsia, Rômulo em Roma e Teseu em Atenas. Estes homens não confiaram na aleatoriedade das circunstâncias ou na sorte da fortuna. Ao invés disso, a usaram para conquistar o poder. Essa noção incrível de que podemos utilizar nossa sorte e não apenas aceitar nosso destino parece permear toda a obra do italiano. Moisés teve “sorte” em encontrar os israelitas escravizados pelo Egito. Porque eram oprimidos, foram facilmente persuadidos a seguí-lo. Ciro, por sua vez, cruzou duas vezes com a fortuna: primeiro ao encontrar os persas descontentes com o governo dos medas, e depois pelos próprios medas terem se tornado “efeminados e amolecidos por uma longa paz”. Nessas circunstâncias, Ciro pôde intervir e se tornar o novo e poderoso governante da Pérsia.

Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu enfrentaram as grandes dificuldades que esperam os todos homens que pretendem obter seus reinos; mas uma vez no comando, tiveram sucesso em mantê-los, uma tarefa também difícil. Segundo Maquiavel, esse sucesso se deve a uma característica específica: todos eram inovadores, capazes de estabelecer toda uma nova ordem das coisas — novas leis, novos governos e formas de governar. Por desejarem mudanças profundas, certamente não tinham credibilidade inicial e eram vistos como espécies de profetas, tanto no sentido metafórico quanto no sentido estrito da palavra. Eram profetas de uma nova ordem política. Mas uma vez que tiveram sucesso com seus planos e promessas, logo tomaram providências para assegurar suas conquistas. E também asseguraram a credibilidade, essa aura necessária para governar. Não basta um visionário com uma visão poderosa; é necessário que o visionário tenha a habilidade prática de produzir obediência à nova ordem. Este é o profeta armado.

Escreve Maquiavel:

“Todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Por que, além do que já se disse, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadi-los de uma coisa, mas sendo difícil firmá-los na persuasão. Convém, pois, providenciar para que quando não acreditarem mais, possa fazê-los crer à força”.

Estes homens, como Moisés, Ciro e todos os profetas armados, são uma demonstração histórica que Maquiavel apresenta como prova de uma tese mais profunda. Para Maquiavel, assim como para Pascal depois dele, poder é força. Segundo eles, também podemos dizer que poder é a aura que reveste um governante, poder é a disposição de outros a fazer algo por nós, e poder são estas cordas invisíveis que obrigam os homens a certas formas de submissão; mas acima de tudo, poder é a dimensão de um trunfo

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real, objetivo. Poder é a força material disponível para fazer valer uma vontade muitas vezes imaterial. Quando se refere aos profetas armados, Maquiavel não dá destaque ao termo “profeta”, mas sim ao termo “armado”. Não é à toa que ele estabelece a oposição aos que estão “desarmados”.

Uma segunda tese pode ser derivada da mesma passagem. “Fazê-los crer à força”, escreveu Maquiavel. Em sua obra, o poder tem essa dupla natureza. Crença e força. Existe na força uma qualidade virtual, no sentido de que ela existe constantemente como uma possibilidade. Ou seja: o governante não usa da força o tempo todo. Mas a força está sempre presente em sua condição virtual, como uma projeção de algo real. São as armas do profeta. Quando se faz necessário, a força que já pairava sobre os governados se faz valer e os comanda novamente à obediência. A obediência, no entanto, é nada mais do que uma tradução da crença de que aquela força existe.

A terceira tese provém da leitura de outra passagem, quando Maquiavel deixa claro que diferencia os vários governantes religiosos: existem aqueles que fazem da religião presente um instrumento político para obter poder; e existem outros, que dentro de um projeto de poder político são capazes de fundar uma religião própria. Aos primeiros, Maquiavel reserva desprezo, certamente porque os que governam em função da religião incluem no jogo político um elemento externo, esse da crença mística, e não a crença em uma força real como faz um profeta armado. Uma das maiores contribuições de Maquiavel foi ter circunscrito a política à sua própria esfera, com regras exclusivas do jogo do poder. E nesse ethos não merece respeito um profeta desarmado que, usando a superstição e o misticismo alheios à política, desfrutasse de poder verdadeiro.

Um governante que seja capaz de fundar sua própria religião, no entanto, se trata de um profeta armado. Assim como a mudança política e a promessa de novas leis e uma nova ordem, um governante pode incluir como uma das dimensões de seu poder a fundação de uma nova religião. Este deverá, enfim, usar suas armas para garantir a obediência às suas novas crenças, assim como faria qualquer governante habilidoso.

Não é por acaso que o biógrafo de Trotsky chamou os dois primeiros volumes de sua obra sobre a vida do político russo de O Profeta Armado e O Profeta Desarmado. Isaac Deustcher escreve no primeiro volume sobre um visionário político que tinha em suas mãos os meios para produzir uma nova ordem. No segundo volume, Trotsky é apenas um político com um discurso contundente, mas roubado da força para fazer crer. O mesmo não pode ser dito de Stálin. Por fim, o profeta desarmado Trotsky se tornou uma curiosidade histórica, banido da órbita do poder por um profeta armado.

Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu. Maquiavel chega a se referir a Moisés como o interlocutor direto de Deus; ou seja, se trata também do Moisés bíblico, mitológico, e não apenas de sua contraparte histórica. Mas sobre quem Maquiavel se cala? Sobre o mais célebre profeta desarmado, mitológico ou histórico: Jesus, que não possuía tropas ou armas, mas cujos ensinamentos estabeleceram uma seita, depois uma religião, depois um império e eventualmente, em seu nome, tomaram o próprio Império Romano.

Por fim, não era o próprio Maquiavel um profeta desarmado? Ele caminhou pelas fileiras do jogo político durante anos, e ao que tudo indica em alguns momentos com certo protagonismo; ou ao menos tanto protagonismo quanto sua posição lhe permitia. Ele praticava a política que se faz à portas fechadas, de acordos político-militares sigilosos; ou seja, não ocupava o mesmo papel que um “príncipe”. Ainda assim, quando em posição política desfavorável, sua resposta foi produzir uma obra visionária, que esgarça uma ordem e estabelece de forma radical outra, como faria um profeta.

Maquiavel não tinha, no entanto, os meios para fazer sua visão política prevalecer. Gostaria ele que alguém tomasse o controle da Itália, eliminasse as contradições internas entre as cidades-estado e estabelecesse uma nova ordem. Escreveu ele, nessa possível condição de profeta desarmado, para que outros profetas, estes armados, levassem a cabo a fundação do que ele gostaria que fosse um novo Estado.

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Maquiavel estava desarmado, mas teve sucesso espantoso: pela lente de sua obra homens fundaram e derrubaram Estados, e em sua tese está a raiz da filosofia política de nossos dias. E ele vai além disso, pois ao delimitar para o jogo político nosso combate pelo poder, Maquiavel não fundou um mero reino, mas fundou uma nova ética. Tudo o que a força permitir é considerado jogo limpo na arena de Maquiavel — mas essa arena deve estar livre de misticismos e obscuridades. Já não basta evocar forças sobrenaturais para governar, e já não basta apenas estar certo. É preciso estar armado.==========================================================================

“Todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além do que já disse, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadí-los de uma coisa, mas sendo difícil firmá-los na persuasão. Convém, pois, providenciar para que quando não acreditarem mais, se possa fazê-los crer à força.”

É deste parágrafo, acima descrito, que faremos um pequeno ensaio daquilo que nos legou um dos fundadores da ciência política, Nicolau Maquiavel. Pelo que devemos a experiência dos anos: a reflexão e a rígida leitura e interpretação dos filósofos; não me tomem por insolente, mas considerem sim a ingenuidade de alguém que ainda carece do adestramento dos tempos. É de certo que me empenho por me fazer entender naquilo à que me proponho, e por esse esforço é que vos peço a compreensão, e claro, que me seja corrigida qualquer falha, visto que a sabedoria não se dá no egoísmo das idéias, mas na virtude do saber solidário, aqueles juízos que os homens doam ao mundo.

Inúmeras biografias de Maquiavel se encontram nos mais diversos meios, portanto, sendo tão fácil o acesso a essas informações, não deixei espaço aqui para comentar de sua vida e feitos. Mas farei sim, antes de iniciarmos nossa busca de entendimento do texto a que nos referimos, algumas considerações sobre o alcance de sua obra, ou melhor, à quem se presta o teor de seu livro, “O Príncipe”. Pois, claro está, pelo que vemos nas livrarias, bancas de revistas e comentários eletrônicos, que andam a diluir o seu pensamento para apenas capitalizar lucros, retirando proposições isoladas de seu contexto, como o que muito é feito com as “Sagradas Escrituras”, da qual, cada um a seu modo e interpretação funda uma nova seita, prescrevendo significados segundo as suas paixões.

Comecemos por investigar o título do livro, “O Príncipe”, e a quem foi dedicada a obra. “Príncipe”, quer dizer: “filho ou membro de família reinante; filho primogênito do rei; herdeiro presuntivo da coroa; chefe de principado; soberano”. E no início do livro há uma dedicatória com o título: “Ao magnífico Lorenzo, filho de Piero de Médicis”. Ora, dada a significação daquilo que exprime por si só a palavra “Príncipe”, e mais o início da dedicatória, “As mais das vezes, costumam aqueles que desejam granjear as graças de um príncipe trazer-lhes os objetos que lhe são mais caros, ou com os quais o vêem deleitar...”, nos força crer que o autor dos escritos, de posse desses significados e convencido da natureza dos homens e das relações sociais e classes a que estão dividos, ofereça a sua obra a homens que, ou por herança ou por força ou por sorte, pretendam ou tenham nas mãos a responsabilidade de fundar, ou conquistar ou manter um Estado. Não fosse isso, Maquiavel poderia ter dado outros títulos a sua obra: “Dos Homens”, “Do Viver e Conquistar”, “Do Sucesso Segundo os Meios”, “O Poder para Executivos”, “O Poder para Mulheres”, “O Poder para Jovens Promissores”, “Potência para Plantador de Batatas”... E por aí derivaríamos inúmeras possibilidades descabidas e sem nenhum sentido, visto que sua obra transcende a vida mediana, não sendo possível refletir suas palavras senão aos governantes, e jamais a servos, fazendeiros ou empresários.

“Cederíamos à mesma ilusão que a maioria dos intérpretes, imaginando que a natureza do homem decide acerca da natureza das relações sociais. As declarações de Maquiavel sobre a natureza humana só assumem todo o seu sentido nos limites de um argumento particular; e, por esta razão, são freqüentemente contraditórias.” (As Formas da História, Claude Lefort, Ed. Brasiliense, p. 145).

E ainda no mesmo parágrafo Lefort complementa:

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“Inconstância ou fidelidade, ingratidão ou disposição ao sacrifício, são traços que se desenham em condições políticas particulares. O que importa a nosso autor não é, pois, a natureza humana, tomada em si mesma, é a divisão de um desejo que só se forma no estado social ou, mais justamente, o estado político (onde há Cidade)...” (idem...)

Considerando os dois trechos acima, concluimos nossa primeira investigação, certos de que Maquiavel, no seu discurso, formula os seus argumentos para um público muito restrito, descrevendo um comportamento particular ou de um povo apenas como um recurso a que um príncipe deve estar sempre atento, já que governará homens e não outra espécie da natureza.

Caberia aqui mais argumentos e exposições sobre o tema, mas não é esse o sentido deste ensaio, cumpre-nos agora a tarefa de comentar o parágrafo inicial do trabalho, que repetirei aqui somente pela necessidade de visulizá-lo estéticamente com algumas marcações:

“Todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além do que já disse, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadí-los de uma coisa, mas sendo difícil firmá-los na persuasão. Convém, pois, providenciar para que quando não acreditarem mais, se possa fazê-los crer à força.”

Esta passagem está no capítulo VI, Parágrafo 6, do “O Príncipe”. Façamos um rápido comentário do que foi abordado por Maquiavel nos capítulos anteriores. Muito sucinto, ele diz sobre “Os vários tipos de Estado, e como são formados”. Neste primeiro capítulo ele afirma que “Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas ou principados”. Mas concentra seus comentários apenas nos tipos de principado, que, como já foi dito acima, ou são hereditários, ou adquiridos pela força ou por sorte. Nos próximos capítulos o filósofo vai analisar mais detalhadamente as monarquias hereditárias e as monarquias mistas, e nos capítulos IV e V, vai discorrer sobre a manutenção do Estado, ou como preservá-lo desde os vários modos que este caiu nas mãos do Príncipe. É interessante notar que no capítulo VI há uma mudança nos rumos do discurso, que não mais se dará aos tipos de monarquia ou os modos de resguardá-las, e sim, aos Estados novos, conquistados “com valor” e “com as próprias armas”.

Voltemos ao texto principal.

“Porque, além do que já disse...” ― Pois bem, o que quer dizer Maquiavel, quando se refere ao que já disse? ― No capítulo a que se dedica aos estados novos, o autor fará frente aos conceitos que pretende inserir no contexto da sua obra: a Virtú, a Fortuna e a Ocasião. “Para Maquiavel, a virtú, conceito poliedrico, é a “virtú é a qualidade do homem que o capacita a realizar grandes obras e feitos”, o “poder humano de efetuar mudanças e controlar eventos”, o “pré-requisito da liderança”, é a motivação interior, a força de vontade que induz os homens, individualmente ou em grupo, a enfrentar fortuna, a deusa que forma o contrapeso da virtú. A fortuna é o acaso, o curso da história, o destino cego, o fatalismo, a necessidade natural. / Virtú e fortuna serão os dois pólos entre os quais se desenrolará a ação política. A ação inere ao cerne do pensamento de Maquiavel, e o homem de ação será a ponte que intermediará virtú e fortuna.” (In: O Pensamento Político de Maquiavel, Marcílio Marques Moreira, Ed. Universidade de Brasília, 1980).

Delineados os conceitos de virtú e fortuna, entenderemos melhor à que o autor se referia quando da frase “além do que já disse”, visto que para obter êxito, é preciso conciliar essas forças, virtú e fortuna, com a occasione, ou seja, a oportunidade. O filósofo elege alguns nomes para exemplificar seu argumento, e são eles Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu. E sobre eles comenta: “Examinando sua vida e seus feitos, veremos que nada deveram à sorte, a não ser oportunidade ― matéria que moldaram de forma própria. Sem essa oportunidade, seus valores não teriam sido aproveitados; sem estes, a oportunidade teria sido vã” (O Príncipe, Cap. VI, § 3). O autor ainda vai além, expondo os motivos de cada personagem. Era preciso que Moisés encontrasse o povo de Israel oprimido, escravizado e disposto a escapar à servidão, seguindo-o;

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que Rômulo fosse abandonado para que depois se tornasse fundador e rei de Roma; que Ciro encontrasse os persas aborrecidos com o domínio dos Medas; e por último, que Teseu tivesse encontrado os atenienses dispersados. À quem a oportunidade se expôs, tendo eles dominado a virtú e a fortuna, conseguiram, mesmo com dificuldades, fundar um novo Estado. Mas ainda há uma outra passagem que complementa o entendimento da frase mencionada, e que está no mesmo parágrafo do texto principal: “...faz-se necessário, portanto, verificar se os inovadores são independentes ou não; isto é: se para executar suas obras precisam pedir ajuda a outrem, ou se podem impor-se pela força” (Cap. VI, § 6). Ora, uma referência possível, que é chave para a fundamentação do que virá a ser dito, é que a virtú deve legar a esse tal inovador uma grande reputação, ou seja, potência (autoridade) para realizar seus propósitos.

“Todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram” ― Maquiavel quer nos fazer refletir sobre a força das armas. Pois é visto que no decorrer da história, de joelhos os povos se perderam, e armados se impuseram, ou na defesa de suas terras, ou na fundação de seus Estados. “A única conclusão positiva que podemos reter é que o fundador deve preferir a força à prece, que os profetas armados triunfam ali onde fracassam os profetas desarmados” (O Pensamento Político Clássico, “Sobre a Lógica do Poder”, Claude Lefort, p. 42). Lefort reforça o argumento da força das armas, visto que, com esses dados, já podemos concatenar duas idéias. Pelo que Maquiavel já disse, e pelo começo do parágrafo que estamos analisando: virtú, fortuna, oportunidade e reputação; e agora, a força das armas. Assim, começamos a dar forma ao entendimento do texto: “Todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além do que já disse...”

“...a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadí-los de uma coisa, mas sendo difícil firmá-los na persuasão” ― Há uma particularidade nesse contexto, porque trata da natureza humana, expressa como que dos povos. O alerta de Maquiavel a este ponto, é para que o Príncipe fundador se atente as expectativas dos homens que o servem. Pois só o discurso do Príncipe não lhes firma nos seus propósitos. Pois quem deseja instituir uma nova ordem de coisas, “suscita a inimizade de todos os que são beneficiados pela ordem antiga, e é defendido tibiamente por todos os que seriam beneficiados pela nova ordem ― falta de calor que se explica em parte pelo medo dos adversários, que têm as leis do seu lado, e em parte pela incredulidade dos homens. Estes, com efeito, não acreditam nas coisas novas até que as experimentem; portanto, os adversários, todas as vezes que podem atacá-las, o fazem com empenho, e os que as defendem, defendem-nas tepidamente...” (O Príncipe, Cap. VI, § 5). No parágrafo seguinte, que já foi apresentado acima, Maquiavel dará o desfecho necessário ao problema, perguntando se quem está prestes a instituir uma nova ordem, pode fazê-lo sozinho, pelas suas próprias forças. Ora, se é fácil persuadi-los, para firmá-los na persuasão será preciso impor-se pela força.

“Convém, pois, providenciar para que quando não acreditarem mais, se possa fazê-los crer à força.” ― Para confirmar essa proposição, Maquiavel usará um exemplo de seu tempo: “Isso aconteceu em nossos dias ao frei Gerônimo Savonarola, cuja nova ordem perdeu-se inteiramente quando a multidão começou a desacreditá-lo, e ele não achou modo de manter firmes seus seguidores, nem maneira de fazer crer aos descrentes.” (Cap. VI, § 7). Claude Lefort enriquece o contexto dizendo que “Savonarola denunciava os insensatos e malvados que negavam ser possível governar com o pater noster e pretendia tirar do Antigo e do Novo Testamento a prova de que as cidades sempre tinham sido salvas pela prece; segundo Maquiavel, insensato é aquele que se fia na prece e se esquece de que Moisés estabeleceu seu reino pela força;” (O Pensamento Político Clássico, “Sobre a Lógica do Poder”, Claude Lefort, p. 46). “Convém, pois, providenciar”, ou seja, que a reputação do Príncipe, a sua autoridade sobre seus súditos esteja de tal forma enraizada, “para que quando não acreditarem mais”; se por qualquer motivo se alastre no seio do povo desconfianças e dúvidas, o Príncipe “possa fazê-los crer à força” ― virtú que ofereça vigor tal que se antecipe à fortuna e que pelas qualidades elevadas do Príncipe, seja ele capaz de se agarrar a Ocasião, agindo conforme as oportunidades que lhe aparecem. E que sua reputação, agindo no imaginário de seus súditos, lhe proporcione a energia necessária para mantê-los firmes na nova ordem das coisas, fazendo-os crer à força de seu poder ― a inteligência da força e a força das armas ― relegando ao Príncipe, Potência

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para realizar seus desígnios. Lefort vai chamar esses novos conceitos de “Teoria da Ação”, conceito este que se implementa “no lugar onde outrora o pensamento se assegurava com a presença de uma ordem divina ou natural.” (O Pensamento Político Clássico, “Sobre a Lógica do Poder”, Claude Lefort, p. 47).É assim que Maquiavel se interpõe entre as antigas teorias e seus novos conceitos. Trazendo à tona o turbilhão da realidade das coisas, dizendo que, todos que se prestaram ao serviço de escrever sobre os Estados, imaginaram-nos de tal modo que nunca existiram. O filósofo, então, partindo da experiência dos antigos e daquilo que presenciou nos seus dias, se fixou na história pela coragem das suas idéias, e pelo reconhecimento da realidade das relações políticas de Estado, que se dão, não menos, no campo da ação, contrapondo-se incasavelmente ao arrastar-se imprescindível dos tempos.=========================================================================

André Singer*Maquiavel e o liberalismo: a necessidade da República* Professor Doutor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.Filosofia Política Moderna

Dizer de uma cidade que ela tem liberdade é o mesmo que dizer que ela se mantém independente de qualquer autoridade que não seja a da própria comunidade. Assim, a liberdade acaba por se identificar com o autogoverno. Skinner, 1988

INTRODUÇÃO

De acordo com Giovanni Sartori, o liberalismo político (distinto, para ele, de liberismo econômico) deve ser entendido assim: “O liberalismo pode ser considerado, muito simplesmente, como a teoria e a prática da defesa jurídica, através do Estado constitucional, da liberdade política individual, da liberdade individual” (Sartori, 1994: 162-3). O liberalismo, portanto, de acordo com a definição sugerida por Sartori, articula-se na relação entre dois elementos fundamentais. De um lado, a liberdade política individual e, de outro, aquilo que a garante: o Estado constitucional. Este artigo pretende argumentar que tal definição de liberalismo prescinde de um terceiro elemento fundamental, a participação política, ao menos na tradição republicana. Tal tradição, a ser ilustrada aqui pela obra de Maquiavel, tem particular importância para nós latino-americanos, herdeiros que somos de um modelo político inspirado também pelas idéias renascentistas de autogoverno.Na história do pensamento político, os dois pólos formados por liberdade e Estado, longe de serem um par harmônico, apresentam tensões dificilmente reconciliáveis a não ser por intermédio do exercício da virtude cívica. Daí a importância atual da obra de Nicolau Maquiavel (1467-1529). Neste texto, trata-se de indicar brevemente como a relação entre os dois conceitos aparece nas duas obras marcantes do autor florentino (O Príncipe e os Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio) e como, para ele, só é possível escapar da contradição entre Estado e liberdade mediante a participação política ou, em seus próprios termos, pelo exercício da virtù. Olhando a história do pensamento político desde o ângulo de Maquiavel, percebe-se que a fórmula liberal de liberdade política individual, a ser garantida pelo Estado constitucional, como pretende Sartori, depende de uma terceira idéia, a de participação política.Antes que uma justa acusação de anacronismo seja levantada contra as intenções deste texto, convém explicar por que um autor do século XVI pode ser invocado para debater temas típicos dos séculos XIX e XX. Com efeito, no tempo de Maquiavel, os Estados nacionais apenas começavam a exercer a longa hegemonia que marcaria a modernidade e a idéia de Estado constitucional ainda precisaria esperar uns bons séculos para aparecer e se consolidar. O que então Maquiavel tem a ver com uma teoria que pretende garantir a liberdade individual por intermédio de uma forma de Estado que ainda não havia surgido em seu tempo?A resposta é dupla. De uma parte, está o fato de que o Estado constitucional antes de ser constitucional é Estado. Isto é, detém uma característica cujo fato de ser constitucional não elimina: a de ter o monopólio do uso da violência legítima em determinado território (Weber, 1993). Em segundo lugar, o ideal de um Estado que garanta a liberdade política nasce justamente com os humanistas cívicos da Renascença e será, pelo menos em parte, com referência a ele que o liberalismo irá se gestar como o pensamento político dominante no ocidente a partir da segunda metade do século XVIII, como apontam Pocock (1975) e Skinner (1996).

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Uma última palavra se faz necessária para destacar a importância de tal problemática para o pensamento progressista contemporâneo.

Na concepção do liberalismo oferecida por Sartori encontramos componentes fundamentais dos sistemas políticos democráticos, o que não significa que a democracia se esgote neles. Sempre pode-se argumentar que limitada à prática liberal, a democracia acaba sendo uma traição a si mesma. Mas se o liberalismo, tal como visto por Sartori, não André Singer esgota a democracia, difícil é imaginar que a democracia possa prescindir dele. Para dizê-lo de modo claro: as liberdades políticas e as liberdades individuais são elementos sine qua non dos regimes democráticos. Daí o interesse, do ângulo democrático e progressista, em dialogar com o pensamento liberal. Este artigo quer, assim, contribuir para uma interpretação do liberalismo que possa ajudar nos esforços de construção de democracias participativas em nossas repúblicas latino-americanas.I. ESTADO E MORALIDADEPensador do Estado e da soberania, o florentino Maquiavel foi não raras vezes retratado como um defensor da tirania. Para quem lê O Príncipe (1973) pela primeira vez, e com olhos desarmados, a acusação não soa absurda. Execrado por parte dos comentadores do seu próprio século e dos seguintes, a ponto de ter hoje o nome convertido em um adjetivo depreciativo, não é fácil perceber o que Maquiavel tem a ver com liberalismo e democracia. Mas ao contrário das primeiras aparências, a obra de Maquiavel é fundamental para pensar tanto o Estado quanto a liberdade e, acima de tudo, a relação entre ambos. O problema, conforme veremos, não está apenas em uma leitura ingênua ou mal-intencionada da obra de Maquiavel. Tem a ver com a natureza contraditória da conexão entre Estado e liberdade. O Estado, tal como apresentado por Maquiavel em O Príncipe, é imposto pela força. Como é possível, então, que algo imposto aos homens seja o instrumento de sua própria liberdade? São as originais respostas a essa pergunta fundamental que fazem a grandeza da obra do antigo secretário de Florença. Em O Príncipe, o livro mais popular do teórico italiano, encontra-se uma incômoda lista de conselhos pouco escrupulosos àquele que deseja construir um Estado novo. O realismo de Maquiavel o leva a perceber, e, inédito, a declarar, que um Estado só pode ser construído com violência, uma vez que se trata de, simultaneamente eliminar a competição externa e interna. Quem quiser organizar um Estado precisa fazer com que um determinado território fique a salvo das invasões de forças estrangeiras assim como necessita impedir que outra facção interna se arme para tentar ocupar o poder por meio das armas. Em outras palavras, não há Estado quando as fronteiras são inseguras ou existe guerra civil, real ou potencial. Em resumo, quando as duas condições, paz externa e interna, estão satisfeitas pode-se falar em Estado, ou seja, em um poder que permanece, que é estável (stato), e que, por ter estabilidade, garante paz e ordem à população que vive no território por ele dominado.

O que choca em O Príncipe, mesmo quase cinco séculos depois de escrito, é a natureza cruel da luta pelo poder, tal como exposta por Maquiavel. No livro, a competição aparece como um fator inescapável das relações humanas e, uma vez que os homens não são bons por natureza, a competição tende sempre à guerra. Os homens mentem, ludibriam e atacam quando estão em jogo os próprios interesses. Desconhecem limites na luta pela vitória. Vale tudo. Daí que a violência, a crueldade e a morte são o resultado inevitável da disputa entre os homens. O único modo de parar essa guerra incessante –à qual estavam habituadas as cidades-Estado italianas da época, entre elas Florença– é o predomínio militar estável de uma das facções, ou seja, a vitória duradoura de uma delas. Não importa qual. É decisivo, do ponto de vista do bem-estar da população, que, em primeiro lugar, uma delas ganhe e consiga se manter no poder. Quando a luta entre os partidos é pré-estatal –quando não há um poder comum sobre eles– não há uma razão moral que justifique a vitória de uma facção sobre outra, uma vez que não há regras comuns para julgar o certo e o errado. Por isso, Maquiavel pode dar conselhos a qualquer príncipe, leiase qualquer dirigente político, de maneira indistinta. Tanto Savonarola, se vivo, quanto Lourenço de Médici pode aproveitar de suas descobertas. Dessa forma, os conselhos de Maquiavel consistem no reconhecimento de leis universais da luta pelo poder. Tais leis servem a quem quer que resolva disputar o poder, como quatrocentos anos depois reconhecerá Weber (1993). Não é o oportunismo que orienta a conduta de Maquiavel, um ex-secretário da República que oferece conselhos a um príncipe Médici. É o

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reconhecimento de que certas regras políticas valem para todos, e a primeira delas está no justo valor a ser dado às armas, isto é, à violência.A convivência pacífica fundada em normas mutuamente acordadas, a partir das quais a moralidade das ações pode ser julgada, depende de um fato anterior, a saber, da constituição de um Estado que permita ordenar as relações humanas a partir de critérios racionais em um determinado território. Daí o interesse coletivo e moral em que surja um Estado e o valor coletivo e moral que tem a figura de um verdadeiro Príncipe, entendido como aquele que tem a virtù necessária para fundar um Estado. Essa a estranha conexão entre força e moralidade desvendada por Maquiavel.

II. VIRTÙ E LIBERDADEMas que virtù é essa que caracteriza O Príncipe? Aquele que quiser construir um Estado necessita contar com três fatores. O primeiro é alheio à sua vontade: as circunstâncias precisam ser favoráveis à ação.

Um contexto benigno não é suficiente para garantir um resultado positivo, mas sem ele nada é possível. Em outras palavras, há condições objetivas que impedem a construção de um Estado. Em segundo lugar, requer-se liderança para empreender uma ação política. O dirigente é aquele que consegue unificar forças sociais em torno de si. Em terceiro lugar, é imprescindível ter coragem de realizar as ações exigidas pelas vicissitudes da refrega, mesmo aquelas que repugnam ao senso moral do próprio Príncipe.O paradoxo está em ser capaz de agir de modo imoral para estabelecer a própria moral, e com isso, criar as condições para haver limites nas relações humanas. Em outras palavras, estar disposto a usar a violência contra os concorrentes até alcançar uma vitória final capaz de se sustentar no tempo. Mas deixando-se de lado a fortuna, que independe da vontade do indivíduo e determina o contexto de sua ação, vamos verificar que a virtù que garante a liderança e a estabilidade do poder consiste em uma combinação de coragem e capacidade de representar os interesses sociais, entre os quais o fundamental é o da liberdade. Veja-se a série de histórias exemplares que aparecem no Capítulo VI de O Príncipe, no qual Maquiavel ilustra com exemplos históricos a sua tese a respeito da construção do Estado. De acordo com Chisholm (1998), nesse capítulo encontram-se por inteiro os modelos de O Príncipe de Maquiavel como aquele que funda Estados e instituições duradouras. Não por acaso, o capítulo tem por tema os “principados absolutamente novos”. Maquiavel vai buscar na Antigüidade, mais precisamente na trajetória de Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu, os ensinamentos para os fundadores modernos. O que esses personagens têm em comum? Em primeiro lugar, o fato de terem encontrado condições propícias para a sua ação –tais circunstâncias significam que a fortuna lhes sorriu. Sem ela nada poderia ser feito. Mas sem que aparecesse alguém para aproveitá-la também nada teria acontecido. Moisés deparou o povo de Israel escravizado pelos egípcios. Ciro viu os persas descontentes com o domínio meda. Rômulo sobrevive e vinga uma traição que havia atingido sua família, adquirindo a liderança necessária para fundar outra cidade. Teseu, por fim, “não teria podido revelar suas virtudes se não tivesse encontrado os atenienses dispersos” (Maquiavel, 1973: 30). Se os hebreus, os persas, os habitantes de Alba e os gregos estivessem satisfeitos com a ordem à qual estavam submetidos, de nada valeria aparecer entre eles um dirigente político dotado de características excepcionais como foram Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu. Em resumo, o dirigente político não inventa a necessidade da ação política. Ou ela existe objetivamente ou toda a sua possível virtù não servirá para nada.

Esse é o papel da fortuna ou, se quisermos ser mais precisos e atuais, da história. Quantas vocações políticas não terão sido desperdiçadas por terem aparecido em momentos e lugares históricos nos quais ela não se fazia necessária? De outra parte, quantas possibilidades históricas não terão sido perdidas pela ausência de dirigentes dotados das virtudes específicas adequadas a agir em uma conjuntura na qual os homens estavam preparados para uma condução política? Aqui emerge a importância crucial da história na construção teórica de Maquiavel. Será da relação concreta entre conjunturas históricas específicas e os homens particulares que lá se encontrarem que surgirá –ou não– uma ação política capaz de fundar uma ordem nova.Como dissemos acima, não bastam, evidentemente, existirem circunstâncias favoráveis à ação política para que ela aconteça. Até porque, como diz Maquiavel (1973: 111) no Capítulo XXV, a sorte é mulher e para dominá-la é preciso contrariá-la. Isto é, não se pode desconhecer o peso da história (os homens fazem a história em condições determinadas, como diria Marx), mas toda ação política vitoriosa depende

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de uma decisão inicial na qual há uma dose de incerteza. Enfim, de uma iniciativa de risco. Daí a relevância de existir ou não O Príncipe, isto é, alguém que disponha de capacidade de unificação das forças insatisfeitas (liderança), e coragem para iniciar uma ação perigosa e audaz. Ao dar o primeiro passo é preciso saber que será necessário usar a violência, sem a qual, de um lado não se obtém a vitória sobre o inimigo e, de outro, não se garante a obediência dos próprios comandados à nova ordem. No entanto, quem age com violência sabe que a reação virá na mesma medida. Por isso, é preciso coragem. Compreende-se por que essa descrição do agir político inspirou um pensador como Gramsci, um homem fascinado pela idéia de instituir um novo Estado, um recomeço. Dispor-se a liderar –agir com soberania– e ter poder militar para tanto, esses os requisitos da vitória. “Destarte”, conclui Maquiavel, “todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram” (1973: 31). De acordo com Chisolm, o que caracteriza a ação dos quatro modelos invocados por Maquiavel é terem tido a ousadia de ultrapassar os limites da ética comum para fundar um poder duradouro. Por isso, sugere Maquiavel, mais tarde retomado por Weber, a ética política precisa ser compreendida como uma ética especial, separada da moralidade comum. Moisés precisou desembainhar a espada, e usá-la, para punir os próprios seguidores que, contrariando as suas orientações, continuavam a adorar o bezerro de ouro. “Só depois do massacre, que não pode ser considerado simplesmente como uma punição justa, uma vez que os idólatras foram dizimados arbitrariamente, é que Moisés pôde proclamar a Lei para seu povo” (Chisholm, 1998: 72). Na mesma linha de ações moralmente condenáveis, Ciro trai o avô, Teseu leva o pai ao suicídio e Rômulo comete fratricídio. Tais ações “imorais” fazem com que o seu poder seja efetivamente unificado e uma ordem pública possa emergir.

Isso quer dizer que Maquiavel é um apologista da tirania? Ou de que, para ele, os fins justificam os meios? Não. O Príncipe e mais tarde os Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, mostram melhor que a liberdade política, que nada mais é do que o direito de opor-se pacificamente a quem está no poder, em um contexto de Estados nacionais, depende, de um primeiro momento de não-liberdade. Como na realidade humana a disputa pelo poder é inevitável, para que uma comunidade seja livre é necessário que ela crie uma soberania territorial em face das demais, uma vez que o domínio de uma força estrangeira significa a obediência a desígnios heterônomos. Mas a criação dessa soberania territorial implica a unificação interna, quer dizer, a aceitação de uma fonte única de poder interno. A divisão do planeta em Estados distintos obriga a que cada território aceite o domínio de um único poder local. Será que a atual decadência dos Estados aponta para uma forma de governo universal na qual só restem dirimir as divergências internas à comunidade?Em todo caso, enquanto prevalecerem as condições observadas por Maquiavel, a soberania só pode ser garantida se houver a unificação das forças da comunidade em torno de um, e necessariamente apenas um, poder armado em determinado território. Daí a necessidade de uma facção se impor pelas armas sobre outras. Weber mostra como tal processo de unificação da dominação ocorreu historicamente. Primeiro, um grupo toma o poder e desarma os rivais. Depois legitima o seu poder. As diversas formas de legitimação é que vão determinar o caráter historicamente distinto de cada um deles.

Maquiavel salienta que o não reconhecimento claro das tarefas necessárias à construção do Estado já consiste em andar meio caminho (ou mais) para a derrota. Por isso, quem lê apenas O Príncipe pode ficar com a impressão de que Maquiavel faz a apologia do uso de meios indiscriminados e arbitrários para manter o poder. Na realidade, Maquiavel está buscando elucidar as condições nas quais é possível construir as pré-condições para um bem mais alto: a liberdade política. Para ser ainda mais explícito: nem todo fim justifica qualquer meio, mas a liberdade (que não existe sem Estado) justifica o uso da violência.

III. A OPÇÃO REPUBLICANAQuem se der ao trabalho de continuar lendo a obra de Maquiavel vai verificar que, se a soberania territorial armada é condição necessária para a liberdade política, não quer dizer que seja suficiente. A soberania não se sustenta sem liberdade política interna, porque só ela leva os cidadãos a agirem com virtù, ou seja, colocar os interesses públicos acima dos interesses privados. Se não existe uma cidadania virtuosa não há indepedência externa, uma vez que ninguém se dispõe a lutar por ela. No capítulo 24 do Livro II dos Comentários, Maquiavel defende que a força real de um Estado depende da participação popular, o qual por sua vez só surge quando há liberdade de manifestação. Nos Comentários, Maquivel

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toma um partido claro a favor da forma republicana de governo, ou seja contra a tirania. O argumento aqui é o seguinte. Todo Estado tende a corromper-se e a declinar, mas onde exista liberdade o declínio pode ser retardado e a grandeza e felicidade cívicas ser duradouras.Evitar a tirania, que tende a arruinar o Estado é, desse modo, um assunto que, trabalhado nos Comentários, faz continuidade com O Príncipe. Não há contradição entre eles. Por isso também, Maquiavel é compatível e, em certa medida, está na origem do pensamento liberal.É interessante notar que os teóricos florentinos da Renascença, e Maquiavel em particular, tendiam a enaltecer a experiência republicana da Roma antiga em detrimento da etapa monárquica e imperial da história romana. Eles acreditavam que o auge de Roma havia se dado durante a República, enquanto o Império havia significado o começo da decadência. A razão que levou os pensadores florentinos a esposarem a tese acima é clara. Florença era uma república, assim como Veneza e outras cidades do norte da Itália, e embora na época de Maquiavel Florença estivesse passando para outra forma de governo (principado), havia ali uma longa tradição de pensamento republicano que remontava ao século XI. No contexto da desorganização política do período feudal, algumas cidades italianas do norte haviam logrado conquistar sua independência em face tanto dos nobres rurais quanto do Santo Império Romano-Germânico, ao qual formalmente pertenciam. Por vezes aliadas ao papado (Guelfos), por outras ao império (Gibelinos), elas haviam desenvolvido formas de governo republicanas em plena Idade Média. Essas cidades eram governadas com maior ou menor participação popular, maior ou menor peso aristocrático, mas, ao que parece, em nenhuma delas haviam-se estabelecido monarquias. Daí ter-se desenvolvido uma ideologia republicana da qual Maquiavel é uma expressão tardia, embora talvez a mais brilhante. Ao propor a saída republicana, Maquiavel funda uma linha de pensamento que é uma das grandes vertentes do liberalismo até hoje, o chamado republicanismo cívico. A posição republicana de Maquiavel será influente no republicanismo americano, a primeira república continental da história. Pocock (1975) defende a hipótese de que os pais fundadores dos EUA decidiram pela República (que, a partir daí, se tornará uma das formas de governo predominantes no mundo) porque conheciam a tradição republicana florentina.CONCLUSÃOO tema da liberdade é tomado por Maquiavel sob a perspectiva de dois assuntos interligados: o de como obter a soberania –em outras palavras, fundar o Estado, o que só pode ser conseguido pelas armas– e de como é possível manter o Estado o maior tempo possível longe da corrupção. Para obter o segundo objetivo, é preciso adotar a forma republicana de governo, a única que permite evitar, no longo prazo, a guerra civil ou a tirania, porque nela os cidadãos desenvolvem uma virtù cívica.Os meios de preservar a liberdade interna são dar representação às principais classes, permitir que uma se oponha pacificamente à outra e aproveitar esse conflitos, embora seja necessário contê-los em limites adequados, para fazer com que a virtude dos cidadãos se desenvolva. Só a República, por garantir a liberdade, é capaz disso. A República se diferencia da Monarquia por ser o governo de mais de um, podendo ser de muitos ou de poucos (Aristocracia ou Democracia), mas nunca de um. Ora, o que é a tirania? A tirania é aquele regime no qual um decide arbitrariamente e os demais se sujeitam à sua decisão. Por oposição, liberdade é o regime no qual a vontade de quem quer que esteja no comando sofre a oposição pacífica de uma ou mais forças independentes. Esse direito de oposição garante que a vontade de quem está no poder precisa levar em consideração quem não está, seja para negociar, seja para ceder, seja para convencer. Em resumo, significa que a vontade do poderoso tem limites. Mas para haver essa oposição de forças, é preciso que exista mais de uma força, por isso o regime não pode ser monárquico, no qual um só concentra todo o poder. As forças que governam na Aristocracia e na Democracia (os aristocratas e o povo) podem se dividir, já o rei não pode se dividir, porque é um só. Por isso, algumas versões do nascente liberalismo no século XVIII estarão associadas ao republicanismo. Outras vertentes liberais serão mais inspiradas por Locke e Montesquieu, caminhando para a saída da monarquia constitucional. Tais correntes argumentam que, para ser livre, o governo também não pode ser democrático ou aristocrático, porque nesses casos a fonte do poder também é um só (a aristocracia ou o povo). Como resultado, imagina-se que o Estado precise ser dividido em diferentes poderes. A combinação das duas idéias –o valor da República e da luta entre as facções, bem como a necessidade de dividir o poder– irá orientar a Constituição norte-americana de 1787, por sua vez tomada, cedo ou tarde,

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como modelo nos países da América Latina. O Brasil, é verdade, entrou tarde para o clube, preservando durante quase todo o século XIX a forma monárquica de governo, mas agora navega há mais de cem anos nas águas do republicanismo.Na refundação que representou a independência dos países americanos, a adoção do modelo que poderíamos chamar de republicanoconstitucional foi prenhe de conseqüências. Nossos regimes foram, desde o início, vocacionados para a democracia e o autogoverno, uma vez que postulado central do republicanismo. Note-se que o componente republicano no pensamento liberal americano sempre o distinguiu dos seus pares europeus.O republicanismo faz, no entanto, grandes exigências à cidadania, uma vez que para ele liberdade não é a liberdade negativa, mencionada por Sartori na definição de liberalismo mencionada acima. O republicanismo equivale a uma forma de governo na qual os cidadãos se autogovernam. A conseqüência dessa forma de definir liberdade é que ela requer, para se realizar, participação do cidadão na política, para ser mais preciso, na direção do Estado (Bock et allii, 1990). A queda na participação política, antiga nos Estados Unidos, e mais recente nas democracias latino-americanas, faz pensar nos desafios que estão postos para as nossas repúblicas. Nesse contexto, a recuperação dos autores renascentistas –e, sobretudo, Maquiavel– que fazem da república um ideal de autogoverno, pode ajudar a enfrentar os importantes obstáculos à consolidação da democracia no continente. A noção de virtude cívica, que percorre o pensamento político desde a tradição grega, só pode nos ajudar. Até porque a liberdade política só pode existir, se existir a virtude do cidadão.BIBLIOGRAFIABock, Gisela et al. 1990 Machiavelli and Republicanism (Cambridge: Cambridge University Press).Chisholm, Robert 1998 “A ética feroz de Nicolau Maquiavel” em Quirino, Célia Galvão; Vouga, Claudio e Brandão, Gildo Marçal Clássicos do pensamento político (São Paulo: Edusp).Maquiavel, Nicolau 1973 O Príncipe (São Paulo: Abril cultural).Maquiavel, Nicolau 1979 Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio (Brasília: UnB).Merquior, José Guilherme 1991 O liberalismo, antigo e moderno (Rio de Janeiro: Nova Fronteira).Pocock, J.G.A. 1975 The Machiavellian Moment (Princeton: Princenton University Press).Sartori, Giovanni 1994 A teoria de democracia revisitida (São Paulo: Ática).Skinner, Quentin 1988 Maquiavel (São Paulo: Brasiliense).Skinner, Quentin 1996 As fundações do pensamento político moderno (São Paulo: Companhia das Letras).Weber, Max 1993 Ciência e política, duas vocações (São Paulo: Cultrix).

O Príncipe de MaquiavelUm breve comentário sobre a obra De Principatibus, de Nicolau Maquiavel.

01. Um átomo de carbono

O Príncipe de Maquiavel é uma obra de pequeníssima dimensão, mas é imprescindível à compreensão de todas as formas vivas do debate político. Sobre ele já se escreveu desde pequenos artigos até grandes tratados. Presta-se a traduções, análises, glosas, esquemas, comentários, resenhas, resumos, revisões, releituras; é associada a choques e entrechoques; ligações políticas as mais variadas, às composições e decomposições de corpos políticos. Não é de se espantar. Dentre os 32 escritos sobre política que Maquiavel deixou para a posteridade, De Principatibus é o mais interessante: já tem quase meio milênio de existência e é um dos livros mais lidos da humanidade.

02. A Época

Para um nível de entendimento mediano há que se traçar um enquadramento compreensivo da época em que a obra foi escrita e, uma vez capturada esta, proceder ao direcionamento da lente na direção do autor, fechando o foco para capturar-lhe os detalhes, as peculiaridades. Montam-se as imagens num único quadro e obtém-se uma singularidade razoável.

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A Europa vive os ventos culturais do Renascentismo e a experiência política da fundação dos Estados modernos. A Itália, entretanto, era o centro do furação renascentista e não compartilhava a experiência política européia. A precocidade italiana nas artes resultava-lhe prejudicial na política na medida em que sua expansão do capital mercantil e financeiro, ao contrário do resto da Europa, se dera ainda no regime feudal. O capitalismo italiano não se constituia uma reação ao policentrismo feudal exatamente por haver nascido dele e adaptado-se a ele. De certo modo, teria sido essa a razão a luta pela delimitação das fronteiras das potências nacionais européias terem encontrado na Itália um palco de luta para as disputas pelo poder. Com isso, se até então a unidade italiana estava comprometida pela fraqueza de sua nacionalidade, com as disputas entre as potencias nacionais alhures, comprometia-se o próprio territorio italiano. Florença, Veneza, Milão, Nápoles etc eram governadas por inimigos entre si, cujas disputas giravam em torno de alianças entre inimigos externos, configurando-se num verdadeiro laboratório político. Germânia, França e Espanha, enquanto enfeixavam o poder em gigantescos aparelhos de Estado, tentavam abocanhar territórios da Itália, cuja fragilidade devia-se ainda ao importante fato do comércio italiano ter perdido espaço para portugueses e espanhóis após a Tomada de Constantinopla pelos turcos.

Florença, uma das principais repúblicas da Península, e importante palco de luta pelo poder, teria sido o maior laboratório político de todos os tempos. Foi nesse território que Maquiavel surgiria para tecer um projeto de unificação italiana, cujas referências residiriam na vigorosa tradição do Império Romano. A (re)fundação dessa ordem não poderia ser as já falidas instituições governamentais. A salvação viria em forma de homem, uma personalidade hábil para moldar, em torno de si, homens capazes de organização. Necessitava-se de um novo Rômulo, um novo fundador de estados, um novo príncipe.

03. Do autor

Nicolau Maquiavel (1469-1527) cresceu em meio à intricada rede política de Florença e tornou-se assessor junto a governos sempre às voltas com ameaças, guerras, alianças, oposições, execuções públicas que exigiam astúcia, cálculo político, ação rápida para esmagar os inimigos. Sua habilidade é reconhecida ao ponto de vir a exercer funções diplomáticas na Itália e fora dela. Conheceu todas as importantes lideranças européias, em especial, César Bórgia, duque de Valentino e filho do papa Alexandre VI, uma espécie de encarnação do príncipe que, na opinião de Maquiavel, morrera "cedo demais". A busca por um príncipe encarnado, por um novo Rômulo, significava a busca pela refundação de sua Itália. Bobbio, filósofo político italiano diz:

Quem quiser retroceder no tempo, de constituição em constituição, não chegará fatalmente ao momento em que a ordem nasce do caos, o povo da multidão, a cidade de indivíduos isolados e em luta entre si? Se em seu desenvolvimento histórico a cidade pode ser conhecida através de suas leis, de sua constituição (hoje diríamos ordenamento jurídico), voltando-se às origens não se encontram leis, mas homens, ou melhor, segundo a interpretação mais acreditada e aceita, o homem, o herói.

Na idade moderna, a mais elevada homenagem ao fundador de Estados e, portanto, o mais elevado reconhecimento do primado do governo dos homens sobre o governo das leis encontra-se não por acaso numa obra como O Príncipe de Maquiavel[1]

Bobbio usa a palavra primado e creio que não para fazer entender que o governo dos homens seja melhor que o governo das leis, mas apenas para mostrar que um Estado regido por leis deve sua fundação ao governo dos homens. A Itália precisava ser refundada[2] com um principado e só depois evoluir para uma República. Maquiavel sempre viu na pessoa do príncipe fundador de Estados alguém que deveria iniciar um processo que parte do governo dos homens e desemboca no governo das leis — (república ou regime de liberdade). Este é infinitamente melhor, conforme se extrai de sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1513-1520), mas não seria possível naquele momento. Uma república não nasce espontaneamente porque este é um tipo de governo da ordem, onde os naturais conflitos humanos são

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regulados por instituições. É na ordem que os conflitos são proveitosos. Aqui residem a grandeza de Maquiavel e a justa homenagem das palavras de seu epitáfio: Tanto nomini null um par elogium[3].

04. O mal em Maquiavel

Maquiavel fundamenta sua concepção do mal na análise da verità effettuale (verdade efetiva). A verità nos mostra que o mal ocorre em duas situações: no conflito sem ordem e na ordem sem conflito. Não é possível a vida humana sem a ausência da ordem. O caos sem alguma ordem levaria o homem à auto-destruição e, na melhor das hipóteses, ao que estava ocorrendo na sua Itália: a ausência de uma ordem estatal que deixava sua pátria à mercê de outros povos já "ordenados". O caos que precisa da ordem ganha uma conotação moralista — eu diria didática — nas seguintes descrições feitas por Maquiavel: "Os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro (...) Os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer."[4] "Os homens são sempre contrários aos empreendimentos onde exista dificuldade."[5] "Os homens são muito mais sujeitos às coisas presentes do que às passadas e, quando encontram o bem naquelas, alegram-se e nada mais procuram."[6] A fama de maldito que Maquiavel carrega tem a ver com um ditado popular que diz "a careta fica na cara de quem a fez". Eu acrescentaria uma indagação: E se essa careta for um desmascaro?

A vida humana também não é possível na ordem pura, na regulação absoluta do caos o homem passaria a ser uma criatura de vida apenas vegetativa. Maquiavel sentiu na pele o peso da ordem sobre si mesmo quando foi exilado, quando foi obrigado a viver longe da atividade política, entretendo-se com modorrentos jogos de cartas numa hospedaria de um pequeno vilarejo. Com essas pequenas liberdades, disse numa carta endereçada ao amigo Francesco Vettori, "desafogo a malignidade ao meu destino".[7]

05. Um passaporte

Cidade de San Casciano, ano de 1513. Maquiavel encontrava-se entediado e, segundo ele mesmo, num momento de má sorte, exilado numa pequena propriedade de sua família, num lugarejo de gente inculta. Seus dias se passavam, como já foi dito acima, numa seqüência de afazeres que só visavam desafogar sua malignidade. Às noites, entretanto, ocorria-lhe uma metamorfose impressionante, que ele relata nesse fragmento de carta ao amigo Vettori:

(...) Chegando a noite, volto à minha casa e entro no meu gabinete de trabalho. Na soleira, tiro as minhas roupas cobertas de sujeira e pó e visto as minhas vestes dignas das cortes reais e pontifícias. Assim, convenientemente trajado, visito as cortes principescas dos gregos e romanos antigos. Sou afetuosamente recebido por eles e me nutro do único alimento a mim apropriado e para o qual nasci. Não me acanho ao falar-lhes e pergunto das razões de suas ações; e eles, com toda sua humanidade, me respondem. Então, durante quatro horas, não sinto sofrimentos, esqueço todos os desgostos, não me lembro da pobreza e nem a morte me atemoriza; identifico-me inteiramente com eles.

E como Dante diz que compreender sem reter não dá origem a conhecimento, coloquei por escrito o que tirei desses encontros com eles e compus um opúsculo chamado De Principatibus (0 Príncipe), no qual aprofundo, da melhor forma possível, as minhas reflexões sobre o assunto; discutindo o que é um principado, quantos tipos de principados há, a maneira pela qual são obtidos, como são conservados e as razões pelas quais são perdidos.[8]

Esse opúsculo, resultado da metamorfose noturna que o transportava para as cortes, foi enviado ao então governante de Florença, Lorenzo de Médicis, como passaporte para um emprego. Convém salientar que era praxe da época entregar presentes aos governantes em troca de favores. De fato, na introdução do opúsculo, há uma solicitação para que Lorenzo olhe para baixo e perceba a injustiça de manter longe da política alguém com a experiência de um Maquiavel.

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06. Um livro de auto-ajuda

O Príncipe de Maquiavel é, em vários sentidos, um livro de auto-ajuda. Num primeiro nível destaca-se a figura do destinatário, Lorenzo de Médicis, que deve lê-lo como um manual de auto-ajuda na qualidade de governante cuja meta é a refundação da Itália.

O segundo sentido associa-se à condição social do autor. Um desempregado que escreve um pedido de retorno ao emprego; um cidadão despatriado que escreve um pedido de reunificação do sua pátria são, em certo sentido, pedidos de auto-ajuda.

O terceiro sentido que faz de O Príncipe um livro de auto-ajuda envolve a condição psicológica do autor. Enquanto escrevia, Maquiavel não vivia a pura expectativa de ser ajudado, pois o ato de escrever, em si mesmo, o ajudava a conviver com a paranóia, a solidão e o marasmo de seu exílio.

A junção dessas três características da obra cria uma fusão perfeita entre o que está sendo escrito e as circunstâncias que envolvem o escrito — fusão absoluta entre teoria e prática. O Príncipe é uma obra sobre a habilidade política que foi ela mesma objeto de uma habilidade política. Imaginemos um anunciante de currículos que, estando desempregado, envie seu próprio currículo ao empregador, informando-lhe que não se trata apenas de um currículo, mas de um produto que deve ser pago com um emprego. Ao empregador só restaria reconhecer a habilidade do candidato e uma negativa de emprego tomaria o aspecto moral de uma apropriação indébita. Maquiavel realizou esse tipo de manobra, mas não logrou êxito.

07. Uma obra renascentista

O que faz de O Príncipe uma obra tipicamente renascentista são as novas modelações ali expressas sobre a história e a fortuna. No medievo, vigora um modelo linear da história — inagurado por S. Agostinho. Segundo este, a linha da história começava com a criação do mundo, passava pelos pontos do pecado, da redenção e finalizava com o juízo final. Maquiavel sugere um modelo circular que permite lançar mão da recorrência dos fatos. O próprio movimento renascentista seria a origem e o telos dessa concepção na medida em que assume consistir numa recorrência histórica aos gregos.

Na análise da verità effettuali em seu rico laboratório político ele deduz que o comportamento do homem não muda e a história se desdobra pelo princípio da recorrência. Quem deseja o poder deve ter a habilidade para manter-se à frente do seu tempo, olhando com diligência para o passado a fim de prever e prover o futuro. Isolada a situação particular em suas múltiplas determinações e feitas as previsões dos desdobramentos prováveis, é possível ter algum controle sobre o fenômeno político. Esse método empírico-comparativo[9] valeu a Maquiavel o epíteto de fundador da ciência política, tal como a entende a modernidade.

O princípio da recorrência, entretanto, nos permite controlar um pouco menos da metade das nossas ações. O restante, que não pode ser previsto, constitui a fortuna. A fortuna vai exigir do príncipe não um saber mas uma virtù que consiste numa espécie de neutralidade moral. Só essa neutralidade moral permite a conformação com le qualità de'tempi; a adaptação a mudanças; a combinação do modo de agir com as particularidades do momento. Ora, o modelo medieval que representava a fortuna era uma roda — daí a expressão roda da fortuna, que indica o tempo girando cego e indefinidamente, inabalável aos apelos humanos, uma concepção ligada à idéia de predestinação. A fortuna, tal qual entende Maquiavel, é mulher, conforme ele mesmo escreve:

Julgo que é preferível ser arrebatado a cauteloso, porque a fortuna é mulher e convém, se a queremos subjugar, batê-la e humilhá-la. A experiência ensina que ela se deixa mais facilmente vencer pelos

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indivíduos impetuosos do que pelos frios. Como mulher que é, ama os jovens, porque são menos cautelosos, mais arrojados e sabem dominá-la com mais audácia.[10]

Esse modelo proposto por Maquiavel reporta-se aos gregos. Refere-se à deusa grega do destino, chamada Fortuna. Deusa que podia ser seduzida pelos homens corajosos, e viris — em Maquiavel, é o homem de virtù. Uma vez seduzida, a deusa presenteava o beneficiado com a cornucópia da fortuna. Desse modo a fortuna (destino) podia ser favorável a uns e a outros não.

08. Poder e metamorfose no Príncipe

Maquiavel afirma que o Príncipe deve aprender a ser raposa e leão. É curiosa a associação entre o fundador de Estados e a animalidade. Moisés (serpente), Teseu (touro), Rômulo (lobo). Efetivamente, o simbolismo desses animais é bastante rico e enseja um sem-número de questões. Poderíamos, por exemplo, encaminhar nossa análise para identificar a posição do Príncipe entre os seres metamorfósicos. Para tanto, poderíamos nos valer de um ensaio intitulado Massa e Poder, de Elias Canetti:

É digno de nota que ambas as formas mais marcadas assumidas pelos detentores de poder que conhecemos de civilizações mais antigas distingam-se por sua postura oposta em relação à metamorfose.

Em um dos pólos encontra-se o mestre das metamorfoses, capaz de assumir toda e qualquer forma a hora que quiser, seja a de animais, dos espíritos de animais ou dos espíritos dos mortos. O trickster, capaz de, pela metamorfose, enganar a todos, é uma figura popular na mitologia indígena norte-americana. Seu poder repousa nas incontáveis formas que ele pode assumir. Ele tanto chega quanto desaparece de repente; ele apanha inesperadamente, e somente se deixa apanhar de modo a poder escapar. O meio essencial com que controla seus feitos espantosos é sempre a metamorfose.

Um poder real, o mestre das metamorfoses alcança na qualidade de xamã. Em sua sessão, ele invoca espíritos aos quais submete; fala-lhes a língua, transforma-se num deles e é capaz de, à maneira deles, dar-lhes ordens. Transforma-se em pássaro ao empreender sua viagem pelo céu, e, na qualidade de animal marítimo, desce ao fundo do mar. Tudo lhe é possível; o paroxismo que atinge resulta da sucessão intensa e veloz de metamorfoses que o chacoalham até que, dentre elas, ele tenha escolhido aquela de que verdadeiramente necessita para seus propósitos.

O mestre das metamorfoses é aquele capaz das mais numerosas metamorfoses; se comparado à figura do rei sagrado - que está sujeito a centenas de restrições, devendo permanecer sempre no mesmo lugar, sempre idêntico a si mesmo, sem que ninguém possa aproximar-se dele ou mesmo, em muitos casos, olhá-lo -, vê-se que a diferença entre eles, reduzida a seu denominador comum, em nada mais consiste do que na postura oposta de ambos em relação à metamorfose. No primeiro caso, o do xamã, a metamorfose é intensificada e explorada ao máximo; no segundo, o do rei, ela é proibida e impedida, conduzindo ao seu total enrijecimento. O rei tem de permanecer em tal medida idêntico a si mesmo que não pode sequer envelhecer. Tem de resistir sempre com a mesma idade, maduro, forte e saudável; aos primeiros sinais da idade, a um primeiro cabelo branco ou a um esmorecimento de sua virilidade, ele geralmente é morto.

O caráter estático desse rei, proibido de metamorfosear-se, embora dele partam incessantes ordens a metamorfosear os outros, penetrou na essência do poder, de modo que a idéia que o homem moderno tem deste último foi decisivamente influenciada por ele. Aquele que não se metamorfoseia foi colocado numa determinada altura, num determinado lugar, delimitado com exatidão e imutável. Não lhe é permitido descer de sua altura, ir ao encontro das pessoas; ele "jamais falta para com a própria dignidade", mas decerto pode elevar os outros, nomeando-os para este ou aquele posto. Pode transformá-los, elevando-os ou rebaixando-os. Deve fazer a eles o que não é admissível que lhe aconteça. Ele, privado de toda metamorfose, metamorfoseia arbitrariamente as pessoas.[11]

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Apesar de O Príncipe e o xamã estarem numa faixa de seres metamórficos, este último, por ser uma figura assaz distante da cultura italiana do séc. XVI, é bem mais capaz de metamorfose que o primeiro. Nas suas metamorfoses, o Príncipe não deve atingir o paroxismo de um xamã, nem deve ser estático tal qual um rei sagrado. O Príncipe está portanto situado numa faixa intermediária entre o xamã e o rei sagrado. O próprio fato de enfatizar a metamorfose do leão afasta o Príncipe do xamã, pois o leão é o único animal que não precisa metamorfosear-se:

todos os reis gostariam de ter sido leões — O que admiravam e louvavam era o próprio ato de agarrar, seu êxito. Por toda parte, caracterizou-se como valentia e grandeza aquilo que repousava numa força amplamente superior.

O leão não precisa metamorfosear-se para obter sua presa; ele a consegue na qualidade dele mesmo. Antes de partir para o ataque, ele ruge, deixando-se reconhecer; único como é, ele pode revelar sua intenção, anunciando bem alto, de forma audível a todas as criaturas. (...) O poder, em seu cerne e seu ápice, despreza a metamorfose.

Há contudo, um segundo ato de poder, decerto não tão fulgurante, mas certamente não menos essencial. Em face da grandiosa impressão causada pelo agarrar, esquece-se de que, paralelamente a ele, verifica-se algo de igual importância: importante também é não se deixar agarrar.[12]

Nesse ponto podemos explorar o simbolismo do leão e da raposa sobre o prisma das regras do jogo da sobrevivência. O leão é o que agarra. A raposa é a que não se deixa agarrar. Na dicotomia agarrar/não se deixar agarrar, tem-se que os dois atos essenciais do poder consistem em agir como o leão e a raposa. Ambos, juntos, simbolizam o domínio das técnicas de ataque e de defesa, essenciais ao Príncipe na arte da guerra.[13] A síntese dessas duas figuras é representada pelo sol, que toca as criaturas com o fulgor dos seus raios, mas mantém-se intocável pela distância em relação a elas. Foram muitos os reis que se intitularam rei-sol.

Uma terceira interpretação desse simbolismo refere-se às relações entre ética e política. Elas são inseparáveis. Quando Canetti afirma que o homem moderno foi penetrado pela idéia da superioridade do estático, antecipa que o leão é o nosso modelo de ética. A expressão rei-leão soa digno em razão do ocidente haver rejeitado como um mal a ética da metamorfose. A moral moderna adotou a ética leonina, ou ética do rei-sagrado, ao ver como um bem o rígido, o forte, o permanente, o estático. Afirmar que o maquiavelismo é um mal é assumir uma simpatia pela figura do rei-sagrado ao tempo que uma antipatia pela ética da metamorfose.

09. A antipatia a Maquiavel

A antipatia a Maquiavel vem do medo e da insegurança da metamorfose do outro, da difusão de uma ética da metamorfose. O homem deve agir como um homem e não como um animal. Mas Maquiavel diz que o Príncipe deve agir às vezes como um homem e às vezes como um animal. Quando se abre essa perspectiva, o homem passa a olhar o outro com desconfiança porque não se sabe que animal um está representando para o outro. Abre-se aí um espaço de intranqüilidade que vem do receio de que os outros possam estar sempre fingindo ser o que não são. A segurança que o homem tem quando vive com outros homens advém da crença na igualdade, ou seja, na idéia de que, se somos animais, somos os mesmos animais, sejam esses lobos, cordeiros ou macacos. Mas a idéia da metamorfose trazida por Maquiavel coloca os homens numa situação zoomúltipla que produz medo e insegurança. É esse medo e essa insegurança que geram a antipatia ao autor de O Príncipe. Trata-se da mesma antipatia que se sente ao ler Canetti, Hobbes, Nietzsche e outros que vêem a metamorfose como característica inerente ao homem. Mas a antipatia que emprestou a Maquiavel o termo maquiavelismo nada mais é que é a perversão da leitura descontextualizada de sua obra. Maquiavel não era nem poderia ser maquiavélico.

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10. Maquiavel e a filosofia política

Arendt elege Maquiavel "o único teorista político pós-clássico que, num extraordinário esforço de restaurar a antiga dignidade da política, percebeu o abismo entre a vida resguardada do lar e a impiedosa vulnerabilidade da vida na polis"[14].

Efetivamente, a vida do zoon politikon na polis grega passa pela idéia de que a essência do homem revela-se pelo seu "quem" — ou de seus "quems". Maquiavel, ao inaugurar a idéia da metamorfose humana na vida política, faz com que o manejo da palavra (words) permita ao homem armar-se não apenas de espadas (swords) mas de garras, bicos, venenos, asas e tudo que permite ao zoon politikon não ser apenas um, mais muitos zoons.

Cassirer define O Príncipe como um livro que "não é moral nem imoral: é um livro técnico"[15] e, desse modo, enfatiza seu aspecto funcional, ao tempo em que lhe tira a originalidade, porquanto outros livros como Breviário dos políticos, de Jules Mazarin, são bem mais ricos de técnicas concernentes à vida política.

Rousseau é polêmico ao raciocinar que "supondo-se os súditos sempre perfeitamente submissos, o interesse do príncipe seria então que o povo se tornasse potente a fim de que essa força, sendo a sua, o tornasse temível aos vizinhos, mas como tal interesse só é secundário e subordinado, e como as duas suposições se mostram incompatíveis, parece natural que os príncipes sempre prefiram a máxima que lhes seja mais imediatamente útil.(...) É o que Maquiavel fez ver com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as, grandes, aos povos."[16]

***

11. Trechos de O Príncipe

Dedicatória da obra

Ao magnífico Lorenzo, filho de Piero de Médicis

As mais das vezes, costumam aqueles que desejam granjear as graças de um príncipe trazer-lhe os objetos que lhes são mais caros, ou com os quais o vêem deleitar-se; assim, muitas vezes, ele é presenteado com cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e outros ornamentos dignos de sua grandeza. Desejando eu oferecer a Vossa Magnificência um testemunho qualquer de minha obrigação, não achei, entre os meus cabedais, coisa que me seja mais cara ou que tanto estime quanto o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido por uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas; as quais, tendo eu, com grande diligência, longamente cogitado, examinando-as, agora mando a Vossa Magnificência, reduzidas a um pequeno volume.

E conquanto julgue indigna esta obra da presença de Vossa Magnificência, não confio menos em que, por sua humanidade, deva ser aceita, considerado que não lhe posso fazer maior presente que lhe dar a faculdade de poder em tempo muito breve aprender tudo aquilo que, em tantos anos e à custa de tantos

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incômodos e perigos, hei conhecido. Não ornei esta obra e nem a enchi de períodos sonoros ou de palavras empoladas e floreios ou de qualquer outra lisonja ou ornamento extrínseco com que muitos costumam descrever ou ornar as próprias obras; porque não quis que coisa alguma seja seu ornato e a faça agradável senão a variedade da matéria e a gravidade do assunto. Nem quero que se repute presunção o fato de um homem de baixo e ínfimo estado discorrer e regular sobre o governo dos príncipes; pois os que desenham os contornos dos países se colocam na planície para considerar a natureza dos montes, e para considerar a das planícies ascendem aos montes, assim também para conhecer bem a natureza dos povos é necessário ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes é necessário ser do povo.

Tome, pois, Vossa Magnificência este pequeno presente com a intenção com que eu o mando. Se esta obra for diligentemente considerada e lida, Vossa Magnificência conhecerá o meu extremo desejo que alcance aquela grandeza que a Fortuna e outras qualidades lhe prometem. E se Vossa Magnificência, do ápice da sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo, saberá quão sem razão suporto uma grande e contínua má sorte.

Do método empírico

(...) como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas do que pelo que delas se possa imaginar.[17]

Sobre como fazer benefícios e malefícios

(...) ao apoderar-se dum Estado, o conquistador deve determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma só vez, para não ter que renová-las dia a dia. Deste modo, poderá incutir confiança nos homens e conquistar-lhes o apoio beneficiando-os. Quem age por outra forma, ou por timidez ou por força de maus conselhos, tem sempre necessidade de estar com a faca na mão e não poderá nunca confiar em seus súditos, porque estes, por sua vez, não se podem fiar nele, mercê das suas recentes e contínuas injúrias. As injúrias devem ser feitas todas de uma vez, a fim de que, tomando-se-lhes menos o gosto, ofendam menos. E os benefícios devem ser realizados pouco a pouco, para que sejam mais bem saboreados.[18]

Do comportamento humano

Os homens são sempre contrários aos empreendimentos onde exista dificuldade.[19]

Será melhor ser amado que temido ou vice-versa. Responder-se-á que se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, quando se tenha que falhar numa das duas. É que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizeres bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como disse acima, desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte. E o príncipe, se confiou plenamente em palavras e não tomou outras precauções, está arruinado. Pois as amizades conquistadas por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário. E os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, devido a serem os homens pérfidos, é rompido sempre que lhes aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca. Deve, portanto, o príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio, pois é fácil ser ao mesmo tempo temido e não odiado, o que sucederá uma vez que se abstenha de se apoderar dos bens e das mulheres dos seus cidadãos e dos seus súditos.[20]

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Nas nações de todos os homens, máxime dos príncipes, onde não há tribunal para que recorrer, o que importa é o êxito bom ou mau. Procure, pois, um príncipe, vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados, e o mundo é constituído pelo vulgo, e não haverá lugar para a minoria se a maioria não tem onde se apoiar.[21]

(...)os homens são muito mais sujeitos às coisas presentes do que às passadas e, quando encontram o bem naquelas, alegram-se e nada mais procuram, antes, tomarão a defesa do príncipe se este não falhar nas outras coisas às suas promessas.[22]

Da virtù

Se se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante.[23]

(...) existem duas formas de se combater: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes a primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o animal e o homem. Isto foi ensinado à socapa aos príncipes, pelos antigos escritores, que relatam o que aconteceu com Aquiles e outros príncipes antigos, entregues aos cuidados do centauro Quiron, que os educou. É que isso (ter um preceptor metade animal e metade homem) significa que o príncipe sabe empregar uma e outra natureza. E uma sem a outra é a origem da instabilidade. Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços, e a raposa, contra os lobos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos.[24]

Do princípio da recorrência histórica

O príncipe deve ler histórias de países e considerar as ações dos grandes homens, observar como se conduziram nas guerras, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, para poder fugir destas e imitar aquelas.[25]

Da fortuna

(...) penso poder ser verdade que a fortuna seja árbitra de metade de nossas ações, mas que, ainda assim, ela nos deixe governar quase a outra metade. Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destróem as árvores, os edifícios, arrastam montes de terra de um lugar para outro: tudo foge diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder obstar-lhe e, se bem que as coisas se passem assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um canal e o seu ímpeto não será tão livre nem tão danoso. Do mesmo modo acontece com a fortuna; o seu poder é manifesto onde não existe resistência organizada, dirigindo ela a sua violência só para onde não se fizeram diques e reparos para contê-la.[26]

(...) se vê hoje o sucesso de um príncipe e amanhã a sua ruína, sem ter havido mudança na sua natureza, nem em algumas das suas qualidades. Creio que a razão disso, conforme o que se disse anteriormente, é que, quando um príncipe se apóia totalmente na fortuna, arruína-se segundo as variações daquela. Também julgo feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as particularidades dos tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos a sua maneira de proceder.[27]

Fontes

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ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução por Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 1991.BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano, São Paulo: Loyola, 1991.BOBBIO, Norberto, BOVERO, Michelangelo [org.]. Teoria Geral da Política; A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. 2. ed. Tradução por Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000. 717 p.CANETTI, Elias. Massa e poder. Trad. por Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 487p.CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Lisboa, Europa-América, 1961.MACHIAVELLLI, Nicolo. Maquiavel: O Príncipe, escritos políticos. 5 ed., tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1991, Coleção Os Pensadores.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e Notas de Paul Arbousse Bastide e Lourival Gomes Machado. 4ª ed. SP: Nova Cultural, 1987. Volumes I e II. (Os pensadores).SADEK, Maria Tereza. Maquiavel, a política como ela é. São Paulo: FTD, 1996. 94 p. (Coleção Por outro lado)

Notas

[1] Norberto Bobbio. O Futuro da Democracia. p. 179-80.[2] Não posso deixar de pensar se há que refundar ou fundar um Estado-Brasil. Quem encarnaria o papel do herói?[3] Traduzido do latim: Não há elogios à altura de sua reputação.[4] Nicolò Machiavelli. O Príncipe. p. 70.[5] Ibidem, p. 40.[6] Ibidem, p. 101.[7] Machiavel, N. Lettres familières N. Machiavel/ F. Vettori, In: Oeuvres complètes. Paris, Gallimard, 1952. apud Mª Tereza Sadek. Maquiavel, a política como ela é. São Paulo: FTD. 1996. p. 23.[8] Idem, Ibidem.[9] Obras como O Breviário do Políticos, do Cardeal Mazarin (1602-1661) e O Espelho dos Magistrados, de William Baldwin inspiram-se em método similar.[10] Nicolò Machiavelli. O Príncipe. p. 105. [11] Elias Canetti. Massa e poder. p 381-82.[12] Ibidem, p. 207.[13] Cf. a curiosa coincidência dos termos guerra e garra.[14] Hannah Arendt. A condição humana. p. 45.[15] Ernst Cassirer. O Mito do Estado. p. 170.[16] Rousseau. Do contrato social. p. 89.[17] Nicolò Machiavelli. op. cit. p. 63. [18] Ibidem, p. 38. [19] Ibidem, p. 43. [20] Ibidem, p. 70. [21] Ibidem, p. 75. [22] Ibidem, p. 101. [23] Ibidem, p. 64. [24] Ibidem, p. 73.[25] Ibidem, p. 60. [26] Ibidem, p. 103. [27] Ibidem, p. 104.

(c) 2000. Israel Alexandria.

FRAGMENTOS DE TESES

A revolução e a liberdade aparecem como parâmetros de elaboração de um novo rumo e a experiência de um novo começo, constituído e instituído pela atividade humana na história: a experiência de ser livre. Tal possibilidade pode ser revista quando localizamos alguns vestígios filosóficos da liberdade e da revolução, como no caso do florentino Maquiavel.3

No livro O príncipe ou Do principado, Maquiavel argumenta que o príncipe deve deixar o seu povo e o seu reinado preparado para enfrentar os conflitos e os tempos difíceis e não apenas para festejar os bons tempos. O príncipe deve usar de excelentes estratégias para proteger, conservar e defender o seu povo e o seu reinado por meio da sua própria virtude, isto é, da coragem e da audácia no agir. Nas palavras de Maquiavel as “...defesas somente são boas, certas e douradoras quando dependem de ti próprio e da tua virtude” (MACHIAVELLI, 1995, 136).

Segundo Hannah Arendt, a virtù em Maquiavel é “qualidade humana especificamente política, não possui a conotação de caráter moral da virtus romana e tampouco a de uma excelência moralmente neutra à maneira da arete grega. A virtú é a resposta que o homem dá ao mundo ou, antes, à constelação da fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se oferece a ele – a sua virtú –; a interação entre elas indica uma

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harmonia entre o homem e mundo – agindo um sobre o outro e realizando conjuntamente – tão remota (ou de outra espécie) do indivíduo e da competência dos peritos. (ARENDT, 1992, 182).

Seguindo os rastros de Maquiavel, pode-se argumentar que os homens da revolução são os cultivadores de “si próprio e da virtude” como meio para alcançar a liberdade com a coragem e a audácia dos jovens que dominam a sorte (cf. MACHIAVELLI, 1995, 142) e enfrentam as circunstâncias e os infortúnios, inventando e instituindo novas formas de organização e governo (um príncipe novo), como Maquiavel imaginou para a Itália a fim de libertá-la das mãos dos bárbaros (cf. MACHIAVELLI, 1995, 143-146). Vestígios de uma nova ordem e a criação de um novo corpo político e sua conservação são as prefigurações de Maquiavel:

“Os que, por suas virtudes, semelhantes às que aqueles tiveram, tornaram-se príncipes, conquistaram o principado com dificuldade, mas com facilidade o conservam; e os obstáculos que se lhes apresentam no conquistar o principado, em partes nascem das novas disposições e sistemas de governo que são forçados a introduzir para fundar o seu Estado e estabelecer a sua segurança. Deve-se considerar não haver coisa mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais perigosa de manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas ordens” (MACHIAVELLI, 1995, 35).

Nas leituras de Hannah Arendt, o que torna Maquiavel um pensador prematuro da revolução e tão importante para a mesma são suas prefigurações sobre “uma nova teoria política” (ARENDT, 1990, 29). Assim argumenta Hannah Arendt:

“O ponto relevante aqui não é nem mesmo que ele já se mostre tão familiarizado com os elementos mais marcantes das revoluções modernas, com a conspiração e a luta de facções, com o incitamento do povo à violência, com os distúrbios e a derrocada das leis que acabarão por lançar num torvelinho todo corpo político, e, finalmente, com a oportunidade que as revoluções oferecem aos adventícios, aos hominnes novi de Cícero, aos condottieri de Maquiavel, que emergem das camadas inferiores para o esplendor do mundo político, e da insignificância para o poder ao qual primeiramente tinham estado sujeitos. O mais importante em nosso contexto é que Maquiavel foi o primeiro a visualizar a ascensão de um domínio puramente secular, cujas leis e postulados de ação eram independentes dos ensinamentos da Igreja, em particular, e, em geral, dos padrões morais, transcendendo à esfera dos assuntos humanos. Foi por essa razão que ele insistia que as pessoas que ingressavam na política deviam, em primeiro lugar, aprender „a não serem boas‟, isto é, a não agirem segundo os preceitos cristãos” (ARENDT, 1990, 29-31).

O que o distingue dos revolucionários, na visão de Hannah Arendt: “... foi que ele via sua instituição – criação de uma nova Itália, de um novo Estado-nação, italiano, organizado segundo os modelos francês e espanhol – como uma rinovazione, e renovação era, para ele, a única alterazione a salute, a única alteração benéfica que era capaz de conceber. Em outras palavras, pathos especificamente revolucionário do absolutamente novo, de um início que justificasse começar a contar o tempo a partir do evento revolucionário, era-lhe totalmente estranho. No entanto, mesmo a esse respeito, ele não estava tão distanciado dos seus sucessores do século XVIII como pode aparecer” (ARENDT, 1990, 29-30).

A argumentação de Hannah Arendt visualiza na teoria política de Maquiavel a mudança, a renovação e um novo corpo político com uma nova visão de mundo – do príncipe cristão ou do “bom governo”5 – ao príncipe secular que deve governar segundo os princípios da coragem e da audácia adquiridas pela ação virtuosa, que visa à glória do governante que sabe administrar os conflitos, por meio de uma nova máxima: “Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprende a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade” (MACHIAVELLI, 1995, 90). O príncipe não deve necessariamente ser bom para governar, mas saber usar da bondade quando necessária para governar. A bondade passa a ser um instrumento de governo nas mãos do príncipe, que pensa a política liberada da

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visão moralizante e religiosa do universo cristão. A política de Maquiavel se despe da metafísica escolástica e se configura num novo imaginário político e cosmológico que, nas palavras de Alexandre Koyré, “trata-se da substituição do teocentrismo medieval pelo ponto de vista humano; da substituição, pelo problema moral, do problema metafísico e, também; do problema religioso; da substituição do problema da salvação pelo ponto de vista da ação. Ainda não é a expressão do fato de que „o espírito da Idade Média‟ esteja à beira do esgotamento, agonizando” (KOYRÉ, 1991, 18). Vestígios das revoluções se configuram em Maquiavel pela possibilidade de uma nova ordem política, isto é, a experiência da espontaneidade se manifesta nas fundações de novos espaços públicos de ação, instituídos pelas teias das relações humanas, para assegurar o aparecimento da liberdade justificada pelo uso da violência, como meios para atingir uma finalidade suprema (cf. ARENDT, 1992, 185).

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