Trabalho Final

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM O INTERPRETANTE EMOCIONAL NA INTERAÇÃO DAS LINGUAGENS VISUAL E VERBAL EM CHAPEUZINHO AMARELO, LIVRO INFANTIL DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA E ZIRALDO MONCLAR GUIMARÃES LOPES NITERÓI 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE LETRAS

DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

O INTERPRETANTE EMOCIONAL NA INTERAÇÃO DAS LINGUAGENS

VISUAL E VERBAL EM CHAPEUZINHO AMARELO, LIVRO INFANTIL

DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA E ZIRALDO

MONCLAR GUIMARÃES LOPES

NITERÓI

2011

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MONCLAR GUIMARÃES LOPES

O INTERPRETANTE EMOCIONAL NA INTERAÇÃO DAS LINGUAGENS

VISUAL E VERBAL EM CHAPEUZINHO AMARELO, LIVRO INFANTIL

DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA E ZIRALDO

Artigo apresentado ao curso de Pós-

graduação em Letras da Universidade

Federal Fluminense, como requisito final

para a aprovação na disciplina de Teoria e

Ensino de Leitura, ministrada no segundo

semestre de 2011. Área de Concentração:

Estudos da Linguagem. Subárea: Língua

Portuguesa. Linha de Pesquisa: Teoria do

Texto, do Discurso e da Interação.

Profa Dra Beatriz Feres

Niterói

2011

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O interpretante emocional na interação das linguagens

visual e verbal em Chapeuzinho Amarelo, livro infantil de

Chico Buarque de Holanda e Ziraldo

Monclar Guimarães Lopes

Resumo

Este artigo visa à análise de Chapeuzinho Amarelo, livro de literatura infantil de

Chico Buarque de Holanda e Ziraldo, sob a ótica da Semiótica Peirceana.

Argumentamos que, em muitos casos, nesse tipo de obra, a interação entre as

linguagens visual e verbal tem como efeito mais proeminente um interpretante

emocional, isto é, uma qualidade de sentimento. Partindo dos conceitos semióticos

da primeiridade, a saber, o quali-signo icônico e o interpretante emocional,

analisamos a obra sob um olhar sensível. Paralelamente, refletimos sobre a

necessidade da elaboração de novas abordagens de ensino que promovam a

interpretação de textos multissemióticos da palavra e da imagem.

Palavras-chave: literatura infantil, semiótica, interpretação de imagens

1. Introdução

Embora o livro de literatura infantil contemporâneo constitua-se em uma

narrativa multissemiótica, composta basicamente pela interação das linguagens

visual e verbal, a tradição dos estudos acerca do assunto fez-se,

prioritariamente, sobre o plano de expressão verbal, até mesmo pelo escopo

dos estudos linguísticos, que consideravam apenas a linguagem verbal como

texto. Nas últimas décadas, em virtude tanto dos novos recursos tecnológicos

quanto dos novos usos da imagem na publicidade, cinema e afins, o estudo do

plano de expressão visual começou a ter seu espaço de importância e seu

devido reconhecimento ao reconhecer a imagem enquanto estratégia na

composição de textos ou como texto propriamente dito.

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Visando a uma tipologia para os livros infanto-juvenis ilustrados,

Nikolajeva e Scott (2011), sob a luz tanto da teoria semiótica de Peirce quanto

a de outros autores cujo foco é a análise intersemiótica da palavra e da

imagem, elaboram uma categorização bastante esclarecedora acerca das

diferentes funções das imagens nos livros ilustrados. É evidente que, em

grande parte das obras infanto-juvenis, sobretudo as contemporâneas, a

imagem não apenas ilustra, isto é, exemplifica o que está no plano de

expressão verbal, mas também elabora a própria narrativa, o que, por sinal,

poder-nos-ia fazer questionar os próprios termos “livro ilustrado”, “história

ilustrada”, já que a imagem nem sempre é uma redundância do que está

escrito. Inclusive, é por esse motivo que, no título deste trabalho, ambos autor

do texto escrito (Chico Buarque de Holanda) e ilustrador (Ziraldo) estão em pé

de igualdade, pois, de fato, conjuntamente elaboram a narrativa.

A hipótese sobre a qual este trabalho se erige é a de que, em muitos

casos, no livro infantil, a interação entre as linguagens visual e verbal tem como

efeito mais proeminente um interpretante emocional, isto é, uma qualidade de

sentimento. Não obstante, a qualidade de sentimento a que nos referimos não

é aquela cuja origem se dá apenas através da imagem do livro infantil, visto

que ela já é constituída sob uma orientação estética, mas, sim, na

interseção/interação das duas linguagens, aproximando-nos, em sua essência,

ao que Peirce chamou primeiridade, mediante o estranhamento que lhe é

peculiar, muito próximo ao sonho e à poesia. A história infantil cria mundos

paralelos e, por conseguinte, constrói novas formas de pensar e ver não

somente esse novo mundo, fabuloso e imaginário da narrativa, mas o nosso

próprio universo. A criança lê, imagina, sonha, sente, emociona-se – à beira da

ira e do compadecimento absoluto –, aprende e, por fim, espelha esse

aprendizado em seu próprio mundo. Por esse motivo, os livros infantis são

fonte de primeiridade, são nascedouros da experiência estética, que é base de

toda a cognição humana. Para Peirce (apud SANTAELLA, 2009), a estética é um

primeiro, que está na base da ética, que é um segundo, que, por sua vez, está

na base da lógica, um terceiro. Ou seja, somos, assim como afirmam Greimas e

Courtés (2008), sede das paixões, interpelados prioritariamente pelo universo

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sensível, mas sob a crença da existência de uma racionalidade imparcial e

objetiva.

Nessa perspectiva, ao compreender o ser humano como um ente, a

priori, sensível, defendemos fazer parte de um letramento adequado a

elaboração de novas abordagens de ensino que levem em consideração outras

semioses – além da palavra – como instâncias igualmente significativas na

composição dos textos. Muito embora este trabalho não tenha esse fim – o de

elaborar uma abordagem aplicada ao ensino –, ele suscita a reflexão sobre a

necessidade da construção de novos paradigmas nesse campo.

2. O processamento da palavra e da imagem

Fodor (1983 apud KENEDY, 2010), em sua concepção da modularidade

da mente, dissemina a ideia de que a mente humana divide-se em módulos

especializados na execução de tarefas específicas, os quais, por sua vez, são

governados por suas próprias leis e princípios. Com efeito, tal hipótese tem sido

sustentada por inúmeras evidências empíricas, uma vez que é possível mapear

diferentes tipos de atividades mentais em áreas bem específicas do cérebro.

Nessa perspectiva, estímulos visuais, no que tange à imagem, são processados

diferente e separadamente de estímulos linguísticos, ponto de vista

razoavelmente evidente, uma vez que, pela nossa experiência de leitura, o

processamento não é simultâneo. As abordagens de leitura do plano verbal e

do visual se diferem, de modo que analisamos primeiro um, depois o outro.

Talvez, inclusive, isso represente uma das grandes dificuldades na elaboração

de abordagens que conjuguem a análise de ambos textos visual e verbal, até

mesmo porque a maioria das pesquisas disponíveis parecem priorizar ou uma

ou outra linguagem.

Contudo, a despeito da não simultaneidade das linguagens, não

podemos negar que, uma vez ambas processadas, elas se conjugam num todo

significativo. Caso contrário, texto verbal e visual constituiriam textos distintos.

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É exatamente nesse momento pós-processamento em que se dá a nossa

análise. Segue uma ilustração:

Figura 1 – página 2 e 3 de Chapeuzinho Amarelo

inha medo de trovão. Minhoca, pra ela, era cobra. E nunca apanhava sol porque tinha medo da sombra. Não ia pra fora pra não se sujar.

Não tomava sopa pra não ensopar. Não tomava banho pra não descolar. Não falava nada pra não engasgar. Não ficava em pé com medo de cair. Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo.

Transcrição 1 – página 2 de Chapeuzinho Amarelo

Acima, temos parte da descrição psicológica de Chapeuzinho Amarelo,

uma menina que nos é apresentada como o paroxismo do próprio medo. A

princípio, pode-nos parecer que a imagem serve apenas como uma redundância

T

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do texto, na medida em que temos, na ilustração, muitos dos medos já citados

no plano verbal. No entanto, a representação dada por Ziraldo reelabora o

próprio texto escrito. Observemos que os medos são ilustrados de modo

emaranhado, numa penumbra, acrescidos de outros elementos não presentes

no texto verbal, como o bode, as aranhas e as formas espirais não

representativas. Não se trata aí, obviamente, de um mundo real, tangível, mas

mental, imaginário de Chapeuzinho. A representação assemelha-se ao mundo

dos sonhos e, por esse motivo, a imagem nos interpela de modo diferente. A

percepção torna-se mais detida e cuidadosa, causa-nos certo estranhamento.

Além disso, os próprios medos de Chapeuzinho estão representados com mais

vivacidade e cor do que a própria personagem, que se apresenta descolorida e

imóvel sobre sua cama. São nessas similitudes entre os dois planos de

expressão que, uma vez conjugados, tem-se como efeito de sentido um

interpretante emocional, uma qualidade de sentimento, em nosso ponto de

vista.

3. O quali-signo icônico e o interpretante emocional na semiótica

de Peirce

De base fenomenológica, a semiótica estabelece-se como uma quase-

ciência capaz de investigar os diferentes modos como apreendemos qualquer

coisa que esteja disponível à mente, desde um cheiro, uma cor, um ruído, etc.

Segundo Santaella (2002), a semiótica de Peirce prescreve uma gramática que

nos fornece as definições e classificações para a análise de todos os tipos de linguagens, signos, sinais, códigos etc., de qualquer espécie e de tudo que está neles implicado: a representação e os três aspectos que ela engloba, a significação, a objetivação e a interpretação. Isso assim se dá porque, na definição de Peirce, o signo tem uma natureza triádica, quer dizer, ele pode ser analisado:

• em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no seu poder para significar;

• na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa; e

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• nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores, isto é, nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus usuários.

Esses três eixos descritos dividem-se, ainda, em mais outras relações, a

saber: 1) a significação em primeiridade, secundidade e terceiridade; 2) a

objetivação em objetos imediatos e objetos dinâmicos; 3) a interpretação em

interpretante imediato, interpretante dinâmico e interpretante final. Uma vez

que nossa análise se aterá a apenas duas dessas categorias, a primeiridade –

no nível da significação – e o interpretante dinâmico – no nível da interpretação

–, não forneceremos uma explicação detalhada das outras categorias, até

mesmo pela extensão e especificidade que cabe ao tipo de trabalho cientifico

em que se inserem os artigos.

3.1. A primeiridade e os quali-signos icônicos

Segundo Santaella (2002, pag 7), a primeiridade aparece em tudo que

estiver relacionado a acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade,

liberdade, mônada. Nesse paradigma, por primeiridade, podemos entender o

primeiro contato de uma mente com um objeto cuja representação nunca

esteve em curso. Uma boa analogia é a comparação aos primeiros contatos que

um bebê tem com o mundo: a primeira vez em que vê as coisas, em que sente

um gosto, um cheiro, etc. Grosso modo, um primeiro é um estado de surpresa,

de grau máximo de sensação e mínimo de intelecção. Estamos diante de um

“novo em folha”.

Nessa perspectiva, é próprio da arte, sobretudo a contemporânea, a

sugestão da primeiridade ao promover-se a temporária suspensão da intelecção

do intérprete. Filmes cujos desfechos são supressos, peças de teatro cujos

personagens selecionam um suposto espectador e desnudam-no em frente aos

demais, instalações de arte compostas de carne crua putrefata, entre outros,

são exemplos de suscitação à primeiridade, ao conhecido estado de arte, em

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que o sentimento e a originalidade são elevados de modo a causar

estranhamento.

De maneira análoga, Zilberberg (2002), sob uma orientação tensiva da

semiótica greimasiana, reconhece na mente humana dois eixos: um da

intelecção e outro do sensível, sendo este preponderante sobre aquele, na

medida em que, nessa perspectiva, a afetividade – no sentido que é próprio de

afetar – é promovida ao centro do discurso. Logo, Zilberberg (2002) mostra-se

em consonância com o ponto de vista de Peirce, pois, para ambos, o

sentimento e a qualidade são um primeiro.

Enquanto, na primeiridade, temos o momento em que o percepto se

confronta com o novo, nos quali-signos icônicos, temos a representação da

sensação que é deixada nessa confrontação. Grosso modo, temos quali-signos

icônicos quando a qualidade funciona como signo, ou seja, quando ela, sob

certo aspecto ou modo, representa algo para alguém.

É importante ressaltar que há presença de quali-signos icônicos toda vez

que, na relação com o objeto, o signo apresentar o poder de sugerir e

evocar, isto é, quando ele se reporta a seu objeto através de certos traços de

similaridade. Mais uma vez, reporta-se, mas não representa, não está “no

lugar de”. Como ilustração, podemos tomar o seguinte exemplo de Santaella

(2002, pag 17):

Quando a cor azul-clara lembra o céu ou os olhos azuis límpidos de uma criança, ela só pode lembrá-los porque há uma semelhança na qualidade desse azul com o azul do céu ou dos olhos. O quali-signo, ou ícone, só pode sugerir ou evocar algo porque a qualidade que ele exibe se assemelha a uma outra qualidade.

Peirce, ainda, dividiu os signos icônicos em três níveis (hipoícones):

imagem (quando a relação de semelhança se dá no nível da aparência – por

exemplo, a fotografia nos dá a impressão de estarmos diante da pessoa como

ela é no mundo real), diagrama (quando a semelhança se dá nas relações

internas – por exemplo, a planta de uma casa em relação à própria casa) e

metáfora (quando a similaridade se dá no significado do representante e do

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representado – por exemplo, a atribuição do lobo, um animal agressivo e

selvagem, como a representação do próprio medo).

3.2. O interpretante emocional

Na teoria de Peirce, o interpretante é o terceiro elemento da tríade de

que o signo se constitui. Representa o efeito interpretativo que o signo produz

em uma mente real ou meramente potencial e também se divide em uma

relação triádica: interpretante imediato (trata-se do potencial interpretativo do

signo, ainda em nível abstrato), interpretante dinâmico (que se refere ao efeito

que o signo efetivamente produz em um intérprete) e interpretante final (que

se refere ao resultado interpretativo a que todo intérprete estaria destinado a

chegar se os interpretantes dinâmicos do signo fossem levados até o seu limite

último).

No que tange ao interpretante dinâmico, este pode se dar de acordo com

as três categorias formais de Peirce – primeiridade, secundidade e terceiridade

–, subdividindo-se em três níveis: interpretante emocional, energético e lógico.

É exatamente no primeiro nível, no interpretante emocional, que se baseia toda

nossa análise.

Segundo Santella (2002, pag 24),

o primeiro efeito que um signo está apto a provocar em um intérprete é uma simples qualidade de sentimento, isto é, um interpretante emocional. Ícones tendem a produzir esse tipo de interpretante com mais intensidade: músicas, poemas, certos filmes trazem qualidades de sentimento para o primeiro plano.

4. Análise

A história de Chapeuzinho Amarelo representa o paroxismo do medo em

uma criança. Sob a pele de um lobo, seu maior medo quase lhe impede o

próprio devir, a ponto de fazê-la hesitar no curso de sua própria narrativa.

“Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo”.

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Contudo, como já é esperado, em seu desfecho, a personagem consegue

vencer o próprio medo, o que confere à história um valor moral, ao ensinar a

criança que grande parte de seus medos não passam de imaginação.

Como na maioria dos livros infantis, a história é construída tanto no

plano de expressão verbal quanto no visual. Porém, ao contrário do que se

espera, este último não é mera redundância do verbal, pois ele não só reforça,

mas elabora a própria narrativa, como observamos nos dois subtópicos que

seguem.

4.1. O devir de Chapeuzinho no plano de expressão visual

Lobo (medo)

Chapeuzinho brincar, interagir Amarelo com os colegas

Gráfico 1 – o devir de Chapeuzinho Amarelo

Consideremos o gráfico acima como a síntese do devir de Chapeuzinho

Amarelo. De fato, podemos depreender que o objetivo maior da personagem é

vencer seu próprio medo para poder brincar e interagir com os demais, afinal, o

medo impede-lhe a felicidade. Nesse ponto de vista, a linha contínua

representa o percurso almejado por Chapeuzinho e a tracejada, o obstáculo

que se encontra em seu curso, o qual deverá ser vencido para a obtenção de

seu objetivo.

No plano de expressão visual, do início da história até o limiar de seu

clímax, Chapeuzinho Amarelo se posiciona sempre à esquerda e o lobo, à

direita. Embora os personagens nem sempre se apresentem nas mesmas

páginas, a constante presença do lobo, do medo, está sempre marcada no

olhar de Chapeuzinho. Observe a figura:

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Figura 2 – páginas de 1, 6, 7, 8 e 9 de Chapeuzinho Amarelo

Sabendo que a sequência de imagens da esquerda para direita

representa o curso da narrativa, sendo, no caso, a esquerda o presente e a

direita o futuro, inferimos que Chapeuzinho olha sempre em direção a este

último, onde se encontra a encarnação de seu medo, o lobo. Chapeuzinho sabe

que precisa enfrentá-lo, mas hesita em fazê-lo. A hesitação se apresenta em

seu próprio corpo, nas páginas 6 e 8, momento em que olhar e corpo se

apresentam em posições diametralmente opostas, o olhar ao futuro e o corpo

ao passado. Cria-se, nesse momento, uma sensação de intervalo, de espera. A

narrativa de Chapeuzinho está truncada, um aspecto apresentado não só na

imagem, mas também no plano verbal, haja vista o farto uso do pretérito

imperfeito.

No paradigma semiótico, compreendemos as relações acima descritas

como icônicas, como quali-signos. O fato de a esquerda e a direita serem

representações de temporalidade apresenta, em suas relações internas,

semelhanças com a própria sequência da leitura escrita, assim como a posição

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do corpo de Chapeuzinho carrega semelhanças com o estado psicológico da

personagem. Como afirma Peirce, são hipoícones de função diagramática e de

função metafórica, respectivamente.

Em se tratando do desfecho da história, uma vez já enfrentado e vencido

o obstáculo, Chapeuzinho ocupa a posição à direita do lobo, que passa a fazer

parte de seu passado. Observe a figura:

Figura 3 – páginas 18, 19, 24 e 25 de Chapeuzinho Amarelo

Nas duas primeiras páginas da figura acima, 18 e 19, temos o lobo

furioso, pois fora ignorado e subestimado por Chapeuzinho. Embora ele grite

em sua direção, ele se encontra no passado da personagem, que já não lhe dá

nenhuma atenção. A posição de Chapeuzinho, agora, é a favor da narrativa.

Seu semblante é leve e descontraído.

18 19

24 25

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Paralelamente, nas páginas 24 e 25, temos ambas presenças, tanto a do

lobo, que, nesse momento, é apenas uma ligeira impressão do medo, quanto a

de Chapeuzinho ocupando as mesmas posições, ele à esquerda e ela à direita.

No entanto, como o lobo é apenas uma leve impressão, temos apenas uma

parte sua representada: os dentes, que dividem os dois quadros próximos ao

final da amarelinha. É bastante interessante notar que esse jogo não tem como

sua última casa o céu, como é tradição, mas a lua. Simbolicamente, na

astrologia, a lua é associada ao subconsciente, à noite, à passividade, ao

sonho, à imaginação ou ao psiquismo e a tudo que é inconstante, transitório e

instável. Além disso, é famosa a relação entre o lobo e a lua na literatura.

Dessa forma, inferimos que Chapeuzinho não exterminou seu medo, mas

desenvolveu controle sobre ele. Sua expressão de confiança e descontração no

jogo deixa claro que ele não é mais um problema, pois pode dominá-lo mais

uma vez, conforme faz nas páginas a seguir. Veja:

Figura 4 – páginas 26 e 27 de Chapeuzinho Amarelo

26 27

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esmo quando está sozinha, inventa

uma brincadeira. E transforma em companheiro cada medo que ela tinha: o raio virou orrái barata é tabará, a bruxa virou xabru e o diabo é bodiá.

Transcrição 2 – página 27 de Chapeuzinho Amarelo

Enquanto, no plano de expressão visual, Chapeuzinho mostrou domínio

sobre o lobo, reduzindo-lhe a forma, isto é, a representação a um mínimo, ela

também o faz no plano de expressão verbal ao “reconstruir” os símbolos de

seus medos. Como a palavra é um símbolo por excelência, na medida em que é

convencional, arbitrária, isto é, sem nenhuma relação existencial aparente, sua

atitude rebaixa-os ao plano puramente mental, imaginário.

4.2. O interpretante emocional na interação das linguagens

verbal e visual

No tópico anterior, para a análise do plano de expressão visual recorreu-

se paralelamente à leitura do plano de expressão verbal. Com efeito, em

Chapeuzinho Amarelo, a intelecção da imagem se completa com a leitura do

texto escrito. Conforme já afirmamos, nesse caso, a imagem auxilia na

construção da própria narrativa.

Acreditamos e argumentamos que, uma vez analisados ambas semioses,

temos como efeito de sentido um interpretante emocional, de qualidade de

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sentimento. As similitudes descritas no tópico 4.1 entre a palavra e imagem e

entre a imagem e a narrativa em curso nos surpreendem. Como, no desenho

do livro infantil, o que nos salta aos olhos não são os índices, já que não se

trata de existentes, mas, sim, os ícones, já que o que importa é a impressão da

imagem sobre o percepto, os interpretantes emocionais são sempre mais

salientes que os demais. Veja mais dois exemplos:

Figura 5 – páginas 12 e 13 de Chapeuzinho Amarelo

as o engraçado é que, assim que encontrou o LOBO, a Chapeuzinho Amarelo

foi perdendo aquele medo, o medo do medo do medo de um dia encontrar um LOBO. Foi passando aquele medo do medo que tinha do LOBO. Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo. Depois acabou o medo e ela ficou com o lobo.

Transcrição 3 – página 12 de Chapeuzinho Amarelo

Na figura 5, finalmente Chapeuzinho tem seu encontro com o LOBO. É

importante observar que, no plano verbal, nos três primeiros períodos, o lobo é

representado como LOBO (em caixa alta). Após dominado, é apenas um lobo,

M

12 13

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um substantivo comum, sem direito a nenhum destaque. No plano visual, assim

como na história o lobo é a representação do medo, e não um lobo tangível,

concreto, de carne e osso, a imagem de Ziraldo também não o é. O lugar é

aéreo, efêmero, não representativo. Além disso, Chapeuzinho e o lobo são

projetados em formas de sombra – vale ressaltar que, na página 9 de

Chapeuzinho Amarelo (veja figura 2), já se observa que o lobo é apenas uma

projeção de Chapeuzinho. Portanto, trata-se aí não de um lugar físico, mas

mental. Afinal, “Chapeuzinho tinha cada vez mais medo do medo do medo do

medo de um dia encontrar um LOBO. Um LOBO que não existia”.

Uma vez percebido que o lobo (o medo) é apenas coisa de sua cabeça,

Chapeuzinho resolve mudar-lhe a representação a partir de sua imagem

acústica, como observamos a seguir:

Figura 6 – páginas 16 e 17 de Chapeuzinho Amarelo

Assim como, no plano da língua, mudou-se a representação do lobo

apenas através da troca de suas sílabas – lobo e bolo mantêm semelhanças

diagramáticas em sua estrutura fonética –, no plano visual, Ziraldo reproduz

esse processo de mudança da mesma maneira, “trocando” partes do lobo de

lugar.

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5. Considerações

[...] Muitas vezes, o professor não se satisfaz com os textos e roteiros de interpretação dos livros didáticos, seleciona algum texto e faz uma bela interpretação em classe. Se o aluno lhe pergunta como enxergar numa produção discursiva as coisas geniais que ele nela percebeu, costuma apresentar duas respostas: para analisar um texto, é preciso ter sensibilidade; para descobrir os sentidos do texto, é necessário lê-lo uma, duas, três, n vezes.

As duas respostas estão eivadas de ingenuidade. Não basta recomendar que o aluno leia atentamente o texto muitas vezes, é preciso mostrar o que é que se deve observar nele. A sensibilidade não é um dom inato, mas algo que se cultiva e que se desenvolve. [...]

Fiorin (2004, pag 9)

Com o tempo, alguns novos gêneros surgem. Alguns outros se

atualizam. Outros, ainda, deixam de existir. É uma deriva, quiçá, infinita.

Através deles, nascem novas formas de sentir e “fazer sentir”, numa grande

profusão de sentidos. Ao leitor capaz, oferta-se o deleite; ao medíocre, a

manipulação.

As novas abordagens de leitura que tratam da palavra e da imagem têm-

nos esclarecido que é preciso (re)construir o olhar sobre os textos

multissemióticos. Afinal, a imagem não é uma mera redundância do plano de

expressão verbal. Ela descreve, narra, argumenta. Às vezes, sozinha; outras,

em consonância com o texto escrito. Pelo seu alto poder indicial, de

referencialidade, a imagem facilmente nos faz crer que estamos olhando para

um existente – “se está ali é porque existe, é porque aconteceu” –, mas a

informação e a tecnologia da imagem tem-nos mostrado, muitas vezes, o

contrário.

Em uma sociedade da imagem, é quase anedótico o fato de insistirmos

em uma educação em que apenas o plano verbal tem vez. Se não sabemos ler

outras semioses além da palavra, somos potencialmente manipulados por elas.

Como sabiamente afirmou o professor Fiorin (ibidem), é preciso mostrar ao

aluno o que se deve observar nos textos, auxiliá-lo no desenvolvimento de sua

sensibilidade.

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Abstract

This paper aims at analysing Chapeuzinho Amarelo, a children’s literature book

written by Chico Buarque de Holanda and Ziraldo, through the perspective of

Peirce’s Semiotics. We argue that, in many cases, the interaction between visual

and verbal languages results in a prominent emotional interpretant, in other words,

a quality of feeling. Based on the concepts of semiotics, we analyze the work

through a sensitive point of view. In addition to this, we think of the need of

developing new teaching approaches that promote the ability of reading

multisemiotic texts.

Keywords: children’s literature, semiotics, image interpretation

6. Referências

BUARQUE, C; ZIRALDO. Chapeuzinho Amarelo. Rio de Janeiro: José Olympo

Editora, 2011.

FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto; EDUSP,

2004.

GREIMAS, COURTÉS. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.

ISER, W. The Act of Reading. The John Hopkins University Press. Baltimore e

London, 1978.

KENEDY, E. ABC do sintaticista. 2010 (no prelo)

NIKOLAJEVA, M; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011. SANTAELLA, L. Semiótica Aplicada. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. ____________. Matrizes da Linguagem e do Pensamento. Sonora, Visual, Verbal. São Paulo: Iluminuras, 2009. ____________. Percepção. Fenomenologia. Ecologia. Semiótica. São Paulo: Cengage Learning, 2012. ZILBERBERG, Claude. Síntese da gramática tensiva. Trad. Luiz Tatit e Ivã Carlos

Lopes. In: Significação, 25. São Paulo: Annablume, jun.2006. p.163-204.