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Trabalho encomendado Educação Matemática e Infância Coordenação do GT Marcelo Almeida Bairral, UFRRJ Fernanda Wanderer, UNISINOS Gestão 2010-2011 http://www.ufrrj.br/emanped/index.php 2010

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Trabalho encomendado Educação Matemática e Infância

Coordenação do GT Marcelo Almeida Bairral, UFRRJ Fernanda Wanderer, UNISINOS

Gestão 2010-2011 http://www.ufrrj.br/emanped/index.php

2010

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Apresentação

O presente documento reúne os sete textos que subsidiarão a discussão na sessão trabalho encomendado do GT19 (Educação Matemática) da 33a Reunião da Anped. Pelo terceiro ano consecutivo o GT tem adotado, inspirado no GT12 (Currículo), uma dinâmica que tem se mostrado academicamente frutífera, uma que vez que a mesma abre, democraticamente, espaço para a reflexão de temáticas emergentes na pesquisa em educação matemática. Em 2008 a temática definida pelo GT foi “Políticas públicas e Educação Matemática” e, em 2009, foi “Narrativas autobiográficas e História oral: práticas de formação em Educação Matemática”. Em 2010, a temática escolhida foi “Educação Matemática e Infância”. A dinâmica de trabalho encomendado, adotada desde 2007, consiste na eleição — na reunião do ano anterior — de uma temática a ser debatida. Definida a temática, os pesquisadores que nela trabalham são convidados, mediante divulgação no Portal do GT na Internet, a produzirem e submeterem textos (frutos de pesquisa) que subsidiem a discussão durante a Reunião da Anped. Para isso, convida-se um pesquisador (membro interno ou externo do GT) que estabelece um diálogo com os textos produzidos e que também coordena o debate. Em 2008 foi convidado o Dr. Cristiano Alberto Muniz (UnB), em 2009 o Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB) e, em 2010, a Dra Rosana de Oliveira (UERJ). Os textos enviados são submetidos aos avaliadores ad hoc do GT que, juntamente com a Coordenação, seleciona os que serão debatidos. Os autores dos textos, em sua maioria, comparecem voluntariamente à reunião para participar do debate. Os textos submetidos para o debate1, com exceção do artigo (Educação Matemática e Infância: diferentes possibilidades de exploração) da pesquisadora convidada, Profa Rosana de Oliveira, não são publicados no CD-ROM da Reunião. Sendo assim, recomendamos que o leitor interessado em utilizar os artigos não publicados no CD-ROM da 33a Reunião da Anped faça contato com os seus respectivos autores solicitando a sua autorização.

Finalizamos agradecendo aos pesquisadores que submeterem propostas de artigos para o debate na sessão.

Até a 33a Reunião da Anped Marcelo Bairral

Fernanda Wanderer

1 Embora não exista garantia prévia de publicação desses artigos temos tido êxito na publicação dos mesmos em veículos qualificados. Todos textos integrantes da sessão da 31a Reunião foram publicados em um e-Book de mesmo título (http://www3.fe.usp.br/secoes/ebook/mat_pol/index.htm) e, alguns dos artigos foram submetidos (por iniciativa de seus autores) e aprovados para publicação na Revista ZETETIKE (FE/UNICAMP) no Número Temático “Políticas públicas e Educação Matemática” (v. 17, 2009: http://www.fae.unicamp.br/zetetike/viewissue.php?id=34). Os textos da 32a Reunião foram submetidos e aprovados para publicação no Dossiê temático “Narrativas (Auto)biográficas e História oral” do periódico Ciências Humanas e Sociais em Revista (UFRRJ; v. 32, n. 2, 2010: http://www.editora.ufrrj.br/revistas/humanasesociais/revista_hum_32_n2.html ).

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GT 19 da Anped: Trabalho encomendado Educação Matemática e Infância

Dia 19/10/2010 - 13h

Educação Matemática e Infância: diferentes possibilidades de exploração. Pesquisadora convidada: Rosana de Oliveira - UERJ

Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected]

Textos submetidos para o debate

Grupo 1 A motivação de um grupo de professoras da Educação Infantil disposto a discutir a Educação Matemática na infância Priscila Domingues de Azevedo [email protected] Cármen Lúcia Brancaglion Passos [email protected] UFSCar Ideias estatísticas na educação infantil Antonio Carlos de Souza Celi Espasandin Lopes [email protected] Universidade Cruzeiro do Sul - SP Habilidades quantitativo numéricas em crianças: interconexão de múltiplas variáveis Heloiza H. Barbosa [email protected] UFSC/CED – EED

Grupo 2 Campo multiplicativo: Conhecimentos e saberes de três professores dos anos iniciais do ensino fundamental Mercedes Carvalho [email protected] UFAL Mobilizações e (re)significações de conceitos matemáticos em processos de leitura e escrita a partir de jogos Cidinéia da Costa Luvison Regina Célia Grando [email protected] Universidade São Francisco/USF A comunicação de ideias numa perspectiva de resolução de problemas – o desafio de ensinar matemática numa sala multisseriada Brenda Leme da Silva Mengali [email protected] Adair Mendes Nacarato [email protected] Universidade São Francisco/USF

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Educação Matemática e Infância: diferentes possibilidades de exploração.

Rosana de Oliveira - UERJ2

Resumo O objetivo deste artigo é articular as principais idéias propostas em seis textos que foram produzidos atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática (GT19) da ANPED, para a Reunião Anual de 2010 cuja temática foi Educação Matemática e Infância. Como escolha para apresentação dos textos inicio por aqueles que tratam sobre Educação Infantil (Grupo 1): AZEVEDO e PASSOS (2010), SOUZA e LOPES (2010), BARBOSA (2010) e depois apresento aqueles sobre o Ensino Fundamental (Grupo 2): CARVALHO (2010), LUVISON e GRANDO (2010) e MENGALI e NACARATO (2010). Os textos de AZEVEDO e PASSOS (2010) e CARVALHO (2010) são os primeiros de cada grupo, pois possuem como sujeitos pesquisados os professores. Das pesquisas apresentadas, quatro delas tem origem em dissertações de mestrado. Existe uma diversidade de abordagens teóricas e metodológicas, porém foi possível identificar certa aproximação das principais vertentes teóricas que são: o trabalho colaborativo e a comunicação de ideias matemáticas, nesse cenário a leitura e a escrita são elementos fundamentais. Apresentação

A temática escolhida para o trabalho encomendado foi Educação Matemática e

Infância. Porém, o conceito de infância é amplo e não é o mesmo através dos tempos.

Segundo KUHLMANN JR (1998),

Nos dicionários da língua portuguesa, infância é considerada como o período de crescimento, no ser humano, que vai do nascimento à puberdade. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069, de 13/7/90) criança é a pessoa até os 12 anos de idade incompletos e adolescentes aquela entre 12 e os 18 anos. [...] Infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel. (KUHLMANN JR, 1998, p. 16)

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996) define a Educação

Infantil como um dos componentes da Educação Básica. No capítulo II, Seção II da

LDB (1996) é considerada Educação Infantil as crianças de zero a seis anos. Para

subsidiar a produção deste texto e o debate durante a Reunião Anual de 2010, foram

enviados seis trabalhos que serão considerados como referência. Dessa forma, dos seis

textos, três deles relacionam questões pertinentes à área de Educação Matemática com

2 Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – [email protected]

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a Educação Infantil e outros três textos referem-se a questões da primeira etapa do

Ensino Fundamental.

Neste texto vamos considerar que a Educação Infantil e os anos iniciais do

Ensino Fundamental, para as crianças que estão na idade regular da escolaridade, são

diferentes etapas da infância.

Embora as temáticas girem em torno da questão proposta, há diferenças

significativas nas pesquisas e discussões apresentadas. Poderia eleger diferente forma de

organização na apresentação desses textos. Porém, elegi primeiro os textos voltados

para Educação Infantil e depois para o Ensino Fundamental. Em cada um desses grupos

um dos textos trata da formação de professores, que serão os primeiros a serem

apresentados em cada um desse conjunto de três textos. Em face da diversidade de

abordagem teóricas e metodológicas optei por apresentar cada um dos artigos e ao final

delinear algumas aproximações e distanciamentos entre os textos propostos.

O primeiro texto de Priscila Domingues de Azevedo e Cármen Lúcia

Brancaglion Passos professoras da UFSCar, intitulado “A motivação de um grupo de

professoras da Educação Infantil disposto a discutir a Educação Matemática na

infância” por reunir as temáticas Educação Infantil e formação de professores. A

pesquisa apresentada se propõe a “mostrar a motivação das professoras em participar de

um grupo de discutir a educação matemática na infância.” A seguir o texto de Antonio

Carlos de Souza e Celi Espasandin Lopes da Universidade Cruzeiro do Sul, intitulado

“Ideias estatísticas na educação infantil” tem por objetivo identificar: “Como as

crianças de 5 e 6 anos problematizam, elaboram instrumentos, coletam, organizam e

analisam dados?3” (p.3), o que está em foco nesse trabalho é a possibilidade de

exploração de algumas noções estatísticas na Educação Infantil.

O terceiro texto da Prof. Dra. Heloiza H. Barbosa da Universidade Federal de

Santa Catarina intitulado “Habilidades quantitativo numéricas em crianças:

interconexão de múltiplas variáveis” é uma revisão da literatura que relacionada as

habilidades quantitativas em bebês. O texto de Mercedes Carvalho da UFAL intitulado

“Campo Multiplicativo: Conhecimentos e saberes de três professores dos anos iniciais

do ensino fundamental” discuti a dificuldade de professores do Ensino Fundamental em

ensinarem para os alunos as operações de multiplicação e divisão, isso ocorre, neste

caso, pela falta do conhecimento do conteúdo da matéria.

3 Grifo dos autores SOUZA e LOPES (2010)

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O texto das professoras Cidinéia da Costa Luvison e Regina Célia Grando da

Universidade São Francisco intitulado “Mobilizações e (re)significações de conceitos

matemáticos em processos de leitura e escrita a partir de jogos” apresenta uma

possibilidade de exploração do jogo Kalah. No processo de compreensão das regras do

jogo e mobilizados pela ludicidade da proposta os alunos apropriam-se de conceitos

matemáticos e utilizam a leitura e a escrita como poderosas ferramentas. Para finalizar o

texto das professoras Brenda Leme da Silva Mengali e Adair Mendes Nacarato

intitulado “A comunicação de ideias numa perspectiva de resolução de problemas – o

desafio de ensinar matemática numa sala multisseriada” contribui com uma questão

contemporânea que é o fato do professor ter que atuar na escola pública em condições

bastante adversas. Utiliza a resolução de problemas para construir um trabalho

colaborativo entre alunos de diferentes anos de escolaridade e explora a comunicação de

ideias matemática na construção do conhecimento.

Esta opção de apresentação, assim como a leitura que fiz sobre os seis textos e

apresento neste é sempre uma seleção e interpretação possível dentre outras. A leitura

deste texto não substitui a leitura dos textos-base que possuem uma riqueza de

informações sobre as questões pesquisadas.

Grupo 1 - Educação Infantil

A motivação de um grupo de professoras da Educação Infantil disposto a discutir

a Educação Matemática na infância.

AZEVEDO e PASSOS (2010) apresentam uma pesquisa em desenvolvimento,

referente a formação continua de professores que atuam na Educação Infantil,

especificamente, com crianças de 2 a 6 anos. As professoras pesquisadas têm anos de

experiência no magistério bastante diversos, de 4 a 28 anos. O trabalho aconteceu no

âmbito de um curso de extensão oferecido pela UFSCar (PROEX) de 180 horas de

atividades. O que caracteriza a pesquisa é o formato do curso não ser concebido de

forma fechada, mas possibilita “momentos no grupo de aprendizagens coletiva e

individual a partir de partilhas, relatos de experiência, estudos de temáticas, escritas e

reflexão, por meio da parceria entre a universidade e as professoras da Educação

Infantil.”(p.3) A proposta utilizada para constituição do grupo pauta-se nos estudos

sobre colaboração. As autoras descrevem numa primeira etapa do trabalho o processo

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de constituição desse grupo, entendendo assim, que existe uma série de condições que

gradativamente vão mobilizando a participação das professoras.

Desde o início foi destacado que o grupo é aberto, que a

entrada, a participação, a freqüência e a permanência nele são voluntárias, visto que a “colaboração envolve um grau significativo de parceria voluntária que a distingue de um relacionamento de dominação e submissão” (FERREIRA, 2003, p. 82, apud AZEVEDO e PASSOS, 2010, p.4 ). (AZEVEDO e PASSOS, 2010, p.4)

O acordo inicial feito entre as professoras-pesquisadoras e as professoras

pesquisadas também vão contribuir significamente para o desenho da pesquisa, veja a

afirmação das autoras:

Foi estabelecido também que haveria uma carga horária para a elaboração individual de textos narrativos, relatos de experiências e planejamento de atividades. Esta proposta parte do pressuposto que o exercício de escrita contribuiu significativamente na formação dos professores, pois os faz pensar sobre os desafios que enfrentar no cotidiano das práticas que exercem a partir da reflexão e ressignificação[...]. (AZEVEDO e PASSOS, 2010, p. 4)

As professoras pesquisadas participam na definição da temática a ser abordada num

processo de colaboração, dessa forma é explicitado o pouco trabalho que elas

desenvolvem com seus alunos envolvendo jogos e brincadeiras, e mesmo quando o

fazem não direcionam seus olhares para os conceitos matemáticos que podem estar

envolvidos. Nessa dinâmica de definição do caminho a ser seguindo as professoras

escolhem o nome do grupo: Grupo de Estudo “Outros Olhares para a Matemática”

(GEOOM).

O ponto de partida foi a leitura de diferentes textos e percebeu-se que o

envolvimento e a criticidade das professoras se desenvolviam a cada novo encontro.

As professoras estão aprendendo a ouvir e a falar a respeito de

sua prática docente. Nos primeiros encontros quando uma professora falava, as outras não davam muita atenção ou importância; agora elas já estão percebendo que tudo é importante e assim, estão prestando mais atenção no que as colegas dizem. No geral as conservas são abertas a todo o grupo, mas estamos percebendo que dependendo da discussão, duplas vão se formando e partilhas vão acontecendo. Nesse momento ocorrem nossas interferências enquanto pesquisadoras para que haja a socialização da conversa da dupla para o grupo, desta forma, estão

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percebendo que conversas paralelas também podem enriquecer a discussão do grupo. (AZEVEDO e PASSOS, 2010, p.9)

A constituição de um grupo colaborativo é a base teórico-metodológica, que segundo

IMBERNÓN (2010, p.86 apud AZEVEDO e PASSOS, 2010, p.10) “as comunidades de

prática são grupos constituídos com o fim de desenvolver um conhecimento

especializado” e BOAVIDA e PONTE (2002, p. 43 apud AZEVEDO e PASSOS, 2010,

p.10) afirmam ainda que a colaboração “constitui uma estratégia fundamental para lidar

com problemas que se afiguram demasiado pesados para serem enfrentados em termos

puramente individuais”.

Tomando por bases estes entre outros autores, os sujeitos envolvidos na

colaboração de que trata este texto são as professoras-pesquisadoras (universidade) e as

professoras pesquisadas (escola), permeados pela troca de experiências.

Ideias estatísticas na educação infantil

SOUZA e LOPES (2010) contribuem com resultados de uma pesquisa concluída

de mestrado que “teve por objetivo verificar as etapas de uma proposta didático-

pedagógica para a abordagem da Estatística na Educação Infantil”. Especificamente o

texto apresentado está voltado para “Como as crianças de 5 e 6 anos problematizam,

elaboram instrumentos, coletam, organizam e analisam dados?4” (p.3)

Os autores defendem um rompimento com crenças de que o ensino e

aprendizagem devem seguir níveis ou etapas relacionadas às idades das crianças. O

trabalho de estatística na educação infantil parte da crença de que as crianças de 5 e 6

anos, não leitores, são capazes de se inserir em atividades que envolvam os momentos

de construção de conhecimentos estatísticos.

O trabalho de pesquisa envolveu como protagonistas a turma G5-A (17 alunos

com 5 anos) na qual o professor-persquisador lecionava. Além da turma 5-A que

respondeu ao questionário, também responderam duas turmas G5 e duas turmas de SIM

(Série Inicial Municipal).

Vale destacar que nos procedimentos metodológicos os autores informam sobre

a proposta didático-pedagógica.

4 Grifo dos autores SOUZA e LOPES (2010)

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Quanto às atividades de ensino, estas compunham uma proposta didático-pedagógica para a abordagem de ideias estatísticas. Propusemos aos alunos o desenvolvimento de um projeto de investigação estatística, para cuja realização foram necessários 12 encontros.

Essa proposta contemplava várias etapas referentes à investigação estatística: escolha de um tema para pesquisa; elaboração de instrumentos para coleta de dados; coleta de dados; tabulação dos dados; representação dos dados; interpretação; conclusão; e comunicação dos resultados. (SOUZA e LOPES, 2010, p.4)

Para análise os autores consideraram “as seguintes categorias: problematização;

elaboração; coleta; organização; e análise5. Cada uma dessas categorias corresponde

as etapas da proposta didático-pedagógica.

A escolha do tema e o desafio de adequar o questionário para crianças não

leitoras com uso de desenhos compuseram a primeira etapa a problematização. O tema

que norteou a pesquisa realizada pelos alunos foi a Merenda Escolar, motivada pela

presença de “duas funcionárias do setor de merenda escolar da Prefeitura foram à escola

para recolher informações sobre o que os alunos pensavam sobre a merenda oferecida

diariamente a eles.”(p.4) A curiosidade dos alunos em saber as respostas que os colegas

haviam respondido ao avaliarem em “merenda boa, merenda ruim ou merenda ótima”

motivou a escolha do tema pela professora-pesquisadora e alunos.

A etapa seguinte de elaboração dos instrumentos mobilizou os alunos a

decidirem sobre os desenhos que substituiriam as respostas escritas. Esta etapa está

inserida na categoria de análise elaboração. Em coleta de dados os alunos foram

organizados em duplas, cada um com uma função específica, de entrevistador e de

auxiliar e o professor-pesquisador coordenou os trabalhos. Segundo os autores os alunos

demonstraram desenvoltura no desenvolvimento da atividade, que está inserida na

categoria de análise coleta.

Sobre a etapa de organização de dados “a tabulação dos dados foi feita em

quatro fases. Nas três primeiras, tabulamos os dados de cada uma das três salas (SIM-A,

G5-A e G5-B) e, na última, fizemos uma tabulação geral.” (p.10) e continuam avaliando

que:

As atividades referentes à tabulação dos dados não ocorreram como esperado. Os alunos demonstraram cansaço e pouca concentração, com isso se dispersaram. Em alguns momentos ficamos em dúvida se todos os alunos compreenderam bem o que fora proposto. Principalmente

5 Grifo de SOUZA e LOPES (2010)

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no que se refere ao “transporte” dos dados contidos nas fichas de entrevista (questionários) para a tabela.(p.10)

Nesta etapa à categoria de análise foi a organização. Para a representação dos

dados os autores escolheram o gráfico de barras por já ser conhecidos das crianças e

envolveram as crianças no processo de construção. Cada criança recebeu uma barra

quadriculada, onde cada quadrado corresponderia a um tipo de resposta. Dessa forma,

identificou-se o desenvolvimento de habilidades como a contagem.

Vale ressaltar a dificuldade das crianças em aceitarem como verdadeiros os

resultados da pesquisa realizada inicialmente com 57 alunos de um total de 61. Isso

implicou em uma nova ação, em busca pelos alunos que ainda não haviam respondido,

assim, mais dois alunos foram inseridos nesse total, chegando a 59 alunos participantes,

os outros dois alunos ou foi transferido, ou não frequentava com regularidade a escola.

Esta etapa também foi considerada como organização.

Após a organização dos dados os alunos foram capazes de elaborar

questionamentos sobre os dados. “Por exemplo, o fato de o aluno morar perto da escola

determina o horário em que este deve se levantar para ir à escola e sua opção por

locomover-se a pé para chegar até a escola.”(p.14)

Os alunos tiveram ainda uma atividade final de apresentação dos dados para as

turmas pesquisadas, para os funcionários e a diretora da escola e para seus pais. Uma

atividade que envolveu a comunicação de ideias matemáticas. Segundo os autores:

As interpretações baseadas no grupo de informações, representações de dados e sínteses estatísticas de dados são, segundo Garfield e Gal (1999), características do raciocínio estatístico. Daí a importância da comunicação de ideias a partir de tabelas e gráficos: é uma forma de iniciar o desenvolvimento do raciocínio estatístico desses alunos. (SOUZA e LOPES, 2010, p.15)

Os autores concluem o artigo, afirmando que consideram “como princípio o respeito

à cultura infantil e a curiosidade das crianças. Podemos dizer que os resultados obtidos e

aqui apresentados decorrem de uma investigação centrada no “ouvir a criança””. (p.16)

Acrescentam ainda que outros conhecimento matemáticos foram mobilizados pelas

crianças no processo de construção de conceitos relacionados à Estatística.

Habilidades quantitativo numéricas em crianças: interconexão de múltiplas

variáveis

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BARBOSA (2010) apresenta uma “revisão de literatura sobre estudos

acadêmicos e experimentais sobre as habilidades quantitativas iniciais dos bebês e como

estas habilidades iniciais podem levar a construção de conceitos numéricos.” (p.3).

Segundo a autora, as pesquisas na área de cognição matemática iniciam-se ao

final da década de 1970, apontando para “uma criança que possui habilidades cognitivas

numéricas abstratas, portanto, muito diferente da criança sensório-motora descrita por

Piaget (1952) em seus estudos sobre o desenvolvimento do conceito de número.”(p.5)

As pesquisas também “sugere que a criança desde muito cedo, até mesmo antes da

aquisição da linguagem verbal, é capaz de descriminar quantidades, comparar conjuntos

e antecipar resultados de transformações quantitativas.” (p.5)

A autora indica três argumentos de grupos de pesquisadores sobre a capacidade

das crianças desde de muito cedo em produzir representações de informações

quantitativas:

[...] que estas representações são baseadas em conhecimentos de

número [...]; que as mesmas são baseadas em mecanismos de restrições diretivas (bootstrapping) específicos do processamento de informações numéricas [...]; que estas representações são baseadas em mecanismos de detecção de magnitudes e individuação de objetos [...]; que estas representações são baseadas em processos gerais cognitivos sem atrelamento específico a conhecimentos de base numérica. [...]” (BARBOSA, 2010, p.5-6 )

Para ressaltar a importância de uma revisão bibliográfica na área BARBOSA

(2010) afirma que:

Neste artigo, revisaremos as evidências resultantes de estudos publicados nas revistas internacionais – pois há escassez de estudos empíricos produzidos no Brasil na área da cognição matemática com bebês e crianças antes da idade da escolarização formal – que focam o desenvolvimento dos conceitos de número.

Este artigo terá o benefício de contribuir para o debate acerca dos processos cognitivos de formação do conceito de número, como também, de tornar acessíveis ao professor informações coletadas por estudos acadêmicos que dizem respeito ao desenvolvimento de conceitos e procedimentos numéricos na criança. Acredita-se que estas informações podem auxiliar tanto ao pesquisador da área quanto ao professor em sua atuação pedagógica. (BARBOSA, 2010, p.6)

Sua revisão parte da questão “São numéricas as representações quantitativas

não-verbais?” O destaque que atribuo são para as metodologias utilizadas nesses

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tipos de pesquisa, em razão da especificidade dos sujeitos, que ainda não

desenvolveram de forma mais consistente a fala. Segundo a autora: “metodologias

comumente usadas nestas investigações são a metodologia da habituação e a

metodologia da “busca manual do objeto que falta”.(p.7)

Como exemplo da metodologia da “busca manual do objeto que falta” a

autora apresenta: Por exemplo, usando a metodologia da busca manual, os

pesquisadores Van de Walle, Carey & Prevor (2000) demonstraram que, se os bebês assistem ao pesquisador inserir duas bolas dentro de uma caixa e em seguida retirar somente uma bola de dentro desta mesma caixa (enquanto a outra bola ficou escondida em um fundo falso), quando a caixa é oferecida a estes bebês para exploração manual, estes passam mais tempo buscando dentro da caixa nesta situação de conflito entre o inserido e retirado do que na situação de coerência entre quantidade inserida e a mesma quantidade retirada. Demonstrando, segundo os autores do estudo, um entendimento de alterações (ou discrepâncias) numéricas. (BARBOSA, 2010, p.7-8)

Sobre a metodologia da habituação a autora acrescenta que:

De forma mais robusta, os estudos usando metodologias de habituação demonstraram que os bebês foram capazes de identificar mudanças numéricas em conjuntos com pequenas quantidades (ANTEL & KEATING, 1983; STARKEY & COOPER, 1984; STARKEY, SPELKE & GELMAN, 1991; STRAUSS & CURTIS, 1984) e em conjuntos com grandes quantidades (XU & SPELKE, 2000); foram também capazes de parear o número de sons ouvidos com o número de objetos de um conjunto (STARKEY & SPELKE, 1983) e de demonstrar conhecimento de resultados de simples adição e subtração (WYNN, 1992b; 1992c). (BARBOSA, 2010, p. 8)

No desenvolvimento do texto a autora ainda cita pesquisadores que “fazem parte da linha

teórica do nativismo, ou inatismo” que acreditam que “os bebês prestam atenção em

informações numéricas ao redor deles porque seus cérebros são equipados desde o

nascimento para fazê-lo”.(p.9) No final da década de 90: :

O estudo de Clearfield & Mix lançou dúvidas e enfraqueceu fortemente o argumento inatista ao mostrar que os dados dos estudos de habituação, até então produzidos, não desambiguavam os fatores perceptivos dos fatores numéricos. Neste estudo, as autoras habituaram bebês entre seis a oito meses de idade a conjuntos com dois ou três quadrados que possuíam uma área de contorno total invariante.(BARBOSA, 2010, p.9)

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BARBOSA (2010) apresenta outros autores que também questionam a linha teórica do

nativismo ou inatismo.

Na parte final do texto a autora anuncia outra pergunta: “Como os bebês constroem

conceitos de número a partir de habilidade iniciais?” a autora cita Wynn que apresenta

resultados de pesquisas:

Os resultados dos dois estudos de Wynn (um de corte transversal e o outro longitudinal) mostraram que apesar de todas as crianças serem capazes de contar pelo menos até seis corretamente elas não sabem o exato valor cardinal de todos os números na sua lista de contagem oral. Por exemplo, quando solicitadas para produzir e identificar uma quantidade, algumas crianças (geralmente as mais novas) só conseguiam produzir e identificar a quantidade “um” com exatidão, outras (um pouco mais velhas) somente “um e dois”, outras somente “um, dois e três”. (BARBOSA, 2010, p. 19)

A relevância da temática para além da dificuldade em se encontrar metodologias

que sejam apropriadas aos sujeitos pesquisados (bebês) se deve também ao fato de ser

pouco explorada, segunda a autora, no Brasil.

Grupo 2 - Ensino Fundamental

Campo Multiplicativo: Conhecimentos e saberes de três professores dos anos

iniciais do ensino fundamental.

CARVALHO (2010) apresenta uma pesquisa feita com formação dos

professores do Ensino Fundamental que consideram as operações de multiplicação e

divisão mais difíceis. Estes professores pautam o trabalho de ensino dessas operações na

memorização da tabuada.

Problematiza a questão afirmando que o conceito de multiplicação é apresentado

para os alunos como soma de parcelas iguais e em seguida apresenta uma lista de

exercícios de multiplicação. O autor afirma que:

Existem diferenças significativas entre o raciocínio aditivo e o multiplicativo. Na adição trabalhamos com a ideia da relação parte-todo: a soma das partes é igual ao todo, sendo que as partes são de uma mesma natureza, isto é, envolve apenas uma variável. Na multiplicação existe uma relação fixa entre duas variáveis. (CARVALHO, 2010, p.2)

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O ensino da divisão geralmente é posterior a multiplicação, como operações

relacionadas.

Os problemas que envolvem divisão podem conter ideias de partição ou quotição (cota). A ideia de partição está relacionada a distribuição de uma determinada quantidade de elementos em partes o que não significa, necessariamente, que estas partes sejam equivalentes, porém os problemas que envolvam divisão as partes devem ser equivalentes, de acordo com Correa e Spinillo (2004). (CARVALHO, 2010, p.2)

SHULMAN (1986 apud CARVALHO, 2010, p. 4) categoriza três tipos de

conhecimentos do professor, em particular, “conhecimento do conteúdo da disciplina,

ou seja, os conhecimentos sobre multiplicação e divisão dos professores do ensino

fundamental.”(p.4)

É sobre este conhecimento que o pesquisador vai se deter, onde os sujeitos da pesquisa

são duas professoras com idades 22 e 23 anos que atuam em escolas particulares e um

professor com 23 anos que atua numa escola pública. Apesar de jovens atuam a pelo

menos três anos no magistério. A coleta dos dados foi feita através da observação das

aulas que orientaram as entrevistas semiestruturadas.

O que será apresentado no transcorrer das entrevistas é que os professores

centram o ensino das operações de multiplicação e divisão nos algoritmos. Eles

desconhecem os significados das operações, e a própria estrutura do sistema de

numeração decimal. Onde a compreensão dos agrupamentos e desagrupamentos são

fundamentais para realizar os algoritmos com significado. Muita das dificuldades que

eles afirmam que os alunos possuem, em suas respostas identificou-se que essas

dificuldades são dos próprios professores. Outra informação importante que os

professores apresentam é o fato de estudarem nos materiais didáticos dos alunos,

deixando assim a formação deste professor fragilizada. O diálogo abaixo ilustra esta

argumentação:

Questionei-o quantas dezenas há em 1255:

Antônio: Cinco Entrevistadora: Por quê? Antônio: Não são cinco mas são cinco, porque na dezena está marcado o número 5 . Entrevistadora: Mas eu perguntei no número 1255, quantas dezenas ele tem? Antônio: Deixa eu pensar... são muitas (ficou muito tempo em silêncio). Só contando. Entrevistadora: E por quê só contando?

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Antônio: Porque dentro do 200 eu tenho várias dezenas, dentro do 1000 muito mais dezenas porque pra formar cada centena eu preciso de várias dezenas. Entrevistadora: E você faz essa articulação com eles? Antônio: Não, eu nunca pensei nisso. Nós estamos acostumados a marcar as casas na centena, na dezena, na unidade. Eu nunca pensei nessa articulação. (CARVALHO, 2010, p.13).

A formação desses professores se deu em cursos de formação de professores

(nível médio) e também em curso de Pedagogia, a dificuldade apresentada por estes

professores independe de sua formação inicial, ou seja, neste caso a formação em nível

superior não significou maior consistência nos conhecimentos matemáticos.

Mobilizações e (re)significações de conceitos matemáticos em processos de leitura e

escrita a partir de jogos.

LUVISON e GRANDO (2010) referem-se a um recorte de uma pesquisa de

mestrado em desenvolvimento, onde as autoras contextualizam sinalizando a falta de

espaço que a ludicidade ocupa na escola, além disso, resgatam a importância dos

aspectos culturais do jogo. As autoras buscam: “investigar em que medida os conhecimentos matemáticos são

mobilizados e (re)significados quando explorados em um contexto de leitura e produção escrita em situações de jogo na perspectiva da resolução de problemas por crianças do 5º. ano do Ensino Fundamental (9 a 10 anos).” (LUVISON e GRANDO, 2010, p. 2)

A pesquisa de campo aconteceu numa escola pública da rede municipal de

Bragança Paulista, foi realizada em 2009 com vinte e três alunos, com idades entre 9 e

10 anos. As professoras-pesquisadoras estabeleceram uma parceria com a professora da

turma para desenvolver o trabalho de pesquisa que permaneceu presente sempre

colaborando nas etapas da pesquisa. As autoras destacam a importância da

comunicação de ideias matemáticas e interação entre os alunos, professora parceira e

professora orientadora. Utilizaram “audiogravações e as produções escritas dos alunos e

da pesquisadora” (p.3) As autoras constroem sua argumentação focando na leitura,

escrita, jogo e cultura, sinalizando a função social da leitura e escrita como elementos

da comunicação. Afirmam que: “A escrita estabelece uma proximidade com o

aluno/leitor, em que, através de discussões, hipóteses, analogias, tanto no jogo, quanto

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em outros textos, explicitam escrever para si e para os outros, em um processo constante

de interação e reflexão.” (p.5)

Vamos identificar que os instrumentos utilizados na pesquisas são adequados

para estimular que os alunos leiam e escrevam. Dessa forma: Quando os alunos possuem a oportunidade de envolver-se em um

contexto de mobilização, argumentação, levantamento de hipóteses e inferência (texto/leitor) a linguagem matemática começa a fazer sentido. Nesse movimento, de ler, jogar e escrever, as suas vivências se tornam próximas do contexto escolar, constituindo-se como elemento imprescindível para a criança. Isso faz com que o caminho não esteja pronto, mas tenha que ser construído pelos alunos e viabilizado pelos professores.

Nesta relação, a resolução de problemas possui um papel importante, principalmente quando refletida sob os aspectos do letramento, pois a relação entre a leitura e escrita formam um conjunto indissociável, que estabelecem aproximações, não somente da criança com o conhecimento e a linguagem matemática, mas da criança e de sua própria identidade.(LUVISON e GRANDO, 2010, p.7-8)

O Jogo escolhido foi o Kalah6 como “objeto a ser investigado” (p.8). A leitura

da regra do jogo e entendimento da mesma oportunizou significativas negociações de

significados entre os alunos e a pesquisadora. As autoras ressaltam que a escolha desse

jogo

“trazia alguns elementos importantes, primeiro, porque se tratava de um jogo desconhecido para as crianças, e segundo porque a linguagem oferecida em sua regra abordava conceitos específicos do jogo, juntamente com a dinâmica de distribuição de peças, estratégias e raciocínio lógico, que de certa forma, proporcionaria um ambiente de curiosidade e mobilização, necessários para iniciarmos o projeto.” (LUVISON e GRADO, 2010, p. 9)

O desejo de brincar mobilizou os alunos para ler e compreender as regras do

jogo.

Para além do momento do jogar, é possível criar situações abstradas,

representando determinado momento do jogo, o que estimula a comunicação de ideias. 6 Esta nota de rodapé também está presente no texto (LUVISON e GRANDO, 2010, p.11) Kalah: Distribui-se 3 sementes em cada espaço e no meio deverá conter 4 sementes. Os Kalahs das laterais deverão ficar vazios. Cada jogador fará a jogada na sua vez, distribuindo-as uma a uma a sua direita. Ao passar pelo seu Kalah, o jogador deve deixar uma semente e continuar a distribuição. Caso a semente seja colocada no Kalah do próprio jogador, este poderá jogar novamente. Se a ultima semente colocada, cair em uma casa vazia, do seu lado do tabuleiro, as sementes do adversário, diretamente a frente, será capturada. O jogo termina quando um dos jogadores não possuírem mais sementes a movimentar. Quem possuir mais sementes é o vencedor.

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A utilização de representações escritas de situações do jogo estimula os envolvidos a

desenvolver um raciocínio abstrato.

Concluo a apresentação deste texto com uma reflexão das autoras:

É interessante ressaltar, que tanto os textos da regra do jogo, quanto do problema convencional7 fazem parte do mesmo gênero textual8, ou seja, instrucional (prescritivo-injuntivo), tendo como objetivo descrever ações, regular comportamentos, etc. Mesmo fazendo parte do mesmo gênero, nota-se que a leitura de problemas convencionais tem sido acompanhada por um trabalho de interpretação/resolução, em que a ênfase maior está em solucionar o exercício proposto, chegar a um “fim”, uma resolução imediata, sem a possibilidade de estabelecer conjecturas e sem o desejo em resolvê-las, porque a criança não se sente envolvida pelo problema. Mas no jogo, é diferente. (LUVISON e GRANDO, 2010, p.23)

A comunicação de ideias numa perspectiva de resolução de problemas – o desafio

de ensinar matemática numa sala multisseriada.

MENGALI e NACARATO (2010) apresentam um recorte de uma pesquisa de

mestrado, onde o objetivo é apresentar “uma prática pautada na comunicação de ideias

geradas por problematizações”. O diferencial do trabalho são as condições em que a

professora-pesquisadora se dispõe a desenvolver sua pesquisa, são as mesmas que

existem em muitas escolas de nosso país, mas que geralmente são usadas pelos

professores como argumentos para justificar o imobilismo de práticas pedagógicas em

sala de aula. Acrescidos a isso, trata de uma escola da zona rural que possui problemas

específicos na forma de organização, em especial, as classes multisseriadas que foi o

espaço onde se desenvolveu esta pesquisa. As autoras apresentam os problemas que

encontramos na maioria das escolas publicas brasileiras:

A indisciplina; a falta de compromisso, de responsabilidade e de interesse por parte dos alunos; o número excessivo de alunos por classe, bem como as classes com alunos em diferentes tempos de aprendizagem, são elementos citados pela maioria dos professores. No entanto, acreditamos ser possível enfrentar tais desafios com propostas que mobilizem os alunos para os saberes escolares. Esse será o foco do presente trabalho, que discutirá alguns desses aspectos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, numa escola pública. (MENGALI e NACARATO, 2010. p.1)

7 Associamos o problema convencional, como um desencadeador de nossa problemática, pelas dificuldades relacionadas a sua interpretação. 8 Mais detalhes, ver o quadro de agrupamento de gêneros de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Essas notas de rodapé estão no texto-base de LUVISON e GRANDO, 2010, p.23.

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Apresentado o contexto onde será realizada a pesquisa cujo desafio está

“centrando na possibilidade de criar um ambiente no qual seja possível ensinar

matemática utilizando a resolução de problemas como um recurso para a comunicação

de ideias.” (p.2) A proposta pretende romper com práticas já estabelecidas na cultura do

trabalho docente em classes multisseriadas. A institucionalização dessa prática está no

fato das salas de aula dessas escolas terem duas lousas, indicando que o trabalho a ser

realizado não prevê uma interação entre os alunos das diferentes séries que no caso da

turma pesquisada possui 36 alunos, sendo 18 do 4º ano e 18 do 5º ano do Ensino

Fundamental.

As autoras destacam o conceito de problematização de DOMITE (2006):

De todo modo, as ações perguntar, problematizar e formular problemas são hoje, [...], processos similares, ou seja, significam palavras de ordem semelhantes. Perguntar, no caso, é problema, ou seja, é algo que perturba e desafia um possível resolvedor ou resolvedora: ele ou ela sente necessidade de responder a algo e a resposta não é óbvia [...]. A problematização, por sua vez, é um processo no qual perguntas e respostas, não imediatamente claras, vão se construindo porque há uma tensão fértil, uma motivação que impulsiona para a formulação de uma pergunta mais bem delineada. (DOMITE, 2009, p. 25-26, grifos da autora, apud MENGALI e NACARATO, 2010, p.4-5).

Além desse conceito, as autoras acrescentam a importância do diálogo como

“elemento mediador de todo esse ambiente problematizador” (p.5), onde professor e

alunos participam de maneira ativa, com destaque para o desafio de saber ouvir e pensar

sobre o pensar do outro, constituindo nesse processo de comunicação de ideias a

produção de significados matemáticos.

O recurso metodológico utilizados pelas autoras para apresentar nesse texto

destaca o fato dos alunos realizarem um congresso que foi denominado de “Encontro

dos alunos que gostam de estudar matemática”, que ao longo do ano de 2009

aconteceram dois encontros. A proposta do congresso onde os alunos devem apresentar

trabalhos se coaduna com o objetivo que é comunicar ideias matemáticas o que

contribui para a produção de significados matemáticos. O processo se desenvolve em

linhas gerais da seguinte forma: o primeiro congresso em setembro, encerrado este

evento foi proposto aos alunos escreverem uma carta para a orientadora da professora-

pesquisadora. Isto gerou o interesse dos alunos em conhecer “a professora da professora

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deles” (p.8), assim, nasce a proposta da realização de um novo congresso onde Adair

Mendes Nacarato estaria presente. O episódio apresentado neste texto aconteceu nesse

segundo “Encontro dos alunos que gostam de estudar matemática” que aconteceu em

dezembro de 2009. A situação proposta foi a seguinte: “Na próxima sexta-feira será

realizado aqui na escola o almoço de Natal. Este ano o cardápio programado é macarrão ao forno, frango assado e salada verde. A receita do frango que a Silvia vai fazer diz que, para cada 1 kg de frango, são necessários 15 minutos de forno. Ao todo são 13 kg de frango. A que horas a Silvia deverá pôr o frango para assar, se o almoço será servido às 10:30h?” (p. 8)

A partir da apresentação da solução de uma dupla de alunos os diálogos se

desenvolvem com objetivo de mostrar como a troca de compreensão da solução do

problema pode ajudar os alunos a formularem e reformularem seus argumentos na

direção da construção de conceitos matemáticos. O aluno apresentou uma significativa

estratégia de desenvolvimento utilizando tabelas e analogias, porém não chegar ao

resultado esperado. Esta condição é o que proporciona a riqueza de diálogos entre os

alunos com pouca intervenção da professora-pesquisadora.

Cabe ainda destacar que a análise desse diálogo permite identificar que o pensamento matemático, aqui evidenciado, emerge naturalmente no aluno. Em momento algum a professora-pesquisadora faz qualquer direcionamento ao que o aluno deve pensar. Os alunos intervêm, esperando do colega a produção de significados para o que está sendo comunicado. (p.15)

As autoras na análise dos diálogos dos alunos utilizam como apoio teórico a

Zona do Desnevolvimento Proximal (ZDP) de Vigotski, identificando os conhecimentos

real e proximal de um dos alunos pesquisados. Enfatizam ainda que a utilização de

gravações em vídeo foi o que permitiu “recuperar elementos não capturados nas

audiogravações, nem nos registros em diários de campo” (p. 19). Termino a

apresentação deste texto com uma afirmação das autoras que pode nos ajudar a refletir

sobre o fazer diário de muitos professores:

Em meio a essa rede de adversidades, não desistimos de acreditar

na possibilidade de nos tornarmos verdadeiras mediadoras do conhecimento, promovendo os alunos a participantes ativos da aprendizagem e protagonistas na produção de seus próprios saberes. (p.19)

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Aproximações e possibilidades

Para além da aproximação que fiz sobre textos que tratam sobre Educação

Infantil e Ensino Fundamental, outras aproximações são possíveis de estabelecer,

Dessa forma os textos de AZEVEDO e PASSOS (2010) e CARVALHO (2010)

os sujeitos pesquisados são os professores, enquanto nos textos de LUVISON e

GRANDO (2010) e MENGALI e NACARATO (2010), os sujeitos pesquisados são

alunos do 4º ou 5º ano do Ensino Fundamental. Os sujeitos do trabalho apresentado por

BARBOSA (2010) são bebês9, enquanto no trabalho de SOUZA e LOPES (2010) os

sujeitos são crianças de 5 anos.

A leitura e a escrita foi um outro elemento de aproximação dos textos de

AZEVEDO e PASSOS (2010) na produção individual da professoras de textos

narrativos, em LUVISON e GRANDO (2010), explorando a leitura e a escrita sobre o

jogo e também no trabalho de SOUZA e LOPES (2010) onde as crianças não leitoras

precisam encontrar um registro, neste caso, desenhos, para se comunicarem.

Dessa forma, a comunicação de ideias matemáticas destaca-se como uma

vertente teórica explicita ou implicitamente nos textos de SOUZA e LOPES (2010),

CARVALHO (2010), LUVISON e GRANDO (2010) e MENGALI e NACARATO

(2010).

Outra vertente teórica que merece destaque para a formação de grupos

colaborativos ou desenvolvimento de práticas que ressaltem a colaboração entre os

sujeitos. O texto de AZEVEDO e PASSOS (2010) apresenta explicitamente a formação

de um grupo com esta característica, enquanto os trabalhos de SOUZA e LOPES

(2010) e MENGALI e NACARATO (2010) valoram o trabalho colaborativo entre

alunos e alunos e professor.

A utilização de vídeos, audiogravações e registros em diários como ferramentas

para coleta de dados das pesquisas foi um outro ponto de aproximação entre as

pesquisas apresentadas.

Apesar da demanda por textos relacionados a Educação Matemática na

Educação Infantil, identificamos que apenas três textos trataram dessa temática. Isto

pode ser um indicador de que esta é uma área onde é necessário investir em novas

pesquisas.

9 Nas pesquisas apresentadas os bebês tem idade máxima de 2 anos.

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Para orientar e estimular novas pesquisas na área do ensino de matemática na

Educação Infantil indico a leitura do documento do Governo Federal “Ensino

Fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade:

+1 ano é fundamental” (2006). O texto apresenta algumas questões gerais na

apresentação e introdução e um conjunto de artigos, onde não identificamos a presença

de autores que discutam a Educação Matemática na Educação Infantil. Algumas

questões gerais indicadas neste documento podem ser úteis no estímulo a reflexão sobre

o ensino de matemática para crianças de 0 a 6 anos. Com a aprovação da Lei no 11.274/2006, mais crianças serão incluídas no sistema educacional brasileiro, especialmente aquelas pertencentes aos setores populares, uma vez que as crianças de seis anos de idade das classes média e alta já se encontram, majoritariamente, incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do ensino fundamental. A importância dessa decisão política relaciona-se, também, ao fato de recentes pesquisas mostrarem que 81,7% das crianças de seis anos estão na escola, sendo que 38,9% freqüentam a educação infantil, 13,6% pertencem às classes de alfabetização e 29,6% estão no ensino fundamental (IBGE, Censo Demográfico 2000). Outro fator importante para a inclusão das crianças de seis anos na instituição escolar deve-se aos resultados de estudos demonstrarem que, quando as crianças ingressam na instituição escolar antes dos sete anos de idade, apresentam, em sua maioria, resultados superiores em relação àquelas que ingressam somente aos sete anos. A exemplo desses estudos, podemos citar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2003. Tal sistema demonstra que crianças com histórico de experiência na pré-escola obtiveram maiores médias de proficiência em leitura: vinte pontos a mais nos resultados dos testes de leitura. (BRASIL, 2006, p.5-6)

Neste cenário julgo necessário que novas pesquisas possam contribuir na

reconfiguração das práticas pedagógicas. A formação continuada através de grupos

colaborativos que mobilizem os professores para investirem em seu desenvolvimento

profissional como apresentam AZEVEDO e PASSOS (2010) pode ser um caminho na

melhoria da qualidade de uma escola que inclusiva.

Espero que este texto sirva de estímulo para que os outros textos sejam lidos,

para que o leitor possa aproveitar de forma mais consistente as propostas apresentadas

pelas pesquisas desenvolvidas.

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Referências

AZEVEDO, Priscila Domingues de e PASSOS, Cármen Lúcia Bracaglion Passos. A motivação de um grupo de professoras da Educação Infantil disposto a discutir a Educação Matemática na infância. Texto produzido atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática da ANPED, 2010.

BARBOSA, Heloisa H. Habilidades quantitativo numéricas em crianças: interconexão de múltiplas variáveis. Texto produzido atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática da ANPED, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para

a inclusão da criança de seis anos de idade: +1 ano é fundamental. Brasília: MEC, 2006.

CARVALHO, Mercedes. Campo Multiplicativo: conhecimentos e saberes de três

professores dos anos iniciais do ensino fundamental. Texto produzido atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática da ANPED, 2010.

KUHLMANN Jr., M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre:

Mediação, 1998. LUVISON, Cidinéia da Costa e GRANDO, Regina Célia. Mobilizações e

(re)significações de conceitos matemáticos em processos de leitura e escrita a partir de jogos. Texto produzido atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática da ANPED, 2010.

MENGALI, Brenda Leme da Silva e NACARATO, Mendes Adair. A comunicação de

ideias numa perspectiva de resolução de problemas – o desafio de ensinar matemática numa sala multisseriada. Texto produzido atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática da ANPED, 2010.

SOUZA, Antonio Carlos de e LOPES, Celi Espasandin. Ideias estatísticas na educação infantil. Texto produzido atendendo à solicitação do Grupo de Trabalho de Educação Matemática da ANPED, 2010.

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Textos do Grupo 1

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A motivação de um grupo de professoras da Educação Infantil dispostas a discutir

a Educação Matemática na infância

Priscila Domingues de Azevedo Cármen Lúcia Brancaglion Passos

UFSCar Apoio parcial Pro-Ex/UFSCar.

O presente artigo apresenta uma pesquisa de caráter qualitativo, em desenvolvimento, sobre o processo inicial da constituição de um grupo de professoras da Educação Infantil que se reúne para discutir questões relacionadas ao conhecimento matemático. Mediante uma pesquisa-ação crítico colaborativa, propomo-nos a colaborar com a prática pedagógica de um grupo de doze professoras da rede municipal de Educação Infantil de São Carlos/SP. Nossos objetivos são: elucidar o processo de constituição inicial desse grupo disposto e motivado a discutir questões relacionadas à Educação Matemática na infância; e indicar aspectos importantes da motivação das professoras a partir dos processos de produção e ressignificação de conhecimentos matemáticos diante dos primeiros diálogos, partilhas, estudos, escritas e reflexões dos professores. Os resultados do trabalho apontam para a utilização de práticas formativas que estão possibilitando o desenvolvimento profissional das envolvidas, visto que estão tendo a oportunidade de aprofundar concepções e conhecimentos matemáticos, tornar-se sujeitos protagonistas de sua profissão, adquirir autonomia para produzir inovações curriculares, contribuindo para a construção de práticas pedagógicas cada vez mais intencionais e humanizadoras. Palavras-chave: participação em grupo; Educação Matemática; Educação Infantil. Introdução

Este artigo surge da necessidade de refletir sobre a formação continuada dos

professores da Educação Infantil no Brasil, hoje a primeira etapa da Educação Básica.

Diante do cenário atual de exigência de qualificação e profissionalização docente e das

mudanças sociais significativas que estão ocorrendo, intensifica-se cada vez mais a

demanda pelo trabalho com o conhecimento matemático no cotidiano das instituições de

Educação Infantil (BRASIL, 1998).

A preocupação com a abordagem de conhecimentos matemáticos na

Educação Infantil é cada vez mais presente, e vários estudos indicam caminhos para

fazer com que a criança dessa faixa etária tenha a oportunidade de iniciar de modo

adequado seus primeiros contatos com a matemática (ARAÚJO, 1998; LOPES, 2003;

MOURA, 1995; NACARATO, 2000). Para isso ocorrer, é necessário que a prática

pedagógica envolva formação qualificada e intencionalidade dos docentes.

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A partir do currículo da Educação Infantil, destacaremos o conhecimento

matemático, não porque o julguemos mais importante que outros; mas porque se torna

necessário apropriar-se desse produto social que envolve a vida da criança e relacioná-

lo no processo de investigação e de motivação à descoberta, ao conhecimento do mundo

e ao gosto pelo conhecimento, visto que é papel do professor potencializar e incentivar

as linguagens das crianças. Concordando com as concepções de Moura (2006, p. 489),

entendemos a matemática como “produto da atividade humana e que se constitui no

desenvolvimento de solução de problemas criados nas interações que produzem o modo

humano de viver socialmente num determinado tempo e contexto”.

Diante dessas preocupações, propusemo-nos a discutir questões relativas à

educação matemática na infância com professores que atuam na Educação Infantil.

Constituímos um grupo de estudos com características colaborativas para debater a

temática e também a formação e o desenvolvimento profissional de professores da

Educação Infantil. Ressaltamos que a pesquisa que está sendo desenvolvida tendo o

grupo como cenário da investigação só não é colaborativa a rigor, pois é uma pesquisa

de doutorado cuja autoria e cujo processo de escrita são restritos a só uma pessoa; nesse

sentido, “uma dissertação ou tese acadêmica nunca poderá ser considerada uma

pesquisa colaborativa” (FIORENTINI, 2004, p. 66). Neste artigo, nossa intenção é

mostrar a motivação das professoras em participar de um grupo para discutir a

educação matemática na infância.

A proposta da constituição de um grupo considerou os estudos de Fiorentini

(2004), Franco (2005) e Pimenta et al. (2005), que afirmam que o desenvolvimento

desse método não ocorre espontaneamente e requer colaboração. Sua finalidade é criar

uma cultura de análise das práticas pedagógicas, tendo em vista as transformações

destas pelos professores, com a colaboração da universidade, a partir da pesquisa-ação

crítico-colaborativa, visto que “as transformações das práticas ocorrem num processo de

reflexão sobre estas e problematização das práticas, a partir das necessidades e dos

problemas vivenciados pelos professores nos contextos escolares.” (PIMENTA;

GARRIDO; MOURA, 2001, p. 09).

Na sequência, propomo-nos não apenas a elucidar o processo de

constituição inicial de um grupo de professoras da Educação Infantil dispostas a discutir

questões relacionadas ao conhecimento matemático, mas também a indicar aspectos

importantes da motivação delas, a partir dos processos de produção e ressignificação de

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conhecimentos matemáticos diante dos primeiros diálogos, partilhas, estudos, escritas e

reflexões.

Processo de constituição do grupo

A oportunidade surgiu do desejo das autoras de discutir, compartilhar

saberes, contribuir para ressignificação de conceitos e também aprender um pouco mais

sobre matemática na Educação Infantil com professores em um grupo; e do interesse da

Secretaria Municipal de Educação do município de São Carlos, que buscava projetos de

formação continuada para os profissionais da Educação Infantil, principalmente para

tentar suprir lacunas na formação dos professores, com relação ao trabalho com o

conhecimento matemático na infância. Escolhemos, então, como espaço um Centro

Municipal de Educação Infantil de São Carlos para trabalhar com as professoras de

crianças de 2 a 6 anos que atuam neste Centro, com o propósito de vincular sua

participação a um projeto de extensão da UFSCar (PROEX), o qual certificará sua

dedicação por 180 horas de atividades de extensão durante três semestres.

Nossa proposta, desde o início, não era oferecer cursos em formatos

fechados, mas possibilitar ao grupo momentos de aprendizagem coletiva e individual

através de partilhas, relatos de experiência, estudos de temáticas, escritas e reflexão, por

meio da parceria entre a universidade e as professoras da Educação Infantil.

O grupo hoje está composto por 12 professoras da Educação Infantil. No

primeiro encontro havia 12 professoras, mas uma delas desistiu, pois ainda está

cursando algumas disciplinas da graduação em Pedagogia, e os horários em que ela

estuda coincidem com os do encontro do grupo; no entanto, no segundo encontro do

grupo uma nova professora compareceu. Ela normalmente não participa das reuniões

pedagógicas que ocorrem semanalmente na escola, mas, ao saber pelas colegas de

trabalho que se estava iniciando um grupo de estudos sobre matemática na infância na

escola, interessou-se em participar. Segundo ela, as professoras fizeram uma

propaganda muito boa do que poderiam aprender em grupo.

As participantes sugeriram que os encontros do grupo fossem de

aproximadamente duas horas semanais no local de trabalho delas, à noite, depois do

Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC). Nem todas as professoras

participam do HTPC nesse Centro de Educação Infantil: algumas o realizam em outra

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escola em que trabalham; no entanto, isso não é empecilho para que compareçam ao

local do encontro somente para participar do grupo, no horário combinado.

As reuniões acontecem sempre na sala de aula de uma das professoras

participantes. Elas se acomodam no mobiliário infantil que faz parte da sala, às vezes se

incomodam com a postura, mas dizem que na realidade esse desconforto nem é

percebido, pois não veem o tempo passar. O interessante é que há a possibilidade de

pegarem cadeiras maiores, mas dizem que não querem, pois o “grupo passa rápido”.

No primeiro encontro do grupo, as professoras responderam a um

questionário inicial de identificação, a partir do qual constatamos que possuem tempo

de magistério diversificado, de 4 a 28 anos de docência no geral, envolvendo

experiência com Educação de Jovens de Adultos, Educação Infantil e séries iniciais do

Ensino Fundamental. Com relação à Educação Infantil, o tempo de magistério das

professoras também é diversificado: de 2 meses a 17 anos. Das 12 professoras, 5

trabalham em 2 períodos, algumas com duas turmas de Educação Infantil, outras

também com turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental. Na cidade de São

Carlos residem 8 dessas professoras e, na vizinha Ibaté, 4 delas.

Desde o início, foi destacado que o grupo é aberto; que a entrada, a

participação, a frequência e a permanência nele são voluntárias, visto que a

“colaboração envolve um grau significativo de parceria voluntária que a distingue de

um relacionamento de dominação e submissão” (FERREIRA, 2003, p. 82).

Foi estabelecido também que haveria uma carga horária para a elaboração

individual de textos narrativos, relatos de experiências e planejamento de atividades.

Esta proposta parte do pressuposto de que o exercício de escrita contribui

significativamente para a formação dos professores, pois os faz pensar sobre os desafios

a enfrentar no exercício cotidiano de suas práticas;e propicia a ressignificação, que

“seria um processo pelo qual produzimos (novos) significados e (novas) interpretações

sobre o que sabemos, dizemos e fazemos” (PASSOS, 2009, p. 114).

Uma das atividades iniciais desenvolvidas no grupo foi o relato de

experiência: um trabalho com as crianças, que envolveu o conhecimento matemático

apresentou bons resultados. A partir daí, o grupo escolheu estudar os jogos e as

brincadeiras, por reconhecer que o brincar é a principal atividade da criança nessa faixa

etária. Contudo, as próprias professoras alegaram que pouco trabalhavam brincadeiras

no cotidiano de suas aulas e não tinham um olhar muito focado para a matemática

nessas situações. Diante disso, o grupo elegeu a primeira temática de trabalho e,

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consequentemente, escolheu um nome para o grupo: GEOOM – Grupo de Estudo

“Outros Olhares para a Matemática”. Depois de dez semanas de reuniões, o grupo, com

o propósito de contribuir para a constituição da sua identidade, já tem uma logomarca,

idealizada pela pesquisadora e escolhida pelas professoras.

O ponto de partida das discussões sobre os jogos e as brincadeiras foram as

narrativas de professores da Educação Infantil publicadas no livro De professora para

professora: conversas sobre iniciAção matemática, organizado por Grando, Toricelli e

Nacarato (2008). Além dessa leitura, assistimos a um vídeo sobre o jogo de boliche,

lemos parte de um livro de Moura (1996), textos de Smole, Diniz e Cândido (2000)

sobre brincadeiras infantis nas aulas de matemática e assistimos a um vídeo das mesmas

autoras (SMOLE; DINIZ; CÂNDIDO, 2000). A partir disso, surgiram narrativas e

relatos de experiência que trouxeram como subsídio teórico os textos lidos, os vídeos

assistidos e as discussões ocorridas no grupo.

A cada encontro, percebíamos que as professoras se envolviam mais com a

temática e desenvolviam seu espírito crítico quanto ao que liam. Em alguns momentos

discordavam dos autores, com expressões como, por exemplo, “aula de matemática”, já

que entendem que na Educação Infantil não há aulas de matemática sistematizada como

nas séries iniciais, mas há a possibilidade de trabalhar a matemática nas diversas

situações e nos espaços que o curso oferece.

A partir disso, Edwards (1999) afirma que devemos pensar em situações de

caráter educativo-pedagógico intencional, definido, planejado e sistematizado mediante

a ação das crianças; situações que priorizem sua formação integral, num processo de

investigação como forma de motivação da criança à descoberta, ao conhecimento do

mundo, em que a aprendizagem se faz em todos os espaços da instituição de Educação

Infantil, mediante um olhar atento do professor para as noções e os conceitos que

ajudam a explicar a realidade na qual as crianças vivem; situações que as façam agentes

ativos, capazes de desenvolver suas diferentes linguagens, que têm em potencial.

As leituras dos textos, somadas aos vídeos assistidos e às discussões

realizadas levaram as professoras a produzirem um texto em que comentavam o que

estavam aprendendo e ressignificavam o brincar e a matemática na Educação Infantil.

Apresentaremos aqui alguns relatos que desencadearam importantes reflexões sobre

aspectos da Educação Matemática na infância.

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O olhar das professoras sobre o brincar e sobre a matemática na Educação

Infantil

A escrita das professoras elucidou o início de um processo de

ressignificação da matemática na Educação Infantil que pode ser vista a partir de

trechos tais como: Durante os encontros aprendi que as brincadeiras são uma forma prazerosa e eficiente para o ensino da matemática para as crianças [...] vale ressaltar que as brincadeiras devem ser interessantes e desafiadoras, fazendo com que os alunos reflitam e sintam que tenham problemas a resolver, enquanto brincam, pois aprendem quando buscam respostas. (Maria Clara10).

Destacaram também em seus textos orientações para os professores e

cuidados metodológicos ao utilizar os jogos, como:

Estabelecer uma frequência mínima de realização, pois a cada dia as crianças vão percebendo/experimentando novas situações (que surgem espontaneamente entre os pares ou por proposição da professora), garantir uma conversa prévia sobre a atividade para verificar o que já sabem e realizar os combinados e se estruturar momentos para se realizar o registro das atividades realizadas, o que leva a tomarem maior consciência da brincadeira e dos conceitos envolvidos. (Antônia).

Aprendi que a matemática pode ser bem mais interessante por meio dos jogos e estes devem ser aplicados com procedimentos metodológicos que propiciem o melhor aprendizado, tais como: primeiro verificar o que eles já sabem; depois, deixar que estes brinquem informalmente; em seguida, brincar, estruturar segundo as percepções e necessidades de regras e maneiras de anotar as brincadeiras que estes sentiram; incentivar as regras próprias do jogo. (Ilzete)

Apontaram também outro olhar que estão tendo para a matemática:

Também estou percebendo melhor a riqueza da matemática encontrada nas brincadeiras infantis [...] comecei a dar uma atenção especial às atividades que até então eram executadas mecanicamente, procurando direcioná-las ao auxílio de futuras situações-problema que possam surgir na vida escolar e doméstica. (Ariane).

Confesso que estou aprendendo várias formas de trabalhar a matemática através da brincadeira [...] também percebo que estou olhando para a matemática na educação infantil com outro olhar, ou seja, com um olhar mais atento. (Letícia). Estou aprendendo muitas coisas sobre o brincar e a matemática, a principal delas é a compreensão de que, brincando, a criança se constitui como um ser

10 Todos os nomes utilizados aqui neste artigo são fictícios e escolhidos pelas próprias professoras.

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social e tem oportunidade de desenvolver noções matemáticas essenciais e ampliar suas competências espaciais, pictóricas, corporais e musicais. (Simone).

Diante desses relatos, percebemos que pensar na Matemática, no contexto

da Educação Infantil, é evidenciar somente um dos saberes necessários para a criança

apropriar-se da cultura a que ela pertence. O desafio, nesse caso, é possibilitar que ela

construa as noções e os conceitos matemáticos de uma maneira livre, a partir daquilo

que ela faz: o brincar. É possível aprender a partir da atividade lúdica e da exploração

ativa, da interpretação do mundo, à medida que sua curiosidade é instigada, de uma

forma que valorize suas potencialidades e, a partir disso, desenvolva suas linguagens.

Percebemos que as professoras estão se conscientizando de que, a partir de

uma brincadeira ou de um jogo, é possível trabalhar os blocos de conteúdos já propostos

pelos Referenciais Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e também avançá-los, já que

destacam números e sistema de operações, grandezas e medidas, espaço e forma. Além

disso, as professoras estão percebendo a riqueza e as possibilidades de trabalhar com

conteúdos da estatística, como representações gráficas, tabelas, estimativas, acaso e

possibilidades.

Diante disso, destacamos que a aprendizagem matemática se faz em todos

os espaços da instituição de Educação Infantil mediante um olhar atento e intencional

do professor sobre as noções e os conceitos que ajudam a explicar a realidade. Para isso,

é preciso que o professor tenha uma formação matemática que lhe permita identificar,

no cotidiano da criança, quais situações podem ser exploradas matematicamente

(AZEVEDO, 2007), pois sabemos que o conhecimento matemático aparece

contextualizado no dia a dia das crianças.

A função do grupo no processo de ressignificação do conhecimento das professoras

Este artigo traz o início do processo de ressignificação, pelos professores,

dos conhecimentos relacionados à matemática na Educação Infantil. Temos consciência

de que, para a constituição de um grupo colaborativo, o tempo é fundamental; não

podemos afirmar ainda que este grupo que se constituiu seja colaborativo, mas há

indícios de que ele irá tornar-se um. Ainda estamos no processo de construção do

ambiente de confiança entre os participantes, visto que este “ocorre após um tempo

relativamente longo de convivência e do surgimento de uma sinergia positiva, a qual

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mobiliza simultaneamente as perspectivas pessoais e coletivas dos participantes,

coordenando-as em função de um objetivo comum” (PASSOS et al., 2006, p. 203).

Estamos percebendo uma grande motivação por parte das professoras para

participar do grupo: elas estão conhecendo-se e identificando-se a partir de interesses

em comum, pessoais ou profissionais. A proposta, nos primeiros encontros do grupo,

era dar voz e vez para as professoras, considerando-as como únicas e muito importantes

nesse processo de conhecer e aprender. Nós, pesquisadoras, colocamo-nos como

parceiras e participantes, assim como as professoras; deixamos explícito desde o início

que o grupo não tem “dono” ou coordenador, que todos podem propor questões,

discussões, relatar experiências e fazer escolhas.

O processo de conhecimento das professoras foi muito importante: no

primeiro dia as professoras apresentaram-se, falaram um pouco sobre sua vida pessoal e

um pouco de sua trajetória profissional e, apesar de muitas estarem trabalhando juntas

há algum tempo, não conheciam particularidades da vida das colegas; outras ainda não

sabiam o nome da colega e demonstraram que gostaram muito de conhecer um pouco

sobre quem eram essas companheiras que estavam dispostas a aprender junto com elas

sobre a educação matemática na infância. Nós, pesquisadoras, também fizemos um

esforço para nos apropriarmos de todos os nomes e nomear sempre as professoras, pois,

por mais que estejamos lidando com um grupo, cada pessoa é uma pessoa, tem uma

identidade e precisa ser reconhecida como membro importante e fundamental de um

todo que é um grupo; a ideia não é generalizar o grupo, mas valorizar particularidades

de cada participante, para constituir um todo.

Com o passar dos encontros, fomos percebendo que as professoras tinham

interesse em conhecer o trabalho desenvolvido pela colega com as crianças; começavam

a valorizar, quando uma colega estava relatando uma experiência, pois sabem que, na

Educação Infantil, a cada ano é possível trabalhar com uma faixa etária diferente; então,

é preciso aprender com a experiência da outra e ajudá-la a pensar como resolver seus

problemas.

Um ponto importante também foi o respeito que as professoras tiveram,

desde o primeiro encontro do grupo, com os pesquisadores. Sermos da UFSCar

significa muito para elas, pois reconhecem que a universidade é respeitada em âmbito

nacional e acreditam que temos condições de ajudá-las, pois julgam que dominamos os

processos de formação inicial e continuada de professores.

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Além do nosso compromisso com a qualidade educacional da formação,

preocupamo-nos também com o bem-estar das professoras; por isso, todos os dias a

reunião do grupo inicia-se com um lanchinho. Assim, as professoras vão se

acomodando, se abrindo, conversando informalmente, expõem o que estão sentindo,

socializam recados e contam histórias de suas vidas pessoais e profissionais. Esta é uma

atitude de respeito e consideração para com as professoras, que, depois de um dia de

trabalho que se estende até as 20h, dedicam-se por mais duas horas a estudar e a debater

sobre a educação matemática na infância.

Consequentemente, estamos percebendo esse comprometimento das

professoras também: ajudam a servir o lanchinho, a limpar e organizar a sala no final do

encontro e até nos dão carona para voltarmos para casa; fazem rodízio como forma de

cuidado e respeito para conosco.

Com a apresentação da proposta ao grupo, as professoras começaram a

perceber que o trabalho que realizam com as crianças é muito importante e

significativo. É interessante destacar que uma delas, em início de carreira, no primeiro

encontro disse que não tinha nada a dizer sobre seu trabalho com a matemática e as

crianças; contudo, no quarto encontro do grupo, ela nos procurou, afirmando que

gostaria de aprender a desenvolver um trabalho com a matemática, relatar suas

experiências com as crianças e fundamentá-las teoricamente, para apresentar em

congressos seu relato de experiência. Segundo ela, isso poderia ajudar outras

professoras a pensar sobre seu trabalho, visto que relatos de outras professoras, como os

do livro organizado por Grando, Toricelli e Nacarato (2008) estavam ajudando-a a

pensar sobre sua prática pedagógica.

Relatar sua própria experiência, como objetiva essa professora, vem sendo

praticado em nossos encontros: as professoras estão aprendendo a ouvir e a falar a

respeito de sua prática docente. Nos primeiros encontros, quando uma delas falava, as

demais não davam muita atenção ou importância; agora já estão percebendo que tudo é

importante e, assim, prestam mais atenção ao que as colegas dizem. No geral, as

conversas são abertas a todo o grupo, mas percebemos que, dependendo da discussão,

duplas vão se formando e partilhas vão acontecendo. Nesse momento, ocorrem nossas

interferências como pesquisadoras, para que haja a socialização da conversa da dupla

para o grupo, o que lhes permite perceber que conversas paralelas também podem

enriquecer a discussão do grupo.

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Todas essas características do processo de constituição do grupo estão

ancoradas na ideia de que é preciso de tempo para

aprofundar um conteúdo, mesmo que vários encontros se passem; é preciso tempo para elaborar, desenvolver e analisar um projeto, uma proposta, uma aula; bem como é preciso tempo para ouvir e ser ouvido. É fundamental dispor do tempo necessário para crescer, aprender, mudar. (FERREIRA, 2003, p. 337).

Diante dessa perspectiva, as professoras participantes das reuniões do grupo

e da pesquisa em desenvolvimento estão tendo a oportunidade de ressignificar

concepções, no sentido referido por Thompson (1992, p. 01): “a concepção de uma

pessoa sobre o que é a Matemática afeta a concepção de outras pessoas sobre como ela

deveria ser apresentada”.

Após essa reflexão, é importante esclarecermos que a prática inicial do

grupo pode estender-se por até um semestre, fase caracterizada como uma prática

fronteiriça (WENGER, 2001) que se constituirá na interface ou na confluência das

comunidades de prática que pouco dialogam entre si, como a universidade e a escola.

Com isso, a confiança pode ser estabelecida, visto que a todo momento evidenciaremos

a interação. Dessa forma, esperamos que, nas ações coletivas, a postura colaborativa

surja progressivamente e a ajuda recíproca esteja sempre presente. Imbernón (2010, p.

86), diz que “as comunidades de prática são grupos constituídos com o fim de

desenvolver um conhecimento especializado”.

Como já afirmamos, estamos caminhando para a constituição de um grupo

colaborativo, visto que,

na colaboração, todos trabalham conjuntamente (co-laboram) e se apóiam mutuamente, visando atingir objetivos comuns negociados pelo coletivo do grupo. Na colaboração, as relações, portanto, tendem a ser não-hierárquicas, havendo liderança compartilhada e co-responsabilidade pela condução das ações. (FIORENTINI, 2004, p. 50).

Boavida e Ponte (2002, p. 43) afirmam ainda que a colaboração “constitui

uma estratégia fundamental para lidar com problemas que se afiguram demasiado

pesados para serem enfrentados em termos puramente individuais”.

Estamos percebendo que, no início da constituição do grupo, é importante

que alguém conduza as discussões e faça as mediações necessárias. Neste caso, é o

pesquisador da universidade que exerce esse papel; no entanto, essa característica não

tira o caráter democrático de fazer escolhas coletivas, compartilhar experiências,

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discutir e negociar significados, como os participantes deste grupo fazem, falam,

sentem, pensem e produzem. Segundo Fiorentini (2009, p. 235), “a presença dos

acadêmicos no grupo torna-se importante, sobretudo na fase inicial de constituição do

grupo, pois eles podem colaborar na orientação e no apoio às reflexões e às

investigações dos professores, abrindo possibilidades de transformação da prática

curricular nas escolas”.

Dessa forma, a colaboração da universidade está criando condições

favoráveis para que as professoras de Educação Infantil se organizem, elaborem e

desenvolvam projetos de melhoria do trabalho pedagógico na instituição em que

trabalham. São espaços para uma aliança colaborativa que se mostra uma instância

catalisadora da constituição de uma profissionalidade interativa e deliberativa; do

desenvolvimento da capacidade dos profissionais para trabalhar colaborativamente num

ambiente de diálogo e interação: ali discutem, analisam, refletem e investigam sobre seu

trabalho, buscando compreendê-lo e transformá-lo (FULLAN; HARGREAVES, 1997).

Considerações finais

O artigo apresentou e discutiu o processo inicial de constituição de um

grupo de professoras da Educação Infantil que vêm se reunindo para discutir questões

relacionadas à Educação Matemática na infância. Os encontros iniciais mostraram que

as professoras têm um interesse em comum e que desejam estudar, partilhar

experiências e aprimorar suas práticas.

A experiência revelou que a formação continuada não precisa ser

necessariamente nos moldes de curso de formação fechada, estabelecida a priori por

formadores: é possível constituir um grupo que se potencialize pelo trabalho

colaborativo, que faça uso de uma relação interpessoal não hierárquica, de modo que

haja uma base de igualdade, ajuda mútua, relação de confiança, negociação cuidadosa,

tomada conjunta de decisões, aproximação entre teoria e prática, comunicação efetiva e

diálogo.

Há trabalhos como os de Ferreira (2003), Grando, Toricelli, Nacarato (2008)

e Lopes (2003), entre outros, que já nos mostram que a constituição de grupos com

características colaborativas pode gerar benefícios e contribuições efetivas e duradouras

para o desenvolvimento profissional de professores em sua formação continuada e

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revelam possibilidade da construção coletiva de uma profissionalidade docente

interativa que se renova e atualiza permanentemente.

Diante disso, há um interesse de que as práticas colaborativas perdurem,

fazendo com que as mudanças não sejam pontuais, mas que se mantenham a partir do

conceito de sustentabilidade educacional vista como “a capacidade de um sistema de se

engajar nas complexidades do aprimoramento contínuo consistente com valores

profundos de propósito humano” (HARGREAVES; FINK, 2007, p. 23).

Por fim, destacamos aqui que há uma motivação das professoras em

participar do grupo GEOOM: elas estão cada vez mais disponíveis para discutir e

aprender questões relacionadas à matemática, e isso se torna um indício de que o

vínculo está sendo estabelecido e a manutenção do grupo está se fazendo à medida que

as participantes se propõem a uma prática pedagógica cada vez mais intencional e

humanizadora.

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IDEIAS ESTATÍSTICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Antonio Carlos de Souza Celi Espasandin Lopes

Universidade Cruzeiro do Sul - SP Resumo Este artigo decorre de uma pesquisa de mestrado que teve por objetivo verificar as etapas de uma proposta didático-pedagógica para a abordagem da Estatística na Educação Infantil e o significado que as crianças atribuem a algumas noções estatísticas. Foi desenvolvida com a participação de 17 alunos de uma escola municipal de Suzano-SP. A questão central investigada foi: Como as crianças de 5 e 6 anos problematizam, elaboram instrumentos, coletam, organizam e analisam dados? Diante desse questionamento, consideramos as seguintes categorias para a análise dos dados: problematização; elaboração; coleta; organização; e análise. As informações foram construídas a partir de observações e intervenções do pesquisador-professor, durante o desenvolvimento das atividades relacionadas a uma investigação estatística sobre uma temática escolhida a partir das discussões com as crianças. O referencial teórico centrou-se em trabalhos de Batanero; Garfield e Gal; Lopes. Os resultados evidenciaram que o projeto desenvolvido possibilitou aos alunos a utilização de conhecimentos matemáticos já construídos, a aquisição de outros, novos e de conhecimentos estatísticos; e evidenciou a importância do contexto na abordagem de ideias estatísticas. O desenvolvimento do estudo permite afirmar a viabilidade do trabalho com as ideias estatísticas na Educação Infantil. Palavras-chave: Educação Infantil; Educação Estatística; Educação Matemática. 1. Introdução

Ao discutir a cultura infantil na sociedade contemporânea, Steinberg e

Kincheloe (2001) consideram que novos tempos prenunciam uma nova era na infância.

Entendemos que isso traz à Educação Infantil novos desafios. Se a infância é uma

criação da sociedade, sujeita a mudar sempre que surgem transformações sociais mais

amplas, então a criança chega à escola, hoje, com necessidades diferenciadas das

gerações passadas. Esses mesmos autores ponderam que as recentes alterações na

realidade econômica, associadas ao acesso das crianças a informações sobre o mundo

adulto, transformaram drasticamanete a infância (p.12-13), remetendo-nos a reflexões

sobre o que, como e por que adquirir conhecimento matemático e estatístico no início da

escolaridade.

Entendemos, então, que o momento social atual requer indivíduos capazes de

ler, estabelecer relações, levantar e verificar hipóteses, interpretar e argumentar. Isso

implica a necessidade de viabilizar, desde o início da Educação Básica, situações que

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permitam às crianças o acesso ao desenvolvimento de ideias que serão precursoras no

desenvolvimento dessas capacidades. Dessa forma, acreditamos que a discussão de

ideias estatísticas não só possa como deva ser abordada na Educação Infantil.

Entretanto, para tal abordagem, é preciso desfazer algumas crenças, entre elas a de que

crianças em idade pré-escolar não têm condições de lidar com ideias relacionadas à

Estatística.

Steinberg e Kincheloe (2001), de certa forma, promovem uma reflexão sobre a

relevância desta pesquisa, ao afirmar que:

O brilhantismo de Piaget foi embaçado por sua abordagem científica, não histórica e socialmente fora de contexto. O que quer que observasse como expressão genética da conduta infantil no princípio do século XX, ele generalizava para todas as culturas e eras históricas – um erro que causou sérias consequências para aqueles que se interessavam por crianças. Considerando os estágios de desenvolvimento biológico da criança como fixos e imutáveis, professores, psicólogos, pais, assistentes sociais e a comunidade em geral viam e julgavam a criança através de uma classificação de desenvolvimento fictícia. (STEINBERG; KINCHELOE, 2001, p.12)

Para pensar a educação estatística na infância, é preciso romper com

determinadas crenças que marcaram o ensino e a aprendizagem no século passado. É

necessário perceber que a Estatística é uma ciência de análise de dados e que o acesso

das crianças a ideias científicas deve ocorrer conectado ao seu universo infantil. Não

defendemos aqui uma escolarização para educação infantil, tampouco a antecipação de

informações produzidas pelas Ciências que não teriam significado para as crianças, mas

acreditamos que não podemos subestimar a capacidade das crianças e desconsiderar

suas curiosidades. Na perspectiva freireana, buscamos que professor e aluno se

assumam epistemologicamente curiosos; para isso, é preciso saber escutar nossos

alunos, pois é escutando que aprendemos a falar com eles (FREIRE, 1996).

Considerando esses pressupostos, buscamos por um processo de ensino e

aprendizagem que contribua para a formação de cidadãos autônomos, capazes de pensar

por conta própria, sabendo resolver problemas (BRASIL, 1998). É fato que, desde seu

nascimento, as crianças estão inseridas em um universo em que a Matemática se faz

presente. Assim, participam de muitas situações que envolvem números; relações entre

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quantidades; noções de espaço e formas; noções de tempo; quantidade de massa e

outros.

Essas ideias matemáticas estão presentes nas informações que perpassam o

cotidiano das crianças, aparecendo principalmente e de forma colossal nos meios de

comunicação de massa, o que exige delas habilidades para ler, interpretar e argumentar.

Sendo assim, os espaços de educação infantil devem favorecer as interações e os

intercâmbios com o meio, estimulando seu desenvolvimento crítico e preparando-as

para o pleno exercício da cidadania.

O presente texto apresenta um recorte de uma pesquisa de mestrado (SOUZA,

2007) que foi desenvolvida com a participação de 17 alunos não leitores, em faixa etária

de 5 e 6 anos, matriculados em uma escola da rede municipal de educação da cidade de

Suzano-SP, e teve por objetivo verificar as etapas de uma proposta didático-pedagógica

para a abordagem da Estatística na Educação Infantil e perceber o significado que as

crianças atribuem a algumas noções estatísticas. Os elementos norteadores desta

pesquisa estão centrados nos referenciais teóricos elaborados pelas pesquisas de

Batanero (2000, 2002), Garfield e Gal (1999) e Lopes (2003).

A opção metodológica por uma pesquisa qualitativa interpretativa possibilitou

responder a seguinte questão: Como as crianças de 5 e 6 anos problematizam, elaboram

instrumentos, coletam, organizam e analisam dados? Para esta análise foram

consideradas as seguintes categorias: problematização; elaboração; coleta; organização;

e análise.

2. O contexto da pesquisa

A Escola Municipal de Educação Infantil e Fundamental “Vereador Antonio

Martins”, fundada em 2 de abril de 1968, conta com três salas de aula e está situada no

bairro Cidade Edson, em Suzano, cidade da região metropolitana de São Paulo-SP. Seu

funcionamento ocorre de segunda a sexta-feira, nos períodos: manhã, intermediário e

tarde.

Além dos períodos, a divisão dos alunos também se deu em turmas formadas

conforme suas faixas etárias, sendo quatro turmas de G4, com alunos cuja faixa etária é

quatro anos; três turmas de G5, compostas por alunos em faixa etária de cinco anos; e

duas turmas de SIM (Série Inicial Municipal), formadas por alunos de seis anos.

O trabalho de pesquisa foi desenvolvido com a participação dos alunos da turma

G5-A, para a qual o professor-pesquisador lecionava. Nascidos entre abril e outubro de

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2000, dos 17 participantes, 12 são moradores do bairro onde está localizada a escola e 5

moram em bairros adjacentes. Estudavam no período da manhã e, durante o período de

realização das atividades desta pesquisa, tivemos uma frequência média de 14 alunos.

3. Procedimentos metodológicos

O desenvolvimento da pesquisa teve início com uma reunião com os pais dos

alunos, cujos objetivos foram: informar sobre o trabalho que iríamos desenvolver e

solicitar as autorizações para a participação dos alunos no projeto.

Os registros das informações construídas foram feitos por meio de gravações de

áudio, registros fotográficos e anotações no diário de campo. Quanto às atividades de

ensino, estas compunham uma proposta didático-pedagógica para a abordagem de ideias

estatísticas. Propusemos aos alunos o desenvolvimento de um projeto de investigação

estatística, para cuja realização foram necessários 12 encontros.

Essa proposta contemplava várias etapas referentes à investigação estatística:

escolha de um tema para pesquisa; elaboração de instrumentos para coleta de dados;

coleta de dados; tabulação dos dados; representação dos dados; interpretação;

conclusão; e comunicação dos resultados. Para que fosse possível a participação dos

alunos na realização das atividades relacionadas ao projeto de pesquisa, foi necessário

que estes se valessem do conhecimento matemático que tinham construído

anteriormente.

Do conhecimento matemático utilizado pelos alunos, destacamos as ideias de:

grandeza; posição; tempo; simbolização; correspondência; quantidade; contagem;

sequências; classificação; seriação; adição e subtração. Além do que foi apresentado

acima, os alunos também se valeram de capacidade de observação, criatividade e senso

crítico.

4. As crianças e a investigação estatística

4.1. A escolha do tema

Ao elaborarmos as atividades de ensino para a realização do projeto de pesquisa

com as crianças, nossa preocupação inicial era com o que poderia ser escolhido como

tema, pois teria que ser algo relevante, que despertasse o interesse e tivesse significado

para os alunos. Assim, aproveitamo-nos de um fato ocorrido na escola com relação à

merenda. Duas funcionárias do setor de merenda escolar da Prefeitura foram à escola

para recolher informações sobre o que os alunos pensavam sobre a merenda oferecida

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diariamente a eles. Para obter tais informações, propunham aos alunos que

respondessem à pergunta “O que você acha da merenda?”, marcando uma das

alternativas representadas por símbolos contidos em uma tira de papel, conforme mostra

a figura abaixo:

Quadro 1: O que você acha da merenda?

As “carinhas” significavam, respectivamente, merenda boa, merenda ruim,

merenda ótima. Na ocasião, foi acordado que a coleta dessas informações ficaria por

conta do professor, por conhecer sua sala e saber como era a dinâmica do grupo de

alunos com o qual atuava. Sendo assim, explicamos aos alunos o que teriam que fazer.

Em seguida, um aluno de cada vez foi chamado à nossa mesa para responder a questão

de acordo com o que achava da merenda. A opção por chamar o aluno individualmente

era para que um não influenciasse a resposta do outro, pois observamos com freqüência,

no trabalho com alunos dessa faixa etária, situações em que escolhas são feitas a partir

de influências de terceiros.

A ideia de utilizar tal situação para iniciarmos as discussões sobre o tema do

projeto surgiu logo após todos os alunos responderem à questão, pois, como o aluno não

sabia a resposta dos colegas, em poucos minutos surgiu a pergunta: O que você

marcou? Essa curiosidade em saber o que o colega respondera estendeu-se em relação

às respostas dadas pelos alunos das outras duas salas do período. Com isso, iniciamos as

discussões sobre o tema a ser escolhido para a realização do projeto de pesquisa

desenvolvido com as crianças.

Esta primeira etapa, da problematização, considerada a primeira categoria de

análise, caracterizou-se pela interação entre os alunos e o professor-pesquisador a partir

de discussões de assuntos referentes ao contexto dos alunos.

A curiosidade dos alunos foi o ponto de partida para iniciarmos as discussões.

Para realização dos trabalhos, a dificuldade encontrada foi a exaltação dos alunos, pois

precisávamos ouvir o máximo e o melhor possível a fala de cada aluno, a fim de

fazermos os respectivos registros. Nossa preocupação maior foi quanto às medidas a

serem tomadas para conter um pouco essa exaltação, sem cercear a criatividade e o

interesse de manifestação nas discussões. Contudo, ao final conseguimos definir

algumas questões que poderiam ser trabalhadas: a merenda, aproveitando a pergunta

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apresentada pelas funcionárias da Prefeitura; a escola em que os alunos iriam estudar

em 2007; se os alunos gostavam ou não da escola atual; e o horário em que os alunos

vão dormir, esta sugerida por nós. Quanto ao uso da palavra pelos alunos, reportamo-

nos a Mello (2005), quando diz que “as palavras são a matéria com que trabalha o

pensamento, se faltam as palavras, falta o pensamento”.

4.2. A elaboração de instrumentos

Nosso objetivo para esta etapa do trabalho de campo era discutir e elaborar o

instrumento para coleta de dados no projeto das crianças. Com as discussões, ficou

definido que seria feita uma entrevista com todos os alunos que estudavam no período

da manhã. A ideia então, era elaborar um questionário.

Segundo Rocha (2000), logo nos primeiros anos de escolaridade as crianças

podem colocar questões para investigar, organizar as respostas e criar representações

dos dados. Através dos dados das suas investigações, as crianças desenvolvem conceitos

acerca da tomada de decisões. Assim sendo, iniciamos os trabalhos, relembrando o que

havíamos feito até então e apresentando novamente as questões que já tínhamos prontas.

À medida que as novas questões eram definidas, o professor-pesquisador as anotava em

uma folha.

Assim, chegou-se ao questionário apresentado a seguir: 1. Sexo: Masculino Feminino

2. Idade: 5 6 7

3. Você gosta da escola?: Sim Não

4. O que você acha da merenda da escola?: Muito gostosa Gostosa Ruim

5. Como você vem para a escola?: De transporte escolar De carro A pé De bicicleta De moto

6. A que horas você vai dormir?: 7 8 9 10 11

7. A que horas você se levanta para vir para a escola?: Cinco Cinco e meia Seis Seis e meia

8. Você mora...: Perto da escola Longe da escola

9. Onde você vai estudar no ano que vem? E.E. “Zeikichi Fukuoka” EMEIF “Vereador Antonio Martins” Outra escola

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Após a elaboração do questionário, deparamo-nos com um novo problema:,

estávamos trabalhando com crianças não leitoras, e, assim, como poderiam realizar a

entrevista com seus colegas? A solução foi o uso de figuras para a representação das

respostas do questionário. Segundo Smole (1996), o fato de uma criança não saber ler

ou escrever não significa que ela seja incapaz de ouvir e pensar. Ainda segundo a

autora, outros meios podem ser utilizados na solução de um problema proposto, como,

por exemplo, o desenho e a expressão pictórica.

Com a decisão de usar figuras no questionário, fizemos um rascunho dos

desenhos que seriam usados para representar as opções de resposta, porém encontramos

problemas para realizar algumas representações. Os alunos conheciam símbolos

numéricos para representação de valores inteiros (positivos); então, como faríamos para

representar os horários cinco e meia e seis e meia na questão número sete? A seguir

apresentamos trechos da discussão para resolver o problema: P: Nós vamos fazer os desenhos para vocês marcarem, não é? Para quem acorda às seis

horas, nós vamos fazer o número seis. E agora o “seis e meia”, como é que nós vamos

fazer? Eu vou fazer os números no computador e os dois vão ficar iguais. Se eles vão ficar

iguais, como é que vamos saber (mostrando os números na lousa) que esse é “seis” e esse é

“seis e meia?”.

Guilherme: Por que você não faz um pequeno e o outro grande?

P: Mas qual que vai ser o pequeno, o “seis” ou o ”seis e meia”?

Alunos: O “seis”.

P: Por quê?

Thais: Porque o seis e meia é mais tarde que o seis.

A ideia também serviu para o horário das cinco e meia. A solução encontrada de

certa forma nos surpreendeu, porém foi perfeita. As duas últimas questões também

geraram um pouco mais de discussão que as demais e, como acontecera na questão sete,

tivemos ótimas soluções. Como a figura de uma casa perto e outra longe de uma escola,

na questão oito. Para a questão nove, a solução foram as figuras de três escolas, nos

tamanhos grande, pequena e média para representar as escolas, respectivamente,

“Zeikichi Fukuoka”, “Antonio Martins” e a escola desconhecida. Solucionados todos os

problemas para representação das respostas, chegamos à versão final do questionário.

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1. SEXO

2. IDADE 5 6 7

3. VOCÊ GOSTA DA ESCOLA?

4. O QUE VOCÊ ACHA DA MERENDA DA ESCOLA?

5. COMO VOCÊ VEM PARA A ESCOLA?

6. A QUE HORAS VOCÊ VAI DORMIR?

7 8 9 10 11

7. A QUE HORAS VOCÊ SE LEVANTA PARA VIR PARA ESCOLA?

5 5 6 6

8. VOCÊ MORA....

9. ONDE VOCÊ VAI ESTUDAR NO ANO QUE VEM?

Quadro 2: Versão final do questionário

A etapa correspondente à instrumentação está inserida na categoria de análise

denominada elaboração, em que foram levados em consideração a interação entre os

alunos e o professor-pesquisador, o contexto das crianças, a atribuição de signos e o

conhecimento matemático. Durante essa fase, os alunos tiveram a necessidade e a

oportunidade de utilizar conhecimentos matemáticos construídos anteriormente, como

noção de tempo e ideia de posição. Foi possível perceber também a formulação de uma

pequena inferência feita pelo aluno Guilherme, ao considerar que o horário de levantar

poderia estar relacionado à distância da casa do aluno em relação à escola e/ou ao meio

de transporte utilizado para percorrer o referido trajeto.

Outro destaque foi a inferência feita pela aluna Thais, ao dizer que o desenho

para representação da opção “outra escola” na questão de número 9 deveria ser médio,

pois o tamanho dessa possível escola em relação às escolas Zeikichi Fukuoka e Antonio

Martins era desconhecido. Podemos considerar que tais afirmações são um pequeno

indício de um dos tipos de raciocínio que Garfield e Gal (1999) dizem esperar que os

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alunos desenvolvam à medida que aprendem Estatística; neste caso, é o raciocínio sobre

a incerteza.

Outro ponto relevante que percebemos nessa etapa de elaboração do instrumento

de coleta de dados foi a utilização de imagens (desenhos) como representação simbólica

das ideias do questionário, o que demonstrou boa capacidade de resolução de

problemas. Além disso, a leitura de imagens serve de suporte para o aprendizado da

linguagem (JOLY, 2006), em particular a linguagem escrita.

A etapa apresentada vem ao encontro do que citam Garfield e Gal (1999) em

relação às recomendações, publicadas no NCTM (National Council of Teachers of

Mathematics) a partir de 1989, para ajudar os alunos a desenvolver um raciocínio

significativo, pois acreditamos que foi possível fornecer aos alunos participantes a

oportunidade de trabalhar com dados reais e com a resolução de problemas

interessantes. Batanero (2000) afirma que a aplicação da Estatística proporciona boas

oportunidades para mostrar aos alunos a utilidade da Matemática para resolver

problemas reais, como nos foi possível confirmar.

4.3. Coleta de dados

A maneira que escolhemos para os alunos coletarem os dados exigia uma

preparação para a execução de tal tarefa, pois, além de conhecer as questões, os alunos

tinham que dominar os procedimentos necessários para a coleta. Durante a atividade de

preparação, decidimos que as entrevistas seriam realizadas em duplas compostas por um

entrevistador e seu ajudante.

O entrevistador seria o aluno que iria ler e fazer as perguntas ao entrevistado,

enquanto a função do ajudante era chamar o entrevistado em sua sala, acompanhá-lo até

o local da entrevista, auxiliar o entrevistador caso precisasse de ajuda e depois

acompanhar o entrevistado até sua sala novamente. A escolha de quem exerceria cada

uma das funções deu-se por meio de manifestações dos alunos, pelo conhecimento em

relação às questões e pela desenvoltura de cada um.

Ao final da atividade de coleta de dados, foram entrevistados 20 alunos da SIM-

A e 16 alunos do G5-B. Após realizarem as entrevistas, os alunos do G5-A responderam

ao questionário. O que serviu, entre outras coisas, para avaliar se todos os sabiam ler as

questões e conheciam o significado de cada uma delas. Os alunos, tanto os

entrevistadores quanto os ajudantes, mostraram-se muito à vontade no desenvolvimento

das atividades do dia. Houve grande interesse e entusiasmo de todos.

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A etapa apresentada insere-se na categoria de análise que denominamos como

coleta, que ficou caracterizada pela interação entre os alunos do G5-A e os alunos das

outras duas turmas. Outro aspecto a considerar foi o contexto no qual a etapa se inseria.

Para realizar as entrevistas, percebemos que os alunos tiveram que fazer uso da

ideia de sequência, tanto na preparação, quanto na entrevista propriamente dita.

Percebemos, durante a fase de preparação para a coleta de dados, que alguns alunos

confundiram-se nas questões que apresentavam símbolos iguais para significados

diferentes. Por outro lado, a forma como os alunos liam as questões mostrou-nos

indícios de que haviam compreendido e não apenas memorizado as questões.

Acreditamos que a participação na construção dos símbolos para o questionário e de

seus respectivos significados tenha contribuído para tal entendimento.

A alegria, a agitação e a empolgação dos alunos durante as entrevistas para a

coleta dos dados, inclusive entre os alunos entrevistados, foi algo muito interessante. A

movimentação e o som produzido pelos alunos no pátio da escola foram indicadores do

comprometimento com a atividade. Os sentimentos dos alunos do G5-A em relação à

fase de coleta de dados ultrapassaram os limites da escola: algumas mães relataram que

seus filhos não conseguiram dormir, pensando na “tal entrevista”. Batanero (2002) diz

que a cultura não é somente conhecimento e capacidade, também compete à educação a

parte emocional, composta por sentimentos, valores e atitudes.

Acreditamos que esta etapa demonstrou o quanto desenvolver atividades em

grupo pode ser um processo significativo para a aprendizagem. Fizemos uma divisão de

tarefas: os alunos operaram como ajudantes e entrevistadores, enquanto ao professor-

pesquisador coube a função de coordenador dos trabalhos.

4.4. A organização dos dados

A tabulação dos dados foi feita em quatro fases. Nas três primeiras, tabulamos

os dados de cada uma das três salas (SIM-A, G5-A e G5-B) e, na última, fizemos uma

tabulação geral. Para a tabulação dos dados, fizemos quatro jogos de tabela (que

chamamos de cartazes), ampliados em folha tamanho A3. Os quadros continham as

figuras referentes às respostas de cada uma das nove questões, sendo que cada jogo

continha três tabelas, onde foram distribuídas as questões do questionário. A divisão dos

jogos de tabelas era a seguinte: um para os dados da SIM-A, um para os dados do G5-

A, um para os dados do G5-B; e o último jogo foi para a tabulação dos dados gerais,

onde juntamos as informações das três salas.

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As atividades referentes à tabulação dos dados não ocorreram como esperado.

Os alunos demonstraram cansaço e pouca concentração, com isso se dispersaram. Em

alguns momentos ficamos em dúvida se todos os alunos compreenderam bem o que fora

proposto. Principalmente no que se refere ao “transporte” dos dados contidos nas fichas

de entrevista (questionários) para a tabela.

Consideramos as atividades referentes à tabulação dos dados como pertencentes

à categoria de análise denominada organização. Na tabulação, os alunos utilizaram e

aprimoram seus conhecimentos relacionados às ideias de contagem e número.

No início das discussões, os alunos pensavam em somente guardar as folhas com

os questionários respondidos, não conseguiam ver outras possibilidades de uso de todo

o material coletado. Com o transcorrer das discussões, alguns alunos, como Nadia,

começaram a perceber que algo deveria ser feito, porém, não tinham clareza do quê.

Tivemos que prosseguir nas discussões e percebemos que a fala de um aluno contribuía

para a formulação de ideias de outro. Também foi possível observar que alguns

conhecimentos prévios como, por exemplo, sobre o que era uma tabela, funcionaram

como facilitadores no desenvolvimento de ideias durante os trabalhos.

Os alunos revelaram também dominar a contagem: ao perguntarmos como

podiam fazê-la, tivemos como resposta que esta deveria ser feita com a boca e com a

mão, ou seja, apontando e enumerando o elemento contado, realizando o que Dante

(1996) denomina contagem racional.

Entretanto, os alunos não entenderam que nos referíamos a como efetuar a

contagem dos dados coletados. O mesmo ocorreu quando realizávamos a discussão

sobre o que fazer com um dos conjuntos de tabelas para a tabulação dos dados. Embora

algumas crianças, como Thaynna, expressassem que aquilo era “coisa de criança”; — e

provavelmente tenha falado assim para expressar o quanto para ela aquilo era fácil —,

essa forma de representação não era simples para todos os alunos. Thaynna, de fato,

realizou a atividade sem dificuldades. Mas, para a maioria dos alunos, o entendimento

construía-se à medida que os trabalhos se adiantavam. Segundo Duval (2004, apud

BUEHRIHG, 2006), o trânsito entre representações não é algo natural, é uma atividade

pouco espontânea e de difícil compreensão para a maioria dos alunos. De fato, foi o que

confirmamos.

Acreditamos que, ao lidar com os procedimentos desta etapa, os alunos

vivenciaram situações que possibilitaram o raciocínio sobre os dados e sobre a

representação destes (GARFIELD; GAL, 1999). Também nos reportamos a Lopes

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(2003), que afirma que a Educação na infância deve priorizar, entre outras coisas, o

acesso a diferentes linguagens e representações. Entretanto, a tabulação dos dados,

dentre todas as etapas de realização do projeto de pesquisa, foi a mais cansativa e talvez

a mais desinteressante para os alunos. Acreditamos que fatores como a quantidade de

dados e as dificuldades para o seu transporte para as tabelas tenham contribuído para o

cansaço e o desinteresse. Apesar disso, foi possível perceber que os alunos, com

exceção de dois, chegaram ao final desta etapa compreendendo o processo realizado.

4.5. A representação dos dados

Optamos por representar os dados por meio de gráfico de colunas, por ser este

um tipo de representação mais adequado às variáveis qualitativas (MAGALHÃES;

LIMA, 2005) e ao trabalho com alunos dessa faixa etária; e também pelo fato de que os

alunos já conheciam esse tipo de representação de dados. Foi construído um gráfico

para cada questão, com colunas de uma mesma altura, subdivididas em retângulos, que

os alunos pintaram de acordo com as frequências verificadas na etapa de tabulação. A

opção por construir as colunas subdivididas e de mesma altura objetivava que os alunos

tivessem que consultar as tabelas de dados tabulados para efetuar a pintura da coluna na

altura correspondente à sua frequência. Caso contrário, não fariam a associação entre a

altura da coluna e a frequência das respostas e, com isso, o trabalho não teria sentido.

Chegamos a essa etapa com o questionário respondido por 57 alunos, do total de

61 alunos matriculados na escola quando iniciamos o trabalho de pesquisa. Para os

alunos Thais e Samuel, os dados coletados estavam errados, porque não tínhamos as

respostas de todos os alunos do período da manhã. Apesar de quase 100% do total dos

alunos matriculados nesse período terem respondido o questionário, para os alunos

citados as respostas dos 57 entrevistados não seriam suficientes para termos uma

conclusão verdadeira; afirmavam que não poderíamos dizer que as respostas obtidas

representavam a opinião de todos. Portanto, para os dois, não tínhamos uma amostra

significativa, mesmo tendo mais de 90% dos alunos respondido ao questionário. Ou

seja, para eles, a ideia de amostra ainda não havia se construído, o que acreditamos ser

natural para a sua faixa etária; e, além disso, não havíamos abordado tal conceito no

trabalho com essas crianças. Entretanto, ao fazer essa observação, Samuel e Thais

estavam raciocinando sobre a representação dos dados. Tal forma de raciocínio refere-

se aos aspectos destacados por Garfield e Gal (1999), sobre o deve ser esperado de um

aluno quando aprende Estatística.

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As observações de Samuel e Thais levaram-nos a fazer adequações no material

preparado para a confecção dos gráficos. Ao preparar o material, não pensamos na

possibilidade de algum aluno perceber que a quantidade de questionários respondidos

não correspondia à quantidade de alunos matriculados no período da manhã.

Acreditamos que essa observação se deva ao fato de as crianças estarem envolvidas com

uma atividade de ensino muito significativa para elas.

Naquele momento do trabalho, para resolver a questão, fomos à sala do G5-B e à

sala da SIM-A, com o intuito de verificar se entre os alunos presentes naquele dia,

algum ainda não tinha respondido o questionário. Fomos informados, no G5-B, que a

aluna que não tinha respondido o questionário havia sido transferida. Já na SIM-A,

fomos informados que, entre os presentes, dois alunos ainda não tinham respondido o

questionário e um terceiro já não frequentava as aulas há algum tempo. Com a

entrevista desses dois alunos, chegamos ao total de 59 entrevistados.

Resolvida a questão, apresentamos o material para os alunos: as folhas contendo

os gráficos, com suas respectivas colunas. Dividimos o material para os alunos em

duplas, e cada dupla ficou responsável por um gráfico; depois os orientamos para que

escolhessem uma cor de lápis que gostariam de usar e para que só usassem a tal cor

escolhida para pintar as colunas de um mesmo gráfico. Sugerimos também que

escolhessem cores escuras e que pintassem um quadrinho (retângulo) por vez, para que

não borrassem nem pintassem onde não era para ser pintado.

Depois da orientação geral, dirigimo-nos a cada aluno, mostrando a tabela, para

que assim ele pudesse saber quantos quadrinhos (retângulos) deveria pintar para cada

opção de resposta da questão.

Para a execução da tarefa proposta, percebemos que os alunos criaram

estratégias próprias. Chamou-nos a atenção a aluna Giovana que, para pintar a

quantidade correta de retângulos no gráfico, contava e marcava os retângulos contados

com um pequeno traço para depois pintar. O resultado final dessa etapa do trabalho

encontra-se nos anexos 1 e 2. Uma questão que sempre emerge das discussões com professores refere-se à

capacidade dos alunos de formular e entender as questões, assim como a veracidade das

respostas dadas pelos alunos entrevistados. Entretanto, para nós, os alunos haviam

compreendido e construído conhecimentos com o que fora proposto a eles. Segundo

Lopes (2003), a realização de experimentos que envolvem a vivência de coletar,

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representar e analisar dados que sejam significativos e inseridos no contexto dos alunos

pode ampliar o universo de competências das crianças. Com os gráficos prontos, foi possível fazer algumas comparações e, com isso,

responder alguns desses questionamentos. Comparamos as respostas dadas pelos alunos

com as respostas dadas por aproximadamente duzentos pais a um questionário proposto

no início daquele ano letivo, com o objetivo de conhecer a clientela atendida pela

escola. As duas pesquisas tinham uma questão em comum: o meio de transporte

utilizado no trajeto casa-escola. Verificando seus gráficos, vimos que expressavam

informações equivalentes.

As atividades desenvolvidas nesta etapa também estão inseridas na categoria de

análise denominada organização.

Para a representação gráfica dos dados coletados, os alunos fizeram uso de

conhecimentos que lhes possibilitaram visualizar, analisar e comparar. Além disso, nas

discussões que antecederam a construção dos gráficos, foi possível tratar com os alunos

uma situação real em que foi utilizada uma das ideias da subtração: a ideia de

completar, quando discutimos sobre a quantidade de alunos que tinham respondido ao

questionário e a quantidade dos que ainda não tinham. Ao efetuar essa operação, alguns

alunos recorreram aos dedos para contar, confirmar e registrar o resultado.

Além dos conhecimentos matemáticos citados até aqui, ao ler as tabelas e

representar os dados nos gráficos, os alunos tiveram a oportunidade de estabelecer

algumas correspondências como, por exemplo, entre a frequência de uma determinada

variável e a altura da coluna que a representava.

4.6. A interpretação dos dados, a elaboração de conclusões e a comunicação dos

resultados

Esta etapa refere-se às atividades finais de nosso trabalho de campo, apresentado

neste texto como o projeto estatístico desenvolvido com os alunos do G5-A. A categoria

em que se inclui denomina-se análise: os alunos efetuaram a interpretação, chegaram a

algumas conclusões por meio de pequenas inferências e também comunicaram os dados

a toda comunidade escolar. No que se refere à interpretação dos dados coletados,

podemos dizer que esta ocorreu ao longo dos trabalhos e não somente em uma etapa

específica.

Optamos por fazer a comunicação dos resultados por meio de comunicações

orais e de exposição dos gráficos no pátio da escola. Assim como fora feito na coleta

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dos dados, realizamos uma atividade de preparação dos alunos. O ponto de partida foi a

leitura e os comentários de cada um dos gráficos. Desse modo, foi possível verificar

como os alunos os liam, bem como suas respectivas interpretações e conclusões. Por

exemplo, o fato de o aluno morar perto da escola determina o horário em que este deve

se levantar para ir à escola e sua opção por locomover-se a pé para chegar até a escola.

Entretanto, ficou claro que isso não é uma regra ou uma coisa determinada. Haja vista

casos de alunos que responderam que moram perto da escola e utilizam algum meio de

transporte, como o carro, por exemplo, para ir de sua casa para a escola.

Para as comunicações, no total de quatro, primeiramente dividimos os alunos em

três grupos: um deles apresentou os resultados da pesquisa para os alunos e para a

professora do G5-B; o segundo, para os alunos e para a professora da SIM-A; e o

terceiro grupo apresentou-se para os funcionários e para a diretora da escola. Na quarta

sessão, os alunos foram divididos em duplas e apresentaram-se para seus pais.

Decidimos pelos grupos, porque assim poderíamos ter a participação do maior número

possível de alunos, bem como uma maior (e melhor) organização nas apresentações.

Durante a preparação dos alunos, percebemos bom desempenho dos grupos,

tanto no conhecimento do que falavam, quanto na desenvoltura para falar e explicitar

suas formas de pensar e estabelecer relações. Entretanto, nas apresentações não tiveram

a mesma desenvoltura que revelaram na sala de aula durante a preparação. Atribuímos a

isso o fato de falar em ambientes desconhecidos (no caso das apresentações nas salas do

G5-B e da SIM-A) e apresentar-se para adultos, no caso seus pais e funcionários da

escola. Houve necessidade de fazermos algumas intervenções, para que fosse possível o

andamento dos trabalhos.

Quanto à exposição dos gráficos, esta teve como objetivo apresentar os

resultados da pesquisa para o restante da comunidade escolar, uma vez que não foi

possível realizar apresentações orais para todos.

Ao analisar esta etapa, destacamos alguns aspectos que a caracterizaram, a

começar pela presença dos 17 alunos no dia 8 de dezembro de 2006, penúltimo dia dos

trabalhos, fato único em todas as etapas. Isso possibilitou maior interação, gerou intensa

participação e ampliou o entendimento dos alunos e a explicitação de ideias, com

melhores condições de escolha nos temas discutidos.

As interpretações baseadas no grupo de informações, representações de dados e

sínteses estatísticas de dados são, segundo Garfield e Gal (1999), características do

raciocínio estatístico. Daí a importância da comunicação de ideias a partir de tabelas e

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gráficos: é uma forma de iniciar o desenvolvimento do raciocínio estatístico desses

alunos.

A exposição dos resultados do trabalho realizado com os alunos gerou algumas

manifestações, entre elas a fala de uma mãe de aluno, estudante de outro período, que

nos perguntou se iríamos fazer o mesmo trabalho com os alunos de outros períodos,

pois gostaria que seu filho participasse. Houve ainda nossa conversa com uma

funcionária e com a diretora da escola a respeito dos gráficos. Tais fatos nos mostraram

a importância da comunicação em um trabalho com tratamento de dados. Além disso, os

resultados obtidos através das atividades desenvolvidas com as crianças possibilitaram a

percepção e a discussão de algumas questões antes não tratadas na escola. O que, ao

nosso entender, é mais um fator que justifica a importância da abordagem de conceitos

relacionados à Estatística com alunos de Educação Infantil.

5. Considerações finais

Este trabalho teve como ponto de partida nossa inquietação no que se refere ao

ensino e à aprendizagem da Matemática e da Estatística na Educação Infantil.

Consideramos como princípio o respeito à cultura infantil e a curiosidade das crianças.

Podemos dizer que os resultados obtidos e aqui apresentados decorrem de uma

investigação centrada no “ouvir a criança”.

Percebemos que todo o processo proposto nesta pesquisa exigiu que os alunos

usassem seus conhecimentos matemáticos, construídos a partir de atividades

desenvolvidas na escola desde o início do ano letivo, assim como conhecimentos que

foram acumulados desde outros anos de escolaridade e também aqueles adquiridos fora

da escola. Destacamos entre eles as ideias de contagem, a comparação de quantidades, o

reconhecimento de símbolos numéricos e sua relação com as respectivas quantidades, a

ideia de distância, a noção de grandeza, as ideias de adição e subtração, bem como a

capacidade de resolução de problemas.

Quanto às questões propostas no questionário para a coleta de dados, pareceram

relevantes e significativas para os alunos, uma vez que tratavam de situações que eles

vivenciavam todos os dias. Durante as discussões iniciais, em que tratávamos sobre os

possíveis resultados da pesquisa sobre a merenda escolar, percebemos que a

preocupação dos alunos quanto a isso se justifica, uma vez que tais resultados poderiam

influenciar diretamente o dia a dia desses alunos na escola. Para nós ficou claro que,

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para esses alunos, merenda é coisa séria, algo que deve agradar a todos e não apenas à

maioria.

É interessante observar o entendimento, pelos alunos, das relações entre algumas

questões do questionário, como é o caso da relação do horário de acordar com a

distância entre a casa e a escola e com o meio de transporte utilizado para a locomoção

no trajeto casa-escola. Assim, morar perto da escola permite a locomoção a pé, sem

precisar acordar muito cedo. Outra relação discutida foi entre o horário de dormir e o

horário de acordar: para os alunos em questão, dormir tarde e acordar cedo é uma

combinação que compromete o rendimento na participação das atividades propostas

durante as aulas. Talvez pareça óbvia a existência dessas relações; entretanto,

acreditamos que seja pouco provável que esse grupo de alunos tivesse pensado nisso, se

não tivessem participado do projeto. Porém, não desacreditamos da capacidade de fazer

inferências demonstrada por esses alunos.

Verificamos que o trabalho proporcionou a abordagem de aspectos que foram

além do que se refere somente à Matemática. Os alunos puderam falar, discutir,

movimentar-se, expor suas ideias e ampliar sua capacidade de comunicação. Nossa

preocupação em todo o processo foi em não fazer interferências em demasia, a fim de

não atrapalhar o processo de construção de pensamentos e conhecimentos dos alunos.

Preocupamo-nos em propor situações que os levassem a pensar, e não a pensarmos por

eles.

Tínhamos como objetivo verificar as etapas de uma proposta didático-

pedagógica para a abordagem da Estatística na Educação Infantil, bem como o

significado que as crianças atribuem a algumas noções estatísticas. Percebemos, ao final

do trabalho, ser uma proposta viável, que confirmou ser possível um trabalho

relacionado a ideias estatísticas com alunos na faixa etária com que trabalhamos.

Porém, percebemos também a necessidade de algumas adequações: a quantidade de

dados coletados talvez devesse ser um pouco menor e o modo de tabular os dados

poderia ser simplificado, de maneira a não se tornar uma atividade cansativa.

Notamos que alguns alunos iniciaram o processo de desenvolvimento de alguns

aspectos de raciocínio estatístico, defendidos por Garfield e Gal (1999). Entretanto, não

foi possível avaliar, no desenvolvimento das atividades e tampouco durante o processo

de análise, a extensão desse desenvolvimento. Foi possível verificar, contudo, que os

significados atribuídos pelos alunos às noções estatísticas surgidas e discutidas no

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trabalho contribuíram para uma melhor compreensão da realidade escolar pelos

participantes da pesquisa.

Retomando a questão central deste estudo: Como as crianças de 5 e 6 anos

problematizam, elaboram instrumentos, coletam, organizam e analisam dados?,

podemos dizer que o lidar com ideias estatísticas na infância requer uma

contextualização mais acentuada que nos outros níveis de ensino.

Os alunos mostraram-se habilidosos na problematização da pesquisa, discutindo

questões importantes de seu contexto. Além disso, demonstraram capacidade para a

elaboração de instrumento de coleta de dados, valendo-se de conhecimentos prévios e

da construção de novos conhecimentos. Quanto à coleta, percebemos a interação como

um importante facilitador do processo. A comunicação e o envolvimento também se

mostraram como fatores relevantes. Em relação à organização das informações

coletadas, esta requer um pouco do conhecimento de algumas ideias matemáticas,

enquanto a análise exige, além disso, um bom entendimento do contexto. Para as

crianças, é imprescindível que elas estejam inseridas neste contexto.

A análise de nosso trabalho evidencia uma ruptura com as crenças de que

crianças em idade pré-escolar não têm condições de construir conceitos relacionados à

Estatística.

6. Referências BATANERO, C. ¿Hacia dónde va la educación estadística? Blaix, n.15, p. 2-13, 2000 (En prensa). Disponível em: <http://www.ugr.es/~batanero/ARTICULOS/BLAIX.htm>. Acesso em: 10 nov. 2006.

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HABILIDADES QUANTITATIVO NUMÉRICAS EM CRIANÇAS: Interconexão de múltiplas variáveis

Titulo Abreviado: HABILIDADES QUANTITATIVO NUMÉRICAS EM CRIANÇAS

English Title: QUANTITATIVE AND NUMERICAL HABILITIES IN

CHILDREN: Interconnection of multiple variables

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HABILIDADES QUANTITATIVO NUMÉRICAS EM CRIANÇAS: Interconexão de múltiplas variáveis

Titulo Abreviado: HABILIDADES QUANTITATIVO NUMÉRICAS EM

CRIANÇAS English Title: QUANTITATIVE AND NUMERICAL HABILITIES IN

CHILDREN: Interconnection of multiple variables Autora: Prof. Dra. Heloiza H. Barbosa Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Ciências da Educação Departamento de Estudos Especializados

Endereço para Correspondência: UFSC/CED – EED Campus Universitário

Trindade, 88040-900 Florianópolis – S.C.

[email protected] (48) 9924-1118

A autora que contou com a bolsa PRODOC-CAPES para realização deste artigo.

Heloiza Helena de Jesus Barbosa 2004 - Doutora em Educação pela Boston University, EUA (CAPES) 2005 - Pós-doutoranda na University of California, Berkeley, EUA 2006/08 - Pós-doutoranda do Centro de Ciências da Educação da Universidade

Federal de Santa Catarina, Brasil (CNPq.) Email: [email protected]

Phone: (48) 9924-1118

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DAS COMPETÊNCIAS QUANTITATIVAS PARA OS CONCEITOS DE NÚMERO: O que está em jogo nesta trilha?

Resumo

A presente revisão tem o objetivo de analisar o que os estudos acadêmicos e

experimentais têm revelado sobre as habilidades quantitativas iniciais dos bebês e,

como estas habilidades iniciais podem levar a construção de conceitos numéricos. Neste

processo de análise, o presente artigo discute posições inatistas originais e as novas

conjecturas propostas para fomentar o nosso entendimento desta trilha para a formação

do conceito de número. Os estudos recentes apontam mais na direção de um processo

cognitivo que vai do mais geral ao mais específico. Todavia, mais estudos são

necessários para se firmar esta conjectura.

Palavra chave: Desenvolvimento Quantitativo, Cognição Matemática, Formação de

Conceitos.

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FROM QUANTITATIVE ABILITIES TO NUMERICAL CONCEPTS: what is going on in this pathway?

Abstract

The present review aims to analyze the proposal put forward by the research on

mathematical cognition about the initial quantitative abilities in human infants. Also, it

discusses how the human infants may construct concepts of numbers upon these initial

abilities. In the process of analysis, the paper discusses the original nativist position, as

well as the new proposals that intend of increase the understanding of the pathway to

number concepts. The recent studies point towards a cognitive process that goes from

general domains to specific domains. However, more studies are needed to support this

proposal.

Key words: Quantitative Development, Mathematical Cognition, Concepts Formation.

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DAS COMPETÊNCIAS QUANTITATIVAS PARA OS CONCEITOS DE NÚMERO: O que está em jogo nesta trilha?

A partir do final da década de 1970, com o seminal livro The Child’s

Understanding of Number, dos pesquisadores Rochel Gelman e Randy Gallistel,

publicado em 1978, as pesquisas na área da cognição matemática começaram a delinear

uma criança que possui habilidades cognitivas numéricas abstratas, portanto, muito

diferente da criança sensório-motora descrita por Piaget (1952) em seus estudos sobre o

desenvolvimento do conceito de número. A pletora de estudos experimentais

produzidos nestes pouco mais de trinta anos, sugere que a criança desde muito cedo, até

mesmo antes da aquisição da linguagem verbal, é capaz de descriminar quantidades,

comparar conjuntos e antecipar resultados de transformações quantitativas. A criação de

novas e engenhosas metodologias para estudo com crianças pré-verbais (bebês)

possibilitou a investigação destas habilidades.

Embora, parece consenso entre pesquisadores que as crianças desde muito cedo

são capazes de produzir representações de informações quantitativas, por outro lado,

não há ainda forte concordância no que diz respeito à natureza destas representações.

Ou seja, alguns pesquisadores argumentam que estas representações são baseadas em

conhecimentos de número (CAREY, 1991; CAREY & SPELKE, 1994; DEHAENE,

1997; GELAMAN & GALLISTEL, 1978; GELMAN, 1991), outros acreditam que as

mesmas são baseadas em mecanismos de restrições diretivas (bootstrapping) específicos

do processamento de informações numéricas (CAREY, 2008; Le CORRE & CAREY,

2007), outros ainda de que estas representações são baseadas em mecanismos de

detecção de magnitudes e individuação de objetos (CORDES & BRANNON, 2008;

FEIGENSON, CAREY & SPELKE, 2002; FEIGENSON & CAREY, 2003; ULLER,

CAREY, HUNTLEY-FENNER & KLATT, 1999; VAN de WALLE, CAREY &

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PREVOR, 2000) e por fim, outros pesquisadores argumentam de que estas

representações são baseadas em processos gerais cognitivos sem atrelamento específico

a conhecimentos de base numérica (CLEARFIELD & MIX, 1999; 2001;

HUTTENLOCHER, DUFFY & LEVINE, 2002; MIX, 2002; MIX, HUTTENLOCHER

& LEVINE 2002a; MIX, HUTTENLOCHER & LEVINE 2002b; MIX &

SANDHOFER, 2007).

Esta falta de consenso deixa claro que, no campo da investigação sobre o

desenvolvimento da cognição matemática em crianças, há vários caminhos para se

chegar do ponto A ao ponto B. Ou seja, das habilidades iniciais aos conceitos de

número, vistos em crianças maiores e em adultos, talvez haja múltiplas trilhas. Mas,

considerando os caminhos apontados por estes estudos, devemos perguntar se, as

representações mentais produzidas pelo bebê são indubitavelmente baseadas em

conhecimentos numéricos? E ainda, se todas as trilhas levam igualmente ao mesmo

destino? Ou, se das habilidades iniciais, o bebê pode construir conceitos de número?

Neste artigo, revisaremos as evidências resultantes de estudos publicados nas

revistas internacionais – pois há escassez de estudos empíricos produzidos no Brasil na

área da cognição matemática com bebês e crianças antes da idade da escolarização

formal – que focam o desenvolvimento dos conceitos de número.

Este artigo terá o benefício de contribuir para o debate acerca dos processos

cognitivos de formação do conceito de número, como também, de tornar acessíveis

ao professor informações coletadas por estudos acadêmicos que dizem respeito ao

desenvolvimento de conceitos e procedimentos numéricos na criança. Acredita-se

que estas informações podem auxiliar tanto ao pesquisador da área quanto ao

professor em sua atuação pedagógica.

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São Numéricas as Representações Quantitativas Não-Verbais?

Foi notícia das revistas Veja, Isto É, Nova Escola e Ciência Hoje que os bebês

humanos têm habilidades matemáticas surpreendentes como cálculo, identificação de

diferentes magnitudes e comparação. Imagina-se, que o leitor destas publicações

receba tal notícia com surpresa e admiração por ser ele membro de uma espécie tão

evoluída. Sem querer estragar o merecido sentimento de orgulho, mas como

pesquisadora da área, parece-me necessário ler estas notícias com algum ceticismo.

Notícias como estas demandam uma análise crítica dos estudos que demonstraram

tais habilidades. São os bebês humanos realmente capazes de reconhecer diferentes

magnitudes com base em conhecimentos numéricos inatos? Os bebês sabem que o

numeral dois é mais que um, e que dois é menos que três?

Para estudar o desenvolvimento quantitativo-numérico em bebês, pesquisadores

inicialmente tiveram que criar novas metodologias que se adequassem à idade da

população estudada. Metodologias comumente usadas nestas investigações são a

metodologia da habituação e a metodologia da “busca manual do objeto que falta”.

Os dados das pesquisas com bebês utilizando ambas as metodologias mostraram

que os bebês são sensíveis às informações quantitativas presentes no mundo físico. Por

exemplo, usando a metodologia da busca manual, os pesquisadores Van de Walle,

Carey & Prevor (2000) demonstraram que, se os bebês assistem ao pesquisador inserir

duas bolas dentro de uma caixa e em seguida retirar somente uma bola de dentro desta

mesma caixa (enquanto a outra bola ficou escondida em um fundo falso), quando a

caixa é oferecida a estes bebês para exploração manual, estes passam mais tempo

buscando dentro da caixa nesta situação de conflito entre o inserido e retirado do que na

situação de coerência entre quantidade inserida e a mesma quantidade retirada.

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Demonstrando, segundo os autores do estudo, um entendimento de alterações (ou

discrepâncias) numéricas.

De forma mais robusta, os estudos usando metodologias de habituação

demonstraram que os bebês foram capazes de identificar mudanças numéricas em

conjuntos com pequenas quantidades (ANTEL & KEATING, 1983; STARKEY &

COOPER, 1984; STARKEY, SPELKE & GELMAN, 1991; STRAUSS & CURTIS,

1984) e em conjuntos com grandes quantidades (XU & SPELKE, 2000); foram também

capazes de parear o número de sons ouvidos com o número de objetos de um conjunto

(STARKEY & SPELKE, 1983) e de demonstrar conhecimento de resultados de simples

adição e subtração (WYNN, 1992b; 1992c).

Estas pesquisas produzidas entre as décadas de 1980-90 mostram resultados que

solidamente identifica habilidades quantitativo-numéricas em crianças com idades

muito mais jovens do que anteriormente sugerido por Piaget. Embora não haja dúvidas

de que os bebês humanos são capazes de apreender informação quantitativa do seu

ambiente, há inúmeras questões pendentes quanto à natureza das representações mentais

produzidas a partir destas informações e quanto aos mecanismos que possibilitam a

emergência e operacionalização de tais habilidades em bebês.

Assim, um grupo de pesquisadores argumenta que, nos estudos experimentais

utilizando a metodologia da habituação, os bebês reagem às alterações numéricas

baseadas no conhecimento conceitual de número de natureza inata (CAREY, 1991;

CAREY & SPELKE, 1994; GELMAN, 1991; GELMEN & GALLISTEL, 1978;

GELMAN & MECK, 1986; SPELKE, 1991; SPELKE e TSIVKIN 2001; STARKEY &

SPELKE, 1983; WYNN, 1992b; 1992c; 1998a; 1998b). Estes pesquisadores fazem

parte da linha teórica do nativismo, ou inatismo. Esta abordagem original11 inatista

11 Uso o termo “original” para enfatizar ao leitor que esta abordagem sofrerá alterações nos estudos mais recentes que serão vistos no decorrer deste artigo.

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afirma que o desenvolvimento de conceitos numéricos envolve o movimento de acesso

a conhecimentos matemáticos inatos localizados em módulo cerebral específico para

números (BUTERWORTH, 1999; DEHAENE, 1997; SPELKE & DEHAENE, 1999).

Assim, para pesquisadores desta abordagem, os bebês prestam atenção em informações

numéricas ao redor deles porque seus cérebros são equipados desde o nascimento para

fazê-lo.

Mas, um estudo de Clearfield & Mix (1999) produzido no final da década de 90

inaugurou uma nova agenda de pesquisa e tornou-se muito importante, pois o mesmo

causou um grande impacto nas pesquisas sobre cognição matemática em bebês. O

estudo de Clearfield & Mix lançou dúvidas e enfraqueceu fortemente o argumento

inatista ao mostrar que os dados dos estudos de habituação, até então produzidos, não

desambiguavam os fatores perceptivos dos fatores numéricos. Neste estudo, as autoras

habituaram bebês entre seis a oito meses de idade a conjuntos com dois ou três

quadrados que possuíam uma área de contorno total invariante. Os bebês, então, foram

testados sob duas condições experimentais. Na primeira, os bebês foram apresentados a

conjuntos com o mesmo número de quadrados, mas com uma área de contorno nova,

em relação ao estímulo da habituação. Na segunda condição, os bebês foram

apresentados a conjuntos com novos números de quadrados, mas com a mesma área de

contorno, também em relação ao estímulo da habituação. Os resultados mostraram que

os bebês olharam por mais tempo para as mudanças de tamanho na área de contorno do

que para as mudanças numéricas. Assim, os dados de Clearfield e Mix claramente

demonstraram que quando os experimentos controlavam as variáveis perceptivas das

variáveis numéricas separando-as, os bebês mostravam preferência para as variáveis de

natureza perceptiva e não para as variáveis de natureza conceitual numérica.

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Os resultados de Clearfield & Mix (1999) foram corroborados por outros estudos

que também controlaram as variáveis da área de contorno, densidade e área total

ocupada contrastando-as com as informação de natureza numérica (CLEARFIELD &

MIX, 2001; FEIGENSON, CAREY & SPELKE, 2002). Além de lançar dúvidas sobre o

construto inatista de conceito numérico, estes estudos enfatizaram a necessidade crítica

de se fazer controles das variáveis perceptivas e conceituais em estudos sobre as

habilidades quantitativas dos bebês, como também, foram o marco para que novos

estudos fossem produzidos com o intuito de refinar mais o nosso entendimento sobre os

processos envolvidos na cognição quantitativo-numérica humana.

Estudos recentes, ao exercitar tal controle de variáveis em seus experimentos,

mostraram um cenário de processos cognitivos mais complexos e o qual exige outras

propostas explicativas da comunidade acadêmica que extrapole a simples conjectura de

um módulo de senso numérico inato, de um lado, e a aquisição tardia, de outro.

Por exemplo, seguindo a preocupação de controlar a co-variação de informações

perceptivas e numéricas, Xu e colaboradores (XU, 2003; XU & SPELKE, 2000; XU,

SPELKE & GODDARD, 2005) realizaram vários estudos os quais revelaram que os

bebês de seis meses de idade atendem para informação numérica quando: a) as

informações de área total e densidade variam, mas os números permanecem constantes,

e, b) quando os números apresentados nos conjuntos estão em uma razão numérica na

ordem de 1:2 – i.e., 4 vs. 8, 8 vs. 16, 16 vs. 32. Este comportamento que condiz com a

lei de Weber, a qual estipula a menor diferença que pode ser percebida entre dois

estímulos, também foi observado em estudos com animais infra-humanos (BRANNON,

ABBOTT & LUTZ, 2004; CORDES & BRANNON, 2008). Entretanto, nestes mesmos

estudos de Xu e col., assim como em outras pesquisas (LIPTON & SPELKE, 2003;

WOOD & SPELKE, 2005), bebês foram repetidamente incapazes de perceber

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mudanças numéricas em conjuntos com uma razão numérica menor do que 1:2, tais

como 4 vs. 6, 8 vs. 12, 16 vs. 24.

Adicionalmente, outros pesquisadores obtiveram resultados que sugerem que os

bebês demonstram serem capazes de descriminar quantidades que não condizem com a

lei de Weber na razão 1:2 se os conjuntos apresentam quantidades menores do que 4

elementos (FEIGENSON & CAREY, 2003; 2005). Por exemplo, Feigenson e Carey

(2003) usaram a metodologia da busca manual e demonstraram que os bebês de 12 a 14

meses foram capazes de discriminar entre 2 vs. 3, mas não 2 vs. 4. Neste estudo, os

bebês ao verem o experimentador colocar três brinquedos dentro de uma caixa e retirar

somente dois, eles passaram mais tempo buscando algo de dentro da caixa do que na

situação de quatro brinquedos inseridos e dois retirados. Em posterior estudo, as

mesmas autoras Feigenson e Carey (2005) usaram bolachas sendo inseridas uma-a-uma

dentro de dois recipientes. Um recipiente ficou com uma quantidade maior e outro com

uma quantidade menor, tal como, 1 vs. 2, 2 vs. 3, 1 vs. 3. Após assistirem a colocação

da quantidade de bolachas nos dois recipientes, os bebês foram encorajados a engatinhar

até os recipientes. Nesta situação, os bebês consistentemente se direcionaram para o

recipiente contendo mais bolachas. Mas nas situações onde a quantidade de bolachas

colocadas era maior do que quatro (ex. 2 vs. 4, 3 vs. 6, 1 vs. 4) não houve preferência de

escolher o recipiente com maior quantidade pelo bebê.

Estes resultados combinados formam um cenário complexo sobre as habilidades

quantitativas dos bebês, o qual sugere que há pelo menos três caracterizações deste

processo: a) os bebês atendem para pistas perceptivas, tais como área de contorno,

densidade e área total, em contextos de conjuntos de figuras (bi-dimensional) com

pequenas quantidades; b) entretanto, os bebês também parecem atender para pistas

numéricas em contextos nos quais os estímulos perceptivos se contrastam com as

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informações numéricas (sendo que o foco centra-se nas informações numéricas) em

conjuntos de objetos discretos com pequena quantidade de itens (<4) e, por último, c) os

bebês parecem perceber quantidade numérica quando comparam conjuntos de grandes

quantidades nos quais suas diferenças são suficientemente estabelecidas em uma razão

de 1:2 ou 1:4.

Inicialmente, ao ler estas caracterizações, podemos imediatamente perceber

contradições entre as hipóteses (a) e (b) e não entender como estas, então, se relacionam

com (c). Portanto, é necessário analisar como pesquisadores explicam estas

caracterizações a partir de seus entendimentos da natureza dos processos cognitivos

envolvidos.

Pesquisadores que assumem que desde o início as discriminações quantitativas

dos bebês são baseadas em conhecimento numérico per se, desconsideram a caracteriza

(a) e discutem as caracterizações (b) e (c). Estes pesquisadores argumentam que,

possivelmente, pode haver dois sistemas usados pelos bebês na discriminação de

quantidade, isto é, um sistema para discriminação de pequenas quantidades, o qual

parece ser preciso e tem um limite de até três elementos denominado sistema de

individuação de objetos (FEIGENSON & CAREY, 2003; 2005; ULLER, e col., 1999),

e, outro sistema para discriminação de grandes quantidades, o qual é aproximado e

necessita de que as diferenças sejam grandes o suficiente para serem percebidas,

seguindo uma razão proporcional de 1:2 (XU & SPELKE, 2000; CORDES &

BRANNON, 2008). Assim, quando devidamente controlada as variáveis para que haja

um contraste entre a informação perceptiva e a informação numérica, os bebês atendem

para as informações numéricas preferencialmente e não para as informações perceptivas

na discriminação de pequenas quantidades, pois os mesmos se utilizam do sistema de

individuação de objetos (object file system) que é operacional com pequenas

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quantidades (<4). Quando o contexto experimental exige a discriminação de grandes

quantidades, então os bebês se utilizam do mecanismo de representação aproximada de

magnitudes.

Portanto, os mecanismos apontados por este grupo de pesquisadores através do

qual os bebês são capazes de discriminar quantidade numericamente, são: a)

representação de magnitude e b) individuação de objetos. O mecanismo de

representação de magnitude opera de forma aproximada no julgamento de quantidades

global dos conjuntos (e não de objetos individualizados) e necessita de razões

numéricas suficiente para estabelecer as diferenças (lei de Weber). Estudos têm

apontado que este mecanismo é também operacional em animais vertebrados

(BRANNON & TERRACE, 2000), sugerindo, assim, uma origem filogenética para um

mecanismo usado no processo ontogenético da cognição matemática. Há sugestões de

que esta representação de magnitudes pode funcionar como um acumulador de

impulsos (WYNN, 1998; GELMAN, 1991). Desta forma, tanto as pessoas quanto os

animais criam representações aproximadas para cada conjunto, aumentando a

representação em correspondência à magnitude apresentada, por exemplo, para um

conjunto com a quantidade /6/ o acúmulo representado pode ser assim /-----------/ e para

um conjunto com a quantidade /10/ pode ser assim /-------------------/.

Já o mecanismo de individuação opera sob objetos discretos que fazem parte do

conjunto (e não conjuntos) e atribui uma representação mental (como se fosse um

símbolo) para cada objeto e, devido ao limite da memória de trabalho do bebê, tem o

limite de operar com até três objetos. Na hipótese original de Uller e col. (1999), este

mecanismo era especulado de representar a localização espacial do objeto, mas nas

formulações recentes (Le CORRE & CAREY, 2007), o mecanismo é a representação de

objetos individuais na memória de trabalho.

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Através destes dois mecanismos, pesquisadores que argumentam em favor de uma

representação de base numérica desde o início do processo de conceituação de número

explicam que os bebês falham na discriminação de 4 vs. 3, por exemplo, porque os

mesmos usam o mecanismo de individuação em quantidades pequenas com o limite de

representação de até 3 objetos. Já o sucesso em discriminar conjuntos com quantidades

grandes que respeitam a razão numérica mínima de 1:2 se deve ao uso do mecanismo de

representação aproximada de magnitude. Mas, recente análise da literatura (RIPS,

BLOOMFIELD & ASMUTH, 2008) sobre as implicações destes dois sistemas de

discriminação quantitativa (para pequenas e grandes quantidades) e dos diferentes

mecanismos que viabilizam a formação de representações mentais numéricas

(individuação de objetos e representação de magnitudes), tem argumentado que estes

pesquisadores ainda não demonstraram como estas representações numéricas iniciais

podem levar à construção de conceitos de números inteiros.

O que parece ficar de fora tanto das explicações destes pesquisadores, quanto da

crítica recentemente elaborada, é o fato de que as metodologias usadas para a coleta de

dados nestes estudos experimentais em nada se relacionam com o contexto real onde as

crianças aprendem sobre números. Nos estudos experimentais os objetos aparecem e

desaparecem de forma mágica, ou ainda, são apresentados de forma isolada. No

contexto de vida real, os objetos são apresentados, tocados, contados, agrupados,

separados dentro de contextos de interação e intencionalidade. Assim sendo, as

habilidades evidenciadas dentro do contexto experimental podem refletir a preferência

de uso de um ou outro mecanismo devido ao próprio design do experimento, o qual não

permite o uso de processos paralelos. Portanto, sem querer diminuir a importância dos

estudos experimentais, talvez o que temos de seus resultados é uma parte (valiosa parte)

de um todo mais complexo. Um segundo problema com as explicações oferecidas ainda

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por este grupo de pesquisadores é a idéia de que os conceitos de número são fenômenos

monolíticos, os quais só podem ser explicados através de um único fator: informação

numérica. E esta visão monolítica ocorre tanto pela via de que dentre todos os fatores

envolvidos nos conceitos de número somente um (a informação numérica) é o que

realmente importa. Quanto, alternativamente, pela via de que todos os diversos fatores

envolvidos na conceituação de número são, na verdade, diferentes instâncias de um

mesmo fator (informação numérica). Esta visão monolítica de uma cognição

descontextualizada ameaça um entendimento mais compreensivo dos processos

cognitivos de conceituação de número.

A partir desta crítica, podemos perguntar se: o bebê somente usa uma trilha para

representar quantidade, ou a trila da percepção de área ocupada ou a trilha da

informação numérica? Não poderia a criança fazer uso de diferentes informações

(trilhas) dependendo do contexto, dos materiais usados, da demanda da situação e do

seu desenvolvimento?

A resposta simples é sim. Alguns pesquisadores têm inclinado suas interpretações

dos resultados de pesquisas sobre cognição numérica nesta direção. Por exemplo, de

acordo com um grupo de pesquisadores que discute o desenvolvimento cognitivo a

partir de uma visão vai de processos gerais para específicos, ou seja, processos gerais

que se tornam especializados no decorrer do desenvolvimento, os conceitos de números

podem ser construídos a partir de processos de domínios gerais. Estes processos

cognitivos de domínio geral auxiliam o desenvolvimento de várias habilidades

cognitivas que participam na formação dos conceitos numéricos (CLEARFIELD &

MIX, 1999; CLEARFIELD & MIX, 2001; HUTTENLOCHER, DUFFY & LEVINE,

2002; MIX, LEVINE, & HUTTENLOCHER, 1997; MIX, SANDHOFER, &

BAROODY, 2005; WAKELEY, RVERA & LANGER, 2000). De acordo com esta

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perspectiva, alguns processos de domínio geral que participam da conceituação

numérica são: a habilidade perceptiva do bebê que auxilia nos processos de

individuação do objeto e de percepção de magnitudes, a habilidade sócio-interativa, a

habilidade lingüística (aquisição dos nomes dos numerais), os processos básicos de

memória, atenção e associação. Esses processos cognitivos gerais podem causar a

focalização da atenção nos aspectos numéricos e, conseqüentemente, podem levar à

formação de categorias conceituais de número sem ser necessária a existência de um

módulo numérico específico ou o processamento somente de informações de base

numérica desde o tenro início da vida.

Inicialmente, estudos produzidos por este grupo de pesquisadores contrários as

idéias nativistas mostram que, nenhum estudo foi capaz de desvincular as dimensões

perceptuais do mundo físico dos aspectos numéricos conceituais. Estes pesquisadores

afirmam que a metodologia de habituação não demonstra, indubitavelmente, que o

comportamento do bebê de olhar mais intensamente para algo reflete um conhecimento

pré-existente deste algo. Pois, o próprio ato de habituar pode tornar relevantes os

aspectos ou as variáveis que antes não eram (MIX, e col., 2002). Ou seja, expor o bebê

a um estímulo que se repete (chegando a 30 vezes) pode criar uma atenção ao aspecto

numérico que não existia antes. Portanto, isso não quer dizer que o bebê tenha a

capacidade inata de perceber número, mas talvez o aspecto numérico passasse a ser

relevante dentro do próprio contexto do experimento que isola e enfatiza o aspecto

numérico. Os estudos de Clearfield e Mix (1999; 2001), como já discutidos

anteriormente, por exemplo, confirmaram que os bebês são sensíveis às mudanças de

densidade, comprimento, e ocupação espacial (perceptivas) e não às mudanças

numéricas. Reproduções do estudo de Clearfield e Mix obtiveram os mesmos resultados

(FEIGENSON, CAREY & SPELKE, 2002; FEIGENSON & CAREY, 2003; 2005).

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Assim, a explicação inatista original de que conhecimento numérico inato guia o

desempenho dos bebês em atividades de discriminação de quantidades perde sua força

com as recentes evidências que demonstraram que os bebês, na verdade, também usam

informações perceptivas e espaciais para elaborar representações de individuação e

agrupamento dos mesmos (CANTOLN, PLATT & BRANNON, 2009; CORDES &

BRANNON, 2008; MIX & SANDHOFER, 2007) e tem sido abandonada, de modo

geral, pela comunidade acadêmica. Mas, uma nova conjectura, que tomou o lugar desta

proposta original, é a idéia de que as representações mentais de magnitude e de objetos

discretos, assim como outros fatores, são desenvolvidas. Ou seja, estas habilidades se

desenvolvem e desempenham importantes papeis nos processos de restrições diretivas

(bootstrapping) que guiam a formação dos conceitos de número (CANTLON e cols.

2009; CAREY, 2008; MIX, 2008; SOPHIAN, 2008)

Desta forma, as representações mentais criadas pelos bebês humanos que

envolvem quantidade não são, necessariamente, guiadas por conhecimento ou conceito

numérico inato, mas podem ser representações gerais advindas das habilidades

perceptivas gerais e que podem posteriormente influenciar o desenvolvimento

matemático.

Como os bebês constroem conceitos de número a partir das habilidades iniciais?

Os bebês são capazes de notar diferentes quantidades, mas a criança de dois anos

parece não saber o que é “dois” e “três”. Mesmo quando a criança sabe que as palavras

“dois” e “três” estão relacionadas aos numerais, leva um tempo para ela entender o

valor cardinal desta quantidade (WYNN, 1992) e, mais um tempo ainda, para usar a

seqüência numérica para responder perguntas sobre a quantidade de um conjunto de

elementos.

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Das representações quantitativas iniciais para a contagem verbal ocorre um longo

e complexo processo de desenvolvimento. A aquisição dos nomes dos numerais, como

também, a aquisição dos procedimentos de contagem e o entendimento de porque e o

quê contar, requer a junção de vários conhecimentos por parte do sujeito cognoscente de

ordem conceitual e prática.

Wynn (1990; 1992a) usou duas tarefas simples para coletar dados sobre como se

caracteriza os conceitos de número das crianças de dois anos e meio a cinco anos de

idade. A primeira tarefa foi “Me dê N” no qual as crianças eram apresentadas com uma

cesta de dinossauros e então eram solicitadas pelo pesquisador para dar um determinado

número (“Me dê dois dinossauros”). A segunda tarefa consistia em a criança identificar

entre duas cartas contendo fotos de conjuntos de objetos qual correspondia a uma

determinada quantidade, por exemplo, “Você pode me mostrar três maçãs?”. Ambas as

tarefas não apresentavam grande grau de dificuldade, eliminando, assim, a possibilidade

de problemas no desempenho durante os testes. Wynn também pediu que as crianças

contassem um conjunto com oito objetos. Os resultados dos dois estudos de Wynn (um

de corte transversal e o outro longitudinal) mostraram que apesar de todas as crianças

serem capazes de contar pelo menos até seis corretamente elas não sabem o exato valor

cardinal de todos os números na sua lista de contagem oral. Por exemplo, quando

solicitadas para produzir e identificar uma quantidade, algumas crianças (geralmente as

mais novas) só conseguiam produzir e identificar a quantidade “um” com exatidão,

outras (um pouco mais velhas) somente “um e dois”, outras somente “um, dois e três”.

Wynn também mostrou que demora mais ou menos seis meses o período entre a

aquisição do significado cardinal de um numeral para outro, isto é, a criança

primeiramente constrói o conceito de “um”, depois de “dois” e depois de “três” de

forma gradual. Adicionalmente, a autora mostrou que a maioria das crianças não usa

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espontaneamente a contagem oral para solucionar problemas e, também, comete erros

de contagem que violam princípios de correspondência um-para-um.

Os estudos de Wynn (1990; 1992a), portanto, sugerem que inicialmente a

contagem oral é, como havia sugerido anteriormente Fuson (1988), um procedimento

aprendido no contexto sociocultural da criança e que o desenvolvimento de conceitos

numéricos é um processo gradual de aquisição. Mas Wynn, todavia, argumenta que para

um conceito se desenvolver é necessário que o mesmo seja precedido e sustentado por

mecanismos cognitivos de representações numéricas mentais, os quais, a autora afirma,

são de natureza inata correspondente da visão de desenvolvimento cognitivo como um

processo de cima para baixo (top-down approach). A hipótese de Wynn é de que as

palavras “um” “dois” “três” “quatro”, por exemplo, são rótulos que ao ressaltarem o

aspecto numérico precisam ser casados com as representações mentais numéricas

anteriormente construídas pelo bebê humano a partir de seu inato senso de número de

uma forma contínua.

Mas, há outras hipóteses sobre como as crianças podem construir conceitos

numéricos a partir das habilidades iniciais dos bebês. Segundo os neurocientistas Cohen

Kadosh & Walsh (2008) do instituto de neurociência da University College of London,

UK, há uma grande participação da área do sulcu intraparietal (IPS) em atividades

desenvolvidas na representação mental numérica, como também, em atividades de

representação de outras magnitudes tais como ocupação de espaço físico, duração

temporal, densidade e luminosidade. Os resultados de vários estudos desenvolvidos por

estes neurocientistas possibilitaram aos mesmos argumentarem que o lobo parietal é a

base para um sistema comum de representação de magnitudes tanto para número,

quanto para tempo e espaço. Portanto, não há exclusividade do sistema para números.

Pesquisas no nível de comportamento realizadas no laboratório de Elizabeth Brannon

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(ver, CANTLON e cols., 2009) também mostram que o mesmo sistema de

representação de magnitude é usado para representar número, tempo e espaço.

Assim, podemos argumentar que há processos gerais de representação de

magnitudes, sob os quais são criadas representações mais específicas. Cohen Kadosh &

Walsh (2008) sugerem que o conceito especializado de número surge da interação de

substratos neuronais originalmente não especificados envolvidos em representações

gerais de magnitudes com áreas do hemisfério esquerdo envolvidas na linguagem e com

áreas do sistema ventral-ocipto-temporal envolvidas em processamento simbólico. Esta

visão interativa de várias regiões na construção de funções especializadas é denominada

uma abordagem de especialização interativa. Segundo esta abordagem, o conceito de

número emerge da interação de processos gerais de representação de magnitude,

linguagem e habilidade simbólica. Uma proposta muito semelhante à de Cohen Kadosh

e Walsh é apresentada por Mix e Sandhofer (2007).

Embora estas novas conjecturas apontem para a necessidade de se compreender a

formação de conceitos de número enquanto um processo de desenvolvimento, a lição

que estamos começando a aprender é de que talvez não haja uma só via de se chegar do

ponto A ao ponto B. Pode ser que o processo de desenvolvimento seja múltiplo e

variado.

Pesquisadores têm argumentado que apesar desta variação ser intrínseca ao

processo de desenvolvimento humano, a mesma é mais visível na criança devido à

natureza de sua aprendizagem, a qual é marcada pelo contexto (NELSON, 1996; MIX,

2002c; THELEN & SMITH, 1994). Assim, é possível que a criança exiba um

comportamento mais competente dentro de um contexto, e menos competente dentro de

outro contexto dependendo dos instrumentos de suporte a que a criança tem acesso.

Estes instrumentos de suporte são a linguagem, objetos do mundo físico, individuação,

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organização do espaço físico, interações sociais, e etc. O desenvolvimento cognitivo,

então, passa a ser entendido como os processos de criação de ligações entre estes

contextos de aprendizagem inicialmente separados (BARBOSA, 2004; BAROODY,

2003).

Desta forma, podemos pensar o desenvolvimento de conceitos numéricos como

criação de conexões e relações flexíveis entre habilidades de caráter quantitativo-

numéricas e demais habilidades cognitivas.

Finalizando

As várias décadas de estudos deram respostas às muitas perguntas. Hoje sabemos

que a criança pequena possui habilidades cognitivas que dinamicamente se

interconectam durante o processo de desenvolvimento. Processo este que é situado e

múltiplo. Hoje sabemos que as habilidades quantitativas iniciais do bebê não precisam

ser de natureza específica, mas que as mesmas podem contribuir para um processo de

criação de conceitos específicos, como o conceito de número. Mas, ainda precisamos de

mais pesquisas para demonstrar como é possível este caminho do geral ao especifico em

desenvolvimento cognitivo.

Todavia, é importante ainda perceber que a criança real, presente nas casas e nos

centros de educação infantil, não é a criança dos laboratórios de pesquisa, que em idade

x faz w e em idade y faz m. As crianças exibem uma multiplicidade de

comportamentos, estratégias e capacidades que podem ser expressas simultaneamente

ou separadas e que, também, podem ser mais sofisticadas ou menos sofisticadas de

acordo com o contexto. A construção de conceitos numéricos a partir de habilidades

quantitativas é um processo gradual, variável, e, possivelmente, atrelado ao contexto

onde esta ocorre.

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Precisamos também pensar em novas metodologias no estudo da cognição em

bebês e crianças verbais. Nós vimos que a metodologia de habituação é a mais

comumente usada com bebês, já a metodologia de tarefas experimentais é a mais

comumente usada com crianças entre dois e seis anos de idade. Ambas as metodologia

tem méritos e também problemas. Talvez devêssemos buscar combinar as metodologias

experimentais com metodologias mais naturalistas. Por exemplo, já existem estudos que

utilizam a metodologia microgenética para descrever processos detalhados de

desenvolvimento. Para a metodologia microgenética, as habilidades da criança devem

ser entendidas dentro do contexto particular de sua realização (SIEGLER, 1995; 1996).

Esta proposta metodológica tem se apresentado como uma importante metodologia para

estudar os processos de desenvolvimento e aprendizagem.

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Textos do Grupo 2

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CAMPO MULTIPLICATIVO Conhecimentos e saberes de três professores dos anos iniciais do ensino fundamental

Mercedes Carvalho –UFAL

[email protected]

Apresentação

Esta pesquisa objetivou verificar os conhecimentos e saberes de três professores

dos anos iniciais do ensino fundamental acerca do campo multiplicativo, isso porque,

via de regra, os professores que atuam nos anos iniciais, em especial, aqueles que

lecionam no 4º e 5º anos, consideram a multiplicação e a divisão as operações

aritméticas mais difíceis de serem desenvolvidas com seus alunos e, geralmente,

ancoram o trabalho da multiplicação no ensino da tabuada pois, equivocadamente, a

maioria dos docentes acredita que se a criança aprender a tabuada saberá a

multiplicação e, consequentemente, a divisão.

Tal crença, acerca do trabalho de multiplicação e divisão, nos leva a conjecturar

que esses professores confundem o conceito de multiplicação e divisão com os

procedimentos dos algoritmos dessas operações o que implica no empobrecimento do

trabalho matemático porque:

reduz a matemática à calculo ou execução de algoritmos, ignorando que a matemática fornece modelos para a representação e compreensão do mundo que vivemos. Em segundo lugar [...] porque o algoritmo se refere a um conjunto de procedimentos que leva a execução de uma dada operação, enquanto a operação implica transformações realizadas sobre números, quantidades, grandezas e medidas. (CORREA, SPINILLO, 2004, p.105)

Segundo Vergnaud (1986), os conceitos matemáticos são organizados em

campos conceituais e o campo das estruturas multiplicativas, além das operações de

multiplicação e divisão, também envolve os conceitos de fração, razão, proporção e

probabilidade.

Neste artigo, focalizarei as operações de multiplicação e de divisão, pois os

sujeitos que fizeram parte desta pesquisa demonstraram preocupação com estas

operações.

Campo multiplicativo: multiplicação e divisão

Na maioria das vezes, os professores apresentam a multiplicação aos seus alunos

como uma forma simplificada da adição, isto é, ao invés de calcular 2 + 2 + 2 + 2 + 2

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+ 2 calcula-se 6 x 2 = 12 e, em seguida, oferecem-lhes uma lista de exercícios para

“transformarem” adição em multiplicação, associando à tabuada. Porém a tabuada é um

conteúdo factual, 2 x 2 = 4, enquanto que a multiplicação é um conteúdo conceitual,

porque a multiplicação, além da ideia de adição de parcelas repetidas, também envolve

as ideias de razão, proporção, combinação, configuração retangular e probabilidade.

Entretanto, devemos considerar que ao propor problemas de multiplicação, os alunos

irão usar dos seus conhecimentos acerca da adição para resolvê-los.

Existem diferenças significativas entre o raciocínio aditivo e o multiplicativo.

Na adição trabalhamos com a ideia da relação parte-todo: a soma das partes é igual ao

todo, sendo que as partes são de uma mesma natureza, isto é, envolve apenas uma

variável. Na multiplicação existe uma relação fixa entre duas variáveis. Segundo Nunes

et al (2005), ao resolvermos problemas que envolvam a multiplicação, buscamos saber

o “valor numa variável que corresponda a um valor dado em outra variável” (p.85). Por

exemplo: Em um pacote há 4 balas. Quantas balas há em 6 pacotes? Há o valor (4) em

uma variável (balas) que corresponda a um valor dado (6) na outra variável (pacote) e é

justamente essa relação constante entre as duas variáveis (balas e pacotes) que

possibilita o raciocínio multiplicativo.

Portanto, as crianças darão salto qualitativo para o pensamento multiplicativo

quando em um problema desse tipo elas pensarem que cada pacote com quatro balas

corresponde a um único elemento a ser contado. Sendo assim, para elas aprenderem

esse novo conceito irão desenvolver outras formas de raciocínio para resolverem os

problemas do campo multiplicativo, mesmo que no começo lancem mão dos seus

conhecimentos de adição. As crianças podem também usar os conhecimentos até então desenvolvidos em relação à contagem, composição e decomposição aditiva de números e às operações de adição e subtração para resolverem problemas multiplicativos, antes mesmo de serem ensinadas a usar os algoritmos canônicos da multiplicação e da divisão. (CORREA, SPINILLO, 2004, p.114)

Quanto a divisão, via de regra, os professores ensinam esta operação depois de

ensinarem a multiplicação, entretanto é importante “combinar multiplicação e divisão

logo após a multiplicação ser introduzida a fim de ajudar os estudantes a perceberem

como elas são relacionadas” (WALLE, 2009, p.178).

Os problemas que envolvem divisão podem conter ideias de partição ou

quotição (cota). A ideia de partição está relacionada a distribuição de uma determinada

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quantidade de elementos em partes o que não significa, necessariamente, que estas

partes sejam equivalentes, porém os problemas que envolvam divisão as partes devem

ser equivalentes, de acordo com Correa e Spinillo (2004).

Nos problemas: a- Catarina fez 40 biscoitos de nata para distribuí-los

igualmente em 8 caixas. Quantos biscoitinhos serão colocados em cada caixa? e b-

Catarina fez 40 biscoitos de nata e irá colocar 5 biscoitos em cada caixa. De quantas

caixas ela irá precisar? As duas situações apresentadas são resolvidas por meio de uma

divisão 40: 8 = 5; 40 : 5 = 8. Porém as ideias trabalhadas nestas duas situações são

diferentes. No situação a trabalhamos com a ideia de partição e no caso da situação b

com a ideia de quotição (cota). Isto porque nos problemas que envolvem a idéia de

partição conhecemos o número total de elementos (40 biscoitos) que deverão ser

distribuídos igualmente em número de partes determinadas (8 caixas) e deverá ser

calculado o número de elementos de cada parte (5 biscoitos).

40 : 8 = x total de elementos números de partes total de cada parte

No exemplo b – envolve a ideia de quotição (cota) porque o conjunto

conhecido (40 biscoitos) deve ser dividido em partes de grandezas previamente

estabelecidas (em 5 biscoitos) devendo-se calcular o número de partes que serão

obtidas.

40 : 5 = x total de elementos números de partes total de cada cota

Pelo exposto, se os professores apresentarem aos alunos situações que envolvam

a multiplicação como forma simplificada da adição (soma sucessivas de parcelas

repetidas), além do trabalho mecânico, os alunos não desenvolverão novas estratégias

de resolução de forma a perceberem que seus conhecimentos sobre o campo aditivo são

insuficientes para resolverem os problemas acerca do campo multiplicativo.

Conhecimentos e saberes docentes

São vários os estudiosos que se debruçam sobre os conceitos de saber e de

conhecimento. Tardif (2002) argumenta ser muito difícil encontrar uma definição de

saber que satisfaça a todos. O autor entende saber como sendo “unicamente os

pensamentos, as ideias, os juízos, os discursos, os argumentos que obedeçam a certas

exigências da racionalidade” (p. 199).

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Para Lee Shulman (1986), um dos autores mais citados em trabalhos de

educação matemática, os conhecimentos de base dos professores estão categorizados

em: a) conhecimento do conteúdo da matéria que se refere aos conhecimentos

específicos dos conteúdos das disciplinas e para o autor os docentes têm

“responsabilidade a respeito do conhecimento dos conteúdos da disciplina, porque é a

principal fonte da compreensão da matéria para os alunos” (SHULMAN, 2005, p. 12);

b) conhecimentos da didática do conteúdo da matéria é a dimensão do conhecimento

para ensinar, as estratégias que os professores utilizam para favorecer a aprendizagem

dos seus alunos; c) conhecimento curricular, refere-se aos programas estabelecidos para

os diferentes segmentos educacionais, aos materiais de instrução referentes aos

programas e às indicações ou contraindicações relativas a temas ou programas

específicos do currículo.

Entretanto, ressalvo que, para Fiorentini, Souza Jr e Mello (2001) e Manrique e

André (2006), a categorização proposta por Shulman (1986), não contempla todas as

dimensões do trabalho docente, porém, irei me ater mais especificamente sobre o que se

refere ao conhecimento do conteúdo da disciplina, ou seja, os conhecimentos sobre

multiplicação e divisão dos professores do ensino fundamental.

Tardif (2000) define os saberes docentes como “um saber plural, formado pelo

amálgama mais ou menos coerente de saberes oriundos da formação profissional e de

saberes disciplinares, curriculares e experienciais” (2002, p.36) e os caracterizou como

temporais, porque são construídos ao longo do tempo; personalizados e situados porque

são construídos pelos atores em função do contexto de trabalho e plurais e

heterogêneos, porque provêm de diferentes fontes: cultura pessoal e escolar,

conhecimento didático e disciplinares.

Analisando apenas uma dessas categorias – saberes plurais e heterogêneos – o

autor entende que, para o professor exercer o seu trabalho, mobiliza diferentes saberes e

entre eles o conhecimento da disciplina que leciona e faço relação entre o que Shulman

(1986) escreve sobre os conhecimentos do conteúdo da disciplina e o que Tardif (2002)

diz sobre os saberes plurais e heterogêneos que provêm de diferentes fontes porque

como Shulman (1986) defende que os professores não devem entender somente o

conteúdo da disciplina que lecionam, mas também compreender os porquês, qual o

arcabouço teórico que fundamenta o conteúdo da disciplina e “sob que circunstâncias

nossas crenças e aceitação das justificativas podem ser negadas ou diminuídas” (p.9),

para tanto, o professor não terá uma única fonte de informação para compreender

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melhor o conteúdo e desenvolver as práticas docentes, como afirma Tardif (2002) e sim,

múltiplas: os saberes construídos ao longo de sua formação básica e profissional (as

licenciaturas), as escolas onde desenvolvem o trabalho, sua história de vida e vida

escolar.

Nesta direção, podemos conjecturar que os professores dos anos iniciais do

ensino fundamental deverão mobilizar seus conhecimentos e saberes construídos ao

longo de sua formação escolar (básica e universitária) para ensinar seus alunos, além de

buscarem referencias em livros e matérias didáticos, leituras especializadas e cursos de

formação continuada para desenvolverem o trabalho docente.

Como a investigação foi realizada

Para o desenvolvimento da presente pesquisa optei por uma abordagem

qualitativa, na qual “há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, [...] o

conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria

explicativa” (CHIZZOTTI, 1998, p. 79). A modalidade de pesquisa qualitativa

selecionada para a presente investigação é um estudo de caso, que é entendido como

“uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa profundamente”

(TRIVIÑOS, 1983 p. 133).

Os sujeitos de pesquisa

Fizeram parte da pesquisa duas professoras e um professor dos anos iniciais do

ensino fundamental de escolas da cidade de São Paulo, sendo que, as duas professoras

trabalham em escolas particulares e o professor na escola pública.

Coleta de dados

Para a coleta de dados foram realizados períodos de observação nas salas onde

estes professores atuam a fim de coletar informações para orientar as entrevistas

semistruturadas. Estas observações foram registradas em um caderno que denominei

diário de campo. O período de observação, em cada uma das escolas, levou em média

30 dias e frequentava somente as aulas de matemática. Neste período também realizei a

análise do material das crianças (livros, cadernos e pastas).

Análise dos dados

O conteúdo das entrevistas, das observações em campo e do material das

crianças foi analisado, com o objetivo de identificar aspectos que envolvem o problema

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delimitado, de forma a “mostrar sua relevância, situando no contexto em que acontece

(CHIZZOTTI, 1998, p. 103).

As entrevistas dos três professores foram analisadas a partir do conteúdo das

respostas desses sujeitos elencando-se frases ou partes de frases como unidades de

análise, formando-se agrupamentos de elementos com características afins, o que

implicou em “constante ida e volta do material de análise à teoria” (FRANCO, 2003,

p.53). Porém, a análise das entrevistas não se mostrou linear, pois foi recorrente os

entrevistados abordarem uma mesma questão em diferentes momentos da entrevista.

Com os dados de observação e do material das crianças, buscou-se a coerência

entre a fala dos entrevistados e de suas práticas em sala de aula, com o objetivo de

compreender o discurso dos sujeitos entrevistados, considerando o contexto em que

atuam.

Resultados da investigação

Os sujeitos da pesquisa

Para resguardar a identidade dos docentes os nomes dos sujeitos desta pesquisa

são fictícios.

Juliana. Tem 23 anos e atua no magistério há cinco anos. Lecionou na

educação infantil por três anos e leciona no ensino fundamental há dois anos. Cursou a

educação básica na escola pública. Cursou o Magistério e Pedagogia. Trabalha há um

ano na escola onde foi realizada a pesquisa, que é particular localizada na Zona Leste de

São Paulo. A escola atende à educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental.

Laura. Tem 22 anos e está no magistério há três. Atua há seis meses no ensino

fundamental e trabalhou dois anos e meio com a educação infantil. Cursou a educação

básica na escola pública, fez o Magistério no antigo Centro de Formação e

Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM) e cursou Pedagogia. Leciona no 3º ano do

ensino fundamental. A escola onde trabalha está localizada na Zona Leste de São Paulo

é de porte médio e atende a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental.

Antônio. Tem 23 anos. Cursou o CEFAM e Pedagogia. Iniciou a carreira do

Magistério ensinando xadrez para crianças de 1ª a 4ª série, ainda como aluno da 6ª série.

É professor efetivo da prefeitura da cidade de São Paulo, trabalha com educação infantil

em uma creche municipal e como professor Ocupante de Função Atividade (OFA) do

Estado atua junto à 4º ano do fundamental. As escolas onde exerce as suas funções

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ficam na periferia da cidade. Quer ser diretor de escola e entende que, para isso, deve

trabalhar em todos os segmentos educacionais.

Análise das entrevistas

Na entrevista, os professores revelaram que encontram dificuldade para trabalhar

multiplicação e divisão com seus alunos. Ah! tabuada e divisão. Basicamente isso. Multiplicação não são muitos alunos não, agora ... quem não sabe tabuada não sabe multiplicação. (Juliana).

Eu acredito que eles tenham dificuldade na multiplicação. [...] Por conta deles não conseguirem aprender a tabuada, consequentemente, têm dificuldade na multiplicação e na divisão. Para você poder resolver a conta de divisão você precisa ter noção de multiplicação. (Antônio).

Podemos depreender desses depoimentos que para esses docentes a tabuada é

fator determinante para a compreensão da operação de multiplicação. Eles

desconsideram que a multiplicação é um conceito a ser desenvolvido com os alunos.

Entretanto, a tabuada quando bem explorada pode auxiliar o desenvolvimento do

conceito de multiplicação, mas não é este o entendimento desses professores, isso

porque, verificou-se inúmeras tabuadas e várias contas de multiplicação do tipo “arme e

efetue” no caderno das crianças o que indica que para Juliana e Antônio a tabuada é a

apresentação da multiplicação e acreditam que seus alunos apresentam dificuldade na

multiplicação porque não sabem a tabuada.

Laura também considera a multiplicação difícil de ser ensinada, porém para ela a

divisão é mais complexa:

Eles têm dificuldade na multiplicação com dois e três algarismos, mas a dificuldade maior é na divisão.

De acordo com a sua entrevista podemos inferir que ela não entende que estas

duas operações fazem parte do mesmo campo conceitual, como afirma Vergnaud

(1996), mesmo que Laura não considere a multiplicação, com unidade no multiplicador,

difícil para seus alunos entenderem.

As análises das entrevistas também revelam que esses professores quando se

referem a multiplicação e divisão fazem alusão aos algoritmos e não as operações, já

que são dois conceitos distintos, isso porque, “algoritmo se refere a um conjunto de

procedimentos que leva a execução de uma dada operação enquanto a operação implica

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em transformações realizadas sobre números, quantidades, grandezas e medidas”

(CORREA, SPINILLO, 2004, p.105).

Juliana também considera difícil trabalhar com o algoritmo da divisão,

principalmente, quando envolve três algarismos no divisor. Mas essas duas professoras

assumem que não têm clareza sobre os procedimentos com estes algoritmos.

Eu não sabia fazer a divisão [...] eu não conseguia fazer a divisão com três números na chave. Eu entrei nesta escola com esta dificuldade até que um dia peguei um livro da quarta série e fui ver como fazer porque eu não conseguia fazer. (Juliana)

Eu não sei se é porque eu tenho dificuldade, os alunos também têm. Eu tenho dificuldade de passar a lógica da matemática porque eu não gosto. Eu sempre fugi de matemática, então na hora de explicar eu sinto dificuldade. (Laura)

Como ensinar o que não se sabe? Pelos dados é o caso dessas professoras. Pelos

seus depoimentos elas desconhecem regularidades do Sistema de Numeração Decimal

(SND), que é um sistema aditivo e multiplicativo e que trabalhamos com agrupamentos

de 10. E além do mais para Juliana:

Eu não gosto de divisão, não gosto. Não gosto de divisão. [...] Então por eu não gostar de uma coisa eu não vejo como um todo. Eu já não gosto da matemática. Para mim a matemática é só contas e contas desde a divisão [...] Todo problema usa uma conta de divisão ou multiplicação e eu não gosto.

Tal depoimento explica os cadernos dos alunos dessa professora com inúmeros

problemas resolvidos com a aplicação do algoritmo.

Na entrevista Laura demonstrou não perceber que os procedimentos dos

algoritmos canônicos da multiplicação são os mesmos seja com unidades, dezenas,

centenas... no multiplicador.

Por exemplo a divisão... multiplicação eu pego um número multiplico pelo outro dá tanto, mas por quê? Como é que acontece isso? Eles me perguntam isso e eu fico meio que sem resposta, eu falo ah, se você for faze tal número por tal número dá tanto e pronto. Mas eu não consigo ver a lógica pra explicar pra eles.

O questionamento de Laura refere-se ao conhecimento do conteúdo matemático

− SND − o que para Shulman (1986) é desejável que os professores saibam os

“porquês” e em quais teorias se ancoram tal assunto. São os porquês sobre o SND que

Laura e Juliana não entendem. Provavelmente esta dificuldade tenha origem na própria

formação básica dessas docentes já que o trabalho com o SND e as operações

matemáticas fazem parte do currículo do Ensino Fundamental.

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Solicitei a Juliana, durante a entrevista, que explicasse como ela ensina divisão

para seus alunos, situação que observei. Juliana: Ah! Complicou. Eu não sei como é que eu vou explicar? Entrevistadora: Quer o papel? Faz aqui. Juliana: Não sei. Como eu posso dizer? Entrevistadora: Faça 2525 : 226 Juliana: O que eu tenho que fazer aqui, se esses números são menores do que esse aqui eu tenho que achar a divisão para esses então a multiplicação aqui para depois dividir por esse ou aproximado a esse.

A professora enquanto resolvia a conta de divisão explicava que 25 (de 252) é

menor que 26 por isso dividimos 252 por 26 e para tanto, por meio da multiplicação,

podemos encontrar um produto que se aproxime de 252.

Assim como Laura o depoimento de Juliana revela que os seus procedimentos

para resolver o algoritmo da divisão estão destituídos de conhecimentos acerca do

sistema de numeração decimal. Parece que Juliana não compreende que não dividimos

25 por 26 porque as 250 dezenas estão agrupadas em 25 centenas. Elas ensinam o

algoritmo da divisão de maneira mecânica, apesar de Laura nomear as ordens

numéricas.

Na divisão é que eles estavam com problemas. Eu explico que vem primeiro a centena depois a dezena depois a unidade mas eles não entendem. Eu tenho muita dificuldade para explicar matemática. (Laura)

No que se refere ao conceito de divisão Laura entende que é:

Entrevistadora: E para você a divisão é só dividir em partes iguais?

Laura: É ... dividir, repartir...

Solicitei a ela, durante a entrevista, que explicasse uma situação que observei em

sua sala de aula. Ela estava fazendo revisão para prova; resolveu uma divisão 17 : 4,

explicou para a classe: “1 não dá pra dividir por 4” e citou um exemplo: “se eu pegar

um bombom, eu não posso dividir por 4...”. Até que um dos alunos falou: “dá para

repartir, divide em 4 pedaços”.

Laura: Poder pode, porque você vai repartir...

Entrevistadora: Exatamente, foi a resposta que o teu aluno te deu. “Dá para repartir”. Qual a leitura que você fez disso.

Laura: Que eles têm noção de dividir o todo em partes, um todo em partes. Não, assim vamos ... 17 pessoas 17 inteiros eles já tinham

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mais ou menos a noção da fração, da divisão, do todo só que a gente viu depois.

Entrevistadora: E por que o 1 não dá pra dividir por 4?

Laura: Um inteiro não dá... não dá pra dar um bombom inteiro pra 4 pessoas, por que eu só tenho 1.

Entrevistadora: E esse 1. O que é esse 1 para você no número 17? Esse 1 o que é?

Laura: É um.

Entrevistadora: É um o quê?

Laura: É uma unidade.

Entrevistadora: Não é 1 dezena?

Laura: Não. É uma unidade.

Essa professora, assim como Juliana, ao trabalhar com o algoritmo da divisão,

opera com o valor absoluto dos números, desconsidera os agrupamentos, as ordens e o

conjunto dos números racionais, pois qualquer número inteiro diferente de zero é

divisível por qualquer número inteiro diferente de zero. A professora também

demonstrou atribuir pouco significado ao conceito de divisão, pois este conceito

envolve as idéias de distribuição, uma subtração consecutiva, operação inversa da

multiplicação. Entretanto, para Laura, a divisão limita-se a dividir e repartir.

Podemos depreender, também, da entrevista de Laura, que ela não compreende o

raciocínio dos alunos acerca da divisão. Eu trouxe bastante material concreto para a sala de aula, tampinha de garrafa, material dourado e depois que eu comecei a usar o concreto eles conseguiram entender melhor, porque você fala: dividir é distribuir geralmente em partes iguais, só que eles não entendem isso. (Laura)

No entanto, quando um dos alunos diz “dá para repartir. Divide em 4 pedaços”

podemos dizer que ele tem a noção da idéia de “repartir uma quantidade em duas ou

mais partes a serem compartilhadas igualmente entre amigos” (WALLE, 2009, p.323).

Porém, Correa e Spinillo (2004) alertam que as crianças transferem o ato de dividir

socialmente para a divisão matemática, mas são situações diferentes. Portanto quando

seu aluno falou: “dá para repartir, divide em 4 pedaços” ele estava considerando 1

bombom como unidade e não como uma dezena de 17 e como Laura não fez esta leitura

não pode fazer a mediação adequada de forma a favorecer a construção do

conhecimento matemático da criança.

Observando o material dos alunos foi possível verificar que Laura apresentou

situações em que os problemas de divisão envolvem as idéias de partição e quotição.

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Entretanto os problemas são trabalhados para aplicar os algoritmos que ela está

ensinando. a- Um padeiro repartiu igualmente 81 pães entre 9 fregueses. Quantos pães

recebeu cada freguês? b- Em 6 caixas cabem 54 latas de óleo. Em 8 caixas iguais a

essas, quantas latas de óleo caberão? c- Quantas cocadas posso distribuir igualmente

em 2 bombonieres se fiz 236 cocadas? Durante a entrevista quis verificar a

compreensão da professora acerca do conceito de divisão e perguntei qual operação

matemática está envolvida neste problema. Laura: A divisão.

Entrevistadora: A divisão. Mas a divisão trabalha com a mesma idéia em todos esses problemas?

Laura: Não.

Entrevistadora:Tem idéias diferentes. E como você trabalha isso com seus alunos?

Laura: Acho que eu nunca trabalhei.

Entrevistadora:Você está me dizendo que você sabe que as ideias da divisão...

Laura: São diferentes.

Entrevistadora: São diferentes?

Laura: Porque dividir 81 por nove não é a mesma coisa que dividir 54 por 6, por exemplo, são números diferentes, mas pra mim... a diferença é essa. A ideia da divisão vai dividir em lugares diferentes coisas diferentes pra pessoas diferentes, mas só. Não cheguei além disso.

Como Laura desconhece os conceitos de partição e quotição, consequentemente,

ela não desenvolveu essas ideias presentes nos problemas apresentados aos seus alunos,

o que nos leva a inferir que o trabalho com resolução de problemas é a mera aplicação

do algoritmo da divisão.

Para Antônio as operações de divisão e multiplicação são difíceis de serem

trabalhadas. No entanto ele deu muita ênfase à tabuada.

Eu acredito que eles tenham dificuldade na multiplicação. Por conta deles não conseguirem apreender a tabuada e aí você tem uma dificuldade na multiplicação que ele vai apresentar uma dificuldade também na divisão porque para você poder resolver a conta de divisão você precisa ter noção de multiplicação. Uma está ali junto com a outra.

Pelo depoimento do professor é possível observar que a tabuada é um “marco”

para que os alunos possam entender a multiplicação e a divisão, entretanto podemos

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conjecturar que ele não trabalha os conceitos de multiplicação e divisão, mas sim os

algoritmos dessas operações.

Dou a folhinha com um quadrado numerado de 1 a 100 para eles e vou tirando as pedrinhas, digo 3 x 2, eles pensam no resultado e marcam. Já fiz ditado para eles escreverem por extenso: quanto é 5 x 9? Eles escrevem o número por extenso. E a tabuada em si mesmo, para eles treinarem. Também trazem a tabuada deles, porque eu acho que só fazendo a criança não vai aprender então tem que ter contato na hora da conta. Eles usaram aquela folha (quadriculada) que os ajudou a terem mais conhecimento da tabuada, criar afinidade com a tabuada, assim com bingo, chamada, esse tipo de coisa.

Podemos depreender da entrevista do professor que seu trabalho com a tabuada

limita-se a decorar e treinar para os alunos realizarem os algoritmos. Antônio não

desenvolve a compreensão da tabuada por meio do conceito de multiplicação e dá

ênfase a adição de parcelas repetidas. Ao pedir que seus alunos tragam a tabuada para

consulta não o fez para possibilitar-lhes a observação das regularidades dos fatores, por

exemplo, o que as tabuadas do 2, 4 e 8 têm em comum: todos os produtos são pares, os

produtos da tabuada do 4 são o dobro da tabuada do 2 e metade da tabuada do 8 e assim

por diante. Tais atividades como bingo e ditado são interessantes, porém de forma

isolada tornam-se meros exercícios de fixação como o próprio professor disse na

entrevista.

Tal trabalho com a tabuada pode ser atribuído ao fato de não haver uma proposta

para o desenvolvimento do conceito do sistema de numeração decimal, pois afinal, o

professor ao desenvolver o seu trabalho, não discutiu os agrupamentos, mas sim utilizou

cores para as crianças fixarem as ordens numéricas o que implica em que as crianças

não construam o conceito do sistema de numeração.

Eles têm dificuldade para saber a sequência, quando vem a dezena, a centena, para transformar. Por isso comecei fazer letras coloridas e nós atribuímos por exemplo, o rosa para centena , o amarelo para dezena, o verde pra unidade e eu colocava contas coloridas na lousa. Daí eu trabalhava vocês acham que cem dá igual a dez.

Questionei-o quantas dezenas há em 1255:

Antônio: Cinco

Entrevistadora: Por quê?

Antônio: Não são cinco mas são cinco, porque na dezena está marcado o número 5 .

Entrevistadora: Mas eu perguntei no número 1255, quantas dezenas ele tem?

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Antônio: Deixa eu pensar... são muitas (ficou muito tempo em silêncio). Só contando.

Entrevistadora: E por quê só contando?

Antônio: Porque dentro do 200 eu tenho várias dezenas, dentro do1000 muito mais dezenas porque pra formar cada centena eu preciso de várias dezenas.

Entrevistadora: E você faz essa articulação com eles?

Antônio: Não, eu nunca pensei nisso. Nós estamos acostumados a marcar as casas na centena, na dezena, na unidade. Eu nunca pensei nessa articulação.

A resposta do professor nos indica seu entendimento sobre este conteúdo possui

equívocos. Mesmo que ele não tenha estudado estes conteúdos na sua formação para o

magistério, ele estudou na educação básica. A maneira como o professor trabalha a

multiplicação com seus alunos denota trabalho mecânico sem o desenvolvimento

conceitual.

Então a gente fez um problema e fizemos a leitura com os alunos. Uma dúzia equivale a 12 e nós precisamos descer 12, 7 vezes e aí nós poderíamos fazer se eles estivem em um nível mais primitivo faríamos a questão do + 12 + 12 + 12 7 vezes. Como eles já passaram por essa fase nós colocamos lá o 12 e vimos quantas caixas nós queremos, pois o personagem do problema tinha 7 caixas a gente fez 7 x 12 que era a unidade que tinha em cada caixa.

Durante o período de observação em sua sala constatei que ele trabalha a

multiplicação a partir de um problema, o que permitiria que seus alunos criassem

estratégias, porém ele não questionou as crianças como o problema poderia ser

resolvido, mas sim, qual a conta que deveriam usar. A análise dos cadernos das crianças

apontou que todos eles têm a mesma resolução o que indica que na correção do

problema a resolução é feita na lousa (o algoritmo) pelo professor e as crianças

conferem, conforme os procedimentos adotado por Antônio durante as aulas.

Entretanto Juliana e Laura, buscaram vencer as suas dificuldades com a

matemática. Porém a fonte de informações dessas professoras foi o material didático

utilizado pelas crianças, isto é, o livro didático.

Bem eu comecei a pegar o material didático deles e devorar para ver se eu conseguia entender como é que funcionava as operações e passando do jeito que eu compreendi. Não foi muito compreensivo porque eu tive muito trabalho com eles, mas foi isso que eu consegui fazer no momento. (Laura)

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Eu não sabia fazer a divisão [...] eu não conseguia fazer a divisão com três números na chave. Eu entrei nesta escola com esta dificuldade até que um dia peguei um livro da quarta série que eu fui ver como fazer porque eu não conseguia fazer. (Juliana)

A reposta delas nos remete a Tardif (2000) quando ele diz que os saberes dos

professores são plurais e heterogêneos porque proveem de diferentes fontes. No caso

destas professoras o livro didático as “ensina” os conteúdos de multiplicação e divisão,

como trabalhar com os alunos ou no mínimo quais caminhos devem seguir. Elas não

buscam outras fontes de informação como literatura especializada na área ou cursos de

formação continuada como disseram na entrevista. Entretanto elas assumem terem

dificuldade com a matéria ou não gostarem de matemática o que não é o caso de

Antônio de acordo com sua entrevista.

Considerações Finais

Pelos dados coletados os professores que fizeram parte desta pesquisa não tem

conhecimentos acerca das estruturas multiplicativas e desenvolvem o trabalho da

multiplicação e divisão ancorado no ensino da tabuada para que os alunos apliquem

estes algoritmos na resolução de problemas que lhes são apresentados. Para estes

professores a resolução de problemas não é o eixo norteador do trabalho matemático,

isso porque, em muitos momentos das entrevistas, eles afirmavam que seus alunos têm

dificuldade e não entendem a multiplicação e divisão. Porém pude observar que as

crianças levantam hipóteses interessantes acerca da multiplicação e divisão e operam

em diferentes campos conceituais.

As observações de aula e análise do material dos alunos me permitiram

conjecturar que as crianças não têm possibilidade de desenvolver seus conhecimentos

porque não lhes são apresentadas situações desafiadora, ao contrário, são atividades

mecânicas, repetitivas além das inúmeras tabuadas e contas “arme e efetue”. Os

problemas são todos resolvidos com a aplicação dos algoritmos de multiplicação e

divisão. O livro didático adotado não é utilizado ressignificando as atividades propostas.

Juliana e Laura mobilizaram saberes plurais e heterogêneos para desenvolverem

o trabalho com a divisão e multiplicação quando lançaram mão do material didático

adotado pela escola. Entretanto, usando as categorias propostas por Shulman

(1986,2005) elas não possuem o conhecimento do conteúdo da disciplina, no caso desta

pesquisa as operações de multiplicação e divisão, assim como Antônio também não.

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Esses professores são formados em nível médio (antigo curso magistério) e

superior (o atual curso de Pedagogia) para ministrarem aulas no ensino fundamental e

educação infantil, por isso entendo que cabe uma questão: e a formação da educação

básica, fundamental II e ensino médio? Eles não tiveram aulas de matemática com o

professor licenciado nesta área do conhecimento?

Entendo que a discussão que busquei averiguar no espaço deste artigo, os

conhecimentos e saberes dos professores dos anos iniciais acerca do campo

multiplicativo, vai além da categorização proposta por Tardif (2002) ou Shulman

(1986, 2005), envolve a formação do professor de Matemática, pois os conteúdos

Sistema de Numeração Decimal e as operações de multiplicação e divisão fizeram parte

do currículo deles quando estudaram no ensino fundamental com o professor de

matemática. Portanto eles poderiam transferir para o trabalho docente este

conhecimento, considerando que para Tardif (2002) os conhecimentos dos professores

são plurais e heterogêneos porque proveem de diferentes fontes. No entanto, Juliana,

Laura e Antônio não buscaram na sua formação escolar (básica, por exemplo) a

compreensão destes conteúdos para ensinarem aos seus alunos.

Nessa direção, falar do professor polivalente, isto é, o que atua na educação

infantil e anos iniciais do ensino fundamental, implica discutir a formação do professor

especialista, pois foi com esse profissional que esses professores se iniciaram nos

conceitos básicos das diferentes áreas do conhecimento quando cursaram o ensino

fundamental e o médio. No caso do ensino da Matemática, Fiorentini e Castro (2003)

argumentam que “a licenciatura preocupa-se muito mais em formar um profissional que

tenha o domínio operacional e procedimental da Matemática do que um profissional que

fale sobre a Matemática, que saiba explorar suas idéias de múltiplas formas”. (p. 137)

Pesquisas em Educação e em Educação Matemática apontam para a questão da

complexidade da formação de professores. Formar professores com sólidos

conhecimentos acadêmicos favorece sobremaneira as práticas docentes, contribuindo

para a formação consistente dos alunos da educação básica, alguns deles possíveis

futuros professores polivalentes. Nessa seqüência, esses conhecimentos poderão ser

previamente resgatados pelos professores polivalentes no seu trabalho em sala de aula

com as crianças da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, e assim,

talvez, daqui a alguns anos, seja possível que também ensinem aos seus alunos o que

aprenderam na educação básica sobre a relevância social da ciência matemática, tão

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bem significada no pensamento de Georges Ifrah: “Em uma só palavra, os algarismos

constituem hoje a única e verdadeira linguagem universal”.

Referência Bibliográfica

CORREA, Jane; SPINILLO, Alina G. (2004). O desenvolvimento do raciocínio

multiplicativo em crianças. In: PAVANELLO, REGINA M. (org) Matemática nas

séries iniciais do ensino fundamental: a pesquisa e a sala de aula. São Paulo: SBEM

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MOBILIZAÇÕES E (RE)SIGNIFICAÇÕES DE CONCEITOS MATEMÁTICOS

EM PROCESSOS DE LEITURA E ESCRITA A PARTIR DE JOGOS

Cidinéia da Costa Luvison - Universidade São Francisco Regina Célia Grando – Universidade São Francisco

Resumo O presente trabalho refere-se a um recorte de uma pesquisa de mestrado que busca investigar em que medida os conhecimentos matemáticos são mobilizados e (re)significados, quando explorados em um contexto de leitura e produção escrita em situações de jogo, na perspectiva da resolução de problemas. O objetivo da pesquisa é analisar a relação da leitura e da escrita nas aulas de Matemática, quando exploradas em contextos de resolução de problemas de jogo, a partir da produção de diferentes gêneros textuais. Partindo dessa perspectiva, foi desenvolvida uma sequência de atividades com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, tendo em vista um trabalho de intervenção pedagógica com jogos na perspectiva da resolução de problemas em matemática. Para isso, os alunos tiveram contato com o Kalah, em que, através dos registros orais e escritos, foi possível analisar a aprendizagem matemática sob duas perspectivas, a da leitura e escrita (comunicação de ideias) e da resolução de problemas. Os alunos puderam comunicar suas ideias acerca do jogo, das estratégias, das resoluções de problemas e da produção do gênero carta. Focando nessas duas perspectivas de análise, notou-se que a leitura da regra do jogo, bem como da resolução de problemas traz uma relação de compreensão e significados para os alunos, que, através de um ambiente de investigações, apropriam-se da linguagem e de conceitos matemáticos nos momentos de jogo, levantando hipóteses, conjecturas e validando suas conclusões. Os momentos de leitura e escrita foram subsidiados por uma relação dialógica entre texto e leitor e jogo e cultura. Palavras-chave: leitura e escrita em matemática; jogos; séries iniciais do Ensino Fundamental. Introdução

Ao observarmos o espaço escolar dos anos iniciais e finais do Ensino

Fundamental, deparamo-nos com um ambiente muito “pobre” em relação à ludicidade.

Na maioria das vezes, os momentos de jogo e brincadeiras têm-se restringido às aulas

de Educação Física ou a espaços e horários “permitidos” para essas atividades.

A partir desse contexto, a sala de aula tem conservado um ambiente baseado na

“seriedade”, em que o lúdico não encontra seu espaço, já que se apresenta como uma

atividade “não séria” e infantil, mesmo para as crianças dos anos iniciais do Ensino

Fundamental, que já necessitam envolver-se com as tarefas e “atividades” de

aprendizagem de conteúdos escolares.

É interessante observar que os momentos reservados ao lúdico encontram sua

máxima expressão na Educação Infantil, como algo essencial à criança, ao seu

desenvolvimento e à aprendizagem. Entretanto, esse discurso perde o seu valor com o

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ingresso da criança no Ensino Fundamental, em que o jogo deixa de ser uma atividade

fundamental e passa a ser secundária, como se sua inclusão não fizesse mais sentido.

Esse fato se agrava com a nova legislação do Ensino Fundamental de 9 anos, em que

estamos assistindo à antecipação da escolarização “séria” da criança, com pouco espaço

para o jogo, para o brincar.

Por outro lado, o jogo encontra suas raízes na cultura, na constituição histórica e

no contexto da criança. Para Duflo (1999, p. 25), “de maneira geral, o jogo é uma

escola, pois pressupõe e estimula a atenção, qualidade essencial do espírito inventivo

que só o é porque é primeiro espírito atento.”

Neste ínterim, a convivência das crianças com o jogo na sala de aula, como

muitas pesquisas indicam (ANDRADE, 2009; GRANDO, 1995, 2000, 2004; MENDES,

2006; MOURA, 1994;) traz a possibilidade de construção de um ambiente no qual

existe um movimento de interação, mobilização e desejo, que se constituem em um

processo no qual não há mera recepção do conhecimento, mas sim, a construção de todo

o grupo, que reflete, discute, analisa e valida suas hipóteses. Segundo Charlot (2005,

p.76), “[...] ninguém pode aprender sem uma atividade intelectual, sem uma

mobilização pessoal, sem fazer uso de si”.

Acreditamos que, além da ação de jogar, é possível atrelar às aulas de

matemática, principalmente na educação da infância, a oportunidade de viabilizar uma

linguagem próxima e significativa para as crianças. Nesse sentido, o jogo pode propiciar

o acesso a diferentes tipos de leituras e, consequentemente, a apropriação de linguagens

— como a leitura das regras do jogo, de situações problema de jogo e suas relações com

outros gêneros textuais e da linguagem matemática —, estabelecendo um conjunto de

significações. Entendemos que essas significações ou (re)significações do conhecimento

matemático da criança possam ser evidenciadas pelas diferentes produções textuais,

tornando-se um conteúdo a ser investigado e construído na sala de aula.

A partir dessa perspectiva, o presente trabalho envolve a relação entre essas três

vertentes: a do jogo, a dos processos de leitura e escrita (comunicação matemática) e a

da resolução de problemas em matemática. A partir desse entrecruzamento, buscamos

investigar em que medida os conhecimentos matemáticos são mobilizados e

(re)significados, quando explorados em um contexto de leitura e produção escrita em

situações de jogo na perspectiva da resolução de problemas por crianças do 5º. ano do

Ensino Fundamental (9 a 10 anos).

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Para tanto, escolhemos uma sala de aula de uma escola pública em que

pudemos estabelecer uma parceria com a professora para a produção dos dados. A

escola, situada na cidade de Bragança Paulista (SP) e vinculada à rede municipal de

ensino, é uma das maiores do município, chegando a atender cerca de 650 alunos do

Ensino Fundamental, compreendidos em ciclos de educação (Ciclo I e II), nos períodos

da manhã e da tarde. Trata-se de uma instituição localizada em um bairro populoso que

apresenta uma heterogeneidade com relação ao nível socioeconômico, o que revela, em

alguns casos, extrema precariedade. O espaço é adequado no que se refere a salas de

aula e a outras dependências que atendem à parte pedagógica, embora o

desenvolvimento da ludicidade não seja considerado, já que não há espaço físico

suficiente para as atividades físicas e de recreação — nem mesmo um parque existe na

escola. As brincadeiras das crianças nos intervalos restringem-se à exploração de um

pequeno pátio, onde correm, brincam e, muitas vezes, brigam.

A escola oferece acesso aos meios de comunicação, a leituras, a brinquedos e

brincadeiras, já que a questão da segurança do bairro, também é um fator marcante na

comunidade, fazendo com que as crianças estejam “limitadas” a dois espaços: a casa e

escola, porém, de forma geral, os alunos são participativos durante as aulas e as

atividades propostas. Há uma heterogeneidade com relação ao nível sócio econômico

(em alguns casos de extrema precariedade).

A pesquisa de campo foi realizada no ano letivo de 2009 com uma das salas de

5º ano, com um total de 23 alunos, com idades entre 9 e 10 anos. Além disso, contamos

com a presença da professora da sala que, durante todo o processo, esteve colaborando

com a pesquisa e, de certa forma, refletindo sobre a prática desenvolvida e sobre si

mesma, ao observar algumas mudanças nas ações de seus alunos.

Nos momentos de produção de dados, a interação, a união e a disponibilidade de

todo o grupo foi um dos fatores positivos na pesquisa. Esse movimento contribuiu para

que diferentes formas de comunicação e interação pudessem ser documentadas, através

dos registros em audiogravação; das produções escritas dos alunos e da pesquisadora;

dos diários de campo, bem como das cartas trocadas entre alunos/professora parceira e

professora orientadora. O material produzido constituiu um conjunto de dados que

favoreceu o foco de análise desta pesquisa em duas perspectivas: da comunicação de

ideias em sala de aula de matemática a partir dos processos de leitura e escrita e da

resolução de situações problema a partir dos processos de intervenção com jogos.

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Escola: espaço de leitura, escrita, jogo e cultura.

A leitura e a escrita são as mais antigas formas de comunicação da humanidade.

Ao voltarmos no tempo, resgatando os registros rupestres, por exemplo, percebemos

que a expressividade daquele momento nos leva a observar uma arte aliada a objetivos e

funções próprios daquele grupo, como contar, registrar acontecimentos, perigos,

delimitando espaços e relações.

Do mesmo modo, ao ler e escrever a Bíblia, no Império Romano e na época

medieval, a leitura e a escrita estavam a serviço de uma função religiosa. Assim

também, os mesopotâmicos e os egípcios contemplavam, além da comunicação oral, um

registro que transcendesse um contexto falado, deixando “uma marca”, efetuada pelos

escribas, para a compreensão das futuras civilizações.

Mais adiante, a contemporaneidade, a partir dos diferentes discursos, fez com

que o registro escrito transcendesse, iniciando uma reflexão além das sílabas e sua

decodificação, mas procurou garantir que a multiplicidade de informações e escritas

trouxesse para o leitor um “dizer” repleto de significados.

A partir daquele momento, novas reflexões em torno do ler e do escrever

começaram a ser apresentadas. As questões envolvendo o letramento buscaram trazer o

processo de alfabetização o mais próximo possível de momentos de vivência e

significações, demonstrando que o processo de leitura e escrita possui, além da

comunicação, uma função social.

Da mesma forma que o ler e o escrever têm buscado transcender os momentos

exclusivos da “decodificação”, a Matemática escolar também tem sido pensada e

pesquisada para além do “decorar” fórmulas e símbolos, colocando-se diante de um

movimento de investigações, análise e mobilização de conhecimento. Tem-se como

objetivo uma construção dinâmica, em que o aluno se coloca como protagonista do seu

próprio processo de aprendizagem. Essa perspectiva de “letramento” em matemática

pode ser propiciada por situações que envolvam os alunos em processos de resolução de

problemas.

O ensino da matemática, no entanto, pouco tem contribuído para diminuir a

distância entre o aluno e seus conteúdos, propiciando um trabalho de pouca

proximidade e significação. Uma das grandes preocupações nas aulas de matemática e

que tem contribuído para o baixo desempenho dos alunos nessa disciplina, nas

avaliações externas, parece ser a dificuldade na resolução de problemas matemáticos

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convencionais. A leitura e sua compreensão têm-se associado, de maneira geral, no

Ensino Fundamental, à dificuldade do aluno em resolver problemas.

Ler, nesse sentido, tem resultado, no trabalho com textos matemáticos (como

enunciados de exercícios e problemas convencionais), em um processo de apenas

decodificar palavras e frases, que distancia o texto e seu leitor de um momento de

compreensão, comunicação e interação, em que as palavras transcendem o gráfico e se

colocam como mediadoras de significados.

Nesse sentido, acreditamos que, embora estudos acerca da leitura e da escrita

venham sendo enfatizados, poucas ainda são as pesquisas em torno da leitura,

especificamente, e estas se colocam como uma necessidade para novas reflexões.

Nacarato e Lopes (2009, p. 43) assim afirmam, ao analisarem o conjunto de trabalhos

apresentados nos seminários de educação matemática dos últimos congressos de leitura

e escrita12: “[...] entendemos que há necessidade de focar mais o processo da leitura.

Muitos alunos em qualquer nível de ensino, têm muitas dificuldades em interpretar um

texto matemático.”

Partindo dessa perspectiva, entendemos que, ao atrelar a leitura a um trabalho

específico com a linguagem matemática, subsidiado pelos diferentes gêneros textuais,

encontramos uma possibilidade para a apropriação de conceitos matemáticos.

A escrita estabelece uma proximidade com o aluno/leitor, em que este, através

de discussões, hipóteses, analogias, tanto no jogo, quanto em outros textos, explicita

escrever para si e para os outros, em um processo constante de interação e reflexão.

Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 75),

a aprendizagem da linguagem se dá, precisamente, no espaço situado entre as práticas e as atividades de linguagem. Nesse lugar, produzem-se as transformações sucessivas da atividade do aprendiz, que conduzem à construção das práticas de linguagem. Os gêneros textuais, por seu caráter genérico, são um termo de referência intermediário para a aprendizagem.

Nesse sentido, potencializando momentos de leitura e escrita, é possível refletir

e inferir continuamente. Dessa forma, a compreensão ocorre em uma relação constante

entre vivências, conhecimentos e análises já realizadas e a realizar. Além de comunicar,

12 Cole: Congresso Nacional de Leitura e Escrita realizado a cada dois anos e promovido pela ALB (Associação de Leitura do Brasil). O artigo de Lopes e Nacarato (2009) refere-se a uma análise das três edições do Seminário de Educação Matemática vinculado ao Cole, que tiveram o foco nas experiências e nas pesquisas com leitura e escrita em aulas de matemática.

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a leitura está atrelada a um processo que é cultural, carregando “marcas” entre tempos,

espaços e funções.

Acreditamos em um ensino que tenha como objetivo “[...] a viagem e não o

destino” (PIRIE, 1987, apud ERNEST, 1998, p. 30), em que o processo de construção

coletiva se torne um dos seus principais pilares, sem desconsiderar o movimento de

aprendizagem matemática individual e coletiva, e que tenha espaço para a investigação

e a resolução de problemas em matemática escolar.

A partir dessa perspectiva, propiciar um ambiente de investigações, discussões e

conjecturas leva-nos a refletir sobre a necessidade de um contexto que propicie uma

linguagem acessível aos alunos. A linguagem matemática precisa ser construída através

de ambientes em que as estratégias de leitura, análise e discussão formem um conjunto,

no qual o conhecimento matemático seja viabilizado através da reflexão. Segundo

Fonseca (2005, p. 65),

a leitura e a produção de enunciados de problemas, instrução para exercícios, descrições de procedimentos, definições, enunciados de propriedades, teoremas, demonstrações, sentenças matemáticas, diagramas, gráficos, equações, etc., demandam e merecem investigação e ações pedagógicas específicas que contemplem o desenvolvimento de estratégias de leitura, a análise de estilos, discussão de conceitos e de acesso aos termos envolvidos, trabalho esse que o educador matemático precisa reconhecer e assumir como de sua responsabilidade.

Partimos do pressuposto, nesta pesquisa, de que possibilitar situações lúdicas de

aprendizagem, a partir do jogo, combinadas com processos de leitura e escrita, pode ser

favorável ao processo de significação da linguagem matemática, à mobilização e à

(re)significação de conceitos matemáticos.

Ao trazer o jogo nesse processo, é importante pensá-lo como parte do universo

infantil, adolescente e adulto. Desde a Antiguidade, os jogos vêm sendo retratados como

objetos utilizados tanto por crianças quanto por adultos. Segundo Huizinga (2000, p.

16), o jogo é

[...]uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade

desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro dos limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras.

Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-

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se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.

Através das mudanças ocorridas até a contemporaneidade, o jogo passou a fazer

parte especialmente da cultura infantil, tornando-se exterior ao universo dos adultos, no

qual a seriedade, o trabalho e o tempo se constituíam como traços principais. Diante

dessas transformações, a escola também foi impregnada pelos efeitos dessa mudança,

configurando-se como um ambiente dirigido essencialmente por adultos.

Sendo assim, mesmo sendo frequentada por crianças, ela se transformou em um

ambiente que privilegia, especialmente, uma relação de conhecimento e seriedade, no

qual não há espaço nem tempo para brincar, já que, segundo o “olhar do adulto”, a

escola deve oportunizar a “aquisição do conhecimento” de forma “séria”.

Ao trazer a ludicidade para o contexto escolar, juntamente com o sentido da

leitura e escrita, aproximamos o ambiente da criança, que também é “sério”13, a uma

rede de significados, em que a escola e a infância se configuram como um só ambiente,

que é cultural.

Além disso, trazer a resolução de problemas para esse contexto faz com que a

criação, a investigação e o dinamismo possam ser elucidados como importantes para a

aprendizagem matemática.

Quando os alunos possuem a oportunidade de envolver-se em um contexto de

mobilização, argumentação, levantamento de hipóteses e inferências, na relação entre

texto e leitor, a linguagem matemática começa a fazer sentido. Nesse movimento de ler,

jogar e escrever, as suas vivências tornam-se próximas do contexto escolar,

constituindo-se como elemento imprescindível para a criança. Isso faz com que o

caminho, que não está pronto, tenha que ser construído pelos alunos e viabilizado pelos

professores.

Nessa relação, a resolução de problemas possui um papel importante,

principalmente quando refletida sob os aspectos do letramento, pois a relação entre a

leitura e a escrita forma um conjunto indissociável, que estabelece aproximações, não

somente da criança com o conhecimento e a linguagem matemática, mas da criança com

sua própria identidade. Segundo Powell e Bairral (2006, p. 53),

[...] a escritura pode emergir de um contexto reflexivo de caráter mais livre, expressivo e individualizado, e [...] a cognição matemática deve

13 Ver mais, em Brougère (1998).

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ser inserida num contexto de produção que vá além da expressividade, ou seja, que envolva reflexão critica e preconize processos colaborativos de diferentes dimensões e de tomada de consciência sobre as experiências individuais ou coletivas.

Dessa forma, a leitura e a escrita são vivenciadas pelo aluno, quando o jogar é

apresentado na sala de aula como processo cultural e seus movimentos, pensamentos,

ações e análises são realizados como parte do processo de produção do conhecimento.

De acordo com Brougère (1998,p. 190), “o jogo é resultado de relações interindividuais,

portanto de cultura. Deve-se partir dos elementos que a criança encontra em seu

ambiente imediato, estruturado em parte por seu meio, para se adaptar as suas

capacidades”; sendo assim, por ser uma atividade cultural, dissociar essa construção do

ambiente escolar seria desconsiderar uma atividade que é própria da criança.

Nesse sentido, o jogo transforma-se em um objeto a ser investigado, a partir da

leitura e da compreensão das regras. Em um contexto de discussão e troca de

experiências, é possível refletir de forma cooperativa e ativa sobre o crescimento de

todo o grupo, encontrando caminhos e levantando hipóteses, conjecturas e apropriando-

se do jogo como uma dinâmica construída nos momentos de discussão e intervenção.

Segundo Grando (2004, p. 91), a análise de possibilidades e tomada de consciência, o risco e a reflexão sobre o erro propiciam a elaboração de estratégias de jogo. Na estrutura de tais estratégias e na ação do jogo é que os alunos podem vivenciar as noções e produzir e/ou revelar os conceitos matemáticos intrínsecos à estrutura do jogo.

Assim, ao inserir o jogo como possibilidade nas aulas de matemática, é como se

estivéssemos rompendo paradigmas presentes na educação, no que tange aos aspectos

da ludicidade, da leitura e da escrita, que muitas vezes são restritas às aulas de língua

portuguesa; mas estamos, principalmente, colocando a leitura e escrita como “atividades

de produção matemática”14.

O jogo Kalah e as possibilidades de aprendizagem matemática por processos de

mobilização e de (re) significação de conceitos mediados pela leitura e escrita

14 Para mais detalhes, ver Fonseca (2005).

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Para a realização das atividades com jogo em sala de aula do 5º. ano do Ensino

Fundamental, decidimos pela escolha de um jogo que atendesse às nossas expectativas.

Dessa forma, procuramos resgatar, além do jogo, um viés cultural e histórico,

em que este se apresentasse temporalmente, como parte da memória de uma civilização,

e que se fizesse presente, ainda, na atualidade.

Nesse sentido, o Kalah evidenciou como um jogo marcante culturalmente, já

que suas primeiras raízes estão concentradas no antigo Egito, mas mostram-se

presentes, como práticas culturais, ainda na contemporaneidade, na África, na Costa do

Marfim. Além disso, o Kalah traz alguns elementos importantes, primeiro porque se

trata de um jogo desconhecido para as crianças, e segundo porque a linguagem

oferecida em sua regra aborda conceitos específicos do jogo, juntamente com a

dinâmica de distribuição de peças, estratégias e raciocínio lógico, o que, de certa forma,

proporciona um ambiente de curiosidade e mobilização, necessários para iniciarmos o

projeto.

Após a definição do jogo, a produção dos dados foi realizada durante quatro

meses. Nesse período, os alunos estiveram organizados em seis grupos, durante as

atividades de jogo, e individualmente e em duplas, nos momentos de intervenção e

produção escrita, através da resolução de problemas de jogo e a escrita das cartas.

A primeira etapa desenvolvida foi a apresentação do nome do jogo,

proporcionando um momento de antecipação, o que criou um ambiente de entusiasmo e

discussão, através da construção de hipóteses.

Posteriormente, apresentamos uma imagem15 (Figura 1) de um tabuleiro de

cerâmica com diversos cortes de rocha, encontrado na Etiópia em Matara (atual Eritreia)

e Yeha (na Etiópia), originado, segundo os arqueólogos, entre os séculos VI e VII d.C.

Os alunos relacionaram a imagem a outros contextos, mas o que chamou a atenção foi a

relação que o aluno Eri16 fez com o jogo fubeca, de bolinhas de gude, em que também

são feitos buracos no chão, a fim de acertar o alvo.

15 Retirado do site: <http://www.jogos.antigos.com.br>. 16 Os nomes dos alunos envolvidos na pesquisa foram preservados e foram adotados pseudônimos.

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Figura 1 – Tabuleiro de cerâmica do Mancala (Kalah)

Nesse momento, além de lançar hipóteses, os alunos construíram um ambiente

de significados, estabelecendo uma relação entre imagem/tempo/história e suas

representações. Segundo Huizinga (2000, p.4),

[...] mesmo em suas formas mais simples, [...] [o jogo] é uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa.

Juntamente com as imagens, foi realizado um “resgate histórico” do jogo,

enfatizando as diferentes nomeações do Kalah. Além disso, foram explicitados os

diferentes contextos de sua prática, o significado em relação a semeadura e colheita, a

visão mítica e religiosa, além da chegada do jogo ao Brasil, a partir da influência do

tráfico de escravos. Outra questão importante foi destacar que o jogo era realizado tanto

entre crianças quanto entre adultos. A contextualização histórica do jogo se faz

necessária porque oferece aos alunos a possibilidade de apropriar-se culturalmente dele

— qual o sentido histórico que teve a criação daquele jogo? Por que ele se fez

necessário? Quais as mudanças que suas regras foram sofrendo? É interessante saber

que também os adultos jogavam com as crianças, prática pouco presente nos dias

atuais... —, além de familiarizar-se com ele: o tabuleiro, as formas de organização das

peças. Segundo Kishimoto (2004, p. 359),

para que se possa conceber o jogo como ação livre, que estimula o imaginário, de apropriação da cultura do adulto, é necessário assumir a criança como um ser simbólico, ativo, interativo, capaz de construir conhecimento e de inserir-se no seio da cultura do adulto para recriar

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a sua. Não se trata de uma criança passiva, incompleta, ingênua ou vazia de desejos e conhecimentos.

Após a apresentação, o segundo momento da atividade foi realizado através do

primeiro contato dos alunos com os objetos do jogo. O material é constituído por 30

sementes e um tabuleiro, com um total de 10 cavidades e 2 Kalahs, o A e B, nas laterais

(Figura 2) .

Figura 2 – Tabuleiro do Kalah

Nesse primeiro momento, os alunos não possuíam a preocupação de

compreender as regras, mas de certa forma, iniciavam um processo de levantamento de

hipóteses, realizando tentativas em torno dos movimentos necessários ao jogo e a busca

pelo início da jogada.

No primeiro contato, os alunos conseguiram estabelecer relações importantes

com outros jogos. Grando (2004, p. 45-46) enfatiza que nesse momento, “experimentam

o material por meio de simulações de possíveis jogadas”, o que, no nosso caso,

propiciou um momento rico de interações de todo o grupo.

Em seguida, propusemos a leitura das regras17. Cada grupo, de acordo com sua

necessidade, procurou encontrar uma forma de compreensão e socialização. Esse

momento foi caracterizado por três situações: a leitura por um orador eleito pelo grupo,

a leitura individual ou em duplas.

Embora os alunos se deparassem com uma linguagem específica, a leitura e a

sua compreensão foram conduzidas tranquilamente. Através da discussão, da

manipulação das sementes e das “inferências” sobre o texto da regra, foi possível

estabelecer uma relação de significados entre o texto, o leitor e o jogo, em que a função

17 Kalah: Distribuem-se três sementes em cada espaço e no meio deverá haver quatro sementes. Os Kalahs das laterais deverão ficar vazios. Cada jogador fará a jogada na sua vez, distribuindo-as uma a uma a sua direita. Ao passar pelo seu Kalah, o jogador deve deixar uma semente e continuar a distribuição. Caso a semente seja colocada no Kalah do próprio jogador, este poderá jogar novamente. Se a última semente colocada cair em uma casa vazia do seu lado do tabuleiro, as sementes do adversário diretamente à frente serão capturadas. O jogo termina quando um dos jogadores não possuir mais sementes a movimentar. Quem possuir mais sementes é o vencedor.

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da compreensão das regras do jogo estava em jogar, na mobilização e no desejo de

brincar.

Uma das situações ocorridas durante a leitura da regra foi com o grupo de Eri,

Gu, Dani e Nat. Um dos conflitos seria em relação à regra número três, quanto à

movimentação das peças e a sua distribuição pela direita: “Cada jogador, na sua vez,

escolhe uma casa do seu lado do tabuleiro, pega todas as sementes dessa casa e as

distribui uma a uma em cada casa localizada à sua direita, sem pular nenhuma casa e

nem colocar mais de uma semente em cada casa”. No registro do diário de campo do

dia 28 de agosto de 2009 há o seguinte episódio, em que Cid corresponde à professora-

pesquisadora:

Cid: Conseguiram distribuir as sementes no tabuleiro? Eri: É assim, pega uma por uma e vai colocando em cada casinha (distribuindo pela esquerda). Assim, você escolhe a casinha que você quiser pôr. Cid: Mais qual das casinhas? Eri: Assim, ó, uma aqui, outra aqui e outra aqui. (3) (3) (4) (3) (3) (B) (A) (3) (3) (4) (3) (3) Ele iniciou da quarta casa, e foi distribuindo: uma semente para a terceira, outra para segunda e a última na primeira, pela esquerda. Gu: Não, não é assim, é para lá! (indicando pela direita) Cid: Mais, está escrito na regra? É dessa forma? Gu: É para escolher a casinha, a casinha que quiser. Eri: Ah, Gu, tem que vir daqui (terceira casa, indo para direita) e não daqui (terceira casa indo para esquerda). Dani: Espera aí, olha, escuta! “Cada jogador, na sua vez, escolhe uma casa do seu lado do tabuleiro, pega todas as sementes dessa casa e as distribui uma a uma em cada casa localizada a sua direita, sem pular nenhuma casa e nem colocar mais de uma semente em cada casa.” Eri: Ah! É isso mesmo, tá certo, viu, agora é voceis. Nat: Vou começar... O aluno iniciou a distribuição, e fez o primeiro ponto no seu Kalah, o B. Eri: Agora sô eu. Gu: Mas eu errei, não era essa que eu queria. Eri: Ah! Já era, já era! Vamo vê se o meu raciocínio agora dá certo. Cid: Mais o que você está pensando? Eri: Começar daqui, aí eu vou pra lá, aí paro aqui, aí eu chego aqui e paro todas aqui, é isso? Cid: Mas você quer parar as sementes aonde? Eri: Aqui. (indicando o seu Kalah A) O aluno Eri tinha em sua quarta casa cinco sementes; segundo seu raciocínio, ele pegaria todas as sementes e distribuiria uma na quinta casa e as quatro sementes restantes colocaria todas em seu Kalah.

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Cid: A regra diz que, ao chegar no seu próprio Kalah, as sementes que você tiver na mão deverá ser colocada no Kalah? Eri: Acho que não. Cid: Que tal olhar novamente na regra?

É interessante perceber que, conforme as crianças vão retomando a leitura,

discutindo, observando, elas conseguem compreender de que forma o jogo é conduzido.

Segundo Koch (2003, p. 26), “[...] o texto pode ser concebido como resultado parcial de

nossa atividade comunicativa, que compreende processos, operações e estratégias que

têm lugar na mente humana, e que são postos em ação em situações concretas de

interação social”.

A leitura e a compreensão das regras do jogo são realizadas a partir de uma

negociação de significados entre o que está escrito, o que o texto sugere como

interpretação e a interpretação de cada sujeito. O que se evidenciou durante a leitura das

regras é que a compreensão de um texto de regra de jogo, texto informativo, foi

rapidamente apropriada e negociada pelos alunos, mesmo por aqueles que são

apontados com “dificuldades em leitura”. O estabelecimento de analogias com outros

jogos familiares possibilitou uma leitura além do texto da regra do jogo. A dificuldade

manifestada por Eri, quanto à movimentação das peças no tabuleiro, estava reduzida à

compreensão matemática do que seja direita e esquerda. Quando o texto exigia uma

leitura vinculada a um repertório linguístico matemático, a pouca compreensão e a

necessidade de negociação no grupo instauravam-se.

Em um outro momento, propusemos aos alunos que refletissem sobre suas

hipóteses, viabilizando observações e questionamentos, propiciando situações

importantes para a elaboração de estratégias, com o objetivo, como mencionado por

Grando (2004, p. 55), de “provocar os alunos para a realização das análises de suas

jogadas”.

A partir disso, os alunos Eri e Dani resolveram conduzir a jogada em duplas.

Durante o processo, Dani percebeu que havia feito uma jogada que daria a oportunidade

de seu adversário, Eri, capturar as suas sementes, já que havia uma sequência de casas

vazias. Durante a intervenção da pesquisadora e a troca de experiências com Eri, Dani

conseguiu compreender a relação da regra com o seu movimento. (Diário de campo, dia

10 de setembro de 2009):

Cid: O que aconteceu?

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Eri: Sobrou a última pecinha minha lá, ele jogou uma no segundo Kalah dele e eu joguei no penúltimo meu e peguei a dele , daí ele jogou no antepenúltimo, eu joguei no meu terceiro, ele jogou no segundo eu joguei no meu segundo eu peguei e fui fazendo assim e ganhando. Cid: Dani, estava quase na última jogada, o que você poderia ter evitado? Dani: Não jogar a última peça minha na casinha dele. (casa 10). (Uma de suas sementes foi distribuída na casa 1 do adversário, porém, em suas casas não havia nenhuma semente, a não ser esta. Ao contrário do jogador A, que ainda tinha todas as casas com algumas sementes. Através de uma sequência de jogadas, todas as sementes do jogador A foram capturadas). Cid: E você podia mexer outra peça de outra casa? Dani: Podia, e não ter jogado ali, porque se eu tivesse evitado, as minhas casinhas todas tinham peças, eu joguei na última ele foi indo e pondo no Kalah dele. Foi um erro de jogada. Mais se eu também tivesse não posto ali ele não ia ganhar porque eu ia jogar uma aqui (Casa 9) e ia ficar duas e acabava o jogo. Cid: Concluam o que é melhor, manter o seu lado mais vazio ou mais cheio. Dani: Mais vazio. Cid: Por quê? Eri: Porque se ele pegasse o que tava aqui (casa 7) não ia ter dado tantos pontos pra mim, porque o lado dele tava cheio.

Oferecer na sala de aula momentos de leitura que transcendam a mera

decodificação possibilita ao aluno refletir sobre suas hipóteses, suas conjecturas e

estabelecer relações com a ludicidade. O jogo torna-se, nesse sentido, um problema a

ser resolvido, em que é preciso organizar estratégias para vencer. As situações

conflitantes durante o jogo possibilitam reconhecer uma situação de problema em

movimento que exige uma leitura de outra natureza, uma leitura do texto/contexto jogo.

A pesquisadora, no episódio acima, “provoca” a aluna Dani a uma leitura de uma

situação problema de jogo e a faz pensar “fora” da situação concreta do jogo; é como se

respondesse ao questionamento: e se fosse (re)fazer a sua jogada, o que você faria?

Nesse sentido, para que a pesquisadora pudesse ter acesso a essas diferentes

leituras e propostas de solução para as situações problema durante a ação no jogo,

propôs aos alunos que escrevessem sobre suas reflexões, acreditando que tal atitude

seria outro passo importante para as (re)significações sobre o jogo. Foi a partir dessa

proposta que continuamos a sequência de atividades.

Porém, escrever pelo simples fato de transpor o que observaram durante o jogo

“sufocaria” todo o contexto vivido pelos alunos até então. Para escrever, seria

necessário trazer um movimento próximo à sua função social, colocar a relação leitura-

escrita como mais uma ação a ser resolvida. Chamamos de “registro com leitor

externo” a produção reflexiva do texto. Através da produção escrita do gênero carta,

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nosso objetivo seria observar os saberes e os conceitos matemáticos que seriam

registrados sobre os momentos de jogo, juntamente com as análises e as estratégias que

vinham sendo construídas.

Partindo dessa perspectiva, a proposta tinha como objetivo auxiliar uma

jogadora que estava precisando de nossa ajuda. Ela não conhecia todas as estratégias do

jogo. Compreendia suas regras, toda a sua história, mas muitas estratégias ainda

estavam por serem construídas. Além disso, o que mais a incomodava é que perdia

todas as partidas para o seu marido, pois esse conhecia muito bem as estratégias. Assim,

a escrita da carta tinha um objetivo explícito: ensinar estratégias a uma pessoa que delas

necessitava; não foi uma proposta genérica. De acordo com Abreu-Tardelli (2007, p.5),

entender o contexto de produção do texto é fundamental para que o texto produzido seja adequado ao seu contexto, ou seja, preciso saber para quem estou escrevendo, com que objetivo, quando estou escrevendo, onde estou e qual o papel social que estou assumindo no momento da produção.

Assim foi possível envolver os alunos em uma situação imaginária (jogo

simbólico). Além disso, perceberam que havia algo importante a ser realizado, sentindo-

se entusiasmados pela proposta, pois a escrita seria mediadora desse processo, já que,

para escrever algumas estratégias, teriam que refletir sobre suas próprias jogadas.

Para desenvolver essa atividade de produção da carta, tivemos a preocupação de

enfocar algumas características do gênero carta, explicitando sua estrutura e o estilo de

escrita, que se tratava de uma argumentação.

Durante o processo de escrita da carta, houve momentos importantes de

discussão e foram evidenciadas algumas estratégias, de forma que os alunos se sentiram

à vontade para expressar suas observações e construir novos pensamentos e hipóteses

durante as intervenções realizadas pela jogadora na devolutiva das cartas.

Além disso, durante a escrita, conseguiram notar a diferença entre escrever uma

regra e uma estratégia, tendo esses momentos sido subsidiados também pela volta ao

jogo, a fim de refletir e analisar se eram realmente significativas. Os alunos Tha e Dani

destacaram alguns pontos importantes (Figura 3) :

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Figura 3: Primeiro registro dos alunos.

Através do registro foi possível perceber os momentos de elaboração de alguns

conceitos, por exemplo, a previsão/antecipação de jogadas e o raciocínio lógico-

matemático, juntamente com seu desenvolvimento de espacialidade e noções de

quantidade. Esses conceitos tornaram-se frequentes e contextualizados no jogo e no

registro.

Ao estabelecer essa relação de busca de novos significados, através de uma

atitude que não é de recepção, o conhecimento matemático escolar viabiliza uma

relação de investigação e de elaboração de conceitos, que tem como objetivo um

ambiente rico de aprendizagem, concebido através do jogo, da leitura e da escrita de

diferentes gêneros.

Esse cenário não permite uma relação restrita de perguntas e respostas, mas

exige uma atitude que requer discussão e busca coletiva, que não perpassa por um

movimento de manipulação de símbolos e regras, mas por um processo dinâmico de

diferentes leituras (leitura da regra de um jogo, leitura de situações problema de jogo,

etc.). Segundo Santos (2005, p.128),

a linguagem escrita pode ser vista tanto como um instrumento para atribuir significados e permitir a apropriação de conceitos quanto como uma ferramenta alternativa de diálogo, na qual o processo de

[...] Estratégias! - Para ganhar, tente deixar menos peças para o seu lado e mais para o adversário. - Toda vez que você for começar pela última casinha, se o adversário tiver todas as casinhas do seu lado ocupadas, procure deixar uma só peça na sua última casinha. [...]

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avaliação e reflexão sobre a aprendizagem é continuamente mobilizado.

Destacamos que a devolutiva das cartas (Figura 4) para os alunos significou uma

“releitura” de suas conclusões iniciais, colocando-os em um movimento de pensamento

a partir do jogo e de sua própria escrita, o que esteve presente no segundo registro dos

alunos (Figura 5).

Figura 4 – Registro da jogadora (devolutiva)

Figura 5 – Segundo registro dos alunos.

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Novamente, nota-se que, à medida que os alunos realizam o processo de leitura,

escrita e reescrita, diante de um contexto de jogo, vivenciado e construído com todo o

grupo, a leitura e a linguagem matemática, gradualmente, vão sendo apropriadas por

eles. Além disso, atrelar esse conjunto a uma função da escrita faz com que os objetivos

e as relações estabelecidas com a leitura sejam mais abrangentes.

Outro momento que possibilitou novas reflexões foi durante a resolução de

problemas de jogo, em que os alunos, além de refletir sobre suas estratégias, foram

levados a discutir e “recriar” antigas conclusões.

Nesse sentido, acreditamos que trabalhar em uma perspectiva de resolução de

problemas leva os alunos a pensar nas situações propostas nos momentos de jogo,

relacionando-os à linguagem matemática e aos conceitos que mobilizam durante as

jogadas. Segundo Van de Walle (2009, p. 59), “a resolução de problemas desenvolve

nos alunos a convicção de que eles são capazes de fazer matemática e de que a

matemática faz sentido”.

Algumas situações problema do jogo Kalah foram propostas com o objetivo de

que refletissem sobre algumas jogadas e estratégias, mas, principalmente, o foco estava

em observar como conduziam a leitura e a escrita dessas situações. Através da

representação de uma jogada, os alunos realizaram algumas conclusões, lendo,

escrevendo e reescrevendo sobre suas ideias. Na situação a seguir, os alunos Gu e Juca

destacaram a apropriação do jogo e evidenciaram suas próprias estratégias (Diário de

campo, dia 24 de setembro de 2009):

1) O jogo está como mostra a situação abaixo, após observar, responda as questões a

seguir:

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2) Se você fosse o jogador B, em qual casa mexeria? Por quê?

3) Após a primeira jogada, depois de escolher a casa, qual a próxima jogada você faria?

Por quê?

4) O jogador B teria a oportunidade de continuar com o jogo a seu favor?

Outra situação problema que chamou a atenção nesse processo foi das alunas Ias

e Jaque. A linguagem específica do jogo não foi uma barreira para que o problema fosse

compreendido, pois, através do registro, conseguiram expressar suas estratégias e a

sequência de jogadas que fariam para vencer o jogo, como mostra o registro a seguir

(Diário de campo, dia 08 de outubro de 2009):

1) Observe a situação abaixo:

2) Descreva a sequencia de movimentos que o jogador A deve fazer para defender as

suas sementes.

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3) Se o jogador A não fizer esses movimentos, quais as possibilidades de jogada que o

jogador B pode fazer para capturar suas sementes?

4) Qual o maior número de sementes que o jogador B pode colocar no seu Kalah com esta jogada?

5) Caso o jogador A não fizesse a sequencia de defesa necessária ele teria mais chance

de ganhar, perder ou empatar o jogo? Justifique.

No decorrer da atividade, percebemos que ler, escrever e comunicar sobre o jogo

tornou-se algo significativo para os alunos. Transcender a leitura para momentos em

que todo o grupo constrói, coletivamente, ultrapassa uma relação de perguntas e

respostas, conduzindo-os para um contexto de (re)significação. A escrita tem um

sentido, um movimento e uma sequência. Há uma preocupação em fazer-se entender;

em esclarecer o leitor, com detalhes, mesmo em um texto na língua materna em aulas de

matemática.

A leitura da regra e da resolução de problemas tem sentido para o leitor (o texto

tem um “dizer”), pois há uma relação de proximidade construída através das discussões,

das hipóteses levantadas sobre os objetos do jogo, das analogias estabelecidas e da

função social que o texto se coloca. Esse “dizer”, impregnado de significados,

possibilita ao aluno escrever sobre suas construções (carta e situação problema) e

compreendê-las.

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Contrariamente, o problema convencional estabelece o “fazer”, diante de uma

linguagem que ainda não foi apropriada e não contribui para que sejam estabelecidas

relações. Às vezes, o registro de um simples algoritmo é aceito como comunicação na

resolução de um problema. Mas o que ele comunica sobre como o aluno está pensando?

O algoritmo indica “qual o cálculo”, mas não “por que aquele cálculo” no contexto do

problema. Diante disso, o processo da escrita também se torna mais difícil. Assim,

Machado (1990, p. 96) enfatiza que:

[...] muito mais do que a aprendizagem de técnicas para operar com os símbolos, a matemática relaciona-se de modo visceral com o desenvolvimento da capacidade de interpretar, analisar, sintetizar, significar, conceber, transcender o imediatamente sensível, extrapolar, projetar.

Dessa forma, a resolução de situações problema de jogo também representa uma

“escrita objetivada”, com uma função definida: comunicar o que se pensou sobre o jogo,

mas “fora da situação concreta de jogo”. A escrita, seja do registro do jogo, seja da

resolução dos problemas sobre o jogo, possibilita uma aproximação da ação do jogo

com a linguagem matemática institucionalizada e escolar.

Outro momento que gostaríamos de destacar ocorreu durante a socialização das

estratégias e situações problema de jogo, em que a troca de experiências, a confirmação

de hipóteses, a criação de novas posições tiveram a oportunidade de ser comunicadas

entre os alunos. Durante a socialização das jogadas, a dupla Eri e Dani disponibilizou-se

a compartilhar seus pensamentos sobre o item b, da situação problema anterior (Figura

7).

Além de estabelecer uma sequência de jogadas, as regras e as estratégias foram

compartilhadas. Uma característica interessante nesse momento foi a apropriação da

linguagem do jogo, comunicada pelo aluno durante a socialização, como evidenciado a

seguir:

Cid: Eri, fale a sequência de jogadas que você faria para a questão b. (Iniciamos pelo item b, pois o item a seria uma sequência do b e por escolha do aluno ele achou melhor socializar desta forma). Eri: Eu jogaria o Kalah 5, porque eu faria um ponto e teria direito de jogar novamente, eu jogaria o Kalah 1 e pegava mais uma semente, e ia jogar novamente, e pegava duas peças que tava no Kalah 8, pegando pra mim e tendo direito de jogar novamente, da treis eu jogava para a quatro que ia ter direito de jogar na sete, que o Kalah 4 estava vazio e pegar uma peça, era a minha jogada novamente, e jogar do quatro para o cinco

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que tava vazia e ia pegar a do seis, duas peças, e ia ter direito de jogar novamente, e eu jogaria o Kalah 1, e ia ter direito de jogar novamente, daí eu ia jogar a dois, a treis, e acabou as jogadas, não tem mais aonde jogar.

No momento em que os alunos expressam suas conclusões, há possibilidade de

fazer com que o grupo reflita sobre suas estratégias, ressaltando as simultaneidades e as

permanências ocorridas em relação às suas conclusões e às destacadas pelo colega.

Além disso, a socialização faz com que o momento de volta ao jogo seja

marcado pela “mudança de olhar”, já que todo o processo foi significativamente

construído e compartilhado através dos diferentes pontos de vista. Retomando o jogo, os

alunos têm a oportunidade de rever e elaborar novas conclusões, o que também pode ser

possível com a reescrita e a leitura de suas conclusões. Segundo Grando (2004, p. 68),

“o jogo passa a ser considerado sob vários aspectos que inicialmente poderiam não estar

sendo considerados”. A volta ao jogo significou uma possibilidade de dar sentido às

estratégias pensadas, planejadas e produzidas durante as situações problema. Tem um

outro objetivo, que é conseguir uma leitura matemática que contribua para uma melhora

no próprio jogo, garantindo a ludicidade, o espaço para a brincadeira.

Algumas reflexões.

Durante o percurso deste trabalho, buscamos informações a respeito da leitura e

sua compreensão. Através do caminho percorrido, percebemos que os alunos possuíam

muita tranquilidade para ler e compreender o contexto da regra de um jogo e da

resolução de problemas, diferentemente das experiências anteriores desses mesmos

alunos. A linguagem específica do jogo, gradualmente, ocupou um ambiente de

discussões, manipulação e inferência entre o gênero e seu leitor.

É interessante ressaltar que tanto os textos da regra do jogo, quanto aquele de

um problema convencional18 fazem parte do mesmo gênero textual19, ou seja, são textos

instrucionais (prescritivo-injuntivos): têm como objetivo descrever ações, regular

comportamentos, etc. Embora façam parte do mesmo gênero, nota-se que a leitura de

problemas convencionais tem sido acompanhada por um trabalho de

interpretação/resolução cuja ênfase maior está em solucionar o exercício proposto,

18 Associamos o problema convencional a um desencadeador de nossa problemática, pelas dificuldades relacionadas a sua interpretação. 19 Para mais detalhes, ver o quadro de agrupamento de gêneros de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).

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chegar a um “fim”, a uma resolução imediata, sem a possibilidade de estabelecer

conjecturas e sem o desejo em resolvê-las, porque a criança não se sente envolvida pelo

problema. Mas no jogo é diferente.

O problema convencional, atrelado à pratica docente, estabelece “o fazer”,

vinculado a uma linguagem que ainda não foi apropriada, dificultando ao aluno

estabelecer relações, o que inevitavelmente também repercute no momento da escrita.

Contrariamente, a regra apresenta-se pelas significações atribuídas ao próprio

jogo e à ação de jogar. Ao discutir, lançar hipóteses, estabelecer relações, registrar, o

jogo transforma-se em um desafio a ser resolvido. A função da leitura, nesse momento,

ocupa um objetivo, um sentido, que é apropriado e (re)significado na escrita e na

elaboração de conceitos matemáticos.

Nesse sentido, o texto “diz” ao leitor, apresentando-se, dialogicamente, em uma

relação ativa e dinâmica. Não se trata de interpretar o que está escrito, decodificando,

mas de trazer à tona um processo que também é compartilhado e mobilizado por quem

lê.

Além disso, incluir espaços em que o aluno possa interagir, construir, através da

ludicidade, possibilita um ambiente no qual não existe uma dissociação entre brincar e

aprender, mas, sim, uma relação construída de acordo com o desejo, a curiosidade e a

apropriação de uma linguagem que, naquele momento, faz parte do contexto infantil.

Dessa forma, a leitura e a escrita, quando exploradas em situação de resolução

de problemas de jogo, podem viabilizar um conhecimento significativo em torno de

conceitos já aprendidos e a aprender.

A leitura de regras, sua interpretação, bem como o processo de escrita e reescrita

de seus pensamentos, podem proporcionar uma compreensão mais significativa do que

aquelas constantemente realizadas dentro de um contexto de problema convencional.

Como mencionado por Powell e Bairral (2006, p. 12), a escrita “deve ser vista como um

processo que transforma continuamente a cognição e o aprendizado de quem a produz”.

Nesse sentido, acreditamos que oportunizar o jogo, a leitura e a escrita em sala

de aula permite um momento investigativo no qual os alunos colocam “em jogo” suas

estratégias, suas leituras e seus escritos e, consequentemente, seu potencial matemático.

Além disso, garante às crianças espaços para a brincadeira, para o lúdico.

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A comunicação de ideias numa perspectiva de resolução de

problemas – o desafio de ensinar matemática numa sala

multisseriada

Brenda Leme da Silva Mengali20

Adair Mendes Nacarato21

Resumo

O presente trabalho, recorte de uma pesquisa de mestrado, tem como foco a discussão acerca do desafio de ensinar matemática numa sala multisseriada dos anos iniciais do ensino fundamental, quando a professora se propõe a uma prática pautada na comunicação de ideias geradas por problematizações. O processo de documentação da pesquisa aconteceu durante o ano de 2009 numa sala multisseriada (classe com turmas de anos diferentes) de 4º e 5º anos, na zona rural do município de Atibaia/SP. Neste recorte é apresentado um contexto de discussão coletiva dos alunos acerca das estratégias de resolução de um problema, evidenciando o quanto as interações entre os alunos possibilitam a circulação de significados matemáticos.

Palavras-chave: problematização; pensamento matemático; mediação; interação; comunicação de ideias.

Um choque de realidade: ensinar numa sala multisseriada

Discutir os desafios de ensinar matemática nas salas de aulas das séries iniciais

ou finais do ensino fundamental, bem como nas séries do ensino médio, é rotineiro nas

reuniões e nos cursos de formação continuada de professores. Os desafios e as tensões

apresentados pelos docentes são, na maioria das vezes, os mesmos, principalmente nas

escolas públicas. A indisciplina; a falta de compromisso, de responsabilidade e de

interesse por parte dos alunos; o número excessivo de alunos por classe, bem como as

classes com alunos em diferentes tempos de aprendizagem, são elementos citados pela

maioria dos professores. No entanto, acreditamos ser possível enfrentar tais desafios

com propostas que mobilizem os alunos para os saberes escolares. Esse será o foco do

presente trabalho, que discutirá alguns desses aspectos nos anos iniciais do Ensino

Fundamental, numa escola pública.

20 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco/USF. E-mail: [email protected] 21 Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Itatiba/SP. E-mail: [email protected].

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Os desafios encontrados pelos docentes das escolas públicas têm aumentado

cada vez mais, diante da ideia de trazer propostas diferenciadas para a sala de aula.

Muitos acreditam que uma prática pedagógica na qual existe a possibilidade de criar um

ambiente de aprendizagem deva ser permeada por aspectos que ainda distam muito da

realidade da escola pública. O número de alunos por sala e a diferença dos níveis de

conhecimento entre eles são os elementos nos quais os docentes se fundamentam para

justificar a ausência de propostas incentivadoras dentro da sala de aula, capazes de dar

ao aluno a autonomia para produzir os próprios conhecimentos.

Nessa perspectiva, objetivamos compartilhar como enfrentamos o desafio de

ensinar matemática numa sala multisseriada (aquelas em que estudam na mesma classe

alunos de séries ou anos diferentes) de 4º e 5º anos, com 36 alunos, sendo 18 de cada

ano, em uma escola pública na zona rural do município de Atibaia/SP.

Talvez seja difícil imaginar como se constitui um ambiente no qual estão unidos

alunos de anos distintos e apenas uma professora. É possível ensinar? É possível que os

alunos aprendam? Os alunos terminarão o ano com muitas defasagens? Como ensinar

para as duas turmas ao mesmo tempo? Que atividades devem ser propostas? Os

conteúdos presentes no planejamento são todos contemplados ao longo do ano letivo?

Essas são algumas questões que podem emergir, ao identificar que existe em

nosso país um grande número de professores que trabalham em salas multisseriadas. Em

Atibaia/SP, por exemplo, no ano de 2009, havia 13 escolas isoladas — nome dado às

escolas da zona rural do município — com cerca de 800 alunos, das quais muitas salas

eram multisseriadas.

Para nós, assumir essa sala foi um grande desafio, já que nossa proposta vem se

centrando na possibilidade de criar um ambiente no qual seja possível ensinar

matemática utilizando a resolução de problemas como um recurso para a comunicação

de ideias. Diante dessa tarefa, desde que assumimos essa classe, sabíamos que teríamos

que propor para os alunos um trabalho integrado entre eles, rompendo com os modelos

de aula que tiveram nos anos anteriores, nos quais os professores dividiam as turmas,

uma vez que as salas de aula dessa escola dispõem de duas lousas, e os alunos de cada

ano trabalhavam separadamente, não havendo qualquer tipo de integração entre as

turmas durante as atividades propostas. Muitas vezes, enquanto uma turma estudava

língua portuguesa, por exemplo, a professora aproveitava para ensinar matemática para

a outra, e depois trocava. Mudar essa prática foi nosso primeiro desafio.

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É importante destacar ainda que nossa realidade de sala de aula, contava com

uma turma bastante numerosa, composta por 18 alunos de 4º ano — dentre os quais três

não sabiam ler nem escrever — e 18 alunos de 5º ano — entre eles, um aluno de

inclusão.

Outra dificuldade que pode ser destacada se refere aos recursos materiais

disponíveis. Uma escola de zona de rural é caracterizada, em sua grande maioria, por

alunos carentes, com pouco acesso à informação, cabendo exclusivamente à escola a

responsabilidade de oferecer tal acesso. Nesse sentido, os materiais de que a escola

dispunha eram insuficientes para suprir as necessidades dos alunos.

Dentre esses aspectos, há ainda que citar os distintos papéis assumidos pelo

professor nesse ambiente escolar. Como essas escolas de zona rural têm o corpo

administrativo funcionando num prédio externo à escola, o docente acaba tendo mais

essa função, ou seja, a de resolver assuntos que são da direção, da secretaria e da

coordenação pedagógica. Isso acontece porque as escolas de zona rural têm número

reduzido de alunos, e a direção acaba assumindo várias escolas isoladas, permanecendo

num único prédio, geralmente na zona urbana, pois isso facilita o encontro dos

professores das diferentes escolas. Diante dessa realidade, o professor de zona rural não

pode contar com a presença da diretora ou da coordenadora para resolver problemas

administrativos, pedagógicos, ou mesmo com os pais dos alunos, o que aumenta a sua

responsabilidade.

Em meio a essa rede de adversidades, não desistimos de acreditar na

possibilidade de nos tornarmos verdadeiras mediadoras do conhecimento, promovendo

os alunos a participantes ativos da aprendizagem e protagonistas na produção de seus

próprios saberes.

Contextualizando nosso cenário de pesquisa

A discussão acerca do ensino da matemática nos anos iniciais do ensino

fundamental vem ganhando espaço nas pesquisas na área da educação matemática. O

modelo de ensino no qual o professor participa ativamente e o aluno, de forma passiva

no processo de construção do conhecimento, está sendo deixado para trás, ainda que

lentamente. No entanto, outros modelos estão sendo (re)criados por professores

comprometidos com a educação, bem como por aqueles que investem no seu

desenvolvimento profissional, intencionando oportunizar aos alunos que sejam

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protagonistas da produção de saberes e que a aprendizagem dos conhecimentos que a

escola se propõe a ensinar seja significativa.

Pretendemos, neste texto, trazer uma discussão sobre a comunicação de ideias

nas aulas de matemática dos anos iniciais, bem como suas contribuições para a

produção de significados matemáticos pelos alunos. Para esta discussão, de um amplo

repertório de dados coletados pela primeira autora22 deste trabalho, orientada pela

segunda, a fim de compor a documentação da pesquisa de Mestrado, selecionamos um

contexto específico.

Caracterizada como uma pesquisa da própria prática, a recolha desse material

aconteceu durante todo o ano de 2009, na sala de aula da professora-pesquisadora. É

interessante destacar que os alunos dessa escola, na sua grande maioria, são filhos de

pais humildes, que trabalham como caseiros das chácaras desse bairro, o que acarreta a

essas crianças um restrito acesso aos meios de comunicação, como internet, livros,

jornais, revistas, entre outros.

Faremos apenas um recorte do material documentado e centraremos nosso foco

nas comunicações de ideias entre os alunos dessa turma, ao serem propostas, nas aulas

de matemática, situações de problematização. Nosso objetivo é evidenciar o quanto a

problematização pode oportunizar, no ambiente de sala de aula, situações de mediação e

interações capazes de colocar o aluno como participante ativo na construção do próprio

conhecimento e, neste caso, na produção de significados para o pensamento matemático

e de sentidos para a matemática escolar.

A problematização potencializando a comunicação de ideias

Primeiramente queremos trazer as concepções que temos acerca da palavra

“problematização”, que nos remete a uma ligação com o termo “problemas”, proposta

de tarefa muito presente nas aulas de matemática dos anos iniciais. No entanto,

encontramos em Domite (2006) uma definição muito próxima das propostas de tarefas

realizadas durante o ano de 2009 na sala de aula da professora-pesquisadora. Segundo

essa autora: De todo modo, as ações perguntar, problematizar e formular problemas são hoje, [...], processos similares, ou seja, significam palavras de ordem semelhantes. Perguntar, no caso, é problema, ou seja, é algo que perturba e desafia um possível resolvedor ou resolvedora: ele ou ela sente necessidade de responder a algo e a

22 Será tratada nesse texto como “professora-pesquisadora”.

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resposta não é óbvia [...]. A problematização, por sua vez, é um processo no qual perguntas e respostas, não imediatamente claras, vão se construindo porque há uma tensão fértil, uma motivação que impulsiona para a formulação de uma pergunta mais bem delineada. (DOMITE, 2009, p. 25-26, grifos da autora).

Acreditamos, ainda, que não podemos, a partir dessa definição, deixar de

destacar a importância do diálogo, elemento mediador de todo esse ambiente

problematizador, o qual defendemos. É ele quem possibilita o movimento de ir e vir de

pensamentos, intuições, conclusões, apresentados numa tarefa proposta. No entanto,

esse ambiente, não muito comum a nossa rotina, é permeado pelas vozes que se

entrelaçam durante as discussões geradas, vozes de professor e de alunos, que são

convidados a participar ativamente da produção de saberes e, portanto, também se

apresentam como mediadores. Destacamos ainda que, através dessa dinâmica, as

intervenções não são realizadas apenas pelo professor: ao aluno também é dado esse

espaço. Essa prática pedagógica está intimamente ligada ao saber ouvir. Dar voz ao

aluno não significa deixá-lo falar ou expressar-se com liberdade, somente; o caminho

está além, na valorização daquilo que o aluno comunica, independentemente de estar

certo ou não, num movimento em que cada um oferta o saber que tem e, à sua maneira,

contribui para a produção do conhecimento.

Nosso trabalho, durante todo o ano de 2009, na sala de aula com alunos de 4º e 5º anos, foi marcado por esse cenário. Desde o início do ano letivo propusemo-nos a trabalhar os mesmos conteúdos com as duas turmas. Embora os conteúdos programáticos para cada ano fossem distintos, essa foi a maneira encontrada para estabelecer com os alunos um trabalho coletivo, bem como um cenário no qual os momentos de aprendizagem contassem com a participação de todos os presentes. A coordenação pedagógica da escola esteve ciente de todas as propostas de tarefas e conteúdos e sabia da dificuldade de uma prática pedagógica que separasse as duas turmas de alunos. O nosso maior objetivo, durante esse trabalho, não foi o de ensinar quantidade de conteúdos, mas, sim, ensiná-los com significado. Por isso, preocupamo-nos em selecionar, de todo o planejamento, conteúdos semelhantes; e priorizávamos, ora os que prevíamos para o 4º, ora para o 5º ano, dedicando-nos a mostrar para os alunos que havia, sim, possibilidades de aprender, sem que precisássemos separar o grupo.

Ao propor esse trabalho integrado entre alunos de anos diferentes, acreditamos que cada um traz consigo conhecimentos que são apropriados ao longo da vivência escolar e também fora dela. Tal apropriação pelos alunos ocorre de diferentes maneiras, e por isso defendemos que cada um pode contribuir para a produção do conhecimento do outro, mesmo não estando na mesma série/ano. Dessa forma, nossos alunos puderam, durante todo o ano letivo, compartilhar seus conhecimentos. Além desse trabalho integrando as duas turmas de anos distintos, procuramos, em nossas propostas de tarefas, priorizar aquelas que fossem realizadas em duplas.

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Tomamos o cuidado de, na maioria das vezes, escolher as duplas que uniam alunos do mesmo ano, com níveis diferentes de aprendizagem, e alunos de anos diferentes. Nosso objetivo esteve em motivá-los a colaborar uns com os outros. Carvalho (2005) discute acerca do trabalho colaborativo na sala de aula. Para ela:

Quando se realizam tarefas de forma colaborativa na sala de aula, mais facilmente se discutem e explicam ideias, se expõem, avaliam, refutam pontos de vista, argumentos e resoluções, ou seja, criam-se oportunidades de enriquecer o poder matemático dos alunos, pois cada um dos parceiros está envolvido na procura da resolução para a tarefa que têm em mãos. (CARVALHO, 2005, p. 15).

Nessa perspectiva, apresentamos aos alunos diversas propostas de tarefas. No

entanto, daremos destaque, neste texto, para as tarefas de situações-problemas, nas quais

oportunizamos inúmeros momentos de problematização. Alunos e professora-

pesquisadora desempenharam papéis importantíssimos, no que se refere às

contribuições para a produção de significados matemáticos, trabalhando

colaborativamente.

O professor, ao assumir o papel de mediador, nem sempre consegue interpretar o

que o aluno quer comunicar. Isso impede que as intervenções/mediações sejam

desafiadoras o suficiente a fim de provocar avanços e estimular que o aluno continue

produzindo saberes. Nesse sentido, defendemos o trabalho colaborativo, pois não

somente o professor, mas também os colegas fazem intervenções. A análise do que o

aluno pensou não será responsabilidade apenas do professor, pois serão possíveis as

refutações dos colegas, o que favorece o entendimento do que está sendo questionado.

Esses momentos nos quais participam alunos e professor são definidos por Powell

(2009, p.99-100) como “interlocução – práticas discursivas dos aprendizes em trocas

conversacionais”. O autor ainda destaca quatro maneiras para analisar essas práticas

discursivas, três das quais, segundo ele, são adaptações de Davis (1996): Avaliativa: um interlocutor mantém uma posição não participativa e avaliativa, julgando afirmações de seu parceiro/a como sendo verdadeiras ou falsas, boas ou ruins, úteis ou não. Informativa: um interlocutor pede ou anuncia dados fatuais para satisfazer uma dúvida, uma pergunta, ou uma curiosidade (sem evidências de julgamento). Interpretativa: um interlocutor se esforça para descobrir em que seu parceiro está pensando, o que está querendo dizer, expressando e significando; um interlocutor faz outro interlocutor pensar alto para descobrir seu próprio pensamento. Negociativa: um interlocutor negocia com o parceiro conversacional; os interlocutores estão envolvidos em um projeto compartilhado; cada um participa na formação e na transformação da experiência através de uma sequência de questionamentos sobre o estado das coisas que norteiam sua percepção e ações. (POWELL, 2009, p. 100).

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Podemos dizer que a professora-pesquisadora, durante as tarefas de

problematização, em suas intervenções, assumiu o papel de interlocutora nas maneiras

interpretativa e negociativa, enquanto as demais formas de práticas podem ser

identificadas nos discursos dos alunos durante a realização das tarefas. No entanto,

esses elementos serão mais bem discutidos na análise que faremos de um dos materiais

coletados, uma videogravação produzida na ocasião de um “congresso” promovido pela

professora-pesquisadora ao final do ano letivo de 2009. Nesse congresso, partindo de

uma situação-problema, os alunos trabalharam em duplas e concluíram suas

participações apresentando suas soluções em forma de pôster para a professora-

pesquisadora, sua orientara e para os demais colegas da sala.

Procuramos, ao longo desse trabalho, valorizar os momentos de

mediação/intervenção, feita ora pela professora-pesquisadora, ora pelos alunos.

Acreditamos, assim como Vigotski, que a mediação é capaz de proporcionar ao aluno

sair da zona de desenvolvimento real e ir para a zona de desenvolvimento potencial,

passando, no entanto por um momento de instabilidade — caracterizado pelas funções

que ainda não amadureceram e identificado durante a aprendizagem —, definido por ele

como Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).

Tendo em vista essas concepções, acreditamos no papel do professor como

principal colaborador na produção de saberes nos ambientes escolares, pois suas

mediações poderão possibilitar aos alunos avançar os níveis de desenvolvimento que,

certamente, não conseguiriam sozinhos. Propor tarefas em dupla ou em grupo nas salas

de aula também pode possibilitar o avanço de níveis na zona de desenvolvimento

proximal; o próprio aluno pode intervir junto ao seu colega, propiciando tal avanço.

Serão essas mediações, realizadas dentro dos ambientes de aprendizagem, que

permitirão ao aluno que as possibilidades que se encontram na zona de desenvolvimento

proximal de hoje componham o nível de desenvolvimento real amanhã.

Comunicando ideias a partir de uma resolução de problemas

Neste trabalho pretendemos compartilhar alguns momentos vivenciados durante

o trabalho realizado para compor a documentação da nossa pesquisa de mestrado.

Dentre o amplo repertório de tarefas propostas e desenvolvidas durante o ano de 2009,

destacamos uma que se evidenciou como potencializadora da comunicação de ideias.

O encontro com a professora Beatriz D’Ambrosio (Miami University), em

agosto de 2009, quando esta pesquisadora participou de uma série de seminários de

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pesquisa e palestras, na USF, na condição de professora visitante, oportunizou-nos

conhecer propostas de tarefas muito interessantes, realizadas com alunos do ensino

fundamental nas aulas de matemática. Foi desse encontro que surgiu a ideia de realizar

com os alunos do 4º e 5º anos um congresso, chamado por eles e pela professora-

pesquisadora de “Encontro dos alunos que gostam de estudar matemática”.

Realizamos com esses alunos dois congressos, o primeiro em setembro e o

segundo em dezembro, já no fim do ano letivo. Nos dois eventos propusemos aos

alunos uma situação-problema para ser resolvida em grupos, devendo a solução ser

apresentada para os demais colegas da sala. A eles foi dado um tempo para a resolução

e, depois da apresentação, houve também um momento para as discussões: os próprios

colegas e a professora-pesquisadora fizeram questionamentos que foram respondidos

pelo grupo responsável pela apresentação.

Encerrado o primeiro evento, a professora-pesquisadora pediu que os alunos

escrevessem uma carta endereçada a sua orientadora, contando como havia sido o

primeiro “Encontro dos alunos que gostam de estudar matemática”. Essa carta

possibilitou iniciar um diálogo entre os alunos e a orientadora da professora-

pesquisadora, pois a carta foi respondida e muitos alunos, ao escreverem uma nova

carta, disseram que queriam conhecer “a professora da professora deles”. Nessa ocasião,

surgiu a ideia de promover um segundo congresso, no qual esta estaria presente.

O segundo “Encontro dos alunos que gostam de estudar matemática” aconteceu

quase no final do ano letivo, na segunda semana de dezembro. A tarefa consistiu em

resolver uma situação-problema, em dupla, e apresentar a resolução em forma de pôster

no dia do evento, que culminou com o recebimento de um certificado pela participação

no congresso.

A situação proposta foi a seguinte: “Na próxima sexta-feira será realizado aqui

na escola o almoço de Natal. Este ano o cardápio programado é macarrão ao forno,

frango assado e salada verde. A receita do frango que a Silvia vai fazer diz que, para

cada 1 kg de frango, são necessários 15 minutos de forno. Ao todo são 13 kg de frango.

A que horas a Silvia deverá pôr o frango para assar, se o almoço será servido às

10:30h?”

Nesse dia realizamos a videogravação da aula. Para esse trabalho, fizemos um

recorte de um desses momentos de socialização das resoluções. Selecionamos, para

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análise, a discussão gerada durante a apresentação da dupla Thi e Jef23. Para a situação-

problema dada, a dupla apresentou a solução da Figura 1.

Figura 1: Solução apresentada pela dupla Thi e Jef

Organizamos a análise da discussão em momentos de interação (GOMES,

2007), ou seja, momentos em que os alunos e a professora estão em constituição na e

pelas relações sociais. Para cada um desses momentos, apresentamos: falas dos alunos,

tempo em que essas falas ocorreram na gravação e comentários, descrições ou

explicações sobre o movimento captado pelo vídeo.

0:09:06 Thi: Já que a gente sabia que um quilo era quinze minutos, a gente foi fazendo dois, três, quatro, cinco, seis, sete, até chegar o treze; aí, depois, deu cento e noventa e cinco minutos. Aí, dos cento e noventa e cinco minutos, a gente queria saber quantas horas tinha os cento e noventa e cinco minutos. Aí a gente começou tirar sessenta, aí aqui sobrou, porque não ia dar pra tirar sessenta; aí eu somei um, dois, três aí ficou três horas, aí depois eu coloquei a resposta assim. Terá cento e noventa e cinco minutos, ou seja, três horas. Aí depois eu tirei,

No momento da apresentação, a dupla teve que escolher quem seria o interlocutor, ou seja, quem apresentaria a solução dada por eles durante a resolução da situação. Escolhido o aluno Thi, foi ele quem ficou responsável pela fala.

Durante a apresentação o aluno Jef, também

23 Utilizaremos apenas as iniciais dos nomes dos alunos.

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dez e meia menos três horas, aí deu sete e meia. Aí depois eu respondi: Silvia deverá começar assar sete e meia o frango.

participante da dupla, não expressou comentário algum, permanecendo o tempo todo em silêncio.

Momento de interação 1: A dupla Thi e Jef apresenta sua estratégia.

Terminada a apresentação, a professora questionou a sala se havia perguntas a

serem feitas. Os alunos, alvoroçados, foram levantando as mãos, pois todos queriam

fazer perguntas. Isso revela que os alunos estavam mobilizados para a atividade. Então,

começaram os questionamentos.

Esses diálogos iniciais entre os alunos evidenciam que eles usam diferentes

estratégias e que, no momento de discutir a estratégia do colega, eles tentam impor seu

próprio ponto de vista. Neste caso, J.V. tenta impor a Jen sua compreensão da estratégia

dos colegas.

A resposta dada por Thi deixa os demais alunos ansiosos para falar. Nesse

momento, eles queriam explicar a Thi o que estavam entendendo e como deveria

0:10:11

Jen: Por que você não somou aqueles quinze minutos que sobraram?

A aluna Jen questiona a respeito dos quinze minutos que aparecem na subtração realizada pelos alunos para encontrar a equivalência dos 195 minutos com as 3 horas. No entanto, a aluna refere-se à soma dos 15 minutos restantes na subtração com as 3 horas, que é o resultado final desta.

J.V.: Não somou, tirou.

Percebemos que esse aluno interpretou de maneira diferente o mesmo algoritmo apresentado por Thi. Ele entendeu que os 15 minutos restantes na subtração deveriam ser tirados da resposta final: 7 horas e 30 minutos e, por isso, questiona a aluna Jen pela sua intervenção.

Jen não concorda com a interferência do aluno J.V. e, por isso, olha para ele, demonstrando sua não aceitação.

0:10:15 Thi: Porque quinze não vai dar para tirar sessenta.

O aluno Thi não enxerga a possibilidade de tirar uma hora (sessenta minutos) dos quinze minutos restantes na subtração, por isso dá essa resposta.

Momento de interação 2: As primeiras intervenções dos colegas

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entender a pergunta realizada. Percebe-se que a classe ficou alvoroçada; vários falam ao

mesmo tempo; levantam as mãos, indicando que querem a palavra. A professora, na

tentativa de organizar, foi dando voz a quem levantava as mãos.

0:10:24 J.V.: Ó, você tirava os quinze porque sobrou... é... pera aí (o aluno demonstra nervosismo e rapidamente esquece a sua pergunta) ...ali é quinze quilos, não é? Então ali é quilos ou horas?

Thi: Aqui seria horas. Um, dois, três. [inaudível]

J.V.: Aí é o minuto. Pronto. Quinze minutos. Aí você podia tirar ali, ó, porque tem o primeiro, ó. Um quilo é quinze minutos. Você podia tirar. Ia ficar sete e quinze.

No início, J.V. fica nervoso e por um instante esquece a pergunta que iria fazer, mas, assim que se lembra, retoma sua fala e conclui o porquê da intervenção feita à aluna Jen, referindo-se ao termo “tirar” (subtração) e não somar. Revela, ainda, que seu pensamento está adiante do que pensou Jen, pois ele solicita ao Thi que subtraia quinze minutos da resposta dada para a solução da situação-problema.

O aluno Thi, no entanto, não demonstrou entender a intervenção feita por J.V.; por isso a professora-pesquisadora permite que outros alunos também deem seus pareceres.

Bru: Prô, prô...

Professora-pesquisadora: Calma aí, acho que ele não entendeu o que você quis dizer. Vamos ver outra pessoa falando. Eu entendi, mas acho que ele não entendeu.

Nesse momento, a professora-pesquisadora permite que outro aluno expresse seu pensamento a respeito da discussão, possibilitando à dupla Thi e Jef uma outra estratégia, a fim de que eles entendessem as intervenções realizadas.

0:11:03 Bru: Prô, não era pra ser três horas e quinze minutos? Porque sobrou quinze minutos, certo? Aí deu três horas, aí três horas faltou quinze minutos, porque aqueles quinze minutos que sobrou também é um quilo.

O aluno Bru, no entanto, apresenta a mesma interpretação de Jen, pois questiona a possibilidade de Thi e Jef terem somado os quinze minutos restantes na subtração das três horas que haviam encontrado, chegando, assim, à solução de que Silvia deveria ter colocado o frango para assar às 7 horas e 15 minutos, e não às 7 horas e 30 minutos, como haviam respondido.

Professora-pesquisadora: Você entendeu o que ele explicou?

A professora-pesquisadora questiona se o aluno Thi, até então participante ativo da discussão, havia entendido ou não. O aluno fez que sim com a cabeça.

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Percebemos, no entanto, que os colegas assumem o papel de mediadores do

conhecimento. J.V. e Bru realizam intervenções na tentativa de que Thi avance nos

níveis de desenvolvimento, o que, certamente, sozinho, não conseguiria. Essa interação

possibilita o avanço de níveis na zona de desenvolvimento proximal, conceito abordado

por Vigotski (2001). As mediações, nesse caso, são indispensáveis, pois são elas que

provocam, através da comunicação e do diálogo, os momentos de conflito, os quais

permitem que a zona de desenvolvimento proximal de hoje seja o nível de

desenvolvimento real amanhã.

Nessa perspectiva, encontramos no momento 3 o período de conflito instalado

em Thi pelas intervenções dos colegas. Ao ser questionado pela professora-

pesquisadora se havia entendido ou não tais mediações, tenta justificar; porém

demonstra insegurança na sua fala, ao parar para pensar, e o faz em voz alta,

evidenciando o exato momento de conflito. Segundo Alrø e Skovsmose (2006, p. 113): Pensar alto significa expressar pensamentos, idéias e sentimentos durante o processo de investigação. Expressar o que se passa dentro de si expõe as perspectivas de investigação coletiva. Algumas questões hipotéticas costumam surgir no pensar alto e estimulam a investigação.

Professora-pesquisadora: Você entendeu? Então fala o que você entendeu!

O objetivo da professora-pesquisadora com essa intervenção é avaliar se o aluno está entendendo ou não as intervenções até então realizadas pelos colegas.

0:11:24

0:12:15

Thi: Já que aqui tinha sobrado quinze minutos, ele tava falando que um quilo já seriam quinze minutos. Então podia pegar esses quinze minutos e tirar aqui e aí ficar zero. Aí ele pode até ficar... [o aluno pensa, fala consigo mesmo, vai tentando resolver a conta, pensa...]. Aí ia ficar três, aí depois [inaudível] vai ficar zero, vai ficar um, dois, três, vai ficar três [inaudível]

Professora-pesquisadora: Tem gente que quer ajudar. A Ca quer ajudar. Calma aí. Fala, Ca.

Percebemos que o aluno ainda permanece confuso ou em processo de (re)formulação de suas ideias.

Momento de interação 3: As intervenções ainda não produziram sentido a Thi e Jef.

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O que está em xeque é o conhecimento real de Thi e o conhecimento potencial.

O pensar em voz alta demonstra que o aluno começa a (re)formular seu posicionamento,

embora ainda não tenha dado significado às mediações realizadas. No entanto,

aproxima-se de fazer o seu conhecimento potencial, assumir o caráter de conhecimento

real; está, provavelmente, na zona de desenvolvimento proximal. Nesse momento, a

professora-pesquisadora, na intenção de provocar ainda mais o conflito no qual Thi se

encontra, percebe a necessidade de mais intervenções e, por isso, dá voz a Ca. Assim, as

intervenções continuam.

O que percebemos nesse momento do diálogo é que os alunos passam por

processos de pensamentos distintos: enquanto Thi tenta justificar e até mesmo entender

os quinze minutos que ele não colocara no curso da solução apresentada pela sua dupla,

0:12:30

Ca: O prô, por que o Thi e o Jef fez aquela tabela?

Esse questionamento demonstra o quanto o tempo dos alunos é diferente. A aluna Ca (5º ano), com seu questionamento, mostra que não havia sequer entendido a tabela, o que evidencia as diversidades com as quais os professores lidam na sala de aula e revela o quanto os docentes têm que mobilizar-se para garantir que seus alunos consigam produzir significados para as propostas de tarefas apresentadas.

Thi: Eu fiz pra saber quanto que era treze quilos. Do um quilo eu fiz até treze quilos.

Professora-pesquisadora: Entendeu, Ca?

Os alunos ficaram agitados, manifestaram-se, querendo ajudar o aluno Thi a responder a pergunta feita pela aluna Ca.

A professora-pesquisadora percebe que a justificativa apresentada por Thi não convenceu Ca e por isso a questiona acerca do seu entendimento.

0:12:50 Ca: Fala de novo, Thi.

Thi: Aqui eu queria saber de 1 quilo até treze, aí eu e o Jé desenhou uma tabela pra saber quanto que seria e fizemos do um até o treze.

Ca: Ah, tá.

A aluna Ca, sem constrangimento algum, pede ao Thi que explique novamente seu pensamento. Thi tenta explicar novamente e parece convencer Ca.

Momento de interação 4: Nem todos os alunos se encontram no mesmo tempo, no que se refere à construção do pensamento matemático.

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é surpreendido por um questionamento, no qual a aluna demonstra não ter entendido

sequer o motivo da construção da tabela para a estratégia apresentada.

Esse aspecto permite-nos observar a heterogeneidade presente numa sala de

aula, sendo ela multisseriada ou não. Dar voz ao aluno e oferecer prontidão para ouvi-lo

passa a fazer sentido, pois é nesse diálogo, estabelecido no ambiente de aprendizagem

proporcionado, que o professor identifica se é possível avançar ou não na aprendizagem

de um determinado conceito. Nesse caso, a aluna Ca dá indícios de que não adianta Thi

continuar sua explicação, caso ela não compreenda inicialmente o porquê de a dupla ter

construído a tabela. Ca, assim como outros colegas, encontrava-se num tempo diferente

dos alunos Thi, J.V. e Bru, o que nos remete a pensar nos limites que nós, docentes,

devemos respeitar, quando se fala em propor um ambiente de aprendizagem no qual o

aluno seja protagonista da construção do seu próprio conhecimento.

0:13:06 J.V.: O Thi, pra te ajudar. Sabe como você poderia fazer? Podia pegar as sete horas e meia e tirar os 15.

J.V., percebendo que Thi ainda se encontra confuso, tenta de outra maneira comunicar sua ideia para que seu colega chegue à solução esperada para essa situação-problema.

Professora-pesquisadora: Fala, J.A..

A professora-pesquisadora tem também essa percepção e permite a intervenção de outro colega. Trata-se de outro Jef da turma (aluno do 4º ano)

0:13:22 J.A.: O Thi, aí nessa conta aí, sobrou quinze, não sobrou? O que vai ser esses quinze? Aonde que vai ficar esses quinze? Vai ter que ficar junto com as três horas não vai? Daí vai ficar dez e meia menos três horas e quinze minutos.

Mi.: É isso que eu ia falar, daí ia dar sete e quinze.

Professora-pesquisadora: Entendeu, Thi?

É interessante a intervenção do aluno Jef, que vai mostrando para o Thi como deveria pensar, porém o faz a partir de indagações que ele mesmo responde.

Momento de interação 5: Início da produção de significados para as intervenções dos

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Novamente, percebemos a ansiedade que J.V. tem em fazer com que Thi

compreenda o que ele está tentando comunicar; por isso o faz de diferentes formas. No

entanto, a professora-pesquisadora dá voz a outro colega, na tentativa de que sua fala

contribua para a compreensão de Thi.

J.A., no entanto, de forma didática, tenta explicar ao Thi o que até então este não

havia conseguido entender. As mediações realizadas anteriormente contribuíram para

que o aluno entrasse em conflito, gerando a necessidade de uma (re)formulação de

ideias, bem como da maneira de comunicar-se nos momentos de justificativa. Thi dá

indícios de que começa a produzir significados para os processos de pensamento

matemático a partir das intervenções feitas.

Cabe ainda destacar que a análise desse diálogo permite identificar que o

pensamento matemático, aqui evidenciado, emerge naturalmente no aluno. Em

momento algum a professora-pesquisadora faz qualquer direcionamento ao que o aluno

deve pensar. Os alunos intervêm, esperando do colega a produção de significados para o

que está sendo comunicado.

Percebemos que Thi escuta as afirmações de seus colegas, elege as que são

pertinentes, reúne-as às hipóteses que já tem e em seguida estabelece relação entre essas

informações para produzir, enfim, um significado para todos os argumentos e

justificativas geradas nessa discussão.

colegas

0:13:50 Professora-pesquisadora: Fala, Pa.

Pa: Como é que vocês sabem que cento e noventa e cinco minutos são três horas?

Thi: Treze horas?

Pa: Não, três horas.

Thi: Aí eu fiz na divisão, né? Eu fiz um quilo, aí eu dividi por quinze, aí dois quilos eu dividi por quinze, aí depois deu trinta, aí três quilos eu dividi por quinze e deu quarenta e cinco. Aí eu fui dividindo tudo por quinze até chegar nos cento e noventa e cinco minutos.

Mais uma vez percebemos os diferentes momentos entre os alunos. A aluna Pa (4º ano) não havia entendido como a dupla fizera para descobrir a equivalência entre os 195 minutos e as 3 horas.

Outro aspecto a ser destacado é acerca da heterogeneidade presente nos alunos do mesmo ano, bem como de anos diferentes. Essa sala multisseriada, nesse episódio, evidencia essa diversidade, que nesse ambiente se tornou uma riqueza na produção de saberes pelos alunos.

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J.A.: Tem certeza que você dividiu?

Thi: Ah, não. Multipliquei, falei errado.

Percebemos o quanto os alunos se mantêm atentos e questionam acerca dos termos usados durante as falas de seus colegas.

0:14:28 Professora-pesquisadora: Mas ele respondeu sua pergunta, Pa?

Professora-pesquisadora: Será? O que você perguntou, Pa? Pergunta de novo.

Pa: Cento e noventa e cinco minutos são três horas?

A professora-pesquisadora, ao perceber que Thi não havia respondido a pergunta da aluna Pa, não hesita em questionar.

A aluna permanece em dúvida e os demais alunos também. Nesse momento alguém responde que sim e a professora-pesquisadora faz nova intervenção

0:14:50 Professora-pesquisadora: Como que vocês descobriram que cento e noventa e cinco minutos são três horas? É isso que ela perguntou.

A professora-pesquisadora interfere e refaz a pergunta, do mesmo jeito que havia sido feita da primeira vez.

0:14:57 Thi: Aqui eu fiz treze vezes o quinze, aí deu cento e noventa e cinco.

J.V.: É só você tirar dos sessenta, porque sessenta é uma hora.

Os alunos têm a sensibilidade para perceber em que os colegas apresentam dúvidas.

0:15:10

J.V.: Ali, igual você fez aquela conta para descobrir que é três horas. Ó, você tirou sessenta dos cento e noventa e cinco. É essa conta aí que você tem que fazer. Que você falou pra Pa, que a Pa tem que fazer.

Mi: Ele fez ali aquela conta que deu três horas. É só você juntar aqueles 15 minutos e tirar.

Thi: Eu não ouvi. A Pa tava falando.

Mi: Você pegou naquela conta ali e somou só as três horas, mas você esqueceu dos quinze minutos que tava ali e que também era um quilo.[inaudível]

Thi: Eu pensei que daria pra tirar

Nesse momento o aluno Thi pensa, enquanto J.V. conclui seu pensamento.

Após a intervenção de J.V., o aluno pensa novamente.

A professora-pesquisadora pede à aluna Mi que repita sua fala.

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O professor, ao deparar-se com uma realidade de sala de aula numerosa ou,

como nesse caso, numerosa e multisseriada, pode compartilhar responsabilidades. Ao

invés de desesperar-se, tentando garantir que todos os alunos aprendam com a sua

explicação, pode compartilhar essa tarefa com os demais alunos que, como vimos, têm

capacidade e sensibilidade para mobilizar e contribuir para a produção de significados.

O conhecimento passa a ser uma produção coletiva e não um processo de transmissão

pelo professor.

Se Thi compreendeu onde estava a incompletude de sua estratégia, nem todos os

alunos compreenderam. Novos questionamentos são feitos a Thi, que agora responde

com segurança.

0:15:10

0:16:57

J.V.: Ali, igual você fez aquela conta para descobrir que é três horas. Ó, você tirou sessenta dos cento e noventa e cinco. É essa conta aí que você tem que fazer. Que você falou pra Pa, que a Pa tem que fazer.

Mi: Ele fez ali aquela conta que deu três horas. É só você juntar aqueles 15 minutos e tirar.

Thi: Eu não ouvi. A Pa tava falando.

Mi: Você pegou naquela conta ali e somou só as três horas, mas você esqueceu dos quinze minutos que tava ali e que também era um quilo.[inaudível]

Thi: Eu pensei que daria pra tirar sessenta, só que aí não deu, aí eu deixei aí.

Mi: Mas você tinha que juntar com as três horas.

Professora-pesquisadora: Entendeu Thi?

St.O: Thi, você deveria ter juntado esses quinze minutos no três, ficaria três e quinze. Você tirava do horário do almoço que ia dar sete e quinze e somar sete e quinze mais três horas e quinze minutos pra ver se dava exato.

Thi: Hum... Agora entendi.

Nesse momento o aluno Thi pensa, enquanto J.V. conclui seu pensamento.

Após a intervenção de J.V., o aluno pensa novamente.

A professora-pesquisadora pede à aluna Mi que repita sua fala.

Momento de interação 5: Finalmente, Thi compreende.

0:17:05

Ma: Mas você colocou aqueles treze, deu cento e noventa e cinco. Mas como você colocou aquelas três horas ali?

O aluno Ma (4º ano), mesmo com as explicações dadas, não conseguiu entender a equivalência dos minutos em horas; por isso, não se envergonha em perguntar o que já havia sido questionado mais de uma vez, o que faz com que o aluno Thi comunique novamente seu pensamento, porém de forma diferente, buscando o entendimento de Ma.

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Depois de reunir as intervenções que achou pertinentes, relacioná-las entre si,

Thi, finalmente, conseguiu produzir significados às mediações e transformou a

informação dada no início, quando, por diversas vezes, tentou justificar-se diante dos

questionamentos. Com essa justificativa final de Thi, podemos perceber que toda essa

discussão contribuiu para que os alunos produzissem significados acerca da situação-

problema apresentada, bem como dos conceitos que emergiram a partir dela. Embora os

alunos revelassem tempos de aprendizagem diferentes, nossa preocupação esteve em

garantir uma atividade colaborativa e coletiva, na qual um pudesse aprender com o

outro, possibilitando a eles a percepção de que um cenário de aprendizagem não é

protagonizado pelo professor e, sim, pelos alunos.

Finalizando

O recorte aqui apresentado evidencia o quanto os alunos são capazes de realizar

boas intervenções e fazer boas perguntas. Evidencia também os diferentes tempos que

os alunos têm para interpretar uma comunicação de ideias e dela apropriar-se. Isso nos

permite refletir sobre a complexidade de uma sala de aula, com toda sua

0:17:12 Thi: Porque eu já falei já, ó. Porque cento e noventa e cinco são três horas, porque eu fui tirando sessenta. Aí ficou: uma, duas, três.

J.V.: Aí, Thiago, é isso aí que você devia ter falado pra Pa.

Nessa justificativa, percebemos que o aluno Thi se apropriou das intervenções realizadas pelos colegas.

0:17:25

Ma: Aí você colocou três ali, né?

Mi: É, só que esqueceu de juntar os quinze.

Professora-pesquisadora: E aí, vocês chegaram à conclusão do quê?

A professora-pesquisadora, percebendo que os demais alunos já estavam dispersos, visto que a mesma pergunta havia sido repetida várias vezes, resolveu finalizar a apresentação, pedindo que Thi concluísse então a solução da situação-problema.

0:17:38 Thi: Que a Silvia deverá começar às sete e meia. Então, aquele tá errado, porque seriam quinze. Então seriam: Silvia deverá começar às sete e quinze o frango.

Professora-pesquisadora: Muito bem!

Os demais colegas aplaudem, encerrando a apresentação do pôster dessa dupla.

Momento de interação 6: A apropriação da fala dos outros

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heterogeneidade, e sobre o professor que enfrenta o desafio de trabalhar com todos ao

mesmo tempo. No entanto, tal ambiente de aprendizagem revela que o trabalho coletivo

e compartilhado passa a ser de todos e que, tendo os alunos oportunidade de comunicar-

se, as ideias vão circulando e sendo apropriadas por eles.

Não podemos deixar de ressaltar, ainda, a importância do uso do vídeo. Todo o

movimento captado nessa discussão só foi possível pelo uso da imagem, que

proporciona recuperar elementos não capturados nas audiogravações, nem nos registros

em diários de campo. Como recurso de coleta de dados, utilizamos gravações em áudio

e também registros da professora-pesquisadora em seu diário de campo. No entanto, foi

apenas o recurso do vídeo que nos possibilitou observar os comportamentos e os gestos,

que outros instrumentos não foram capazes de registrar.

Embora também apresente falhas e incompletude quanto a seu uso como

instrumento de análise, acreditamos, ainda assim, que

o vídeo é um importante e flexível instrumento para a coleta de informação oral e visual. Ele pode capturar comportamentos valiosos e interações complexas e permite aos pesquisadores reexaminar continuamente os dados (CLEMENTE, 2000). Ele estende e aprimora as possibilidades da pesquisa observacional pela captura do desvelar momento-a-momento, de nuances sutis na fala e no comportamento não-verbal (MARTIN, 1999). Ele supera a limitação humana de observação por ser capaz de capturar não apenas “parte do retrato integral” (MARTIN, 1999, p.76) e é superior às notas do observador, uma vez que não envolve edição automática” (MARTIN, 1999, p. 81). (POWELL; FRANCISCO; MAHER, 2004, p. 86).

Foi no movimento de ir e vir nas imagens produzidas e na audiogravação

simultânea que conseguimos captar as vozes, os gestos e os movimentos dos alunos.

Referências bibliográficas

ALRØ, Helle; SKOVSMOSE, Ole. Diálogo e aprendizagem em educação Matemática. Tradução de Orlando Figueiredo. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

CARVALHO, Carolina. Comunicações e interações sociais nas salas de Matemática. In: LOPES, Celi Aparecida Espasandin; NACARATO, Adair Mendes (Org.). Escritas e leituras na educação matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 15-34. DOMITE, Maria do Carmo S. Formulação de problemas em educação matemática: a quem compete. Movimento – Revista da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, EdUFF, Niterói, n. 14, 2009.

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GOMES, Adriana Ap. Molina. Aulas investigativas na Educação de Jovens e Adultos (EJA): o movimento de mobilizar-se e apropriar-se de saber(es) matemático(s) e profissional(is). 2007. 189 p. Dissertação (Mestrado em Educação) — Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Universidade São Francisco, Itatiba, SP, 2007. POWELL, Arthur B. Quando alunos colaboram para resolver um problema aberto e desafiante de matemática: categorias do discurso. Tradução de Maria Cecília de C. B. Fantinato e Ana Isabel de A. Spínola Dias. Movimento – Revista da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, EdUFF, Niterói, n. 14, 2009. POWELL, Arthur B.; FRANCISCO, John M.; MAHER, Carolyn A. Uma abordagem à análise de vídeo para investigar o desenvolvimento de idéias e raciocínios matemáticos de estudantes. Bolema — Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, Unesp, Rio Claro, ano 17, n. 21, 2004. VIGOTSKI, Lev S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.