Trabalho e Ergologia _Cap 2_- Conversas Sobre o Trabalho Humano _Durrive e Schwartz

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Temos aqui trechos do capítulo 2 do livro Trabalho & Ergologia: conversas sobre o trabalho humano , organizado por Louis Durrive & Yves Schwartz, publicado pela editora EDUFF este ano. Neste capítulo, trata-se de uma conversa com o ergonomista Jacques Duraffourg sobre “O trabalho e o ponto de vista da atividade”. Participei da animação de um seminário organizado para patrões, sindicalistas, médicos do trabalho, inspetores do trabalho, etc., por demanda do Ministério do Emprego (e não do trabalho, o que já tem um sentido...), baseado no slogan de Martine Aubry: “mudar o trabalho”. Eu me lembro na época ter a expectativa de que enfim estávamos atingindo o centro do alvo, de que parávamos de ficar só rodeando o trabalho. Era um projeto ambicioso, mas no final, o que restou dele? Enfim, na oficina que eu animava, um patrão de Pequena e Média Empresa, engenheiro de automação, jovem e dinâmico, alguém que claramente não tinha a cara de quem estivesse vendo do que que se tratava a questão. Até o momento em que deu um estalo. Aí ele nos contou a seguinte história, que eu acho fabulosa. “Fui chamado por uma queijaria para ver se não havia um meio de automatizar a viragem dos queijos na fase de afinação do produto. Virar queijos não é um problema muito complicado para mim. Fui ver as instalações, fiz meu trabalho com seriedade, e concebi e implantei um robô que vira os queijos. E meu robô funciona muito bem: ele “vê” um queijo e paf (ele faz o gesto), ele o vira, nenhum problema. Alguns meses mais tarde o patrão me chama: existem problemas de qualidade, a frequência das reclamações de clientes aumentou e ele tinha até perdido fatias de mercado. É a afinagem que tem problemas, ele me diz. Como engenheiro de automação, eu não compreendo. Eu fui lá ver: ora, meu robô funciona muito bem: “ele vê” um queijo, e paf, ele o vira. Mas me vem agora na memória que as operárias, que faziam esta operação manualmente, não viravam todos os queijos: elas pegavam alguns, tocavam-no, as vezes os cheiravam e não os viravam. Talvez esteja aí o problema do meu robô”.

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Temos aqui trechos do capítulo 2 do livro Trabalho & Ergologia: conversas sobre o

trabalho humano, organizado por Louis Durrive & Yves Schwartz, publicado pela

editora EDUFF este ano. Neste capítulo, trata-se de uma conversa com o

ergonomista Jacques Duraffourg sobre “O trabalho e o ponto de vista da

atividade”.

Participei da animação de um seminário organizado para patrões,

sindicalistas, médicos do trabalho, inspetores do trabalho, etc., por demanda do

Ministério do Emprego (e não do trabalho, o que já tem um sentido...), baseado no

slogan de Martine Aubry: “mudar o trabalho”. Eu me lembro na época ter a

expectativa de que enfim estávamos atingindo o centro do alvo, de que parávamos

de ficar só rodeando o trabalho. Era um projeto ambicioso, mas no final, o que

restou dele? Enfim, na oficina que eu animava, um patrão de Pequena e Média

Empresa, engenheiro de automação, jovem e dinâmico, alguém que claramente

não tinha a cara de quem estivesse vendo do que que se tratava a questão. Até o

momento em que deu um estalo. Aí ele nos contou a seguinte história, que eu

acho fabulosa.

“Fui chamado por uma queijaria para ver se não havia um meio de

automatizar a viragem dos queijos na fase de afinação do produto. Virar queijos

não é um problema muito complicado para mim. Fui ver as instalações, fiz meu

trabalho com seriedade, e concebi e implantei um robô que vira os queijos. E meu

robô funciona muito bem: ele “vê” um queijo e paf (ele faz o gesto), ele o vira,

nenhum problema. Alguns meses mais tarde o patrão me chama: existem

problemas de qualidade, a frequência das reclamações de clientes aumentou e ele

tinha até perdido fatias de mercado. É a afinagem que tem problemas, ele me diz.

Como engenheiro de automação, eu não compreendo. Eu fui lá ver: ora, meu robô

funciona muito bem: “ele vê” um queijo, e paf, ele o vira. Mas me vem agora na

memória que as operárias, que faziam esta operação manualmente, não viravam

todos os queijos: elas pegavam alguns, tocavam-no, as vezes os cheiravam e não

os viravam. Talvez esteja aí o problema do meu robô”.

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Levar a sério o trabalho que achamos que é simples

Esta história permite ilustrar perfeitamente a maneira como é possível

interpelar a empresa a partir do trabalho. A discussão começou a partir do que

parece, à primeira vista, uma anedota. A operação de virar os queijos é mais

complicada do que todos pensavam. Ela foi reduzida a uma sucessão repetitiva de

um mesmo gesto, enquanto não havia na realidade nenhum automatismo: cada

gesto da operadora é o resultado de um diagnóstico que mobiliza seu nariz, sua

sensibilidade tática, seu cérebro, evidentemente, a fim de tomar a cada vez uma

decisão capital no que diz respeito à qualidade. É a partir desta visão simplista do

trabalho que, num primeiro momento, foi tomada a decisão de automatizar a

viragem dos queijos, que em seguida o robô foi concebido, e que por fim a

supressão dos empregos foi decidida. No fim, a empresa perdeu faixas de

mercado. O engenheiro de automação toma consciência disto no seminário: “meu

robô não funcionava muito bem, o problema é que ele não sabe apalpar os

queijos!”

(...)

Interroga-se ao mesmo tempo as escolhas do chefe da empresa, a

concepção da tecnologia, da produtividade... Interroga-se também a maneira

como o projeto foi conduzido. O engenheiro de automação foi ver a viragem dos

queijos um pouco como um “turista”. As operadoras não foram chamadas a

participar. Se elas tivessem sido associadas à escolha do robô, talvez elas

saberiam explicar que a viragem não era sistemática, que de tempos em tempos é

preciso respeitar vinte e quatro horas de distância, etc. Sem dúvida existe uma

variedade de critérios: minha experiência me faz acreditar que a atividade é ainda

bem mais complicada do que diz o engenheiro de automação. O que sempre

acontece é que o investimento em um robô se traduz numa supressão de

empregos. Não estou dizendo que não se deva colocar um robô para conservar os

empregos. Estou dizendo que neste caso, as supressões de emprego – decisão

grave, se for o caso – são em grande parte consequência de uma visão simplista

do trabalho.

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Aí está, para que serve o ponto de vista do trabalho...

(...) Volto um instante ao meu exemplo do queijo. O que era visto do trabalho

destas mulheres? Somente um gesto. No limite, se virar os queijos durante o dia

todo só se reduzisse efetivamente a um gesto, se o trabalho só fosse isto na

realidade, então automatizemos o mais rápido possível! Não vamos condenar as

pessoas, oito horas por dia, a virar os queijos, se isto se limita a um gesto.

Felizmente não é o caso. Por trás dos gestos os mais simples, há sensibilidade,

estratégia, inteligência, todo um saber-fazer amplamente subestimado! Fazer

ergonomia é, através da análise da atividade, dar conta desta riqueza. Fazendo

isto descobrimos o quanto é escandaloso tudo o que impede, nas situações de

trabalho, as pessoas de empregarem todas as suas potencialidades. É graças às

mesmas que as empresas sobrevivem, que os produtos são de boa qualidade,

que as máquinas recebem manutenção, etc. Fundamentalmente, é isto o ofício

das pessoas.