Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

20
In: Schwartz, Y. e Durrive, L. (orgs.) Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana Niterói: Eduff, 2007 Texto anexo ao capítulo 7 USO DE SI E COMPETÊNCIA 1 Exposição de Yves Schwartz e comentários sobre os esquemas 5, 6 e 7 Em nossas diferentes conversas foi muitas vezes colocada a questão das competências. Eu gostaria de precisar alguns pontos, se isso é possível, considerando um tema complicado, mas essencial. A própria noção de competência se desenvolveu muito, como vimos, a partir do momento em que as formas de trabalho e de atividade se complexificaram. Trata-se da passagem, sobre a qual já falamos, da noção de qualificação à de competência. Com os acordos firmados em certos ramos produtivos, falou-se muito da “lógica competência” no interior das relações profissionais. Fala-se também dos “balanços de competências”, dos “referenciais de ofícios” – que não são exatamente a mesma coisa, mas há uma ligação. Cada vez com maior frequência se tem a preocupação de listar as competências, de objetivá-las e de avaliá-las; de julgar, separar, selecionar em função da idéia que se faz desta noção de competência -, ou deste “estoque de competências” que teria então vocação para ser relativamente transparente, relacionado a uma pessoa. Como para tudo que concerne os problemas “da atividade”, é preciso saber considerar o a favor e o contra. A atividade não autoriza nenhum julgamento unilateral, eu não deixarei de repetir. Nesta passagem da qualificação à competência, há uma forma de bifurcação, com uma dimensão interessante e potencialmente rica. De agora em diante, com a noção de competência, nos damos conta de que uma definição daquilo que uma pessoa coloca em ação no trabalho não pode mais se relacionar ou se restringir ao posto de trabalho, com uma enunciação frequentemente 1 Tradução de Maria Elisa Borges e Paulo Cezar Zambroni-de-Souza. Revisão técnica de Ana Luiza Telles, Jussara Brito e Milton Athayde.

Transcript of Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

Page 1: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

In: Schwartz, Y. e Durrive, L. (orgs.) Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana

Niterói: Eduff, 2007

Texto anexo ao capítulo 7

USO DE SI E COMPETÊNCIA1

Exposição de Yves Schwartz e comentários sobre os esquemas 5, 6 e 7

Em nossas diferentes conversas foi muitas vezes colocada a questão das competências. Eu gostaria de precisar alguns pontos, se isso é possível, considerando um tema complicado, mas essencial.

A própria noção de competência se desenvolveu muito, como vimos, a partir do momento em que as formas de trabalho e de atividade se complexificaram. Trata-se da passagem, sobre a qual já falamos, da noção de qualificação à de competência.

Com os acordos firmados em certos ramos produtivos, falou-se muito da “lógica competência” no interior das relações profissionais. Fala-se também dos “balanços de competências”, dos “referenciais de ofícios” – que não são exatamente a mesma coisa, mas há uma ligação. Cada vez com maior frequência se tem a preocupação de listar as competências, de objetivá-las e de avaliá-las; de julgar, separar, selecionar em função da idéia que se faz desta noção de competência -, ou deste “estoque de competências” que teria então vocação para ser relativamente transparente, relacionado a uma pessoa. Como para tudo que concerne os problemas “da atividade”, é preciso saber considerar o a favor e o contra. A atividade não autoriza nenhum julgamento unilateral, eu não deixarei de repetir. Nesta passagem da qualificação à competência, há uma forma de bifurcação, com uma dimensão interessante e potencialmente rica. De agora em diante, com a noção de competência, nos damos conta de que uma definição daquilo que uma pessoa coloca em ação no trabalho não pode mais se relacionar ou se restringir ao posto de trabalho, com uma enunciação frequentemente

1 Tradução de Maria Elisa Borges e Paulo Cezar Zambroni-de-Souza. Revisão técnica de Ana Luiza Telles, Jussara Brito e Milton Athayde.

Page 2: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

muito sucinta daquilo que há para fazer naquele posto – uma herança do tempo do taylorismo. A noção de “competências” nos sugere abrir amplamente a investigação acerca do que é requerido no trabalho, para compreender o que faz uma pessoa. Esta é a dimensão positiva. Ao contrário, é claro, dentro do campo das relações profissionais, há

toda uma série não de derivas, mas de práticas que se desenvolvem há vários anos, onde se imagina ser possível fechar uma lista de competências, enfim “traços de competências”, para saber se uma pessoa as possui ou não.

Existem especialistas de grades de competências, de avaliação de competências. Penso que existe aí um risco de voltar a enclausurar a potencialidade aberta no primeiro ramo da bifurcação. O manuseio desta noção de competência apresenta um poderoso desafio e é por isso que é interessante precisar um pouco as coisas, se isso for possível.

Antes mesmo de seguir adiante, eu diria que nossa dificuldade para definir a noção de competência – a noção de “competência no trabalho” – para falar só disso – não é surpreendente. Tenta-se definir competências não para o trabalho, mas para as situações de trabalho. Porém, o que é uma situação de trabalho? Recai-se, um pouco, na armadilha de ficar “entre o mal e o pior”2, de dificuldade em dificuldade. Será que alguém poderia definir uma situação de trabalho, no espaço e no tempo, dizendo: “eis uma situação de trabalho, é isso; ela se define por tal espaço e por tal e tal temporalidade”?

Na realidade, os limites de uma situação de trabalho não são jamais descritíveis, eles são imprecisos. Aliás, eu penso que são horizontes que se encaixam uns nos outros. Essa é uma primeira dificuldade. A conseqüência direta é justamente que jamais se pode padronizar uma situação de trabalho, devido à indefinição dos horizontes que a cercam.

Se admitimos esta dificuldade, o que poderia ser uma competência ajustada a uma situação de trabalho, na medida em que esta última não pode ter definição nem circunscrição clara?

Por outro lado, mas no fundo trata-se da mesma dificuldade, tenta-se detectar competências numa situação de trabalho, considerando uma certa atividade. Ora, vimos que a atividade tem algo de sempre indefinível na medida em que ela é sempre micro “re-criadora”. Vimos que uma situação de trabalho é 2 Usamos esta expressão vulgar – “ir de mal a pior” – para substituir a que o autor utiliza – “de Charybde en

Scylla”. Trata-se de expressão idiomática que remete à mitologia grega (canto XII de Homero, na Odisséia,

acerca do périplo de Ulisses, retornando à terra natal, após a guerra de Tróia. A expressão evoca fugir de um

perigo (o monstro-turbilhão Charybde) para cair em outro pior (monstro Scilla) (NRT).

���� Difícil dizer alguma coisa das competências sem trair o que elas são : antes de tudo um “ agir ” aqui e agora.

Page 3: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

sempre – para a atividade – o que pudemos denominar “um encontro de encontros”, um encontro de singularidades, de variabilidades a gerir. Numa situação de trabalho, a atividade é sempre o centro desta espécie de dialética entre o impossível e o invivível3.

Percebe-se, portanto, como é difícil delimitar exatamente o que podem ser as competências da atividade em uma situação de trabalho, considerando essas duas dificuldades. Vê-se como dificilmente se poderia delimitá-las, definí-las, catalogá-las, avaliá-las. Pode-se, então, avaliar de imediato a dificuldade que está em se apropriar de maneira realmente operacional do conceito de competência, mesmo se, digo e repito: é legítimo examinar a questão das competências, porque nenhuma atividade humana pode deixar de lado a possibilidade de as pessoas engajadas numa operação responderem positivamente e operarem com eficácia com vistas ao objetivo comum, em uma situação mercantil ou não mercantil. Ninguém pode escapar a esta questão, mas é preciso imediatamente avaliar a que ponto vai ser difícil dar um sentido operacional à questão.

É justamente por essas razões que, em conversas anteriores, tive a oportunidade de sugerir que existem três elementos presentes na noção de competência e que não se articulam facilmente:

• existe algo que tem a ver com a apropriação de um certo número de normas antecedentes, ou de elementos do “registro Um”. Dito de outra forma, algo do âmbito do relativamente codificado, do relativamente transmissível, do relativamente bem conceitualizado – e que evidentemente estrutura, enquadra fortemente toda situação de trabalho;

• há um elemento diferente que é, ao contrário, o do domínio relativo àquilo que uma situação pode ter de histórico e de incessantemente (parcialmente, mas incessantemente) inédito – o que, evidentemente, é algo inteiramente diferente;

• existe ainda um terceiro elemento, dado que nesta situação, justamente, cada um é remetido a gerir o inédito: a pessoa é remetida a si própria, e portanto remetida a escolhas. Uma dimensão de valores, incontornável, vem cruzar ou se intercalar, ou se articular com as duas primeiras dimensões: este terceiro elemento é, consequentemente, de uma natureza absolutamente diferente.

Percebemos logo como é difícil chegar a uma definição relativamente

operacional das competências, para articular dimensões da experiência humana

3 Invivable, no original (N.T.).

Page 4: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

que não são suscetíveis de serem colocadas, digamos, em uma mesma série, que são “heterogêneas” e que são, de uma certa maneira “incomensuráveis”, isto é que não podem ser comparadas.

Daí a idéia – mesmo se isso é forçosamente um pouco artificial – para avaliar essa dificuldade, de mostrar que na noção de competências, elementos heterogêneos que eu chamo de “ingredientes” se combinam: ingredientes, para melhor mostrar que, como em uma boa mistura, é preciso um pouco de cada um deles; mostrar que eles são diferentes uns dos outros, que a pimenta não é a noz moscada, ou o gengibre, que é diferente; contudo, em uma boa culinária se deve saber colocar uma pitada de cada um desses ingredientes.

Parece-me que um certo número de ingredientes devem então se articular no agir em competência. Eu diria “agir em competência”, ao invés de na competência, justamente porque competência não é uma noção simples e homogênea.

Um certo número de ingredientes é necessário a todo agir em competência, para cada pessoa, numa dada situação: é preciso insistir bem nisso. O que não impede generalidades relativas no que vamos dizer, mas se queremos ser muito precisos e não deixar escapar qualquer possibilidade de evoluções positivas, é necessário considerar cada um em sua situação para “caracterizá-la” – em tendência e com muitas reservas –por um certo perfil de ingredientes. É o que eu gostaria de evocar agora. Como eventualmente poderíamos caracterizar esses diversos ingredientes compondo o perfil de uma pessoa, o perfil de seu tipo de “agir em competência” numa determinada situação?

O primeiro ingrediente é talvez o mais fácil. É, em todo caso, sem dúvida o

mais fácil de ser compreendido, mas isso não quer dizer que ele seja o mais fácil de ser adquirido. Trata-se de tudo o que concerne ao aspecto, eu diria, “protocolo” numa situação de trabalho.

Podemos dizer, como já o fizemos, que toda situação de trabalho pode sempre se caracterizar como:

• respeito a um protocolo, no sentido de um protocolo científico de uma experimentação;

• e experiência ou encontro, este segundo elemento indicando a dimensão sempre parcialmente singular de uma situação de trabalho.

• Então, certamente, quando se fala de “competências”, isto supõe dominar – em parte, porque ninguém pode tudo dominar – o aspecto protocolo, ou seja os saberes científicos,

� O primeiro ingrediente de uma competência: o relativo domínio dos protocolos numa situação de trabalho.

Page 5: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

técnicos, de ordem econômica, gestionária, jurídica, lingüística, toda uma série de códigos, de saberes, de linguagens que enquadram uma situação. E é claro que agir em competência em uma situação dada é, em certo grau e mais ou menos, dominar uma parte desses elementos de protocolos, que podem ser avaliados, fixados, determinados – antes mesmo que a ação ou a situação seja criada, eu diria.

E é todo o poder prodigioso de um conhecimento, do saber, do conceito que pode construir “in absentia”, isto é, na ausência das próprias coisas, toda uma série de relações, de interações; que pode prever conseqüências, cadeias de causalidade, sem mesmo que a coisa exista ou seja construída.

Pode-se, por exemplo, ter toda uma série de competências sobre o comportamento de um avião supersônico, independente do vôo, porque há toda uma série de elementos que são perfeitamente definíveis. Assim como pode-se definir de antemão – para alguém que trabalhe na Previdência Social, por exemplo, e que trate de documentos – protocolos de tratamento desses documentos; esses protocolos supõem o conhecimento de técnicas no campo do seguro-doença. Trata-se do conhecimento e isto faz parte do primeiro ingrediente da competência.

Esse primeiro ingrediente se opõe ao seguinte, na medida em que ele supõe um descentramento ou uma descontextualização da pessoa em relação à sua situação, em relação à sua vida, em relação a seus desejos. Aprender tais saberes é fazer, de uma certa maneira, abstração do que se pensa sobre a questão. É uma disciplina, “a disciplina do conceito”, que jamais é fácil, que tem algo de um pouco doloroso, mas que é absolutamente indispensável.

O segundo ingrediente se distingue bastante do precedente, ele é

claramente heterogêneo: é ao contrário, a capacidade de se deixar apropriar – quase ser impregnado – pela dimensão singular da situação, pelo histórico, pela dimensão de “encontro de encontros”.

Lembro que “encontro de encontros” significa o encontro de toda uma série de interfaces que se deve operar em conjunto, que são os ambientes técnicos, os ambientes humanos, os procedimentos, os hábitos. Cada um desses elementos do encontro tem ele próprio uma história e, logo, a interface ou o pôr em encontro todos esses elementos diferentes (e particularmente, claro, desses elementos humanos) cria singularidade, eu diria “ao quadrado”, ou a uma potência qualquer.

É a dimensão “encontro de encontros”, que supõe capacidades ou competências que são absolutamente diferentes do primeiro ingrediente.

Page 6: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

Já tivemos a oportunidade de evocar algumas das competências deste segundo ingrediente. Lembraremos o pequeno exemplo4, entretanto muito importante pelo que ele permite pensar, acerca das operárias de componentes eletrônicos, e o agir em competência da operadora que vimos no esquema 1.

Trata-se da capacidade de se antecipar frente aos espaçamentos entre os pinos da resistência, que frequentemente não correspondem exatamente ao que é preciso; antecipar um certo número de eventos, de problemas que podem tanto vir da vizinha quanto dos materiais enviados, ou da velocidade da base, não sei. Eu não sei justamente porque é necessário estar na situação local para sabê-lo! Logo, isso é um agir, uma forma do “agir em competência”, que é totalmente específico – e que está ligada à historicização da situação, ao caráter histórico, à infiltração da história na situação de trabalho. Um exemplo de porte refere-se a tudo o que se pode dizer sobre as entidades coletivas relativamente pertinentes, a partir desta famosa frase5: “a 17 acabou de entrar, Dodó6, vai ser o teu retorno”. Para que isso funcione, supõe-se um “agir em competência” coletivamente trabalhado, estocado, produzido no interior dessas entidades relativamente pertinentes. Isso supõe também relações entre tais e tais pessoas, supõe que funcione em Miramas7 – mas não funcionaria em outro lugar, ao menos não da mesma maneira. É toda uma impregnação da história simultaneamente humana, técnica, viva, da situação, que permite ao “agir em conjunto” produzir com desempenho – e que é totalmente diferente do primeiro ingrediente.

Aliás, esse é um problema maior, do qual fala Abdallah Nouroudine em outra conversa8, o das transferências de tecnologias. De fato, nesse tipo de projeto a dificuldade se situa na transferência de uma tecnologia que foi pensada no “não contextualizado”. Justamente, para que funcione, é preciso contextualizar o não contextualizado: em um país, em uma cultura, em uma língua. Neste segundo ingrediente, que é o da impregnação, da inscrição na história, consideramos:

4 Ver anexo ao capítulo 1 (NT).

5 Ver anexo ao capítulo 5 (NT).

6 Bobo, no original, enigmática forma de nomear um colega de trabalho, analisada no anexo ao capítulo 5.

Como em francês é uma expressão familiar como dodói, em português, optamos por ela (NRT). 7 Cidade francesa onde se localiza um grande centro de triagem ferroviário (NRT).

8 Ver capítulo 4 (NRT).

���� O 2° ingrediente de uma competência: a relativa incorporação do histórico de uma situação de trabalho.

Page 7: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

• por um lado, toda a importância do que chamei o “corpo-si”, porque a presença no si9 do histórico da situação passa muito, nas relações humanas, por todas as sensações, por tudo o que é registrado pelo corpo, pela memória, sem que se pense realmente – o que, por isso mesmo, gera um problema muito delicado, que é o do pôr em palavras esta segunda forma do agir em competência, deste segundo ingrediente. Precisamente porque o “corpo-si” é aí muito importante.

• vê-se também que é preciso um certo tempo, considerando que temos aí o problema que chamei de temporalidade ergológica. Mas quanto tempo? Tudo depende das situações e das pessoas. Para que este ingrediente se cristalize e para que este “agir em competência” se constitua – esta forma que é impregnação da história –, é necessário uma duração específica, tanto em relação à pessoa quanto à situação.

Enfim, vê-se de imediato, sem ir mais longe, que precisamente quando se

trata de avaliar este “agir em competência” – considerando o problema da colocação em palavras e do papel do “corpo-si” no segundo ingrediente –, vamos nos encontrar em uma situação muito mais difícil que no primeiro ingrediente, o do protocolo. Desde já percebemos a dificuldade.

Uma vez colocados os dois primeiros ingredientes em sua diferença, penso que podemos compreender o que chamo de terceiro ingrediente. É claro que eu recorto dimensões da atividade que na realidade não podem absolutamente se dissociar umas das outras. Imaginamos a dificuldade para fazer a síntese. Contudo, penso que é interessante tentar fazer este esforço de análise, porque, cada um de nós é, tendencialmente, mais desenvolto que outros neste ou naquele tipo de ingrediente.

O terceiro ingrediente é, em parte, aquele que concerne ao pôr em sinergia

ou a colocação em ressonância os dois primeiros. Isso quer dizer que o problema é tentar ver, em cada caso, simultaneamente:

• em que ele é expressão de um caso típico que se pode definir, como tudo o que é da ordem do “protocolar”, pois ele é da ordem do "registro Um" – ou das normas antecedentes;

• e em que, não obstante, ele supõe um tratamento diferenciado, dado que ele não corresponde nunca exatamente ao que se antecipa – e isto remete à pessoa que deve operar este tratamento diferenciado.

9 Soi, no original (NT).

� O terceiro ingrediente de uma competência: a capacidade de articular a face protocolar e a face singular de cada situação de trabalho.

Page 8: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

É preciso tentar fazer circular permanentemente o caso típico e a pessoa – ou o caso singular e a pessoa – ou o caso em sua singularidade. Mesmo que, para tratar o caso, para tratar a situação, sejam utilizados recursos codificados, aprovados, do lado do protocolo, estes devem ser ajustados permanentemente ao que a situação tem de particular. Acho que se trata realmente de algo que dá muito trabalho, pois este pôr em sinergia ou em dialética dos dois primeiros ingredientes é um importante trabalho.

Já pudemos dar exemplos, principalmente no setor industrial. Mas isso é muito característico de todos os tipos de situações de serviço ou de trabalho social, por exemplo: seja nos guichês de banco ou no trabalho social, quando se trata de orientar pessoas, seja no caso de jovens em uma Missão Local10, ou no caso da Proteção Jurídica da Juventude, etc.

Vemos chegar até nós pessoas que se encaixam em determinados quadros e é preciso conhecer esses quadros. “Quadros”, essa expressão significa: o que é possível fazer para ajudar essas pessoas, que instituições são pertinentes, em que quadro jurídico eles se encaixam, o que é possível ou impossível fazer. São necessários conhecimentos para chegar a ser eficaz (ingrediente 1). Mas isso deve ser colocado em dialética com o que se percebe da pessoa, do jovem em questão. Ele mesmo pode corresponder a um perfil, encaixar-se em certos quadros. Pode-se dizer: “é um jovem de tal grupo e que vive em tal bairro, onde há um certo número de problemas que eu conheço”. Poder dizer isto (ingrediente 2) é importante, mas não suficiente para lidar com a pessoa singular, porque mesmo tais características não serão jamais suficientes para ter um diálogo fecundo e real com a pessoa, com o jovem que está face a você: um beneficiário de RMI11, uma pessoa em dificuldade.

Há um trabalho muito complicado que consiste em tentar resolver de imediato, em estabelecer uma relação entre o tipo, definido abstratamente, e a pessoa singular. Esta sinergia é uma verdadeira dificuldade, um importante trabalho. É o ingrediente 3. Vou tentar ilustrar isso com este esquema 5 abaixo, estas imagens um pouco estranhas, dado que tais ingredientes não são de fácil expressão. Esse esquema é a maneira como esses diferentes ingredientes foram representados por Louis Durrive.

Esquema 5: Os seis ingredientes de uma competência (esquema L. Durrive) 10

Estrutura administrativa voltada para atendimento de jovens de menos de 26 anos (NRT). 11

RMI: “renda mínima de inserção” – renda que beneficia, na França, as pessoas que não dispõem de

qualquer renda, vinculada a disposições destinadas a favorecer a inserção profissional dos beneficiários (NT).

Page 9: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

À esquerda, embaixo, vocês têm o ingrediente 1. Embaixo, à direita,

vocês têm o ingrediente 2. E o ingrediente 3 é colocado em um triângulo invertido para mostrar que, de alguma maneira, é ele que pode favorecer a capacidade de colocar em dialética o caso (em outras palavras, o aspecto protocolar da situação) e o aspecto singular da situação em foco. Abordarei mais adiante os outros ingredientes que aparecem neste esquema.

Esquema 6: Os ingredientes de uma competência (esquema Y.

Schwartz) No esquema 6, encontramos algo diferente, totalmente arbitrário e

perfeitamente criticável. Eu tentei pegar dois perfis de competências em um serviço hospitalar: vocês têm o caso de uma enfermeira e de uma auxiliar de enfermagem.

No caso do perfil de uma enfermeira que eu representei ali por esses traços médios, pode-se considerar que seu “ingrediente 1” é relativamente significativo em relação ao de uma auxiliar, como indiquei aqui em pontilhado. Isso se deve ao fato de que a enfermeira tem três anos de estudos após o ensino médio12. Uma formação que lhe permite, assim, dominar um certo número de conhecimentos sobre as doenças, os cuidados, o corpo humano; conhecimentos que ela terá necessidade, enquanto que a auxiliar não tem uma função diretamente de cuidados, ao menos teoricamente – e assim tem um “ingrediente 1” evidentemente menos elevado – em teoria, ao menos – que o da enfermeira.

Quanto ao ingrediente 2: ali eu aumentei um pouco as coisas, nesse esquema. Se eu falo da situação de cuidados, de uma relação com o doente, ou com um certo doente, pode-se considerar para ilustrar que a auxiliar não tem, sem dúvida, um conhecimento da doença. Ela tem acerca disso um certo conhecimento, mas não o mesmo nível do da enfermeira e, certamente, menos ainda do que o do médico, que está neste esquema. Em compensação pode-se supor que certas auxiliares de enfermagem têm um conhecimento da situação histórica do doente: como ele chegou lá, como ele se comporta, como ele se alimenta, qual é sua relação com a família. Ela pode se impregnar desta dimensão histórica que se sabe, em uma equipe de cuidados, ter muita importância. Enquanto a enfermeira, que tem toda uma série de outras tarefas

12

Baccalauréat, no original (NT).

Page 10: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

a fazer e deve administrar a prescrição médica, é sem dúvida um pouco menos implicada nesse encontro singular.

Quanto ao segundo ingrediente, coloquei ali o médico, embaixo, sob os outros, porque seu trabalho não consiste em visitar o tempo todo as salas do hospital. Consiste em prescrever e, em seguida, ver como a prescrição foi recebida, acompanhar a evolução da doença, a terapêutica e o prognóstico, etc., mas ele tem uma relação com o paciente muito menos individualizada. Logo, ele sabe muito menos sobre o paciente do que:

• a auxiliar de enfermagem, muito mais frequentemente confrontada com o doente, por todos os serviços que ela presta, pela ajuda que ela dá à enfermeira;

• e que a própria enfermeira, profissional que precisa ter um bom conhecimento da pessoa que está de cama.

A auxiliar e a enfermeira têm interesse em seguir a evolução da terapêutica, em ver como o doente reage cotidianamente, em conhecer um pouco seu ambiente, avaliar suas chances de cura fora do hospital, etc.

Agora, considero o terceiro ingrediente, que é a relação entre, digamos, o conhecimento da doença, a nosologia e a forma como ela age ou pode agir sobre tal paciente singular. Quanto ao médico, ele é obrigado a fazer esse vai-e-vem, já que são conhecimentos de ordem geral, certamente, mas que ele deve verificar a pertinência e a eficácia sobre um paciente particular.

Entretanto, vê-se aqui que, quanto à enfermeira, também ela faz muito esse trabalho de vai-e-vem. A auxiliar menos, porque evidentemente lhe falta muito dos conhecimentos do “ingrediente 1”.

Parece-me que neste assunto a enfermeira é bastante típica, porque é ela realmente a articulação entre os dois primeiros ingredientes. Eu diria que até mais que o médico. Seu trabalho é realmente colocar em dialética o conhecimento geral que se pode ter daquilo que afeta o doente ou daquilo a que ele foi submetido como escolhas terapêuticas cirúrgicas, e a forma como isso age sobre ele. Essa é realmente uma situação muito articuladora e muito típica da enfermeira num serviço hospitalar. Eis aí toda a importância do “ingrediente 3”, do pôr em ressonância, ou em dialética. Quanto ao quarto ingrediente, ele introduz uma nova ruptura na lista dos ingredientes e uma nova heterogeneidade. Apreendê-lo nos traz de volta à nossa discussão sobre a questão da motivação, a qual nós já vimos suficientemente que não poderia remeter somente à pessoa, mas que ela

Page 11: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

remete ao estado de uma relação entre a pessoa e o meio, no qual lhe é demandado agir.

Eu lembrei naquele momento que toda atividade de trabalho era uma espécie de dramática, uma arbitragem permanente entre o uso de si “por si mesmo” e o uso de si “pelos outros” – os outros remetendo tanto à vizinhança de trabalho, aos próximos, quanto aos quadros hierárquicos, à empresa, às suas regras, a toda sorte de ambientes

que demandam à pessoa realizar um certo número de objetivos com os quais ela compartilha – ou não compartilha ou compartilha mais ou menos – e tudo está aí! É que tudo efetivamente depende disso: o agir em competência é muito profundamente determinado por aquilo que pode valer para a pessoa. Valer no sentido próprio, como meio13 de trabalho, isto é, em que medida ela pode fazer de forma que este meio de trabalho seja em parte “o seu”. Logo, em que sentido o debate de normas – que é toda atividade de trabalho – pode se traduzir para ela por um debate de normas em que o meio se torna em parte, “seu” meio. Um meio no qual ela possa fazer valer, mais ou menos, um certo número de suas normas de vida.

Certamente, trata-se de renegociar permanentemente com as normas de vida dos outros! Mas tal dimensão é essencial para o agir em competência – e vê-se muito bem como, na medida que isso evolua positiva ou negativamente, pode por exemplo, desenvolver particularmente o ingrediente 3 precedente. Tomemos um exemplo.

O ingrediente precedente, este vai-e-vem entre o caso típico e a singularidade da situação, não é evidente, é um importante trabalho, como dissemos. É preciso ter no espírito os conhecimentos sobre o caso típico e ao mesmo tempo trabalhar para compreender em que medida há variabilidades, derivações, inovações, e inédito dentro da singularidade que se encontra. E como se pode gerir esta defasagem apoiando-se simultaneamente sobre os recursos do ingrediente 1 e sobre os recursos do conhecimento do histórico (ingrediente 2). Esse trabalho de pôr em dialética, por que o fazemos? Até onde o fazemos? Até que ponto o fazemos, bem ou mal? “O agir em competência” vai certamente depender muito do que o meio oferece à vocês, como espaço de desenvolvimento de seus possíveis.

13

Milieu, no original (NT).

���� O quarto ingrediente de uma competência: o debate de valores ligado ao debate de normas, as impostas e as instituídas na atividade.

Page 12: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

Logo, há uma dimensão de valores que chega aqui no agir em competência – e que vai introduzir um espécie de lacuna, uma descontinuidade na preocupação de avaliar as competências.

Esquema 7: Os ingredientes de uma competência (2) (esquema Y.

Schwartz) Tentei ilustrar isso neste pequeno esquema n° 7, mas está muito

desajeitado. Por exemplo, há pouco eu falava de uma auxiliar de enfermagem com sua série de ingredientes. Suponhamos que tenho aqui (hipótese A), um exemplo hipotético de auxiliar de enfermagem para a qual a qualidade positiva do debate de normas, a dinâmica da “transformação em patrimônio” é fraca. “Transformação em patrimônio”, ou seja, a capacidade de se apropriar, em parte, do serviço no qual ela trabalha, como sendo o seu, como aquele para o qual ela vem com um certo prazer, no qual ela trabalha; ela trabalha seus valores, ela faz novas descobertas e isso é para ela alguma coisa que, do ponto de vista da saúde, no sentido o mais abrangente, é positivo.

Se o resultado deste debate de valores tem um fraco valor positivo, pode-se pensar que, por exemplo, também o ingrediente 3 será fraco, o ingrediente de todo esse trabalho de transformação em dialética do que ela pode saber sobre o doente, ao mesmo tempo como caso e como pessoa singular, com um comportamento concreto. Ela não vai se ocupar muito disso, o que vai ser bastante negativo.

Ao contrário (hipótese B), se ela participa da vida deste serviço porque ela encontrou lá algo como saúde, como normatividade possível para ela, então neste momento eu diria que este ingrediente 3 terá tendência a aumentar, isto é, ela vai tentar ajustar o que ela sabe do caso ao que ela sabe do doente. Bom, este é certamente um exemplo inteiramente teórico.

Então, com este ingrediente 4 que nos obriga a considerar a questão dos valores em jogo em toda atividade, introduz-se uma ruptura, uma descontinuidade. Efetivamente, como avaliar este ingrediente 4 ?

Avaliar este ingrediente: isto significaria dizer que disporíamos de uma espécie de “escalas de valores”, que se teria uma definição estável do que seriam os valores ligados às nossas atividades e que se poderia aferi-los. Creio que uma vez colocada esta hipótese, descobre-se aí, de imediato, seu despropósito. Como existiria uma definição estável dos valores, ao passo que falamos sempre de “reprocessamento de valores” no curso mesmo das atividades?

Page 13: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

A atividade concreta de todos os dias nos leva a repensar, a restituir lugares e significações diferentes àquilo que chamei de valores sem dimensão. Não existe ponto em exterritorialidade, de onde alguém poderia dizer: “eis quais são os valores que fazem vocês agirem, e eis a ordem na qual eles se situam”.

Logo, se admitimos que o “agir em competência” está sob a dependência deste ingrediente 4, toda problemática avaliativa se encontra apanhada em completo despreparo.

É preciso então repensar, e de outra forma, a questão da avaliação das competências. Chamo atenção que este ingrediente 4, principalmente, tem esta particularidade, certamente delicada a ser gerida, pois avaliar as competências de uma pessoa é também, de certa maneira, avaliar a si próprio. Em outras palavras, é avaliar o avaliador...

Este é, por exemplo, todo o problema da motivação. Se a motivação é “fraca”, como se diz, isto pode dizer respeito à pessoa que não é muito atenta, nem muito experiente em seu trabalho, mas ao mesmo tempo isso pode dizer respeito ao meio onde se pede a ela para agir, e que comporta toda uma série de aspectos constrangedores, de obrigações, de limitações da saúde da pessoa.

Uma empresa ou uma organização que seja, eu diria, muito poderosa, ou que compreende o lucro aí presente pode, através da avaliação das competências chegar a uma avaliação sobre ela mesma e sobre o que ela oferece às pessoas como “meio para viver”. Isso é muito importante. O que sem dúvida não é fácil, mas é uma pressão ligada à presença do que chamo de “ingrediente 4” na dinâmica das competências.

A propósito deste ingrediente 4, observa-se que pode-se ter aí uma dinâmica viciosa ou uma dinâmica virtuosa da avaliação das competências.

A dinâmica viciosa estaria em supor que se pode listar exaustivamente as competências e as remeter inteiramente à pessoa; faz-se dela, de alguma forma, a única entidade responsável, totalmente depositária e atributiva das competências – que seriam, por outro lado, avaliadas por procedimentos homogêneos, o que é totalmente contestável. Daí, portanto, se individualiza, se psicologiza e, finalmente, se culpabiliza a pessoa. O que está em causa não é o fato de que é à própria pessoa que remetemos algo da ordem das competências – porque esta dimensão aí existe profundamente – mas é o fato de considerar que tudo depende somente dela.

Ao contrário, pode existir aí uma dinâmica virtuosa de avaliação das competências, pelo vai-e-vem entre o que pode ser saúde para a pessoa e o que pode ser transformado no meio de trabalho, onde lhe é pedido estar presente

Page 14: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

de uma maneira industriosa: transformar o que deve ser transformado, se não se quer bloquear desenvolvimentos de competências. Neste momento, a dinâmica virtuosa da avaliação consiste em instaurar um vai-e-vem permanente que eu denomino “dialética dos registros entre as normas impostas à atividade – é preciso sempre impor normas à atividade – e as normas instituídas na própria atividade”.

Creio que a avaliação das competências encontra este problema. Diria que tentar engrenar esta dinâmica virtuosa das competências é sem dúvida bastante raro, mas é certamente uma dinâmica ou um processo a defender.

O quinto ingrediente talvez pareça um pouco complicado, mas no fundo, ele

é bastante simples, porque ele apenas generaliza o que acabei de dizer sobre a relação entre o ingrediente 4 e o ingrediente 3. O ingrediente 4, como dissemos, é um pôr em sinergia:

• o que a situação comporta de protocolar, de codificada; • e o que a situação comporta de sempre relativamente inédito. Como disse, esse pôr em sinergia não ocorre simplesmente, por conta

própria. É um trabalho que a pessoa deve demandar a ela mesma. É verdadeiramente “um uso de si por si“, porque ninguém pode descrevê-lo nem prescrevê-lo. É um importante trabalho.

E se é um trabalho essencial, a questão se coloca como para todo trabalho: o que nos faz agir? Ora. o que nos leva a fazer este trabalho de pôr em sinergia, ao menos em parte, está no que o meio de trabalho, portanto a organização do meio de trabalho, pode eventualmente constituir para nós “nosso” meio –

parcialmente “nosso” meio. Se o meio de trabalho vale para nós, mais ou

menos, como “nosso” meio de trabalho, vemos como isso favorece o pôr em sinergia, como a pessoa, – na medida em que percebe que um pepino, uma complicação vai se constituindo –, vemos como tal pessoa vai ao mesmo tempo

buscar:

���� O quinto ingrediente de uma competência : a ativação ou a duplicação do potencial da pessoa, com suas incidências sobre cada ingrediente.

Page 15: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

• no saber – por exemplo, no saber sobre a instalação (se é uma instalação industrial); ou no saber dos regulamentos ou dispositivos possíveis, para tentar encaixar14 um jovem, segundo o exemplo precedente (ingrediente 1) ;

• na singularidade da situação (ingrediente 2): “é tal ou tal válvula que causa problema”, ou: “é um jovem que tem essa ou aquela característica que está presente aqui”. E ela faz o trabalho de colocar isso em relação para tentar dar um encaminhamento positivo (ingrediente 3).

O ingrediente 4, ligado ao debate de normas que cada um de nós vive em seu

meio de trabalho, conserva um tipo de laço de retroação sobre os ingredientes precedentes. É preciso generalizar essa ligação.

Em outros termos, esta idéia é também verdadeira para o conjunto dos ingredientes, particularmente os ingredientes precedentes. Quando alguém está engajado numa atividade coletiva, engajado no sentido positivo, em que ele vê para si alguma coisa da ordem da saúde, não será necessário lhe solicitar muito para que ao mesmo tempo ele tente se apropriar dos elementos – em formação profissional, por exemplo – que lhe permitem apreender muito melhor o que é da ordem do ingrediente 1, digamos do “registro Um”, como aprendizagens conceituais, disciplinas, saberes técnicos, jurídicos ou linguísticos. Ele tentará aprender línguas, por exemplo. Penso mesmo que há toda uma aprendizagem do corpo que se desenvolve tanto melhor quanto se considera a situação como sua.

Pegarei um pequeno exemplo de um canteiro de obra, extraordinário a meu ver, um exemplo que pegarei emprestado de Pierre Trinquet. Durante a pausa, um operário armador15 escuta, enquanto come seu lanche, um barulho que ele interpreta da seguinte forma: “meus colegas estão com dificuldade para descarregar a grua”. Bruscamente este operário apaga seu cigarro, pula para o túnel e de lá ele guia e auxilia a manobra. Isso significa que ele fez a síntese de toda uma série de elementos para interpretar o barulho: o vento, o canteiro, tal canteiro em particular, tal equipe de trabalho em tal momento. Ele fez uma síntese extraordinária de sinais de referência, mas é preciso, eu diria, que seu corpo esteja à espreita para que ele possa interpretar esse barulho que, para nós, não quer dizer nada. Isso significava para ele: “atenção, algo problemáticoa se passa no canteiro – e será preciso talvez que eu intervenha para ajudar”.

14

Caser, no original, no sentido de colocar, empregar (NT). 15

Coffreur, no original, operário armador, na construção civil (NT).

Page 16: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

Vemos primeiramente que se trata “de “ajudar”, isto é de mobilizar um valor, o que tem valor para ele: ele não é um intruso nesse canteiro, faz parte dele, mesmo que não seja esse seu trabalho. Além disso, é preciso que seu corpo e todos seus sentidos fiquem alertas, e que para ele isso leve a uma síntese, para que ele se diga “sim”, para que, mesmo pensando em outra coisa, aquele barulho tenha para ele um significado. É o que chamo um dos elementos da reincidência do ingrediente 5 que foi representado no esquema 5 como um triângulo contornando todos os outros, agindo justamente sobre todos os outros.

Em outras palavras, a partir do momento em que um meio tem valor para você, todos os ingredientes da competência podem ser potencializados e desenvolvidos.

Chegamos ao sexto e último ingrediente. Esse corresponde exatamente ao

que nós chamamos de entidades coletivas relativamente pertinentes. Fala-se o tempo todo em “capacidade de trabalhar em equipe”, mas essa

também é uma expressão que não quer dizer grande coisa. Certamente avalia-se a que ponto, no “agir em competência”, alguma coisa se movimenta em torno da criação, da qualidade e da perenidade dessas entidades coletivas relativamente pertinentes. Dissemos a que ponto isso era um filão de eficácia e de perfórmance e que nada se faria corretamente se não se criasse permanentemente essas circulações coletivas, visíveis ou invisíveis, formais ou informais, que estão fora de todas as prescrições ou organogramas, mas que são a própria vida no trabalho.

Mas qual é este ingrediente, como ele se configura? Eu diria, de uma certa maneira, se consideramos o perfil dos ingredientes, que é essencialmente a capacidade de avaliar para si e para os outros, seu próprio perfil de ingredientes.

Em outras palavras, se alguém está em um canteiro ou em um serviço e afirma – “eu sei tudo, sei tudo porque estudei muito, por isso, por aquilo, e os outros não sabem lá muita coisa” – certamente isso criará problemas na equipe e vai gerar danos no plano da eficácia. Do ponto de vista da transmissão das ordens, dos objetivos, isso é talvez mais confortável. Sim, mas em alguma parte problemas vão surgir.

A verdadeira capacidade de trabalhar em equipe está em compreender que cada homem, em função de sua história, de sua vida escolar, de suas

O sexto ingrediente de uma competência : tirar partido das sinergias de competências, em situação de trabalho

Page 17: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

possibilidades e impossibilidades, de suas experiências de vida, tem um perfil mais ou menos diferente: ele tem um perfil que não é o meu, ele é mais rico em tal coisa que em outra; e quanto a mim, eu devo ser modesto, quando isso se justifique, e assumir minhas responsabilidades quando sei que sou mais competente em determinado plano. Por exemplo, no plano do ingrediente 1, sim, neste caso tenho responsabilidades a assumir até o fim, pois sou engenheiro, domino coisas que os outros não conhecem.

Mas, por outro lado, devo saber que tal contramestre ou operário que está na empresa há muitos anos, ou tal secretária que cuidou de centenas de processos, mesmo que ela não conheça tanto quanto eu o manuseio da informática ou da internet, domina uma grande quantidade de pequenos detalhes que se relacionam ao histórico do serviço e que são totalmente indispensáveis, se quero que o serviço funcione.

Consequentemente, a capacidade de trabalhar em equipe consiste em assumir suas responsabilidades onde se deve assumi-las, e ao mesmo tempo consiste em ser modesto onde convém ser. Capacidade que está muito ligada seja à diversidade das histórias humanas, seja ao reconhecimento e respeito desta diversidade e à compreensão de que o trabalho coletivo hoje – na medida em que ele atravessa sempre todos esses ingredientes – supõe uma espécie de pôr em sinergia esses diferentes ingredientes, não em si mesmo, mas coletivamente.

Dispomos talvez aqui de uma pista sobre o que seria uma boa direção, uma boa administração. Trata-se da capacidade de, como em uma culinária, saber usar os ingredientes, ou seja, de ligar entre si pessoas que têm perfis diferentes e fazê-las trabalhar juntos, de tal maneira que cada um reconheça onde seu perfil é diferente do outro, sem criar hierarquias artificiais, baseadas, por exemplo, em um só ingrediente, como é frequente.

Dei o exemplo16, a propósito da SNCF17, das “entidades coletivas relativamente pertinentes” em Miramas e do chefe de direção operacional de triagem (DOT) que faz permanentemente a gestão do que chamei de desnivelamentos e contra-desnivelamentos.

Ele diz para si mesmo: sou chefe da DOT, tenho responsabilidades para assumir, não só porque sou melhor remunerado que os outros, é claro, mas também porque tenho um melhor conhecimento da empresa, dos procedimentos, de informática... tenho uma boa experiência de triagem. Mas os outros também: eles têm uma experiência diferente da minha.

16

Ver anexo ao capítulo 5 (NRT). 17

Société Nationale des Chemins de Fer – Sociedade ferroviária nacional francesa (NT).

Page 18: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

Consequentemente: • devo aceitar minhas responsabilidades, porque sou eu quem devo assumir

as consequências se as coisas não funcionam, mas é por isso talvez que sou mais bem remunerado que os outros;

• ao mesmo tempo, devo estimar em que, do ponto de vista da experiência, do ponto de vista das relações com os colegas, os outros são talvez mais evoluídos, enfim, mais “experts” que eu,

• e, permanentemente, ao mesmo tempo que assumo minha posição hierárquica e minhas responsabilidades que criam desnivelamentos entre eu e os outros, devo fazer um verdadeiro trabalho de contra-desnivelamentos, isto é, restaurar igualdades ou superioridades parciais sobre tal ou tal campo, sobre campos de competência que não são formalizados, que não são bem conhecidos, que são as vezes invisíveis, mas que são absolutamente necessários – e que podem, por exemplo, se referir ao ingrediente 2 ou ao ingrediente 3.

Para concluir, de forma muito provisória e relativa em relação a sobre esta questão das competências:

• por um lado, gostaria de evocar novamente as “dramáticas de uso de si”,

porque a questão das competências é uma outra forma de abordá-las, de entrever o que há de extraordinário em toda atividade, especialmente em toda atividade de trabalho. É a necessidade de articular, e frequentemente num mesmo instante, de colocar em sinergia todos esses ingredientes. Cada um os articula a sua maneira, com sua história e seu perfil, isto é, consegue colocar em comunicação dimensões totalmente heterogêneas: - as do saber, do saber codificado; - as do saber da história e na história; - e a de minha relação – em termos de valores - com o meio, o meio humano no

qual eu vivo, e no qual me fazem viver. Todas as riquezas do corpo, da inteligência, da cultura que, de algum modo, nutrem e alimentam esses diferentes ingredientes, devem ser postas em comunicação em todo instante de trabalho e é daí que se diz que, enfim, a atividade humana é algo extraordinário.

• por outro lado, gostaria de convidar cada um ao seguinte trabalho : - ou bem simplificamos as coisas relativas à avaliação, ao operacional, nos

dizendo: “tudo isso é complicado demais; para mim, é preciso um método–chave”. Daí se compreende como se chega às simplificações. Chegar-se-á então às grades de competência, às avaliações, às listas, ou seja, à idéia de que se

Page 19: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

colocará tudo em palavras, como se fosse possível colocar em palavras toda a complexidade desses ingredientes, das relações entre esses ingredientes, desta sinergia. E em seguida ficar-se-á contente com isso, porque isso parece racional; - ou então nos dizemos: “não, se fizermos isso, aí mesmo é que deixaremos de

lado algo de fundamental, e isso reaparecerá de algum modo”. Todo o problema é que, em geral, no domínio do trabalho, aqueles que causam os prejuízos não são geralmente aqueles que por eles pagam. Então, creio que seja urgente refletir sobre a avaliação de ingredientes heterogêneos. Penso que podemos ter idéias a este respeito. O uso de si no trabalho não pára de tentar pôr em sinergia estes ingredientes heterogêneos – mas podemos imaginar modos de avaliação. Só que, à heterogeneidade dos ingredientes, deve corresponder uma invenção de meios específicos.

Em outras palavras, a idéia de listar, de colocar sobre um mesmo plano

tudo o que constitui a competência, me parece totalmente absurda. Mas avaliar não é absurdo, mesmo que quase sempre o seja. Acho que este é um paradoxo incontornável: é um exercício necessário para uma questão insolúvel. Não se chegará jamais a objetivar a competência. Mas tentar fazê-lo me parece normal, porque, repito, todo mundo avalia, talvez intuitivamente, e o faz desde o momento em que se empreende algo juntos.

É possível, eventualmente, encontrar, inventar maneiras inteligentes e fecundas, meios de avaliar e diferenciar, para cada um de nós, perfis diferentes de competência. É totalmente sensato dizer que tal pessoa, do ponto de vista do ingrediente 2 ou do ingrediente 3 é superior a uma outra. Acho que é preciso saber dizer isso, caso contrário se tornaria responsável de “demagogia ergológica”.

Penso, entretanto, que de forma aproximativa, pode-se eventualmente encontrar encaminhamentos para inventariar, avaliar (a grosso modo, é claro), esses diferentes ingredientes. O erro aqui está em imaginar que se teria procedimentos homogêneos, enquanto que os elementos são heterogêneos. E, de toda forma, é preciso dizer claramente que a questão das competências, do “agir em competência”, integra o conjunto da relação entre, de uma parte, os homens e as mulheres e de outra parte seu meio, seu meio de vida, no seio do qual se encontra o meio de trabalho.

É preciso saber que o conjunto dessas relações complexas está incluído na noção de competências e que, repito, se simplificamos as coisas, isto pode

Page 20: Trabalho e Ergologia _Anexo Cap 7_ - Conversas Sobre a Atividade Humana _Schwartz

ser cômodo, confortável, mas provocamos prejuízos que serão pagos por outra pessoa, em algum momento.