Trabalho de Literatura Brasileira IV

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Universidade de São Paulo Literatura Brasileira IV – 1º Horário Professor/Doutor Alcides Villaça Gabriel Antonio Mesquita de Araujo A binariedade machadiana expressa na dualidade social: um diálogo entre “Pai contra Mãe e “Conto de Escola” As composições machadianas sempre estiveram envolvidas em grandes rodas de discussões e debates, por conta de questões fulcrais que acabam sempre encerrando-se como dúvidas, e isso se dá, não somente pelo forte caráter irônico de suas obras, mas também por uma indecisão no que tange à análise da postura do autor quanto às questões sociais e políticas de sua época. Além disso, tem-se muito difundido que seus textos possuem uma temática ou motivos da ordem da banalidade, do que é cotidiano, porém que nas entrelinhas escondem chaves de leitura desencadeadoras de discussões profundas e complexas sobre a alma humana e a sociedade. Machado de Assis vivera numa época um tanto quanto conturbada, por isso torna-se necessário erigir uma ponte de elucidação do panorama histórico em voga. O século XIX na Europa configurou-se como um momento abarcador de intensas transformações no que concerne o cenário sócio-político, difundindo ideais de liberdade de trabalho e igualdade social. Ao mesmo tempo, no Brasil, há uma mentalidade imperante que intenta tornar-se uma espécie de simulacro dessa cultura europeia, ou seja, que almeja a promoção de um constante processo de transculturação desses ideais. 1

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Macahdo de Assis- Pai contra Mãe - Análise

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Universidade de São Paulo

Literatura Brasileira IV – 1º Horário

Professor/Doutor Alcides Villaça

Gabriel Antonio Mesquita de Araujo

A binariedade machadiana expressa na dualidade social:

um diálogo entre “Pai contra Mãe e “Conto de Escola”

As composições machadianas sempre estiveram envolvidas em grandes rodas de discussões e

debates, por conta de questões fulcrais que acabam sempre encerrando-se como dúvidas, e

isso se dá, não somente pelo forte caráter irônico de suas obras, mas também por uma

indecisão no que tange à análise da postura do autor quanto às questões sociais e políticas de

sua época. Além disso, tem-se muito difundido que seus textos possuem uma temática ou

motivos da ordem da banalidade, do que é cotidiano, porém que nas entrelinhas escondem

chaves de leitura desencadeadoras de discussões profundas e complexas sobre a alma humana

e a sociedade.

Machado de Assis vivera numa época um tanto quanto conturbada, por isso torna-se

necessário erigir uma ponte de elucidação do panorama histórico em voga. O século XIX na

Europa configurou-se como um momento abarcador de intensas transformações no que

concerne o cenário sócio-político, difundindo ideais de liberdade de trabalho e igualdade

social. Ao mesmo tempo, no Brasil, há uma mentalidade imperante que intenta tornar-se uma

espécie de simulacro dessa cultura europeia, ou seja, que almeja a promoção de um constante

processo de transculturação desses ideais.

Todavia, tais ideais tão defendidos pela civilização europeia eram apenas meros disfarces de

uma realidade explicitamente voltada à exploração do proletariado. Por sua vez, quando essas

ideias são disseminadas no Brasil, há um choque massivo com a configuração social e política

que aqui se encontrava, a saber – o regime escravocrata. Dessa forma, o Brasil vê-se envolto

por duas realidades distintas que coexistem e que entravam; uma de base escravista e outra

que clama por ideais liberais, mercadológicos. Lançando luz sobre o pertinente ensaio “Ao

vencedor as batatas” de Roberto Schwarz1, verifica-se que o discurso liberal europeu, por

apresentar na realidade algo diverso da teoria, ou seja, de autoproclamar-se como defensor de

uma igualdade social, mas na prática promover a manutenção da estratificação da sociedade,

do status quo, demonstra-se vazio, e no Brasil, tal discurso exibe uma conformação ainda pior,

duplamente vazia, pois argumenta a favor de um liberalismo que convive com a escravidão,

polos que, em sua proposição teórica, podem ser considerados opostos.1 SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar In: Ao vencedor as batatas - Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, 2000, pp. 11-31.

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Traçado este paralelo de explanação do pano de fundo histórico deste período é possível

inferir que um escritor diante de um descortinamento político tão significativo como este, ou

seja, de um processo de abolição da escravidão e eclosão do homem livre, não poderia

manter-se totalmente apático, tais mudanças devem ter surtido algum efeito em suas obras,

ainda que de forma velada, guardadas por chaves de ironia.

Do conjunto de obras sui generis de Machado de Assis, um conto se destaca como revelador

dessa questão da ordenação social e dos imbricamentos que a escravidão enquanto instituição

social é capaz de gerar nas relações sociais com os demais indivíduos pertencentes a uma

determinada sociedade, a saber – “Pai contra Mãe”2.

Publicado em “Relíquias de casa velha” (1906), o conto apresenta como figuras centrais um

homem branco livre (Cândido Neves, o Pai), que possui como ofício capturar escravos fugidos

e uma mulher negra escrava (Arminda, a Mãe) e trata do jogo de poder que há na relação

encerrada por estes indivíduos.

A temática do conto já torna-se expressa logo na primeira linha do conto e em letras

capitulares:

“A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições

sociais.”.

O tempo verbal explicita tratar-se de um conto escrito após a sanção da Lei Áurea, ou seja,

após o fim do regime escravocrata. É interessante notar que tal temática não se enquadra no

que normalmente é escolhido como motivo de narração pelo autor, não trata-se de um

assunto ordinário ou corriqueiro, pelo contrário aborda o tema da violência física e a crueldade

moral. Mas mais interessante ainda é ler as passagens de descrição dos aparelhos do ofício

(ofício de Cândido Neves):

“Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-

flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um

cadeado.”.

Também em:

2 ASSIS, Machado de. Contos/Uma Antologia. Seleção, introdução e notas de John Gledson. V. 2. São Paulo: Companhia das letras, 1998. Pág. 483-494.

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“Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o

grotesco, e alguma vez o cruel.”

E ainda:

“O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.”.

Estas são narradas com um tom de naturalidade que chega a impressionar numa primeira

leitura, gerando uma sensação de descompasso entre o teor da narração, que seguiria

justamente o estilo mais prosaico de narração que o autor adota, e a prática possibilitada por

tais objetos, que exigiriam uma narração muito mais, digamos, com ares de estupefação e

surpresa. Todavia em uma leitura mais acurada percebe-se um caráter fortemente irônico,

logo crítico, o que se ratifica em:

“Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.”.

Oras, há claramente um tom acentuadamente ácido, cáustico ao enunciar-se que “nem todos

gostavam da escravidão” ou que “nem todos gostavam de apanhar pancada”; haveria por

acaso alguém que gostaria de tal coisa? Tais declarações, portanto, possuem um viés de

análise de concepção irônica e portariam uma denúncia das práticas promovidas em tal

período da história.

Voltando ao cerne da trama, o encadeamento das personagens Cândido e Arminda

demonstra-se como um elemento indicador da dualidade vivenciada pelo Brasil. A história nos

desenredará que a principal diferença entre o pai e mãe encontra-se numa questão de ordem

meramente social. Apesar de Cândido ser pobre, a ponto de não conseguir minimamente

prover sustento a seu nascituro, ele é um homem livre, enquanto que Arminda é vítima de um

regime de servidão. À Cândido era permitido o mínimo, a possibilidade de escolha, o que é

comprovado pelos diversos ofícios que este tentará possuir. Dessa forma, a hierarquia social

evidencia-se como elemento decisivo dessa sociedade.

É justamente nessa questão dos liames sociais que surgirá o grande motor do conto, as

relações de poder de uma sociedade hipócrita, em que se faz o que for preciso para dar-se um

“jeitinho” de alcançar-se o que se almeja, uma sociedade baseada no favor recompensado,

remontando à nova mentalidade burguesa imperante de mercantilização, de venalização, do

lucro a qualquer custo. Nesse nexo social há uma pirâmide de poder e cada camada dessa

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pirâmide representa um grupo social, e evidentemente, escravos como Arminda situam-se na

base desta, na parte mais desfavorecida.

Promovendo-se um cotejo com outro conto machadiano, veremos que essa mentalidade do

favor recompensado far-se-á ainda mais presente e explícita, a saber – “Conto de Escola”3.

Publicado em “Várias Histórias” (1896), o conto, narrado em primeira pessoa e ambientado na

primeira metade do século XIX, apresenta a história de um menino que é surpreendido pelo

professor ensinando a lição a seu colega de classe em troca de uma moedinha de prata, e que,

por conseguinte, são punidos com a força da palmatória.

Tal qual em “Pai contra Mãe”, conto “Conto de Escola” também apresentará dualidades muito

significativas e reveladoras da situação histórico-política vivenciada pelo Brasil. Essa é uma

característica fulcral das obras machadianas, a saber – a binariedade. Naquele há de um lado,

como já dito, um homem branco livre, e de outro, uma mulher negra escrava. Porém neste a

questão da binariedade aparecerá muito demarcada e de diversas formas, sendo a primeira já

evidenciada logo no princípio do conto, e que é concernente à indecisão do menino Pilar, o

personagem-narrador, entre ir brincar no morro ou no campo, porém o garoto termina por

“escolher”, motivado por uma surra que levara do pai, uma terceira alternativa – ir para a

escola.

Esta binariedade expressa no conto remonta a uma oposição elementar, nomeadamente entre

liberdade e aprisionamento. A escola é representada como o local da reclusão, enquanto que

os campos e os morros aparecem como espaço da independência, do gozar a vida, e que são

recorrentemente euforizados no conto por meio da bela figura de um papagaio que voa

livremente “guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele”.

Outras oposições tomam forma quando da apresentação que o personagem-narrador (Pilar)

promove dele mesmo e de seu colega Raimundo, filho do professor Policarpo. Aquele o

apresenta como “pequeno”, “mole”, “aplicado”, porém de “inteligência tarda” e ainda diz que

“gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos;

vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro.”. Quanto às características

físicas de Raimundo, Pilar nos informa que o menino “era uma criança fina, pálida, cara

doente; raramente estava alegre.” Enquanto que quando se autodescreve, Pilar nos esclarece

que:

“Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que

era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro.”

3 ASSIS, Machado de. Contos/Uma Antologia. Seleção, introdução e notas de John Gledson. V. 2. São Paulo: Companhia das letras, 1998. Pág. 224-232.

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Outra dualidade que se apresenta no enredo está no que tange à dúvida de Pilar quanto à

aceitação da moedinha de prata em troca do ensinamento da lição de sintaxe.

No início do conto já nos são informados o espaço e tempo da narrativa, que são essenciais

para a compreensão dessa dualidade histórica e política:

“A ESCOLA era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840.”

E um pouco mais a frente nos será informado também que:

“Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação

pública.”.

Vale elucidar que o final da Regência fora um período deveras conturbado, com revoltas

populares e militares, cuja resolução encontrada para a contenção de tais insurgências fora

outorgar todo o poder ao Imperador, e a partir disso, iniciara-se um movimento que reclamava

a maioridade de D. Pedro II (então com 14 anos). Disso fora resultado o surgimento de dois

grupos políticos, os conservadores, que eram contra tal proposição e os progressistas que

criam que a maioridade antecipada era a melhor medida a ser tomada neste momento.

Como acontece em muitas das obras do autor, como já mencionado, diversos níveis são postos

concomitantemente no espaço de uma mesma narração. Assim, tem-se num plano, digamos,

mais de frente o relato dos fatos ocorridos numa sala de aula entre dois alunos na escola da

“Rua da Costa”, ou seja, a troca de um favor por dinheiro na transação entre Pilar e Raimundo.

Num plano mais de fundo há uma descrição da situação política do país, revelada na figura do

professor (Policarpo) que lê seu jornal atentamente, e pela forma como nos é apresentado no

conto, esboçando reações um tanto quanto desgostosas. Assim, erigem-se duas histórias

diferentes, dois dramas vividos por cada plano de personagens, mas que certamente se

interpolarão.

Ao analisarem-se mais profundamente as tramas que são construídas simultaneamente,

poderia propor-se que uma dualidade de natureza ideológica se instaura no conto entre as

duas ações, ou seja, entre o castigo aplicado pelo professor e a relação monetária estabelecida

entre Pilar e Raimundo, o que fica evidente nas seguintes passagens:

“E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de

praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser

castigados.

Aqui pegou da palmatória [...] Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados [...] E exclamava:

porcalhões! tratantes! faltos de brio!”.

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O professor seria a figura representativa do passado, de uma mentalidade atrasada, ainda

atrelada a um sistema escravocrata, baseada na punição física, na política do favor, como

aponta Schwarz, que seria a originadora do nosso atraso em relação à Europa. Contrariamente,

os meninos representariam o futuro, o ideário em eclosão, do favor recompensado, ou seja, da

troca de um serviço por dinheiro, logo o capitalismo como bem conhecemos.

Se trouxermos novamente o conto “Pai contra Mãe” à luz, é possível erigir uma ponte de

semelhanças entre as personagens dos contos.

Assim, Cândido Neves poderia ser comparado a Curvelo, pois este delatara ao professor o ato

praticado por Pilar e Raimundo, todavia, no caso de Cândido há uma recompensa financeira ao

entregar a escrava a seu dono, enquanto que Curvelo não recebe nada por isso, havendo em

ambos os casos a figurativização da manutenção do status quo, da ordem social. O professor

encontra-se no topo da pirâmide social escolar, assim seu referente seria o dono de escravos,

pois este também encontra-se na parte superior da hierarquia na sociedade. Todavia, quando

olhamos para as figuras de Arminda e Pilar, encontramos uma disparidade, haja vista que

apesar de ambos terem sofrido um castigo físico-moral, veremos ao final de “Conto de Escola”

que o menino decidira não ir à escola no outro dia, o espaço, como dito, do aprisionamento e

preferira acompanhar a marcha dos fuzileiros:

“Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na

Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma.”.

Isso demonstra, portanto, que Arminda ainda estaria abaixo de Pilar na escala social, uma vez

que, aquele possui a possibilidade de negar o aprisionamento, a reclusão, podendo marchar

livremente pelas ruas sem ser capturado como um escravo fugido.

Essa comparação entre as personagens dos contos e as relações que se dão entre elas nos

permite compreender que há claramente uma transição de uma sociedade baseada na política

do favor, de uma sociedade solidária para uma voltada ao capital, ao contrato, à venalização

das relações.

Machado de Assis consegue captar este contexto de transição e coloca-lo brilhantemente em

forma literária, demonstrando que tanto em um modelo de ideário, quanto no outro, haverá

sempre a coerção de alguma forma, esteja ela espelhada na instituição social, na escolar ou

em outras quaisquer e o elemento da binariedade, das dualidades que perpassam os contos,

promove múltiplas chaves de leituras, que por sua vez, demandam constantemente o olhar

judicativo do leitor. Daí resulta talvez o grande impasse em alocar a figura de Machado de

Assis em alguma linha ideária, seja ela política ou social, restando apenas o aprazível e

incessante debate.

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