Trabalho de Conclusão de Curso
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Pós-Graduação em Jornalismo Literário
Especialização — Lato Sensu
ABJL / FAVI
JANAÍNA QUITÉRIO
Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas
Trabalho de Conclusão de Curso
São Paulo Julho de 2011
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Pós-Graduação em Jornalismo Literário
Especialização — Lato Sensu
ABJL / FAVI
JANAÍNA QUITÉRIO
Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas
Trabalho de Conclusão de Curso
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como exigência parcial
para obtenção do título de Especialista
em Jornalismo Literário pela Faculdade
Vicentina de Curitiba, em convênio com
a ABJL, sob orientação do Prof. Dr.
Celso Falaschi.
São Paulo Julho de 2011
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Para ler ao som de Like a Rolling Stone, de Bob Dylan “How does it feel How does it feel
To be without a home Like a complete unknown
Like a rolling stone?”
— Eu con-se-guiiiiiiii! Se-guiiii! Se-guiiii!
Depois de um suspiro espichado, o grito de missão cumprida ressoava
sem sobressaltos pela paisagem de dunas verdejantes vista do terceiro pico
mais alto do Brasil, o da Bandeira, a 2.891,9 metros de altitude. Postada ao
lado do cruzeiro, meus olhos alongados eram capazes de acompanhar o
caminho invisível ecoado pelas oito letras do verbo proclamado, ainda que a
névoa espessa pintasse um cenário alvacento.
A respiração ofegante — provocada pelo esforço físico de subir a
montanha e pelo ar rarefeito — não conseguia abrasar o corpo, que estava
inerte sob o frio intenso avivado pela ventania. Gorro de lã, cachecol, jaqueta
corta-vento e luvas felpudas não esquentavam nem as partes encobertas.
Mesmo assim, àquela altura, o uivo dos ventos entoava louvores à liberdade
por mim sentida.
Eu estava no céu, sobranceira, enxergando o mundo ao longe, no ponto
de intersecção entre o plano terrestre e o céu divino, na morada sagrada dos
deuses ou no esconderijo de monstros sagrados, de acordo com a simbologia
milenar atribuída às montanhas. Nunca antes havia experimentado a sensação
fervorosa de consumar um retiro de alma com o objetivo de melhorar minha
integração em vida.
Para chegar ali, foi um solitário caminho: cinco dias de pedaladas por
estradas de terra e por trilhas que cortam o relevo acidentado de oito
municípios da Zona da Mata mineira, de Tombos a Alto Caparaó. Ao meio-dia
em ponto de um domingo, eu terminava a jornada de 190 quilômetros
desenhada pelo Caminho da Luz — uma rota que pode ser percorrida a pé, a
cavalo ou de bicicleta por peregrinos, aventureiros, ecologistas ou por aqueles
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que, sem rótulos, buscam o desafio metafórico de “mover montanhas” com o
esforço — ou prazer — de percorrê-las.
No Brasil, um número expressivo de pessoas tem se deslocado de
diferentes regiões para fazer peregrinações por caminhos que se espelham em
Santiago de Compostela, na Espanha, sobretudo após o ano 2000, com a
criação de novas rotas nacionais. Além do Caminho da Luz, há outros quatro
bastante percorridos, como o Caminho do Sol e o Caminho da Fé, ambos no
Estado de São Paulo, o Caminho das Missões, no Rio Grande do Sul, e o mais
antigo, o Caminho de Passos de Anchieta, no Espírito Santo.
De minha parte, fazer o Caminho da Luz, de bicicleta, não era sinônimo
de penitência, de pagar promessa ou de venerar uma religião. Assim como a
maioria dos peregrinos-viajantes-turistas, fui atraída por um chamado de
introspecção e autoconhecimento, que se aprofundam, em experiências
solitárias, por meio do genuíno contato com a natureza e pela interação
sociocultural com as comunidades locais. Era a minha primeira viagem sem
companhia, e estava determinada a conhecer os meus limites na iniciação em
cicloviagens.
No topo da montanha, fim da minha jornada, eu não estava sozinha.
Subi acompanhada de um guia turístico e de um casal capixaba. Depois de
meu desabafo verbal, a jovem arquiteta, que escalava pela primeira vez o Pico
da Bandeira, admirou-se com a empreitada:
— Você fez quase 200 quilômetros de bicicleta? Sozinha? É corajosa!
Fingi concordar com ela. O desassombro para enfrentar situações
difíceis você só sabe se tem, realmente, no momento da desventura. E, nesses
cinco dias, vi-me algumas vezes titubeante.
— Quem se aventura por caminhos desconhecidos tem os medos
iluminados com a lanterna da sabedoria? — pela primeira vez desde que iniciei
a jornada, questionei-me, em silêncio, enquanto sopros intermitentes
dissipavam a névoa e mostravam os contornos ensolarados do horizonte
recortado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
As minhas sombras foram expostas à medida que procurava o
interruptor de luz metafórico pelo caminho.
— É, eu consegui. Mas, como?
***
5
Às 6h25 de uma segunda-feira fria — o termômetro local acusava oito
graus Celsius —, cheguei à cidade mineira de Carangola. O Itapemerim
desembarcou os passageiros no bordo de uma pista de paralelepípedo da
miúda rodoviária, tal qual faziam os trens quando, em vez de calçadas, havia
naquele espaço as plataformas. Com a ajuda do comissário da viação,
acomodei minha bagagem no banco de ferro-sépia da estação: um par de
alforjes traseiros, um alforje de guidão com o mapa altimétrico da rota já
acomodado em seu porta-mapas e uma pochete a tiracolo com documentos,
dois gravadores, canetas, bloquinho e dinheiro. Ao lado do banco, equilibrei a
mala-bike, que abrigava a bicicleta desmontada.
Antes de o ônibus silvar seu caminho, acendi um cigarro de menta para
refrescar a mente.
— E agora? Monto o “cavalo de ferro” com 16 quilos de corpo e
acomodo nele os 15 quilos de parafernália aqui mesmo na calçada?
Não queria chamar a atenção, embora os chapéus de palha e as
mochilas estudantis que circulavam àquele horário pela rodoviária já olhassem
em tom de estranheza uma moça, sozinha, com tanta bagagem.
Apesar de ter pernas — não rodas —, assumi o papel da bicicleta:
transportei a malaria no corpo. Um dos alforjes se fez mochila e foi alçado nas
costas. O alforje de guidão foi carregado no ombro esquerdo, junto com a
pochete e, no ombro direito, pendurei a desajeitada mala-bike. O outro alforje
traseiro, mais pesado, foi agarrado com as duas mãos. Com os passos
murchos, saí à procura de alguém com quem me sentisse mais à vontade para
pedir emprestada uma informação. Precisava chegar a Tombos, cidade a 30
quilômetros de distância, de onde partem as primeiras setas do Caminho da
Luz.
No fundo, eu queria frear a insegurança e, com habilidade
autossuficiente, mostrar para mim mesma que aprendera com diligência a
tarefa de encaixar cada membro da bicicleta apeada, sem deixá-la deficiente
ou com falhas periculosas, como um parafuso desapertado, o freio frouxo, o
guidão torto ou o câmbio desregulado. Entretanto, essa engenharia havia sido
por mim testada apenas duas vezes — e sob supervisão do marido.
— Nheeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec... — reproduzia no
pensamento o som dos parafusos sendo enroscados, enquanto, sonolenta e
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com o corpo enferrujado, olhava pesadamente para as portas dos
estabelecimentos ainda fechados.
O ritmo preguiçoso dos transeuntes mineiros não combinava com a
imagem que eu fizera da cidade durante os preparativos da viagem. Com 32
mil habitantes, Carangola é o maior município pelo qual eu passaria nos
próximos seis dias. Naquela manhã, parecia abrigar menos de mil.
Amargurada, eu respirava as primeiras angústias internas quando um
senhor, que aparentava 40 anos de idade, aproximou-se com um sorriso
amigável:
— Vai fazer o Caminho da Luz?
— Sim, vou sair de Tombos, mas ainda estou na dúvida se parto para lá
de bicicleta ou se pego um ônibus.
Para meu alívio, Paulo Fernando de Almeida (cujo nome só descobriria
dois dias depois) achou mais prática a segunda opção. E me deu todas as
orientações.
***
Tombos é conhecida como “Portal de Minas” por fazer divisa entre os
estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Em seu caminho, de Carangola
até lá, as montanhas que margeiam a Rodovia MG-111 pareciam esconder
algum segredo.
— Passariam por elas, por seus contornos, os caminhos da Luz? —
imaginava.
O mistério aumentava ainda mais com a neblina que esfumaçava cada
cume.
— O que me espera nesse percurso? Terei resistência o suficiente para
cumprir a jornada de 190 quilômetros? — questionava-me ao mesmo tempo
em que lembrava as recomendações dadas pelo clínico cirúrgico às vésperas
da viagem, quando fui fazer uma ultrassonografia das vias urinárias a pedido
da médica endocrinologista. Quarenta e cinco dias antes, eu havia sido
hospitalizada por dez dias devido a uma pielonefrite aguda — inflamação dos
rins, muito perigosa em pacientes com Diabetes tipo 1, o meu caso. O clínico,
que havia me acompanhado durante a internação, costuma fazer rotas de
peregrinação e, por isso, conhece na pele os esforços físicos demandados pela
empreitada.
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— Se sentir-se cansada, não continue. Muita gente ignora que uma
sobrecarga muscular pode causar falência renal. — alertou-me.
Ao desembarcar na rodoviária de Tombos — antiga estação de trem
que, atualmente, também abriga o museu da cidade —, dei-me conta de que
não tinha o endereço do hotel onde havia feito reserva pela operadora oficial do
caminho. Só sabia que se tratava de uma construção sesquicentenária. Mas,
em uma cidade de dez mil habitantes, essa informação é dada de olhos
fechados.
A poucos passos da rodoviária, as imensas portas e janelas azul-claras
do Hotel Serpa estavam abertas. Sua construção oponente e bem conservada
tinha carimbada em sua entrada uma placa com o desenho de uma seta
amarela que a identifica como estabelecimento credenciado pelo Caminho da
Luz: “Nós fazemos parte dessa rota”. Não havia campainha, tampouco
recepção, apenas cinco mesas de madeira com quatro lugares, forradas com
toalhas alaranjadas e adornadas cada qual com um vaso de flores. Sobre uma
delas, o café estava servido. Do lado esquerdo da entrada, uma cristaleira
expunha livros publicados pelo jornalista e escritor Albinno Neves, idealizador
do Caminho da Luz, oficialmente instituído em julho de 2001. Em um deles,
intitulado “Um Caminho dentro do Caminho”, o jornalista conta que, em tempos
remotos, muitos coronéis e jagunços perscrutavam das enormes janelas do
Serpa quem passava pelas ruas da cidade ou desembarcava de trem junto
com a produção agropecuária e com as modernidades advindas da então
capital da República, o Rio de Janeiro.
Sobre o móvel de madeira, sete quadros emolduravam pinturas do
patrimônio natural e histórico da cidade, como a cachoeira de Tombos, onde se
inicia o caminho, o hotel em várias perspectivas, o prédio da rodoviária, que
tem arquitetura típica de estação ferroviária, e outras construções tombadas
pela rota peregrina. Apesar de tortos, os quadros estavam em harmonia com o
pé direito alto e combinavam com as pesadas portas de madeira dos quartos.
— Olá! Posso entrar?
Ninguém respondeu. Insisti no chamado proferido. Do interior da
antessala, apareceu dona Rogéria, uma senhora de estatura mediana, cabelos
escuros e traços agudos, com semblante monossilábico, que pediu para me
sentar à mesa, onde, em seguida, acomodou um livro-guia explicativo, uma
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camiseta e minha credencial, de papel cartolina dobrado, com dez quadrados
para serem carimbados a cada jornada cumprida, a exemplo do que acontece
no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Só estava em falta o
cajado estilizado, que compunha o kit peregrino. Ali mesmo, recebi o primeiro
carimbo.
Todo o resto era por minha conta. A começar pela montagem da bike.
***
Num momento de crise conjugal, transferi minhas esperanças de viver
um dia a dia sem rotinas com a compra de uma bicicleta. Escolhi um modelo
europeu, robusto, com aro 700 e quadro step through, próprio para mulheres
de vestido não mostrarem a roupa íntima ao subir na bike. Com cor grafite, a
Blitz Comodo 700 é bem alinhada em suas curvas esbeltas de bicicleta urbana
e já vem equipada com cestinha que imita vime, para-lamas, bagageiro e
protetor de corrente.
Em menos de seis meses, ela já havia se tornado minha parceira de
deslocamentos rápidos pela capital paulista, embora eu ainda não tivesse
intimidade suficiente para fazer nela qualquer reparo. Um mês antes da
cicloviagem, precisei aprender a arte de fazer ajustes rápidos. Mas, na calçada
do Hotel Serpa, o primeiro teste prático poderia dar fim à minha jornada caso
não conseguisse colocar as duas rodas e seus componentes, fixar
adequadamente o guidão e ajustar com eficiência os freios.
O dia estava ensolarado e, às duas da tarde, a cidade parecia fazer uma
sesta coletiva. Comecei pelo que considerava mais difícil: apertar o guidão.
Saquei as ferramentas, ajustei-o ao quadro, mas, por mais que parafusasse, as
peças não se encaixavam. Uma hora depois já estava desesperada.
— Tem uma bicicletaria aqui perto. Quer que eu chame o funcionário
para ajudar a montar? — ofereceu Seu Zelito, proprietário do hotel, depois de
acompanhar por 15 minutos o conserto sem sucesso.
Aceitei prontamente. Em menos de 20 minutos, o rapaz da bicicletaria
encaixou todas as peças, consertou a rosca do guidão com cera de vela,
ajustou os freios e deixou em pé a minha bike. Não conversou. Não perguntou
nada. Agradeci.
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— Obrigada, sem você não conseguiria montá-la. — assumi
envergonhada. — Quanto ficou?
— Não é nada não. — E saiu com o passo apertado.
Corri atrás dele.
— Moço, pelo amor de Deus, ficou, sim, alguma coisa. Você veio até
aqui, consertou tudo, precisa receber por isso.
Mas ele não olhou para trás.
Saí para conhecer a cidade. Tombos é formada por vias de
paralelepípedos nas quais prevalecem as bicicletas como meio de transporte.
Estacioná-las no meio-fio, sem supervisão, é uma praxe, mas, com isso, não
pude me acostumar nos vários passeios que fiz durante a tarde.
À noite, pedi a Seu Zelito que a guardasse em outro quarto, já que até
altas horas as portas e janelas do hotel costumam ficar abertas. Deitei cedo.
Estava ansiosa para iniciar a jornada no dia seguinte. Mas, não consegui
dormir a noite inteira. Fui visitada por uma enorme mariposa negra, que não
queria se retirar do meu quarto, apesar de tê-la convidado,
espalhafatosamente, a sair pela janela com uma toalha.
***
Não madruguei para iniciar a pedalada, na terça-feira, dia 17 de maio.
Também não me alonguei, pois a ansiedade transbordava a alma. Engoli o
café da manhã servido no hotel e distribuí os 15 quilos de bagagem pela bike.
Nunca havia pedalado com tanto peso nela: no bagageiro, estavam
pendurados, um de cada lado, os dois alforjes traseiros e, sobre ele, o tripé
descansava; o alforje dianteiro, acoplado na parte externa do guidão, levava a
máquina fotográfica, o mapa do percurso, celular, gravadores, lanches rápidos,
mel em saquinhos e laterna pisca-pisca. Do lado esquerdo, ficava um retrovisor
e, no meio, o ciclocomputador para eu mapear a velocidade média e a
quilometragem percorrida por dia e durante todo o trajeto. Não tinha hora para
sair, mas, como não queria ficar à noite no meio do mato, necessitava chegar
aos destinos até, no máximo, 17h30, horário em que o sol se punha.
Nas costas, levava uma mochila de hidratação, cujo reservatório estava
abastecido com dois litros de água e de onde a sugava por meio de um cano
de plástico. Na cabeça, coloquei o capacete sobre um lenço, que absorvia o
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suor dos dias quentes. Vestia uma calça preta de ciclismo, confeccionada com
espuma no assento, e camisa vermelha de manga comprida dry fit — cujo
tecido, feito em poliamida e elastano, tem capacidade de tirar a umidade do
corpo e transportá-la para fora do pano. Nas mãos, dentro das luvas de
proteção, havia colocado um mini-mapa com a metragem de cada ponto por
onde passaria.
Estava com um aparelho MP4 no bolso da camisa, no qual meu marido
gravara músicas que, segundo ele, combinariam com a minha viagem:
“Janalone” era o nome do álbum. Mas, como desconhecia o caminho, preferi
ficar atenta aos sons da natureza.
A cicloviagem, enfim, iniciava-se. O primeiro percurso tem 24,7
quilômetros até Catuné, distrito de Tombos. O caminhante, cavaleiro ou ciclista
segue as placas brancas — cujo desenho é uma seta amarela apontada para
cima —, que indicam a direção correta a ser seguida. Na velocidade média de
10 Km/h, saboreava as novas paisagens com os sentidos abertos para receber
os primeiros cheiros de mato molhado, apesar de não ter chovido naqueles
dias, misturado com o aroma do álcool, que brotava das plantações de cana e
de pequenas usinas.
O dia estava encoberto. Quando alcancei o marco inicial do caminho, já
havia me acostumado a pedalar com a bagagem. A placa “Aqui começa o
Caminho da Luz” está fincada ao lado da cachoeira de Tombos, assim
chamada por ter três quedas (ou tombos) de 60 metros. Para acessá-la é
preciso ignorar a placa no portão de uma das primeiras hidrelétricas mineiras,
que ainda abastece o Estado do Rio de Janeiro: “Propriedade particular.
Acesso somente com autorização. Área de segurança, não ultrapasse”. À
frente da cascata, uma escultura de Afonso Barra saúda os visitantes: trata-se
de uma mãe amamentando ao lado de um índio guerreiro com uma espada
empunhada, em homenagem aos primeiros caminhantes desse percurso — os
índios.
Ao seguir as placas — como se fossem uma intuição do peregrino
externalizada —, comecei a explorar as estradas amarronzadas em meio a
fragmentos da Mata Atlântica e a pastos leiteiros. Fazendas centenárias
abertas a visitantes, chácaras protegidas com carrancas, árvores estrondosas,
plantações de café maduro à espera da colheita, porteiras que pedem para ser
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abertas e fechadas pelo viajante para que ele continue o caminho por trechos
dentro de fazendas particulares, tudo isso me fascinava. Com os proprietários
dessas terras eu não me preocupava, já que a credencial de peregrino me
permitia acesso livre.
— Trim, trim! — eu cumprimentava com a buzina da bike o lavrador que
colhia o café nas lavouras da beira de estrada. Era comum receber um sorriso
e um chapéu levantado como resposta. Trata-se de um cumprimento
desprovido de palavras, mas adornado com a simbologia das pessoas simples.
Os primeiros nove quilômetros foram tranquilos. Se fosse nesse ritmo,
chegaria antes dos quatro dias de pedalada inicialmente programados. Estava
confiante. Mas, assim que entrei no trecho chamado “Mata do Banco”, fiquei
com os sentidos em alerta. Ali, a floresta alta chega a encobrir o céu que vigia
o viajante. Não estava acostumada com a intimidade de flores e plantas
esbarrando em meu corpo e na bagagem assim que as ultrapassava.
— E se eu não percebi que peguei o caminho errado? Nunca ouvi falar
de animais que atacaram humanos no Caminho da Luz, mas, e se esta não for
a trilha correta? E se ali à frente tiver um abismo? — não estava com uma
sensação boa. Eram os primeiros gostos amargos do medo que a viagem me
oferecia.
— Ixi, o celular está sem sinal... pra quem eu vou perguntar se ando no
caminho certo? E se uma cobra me picasse agora, para que lado procuraria
socorro? Cadê as placas indicativas? Com este mato fechado, devo realmente
estar perdida. Isso não tem a menor graça...
Enquanto empurrava a bicicleta por uma trilha desfeita, era preciso
superá-la sem esperar ajuda. O cérebro trabalhava dobrado na sua função de
perceber barulhos e sinais de perigo. Eu respirava mais fundo e olhava para
todos os lados enquanto caminhava. Até que, logo à frente, vi uma placa:
estava no caminho certo!
— Ufa!
A poucas pedaladas, passei por uma casa com a placa “Família
Iluminada” pendurada em sua cerca de entrada, que a identifica como um
ponto de apoio organizado pela Abraluz (Associação Brasileira dos Amigos do
Caminho da Luz).
— Ô de casa! — chamei.
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— Tarde! — respondeu um jovem negro de sorriso cor de neve. — A
senhora quer água?
Na verdade, eu não queria. Estava com a mochila de água na metade.
— Sim, aceito, obrigada. Aqui é a casa da Dona Francisca? — tinha
visto no mini-mapa que me encontrava nesse ponto. Sabia que se tratava de
uma personagem lendária.
A senhorinha, com mais de 70 anos de idade, estatura baixa, pele negra
e lenço branco na cabeça apareceu na porta. Dona Francisca me convidou
para entrar e prosear. Disse que, toda semana, um peregrino batia em sua
casa para tomar água.
— Sou muito procurada pelos caminhantes, Graças a Deus.
Dali em diante, faltavam 11 quilômetros para chegar a Catuné. Dona
Francisca apontou para a direção na qual a vila se encontrava.
— Agora é só subida. — preveniu-me.
O sol das duas da tarde já estava alto. Pelo retrovisor, vi que Dona
Francisca velava minha partida. Antes de pegar velocidade na bike, parei para
abrir uma enorme porteira de madeira atravessada no meu caminho, que
estava fechada com um trinco. Mas isso não era tarefa simples. Para entrar na
propriedade, deixava a bicicleta equilibrada com apoio de seu cavalete central
numa distância que me permitisse segurar a porteira pesada, depois de aberta,
com o cotovelo esquerdo enquanto empurrasse a bicicleta com a mão direita.
O portão, quando batia, invariavelmente fazia um estrondo que ecoava pelo
pasto, o que assustava o rebanho de vacas.
— Muuuuuuuuuu! Muuuuuuuuuu!
O gado solto pela fazenda percebia a minha entrada em sua cercania.
Todos — eu e as vacas — ficávamos nervosos. Atormentava-me a
possibilidade de ser pisoteada por elas, que estavam pastando
despreocupadamente à beira do caminho. Quando me aproximei, as vacas
brancas, da raça nelore, fitaram-me ao mesmo tempo. Imóveis, algumas delas
ficaram com o pasto pendurado na boca. Desci da bike. Não podia avançar:
eram dezenas. Se ficassem mais assustadas e debandassem, em coletivo,
para a minha direção, eu morreria pisoteada. Poupei a respiração.
— Trim, trim! Trim, trim! — comecei a buzinar, e nada. Como resposta,
mugiam.
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Fui empurrando a bicicleta em câmera lenta. Algumas vacas corriam,
outras aproximavam-se. Fiquei mais de 40 minutos ali parada. Não havia um
roceiro por perto, ninguém que pudesse me socorrer. O sinal do celular
também não pegava. Por telefone, queria pedir para alguém pesquisar no
google como fazer para, em segurança, eu tocar o gado.
Até que meu medo perdeu a validade. Subi na bike, contei mentalmente
até três e saí pedalando. Adiante, começavam as temerosas subidas. Antes de
percorrê-las, saquei meu lanchinho, composto por bananinhas desidratadas,
nozes, castanhas, barras de cereal, mel em saquinho e isotônico com sais
minerais. Com a energia renovada, apesar de já estar bem cansada, comecei a
empurrar a bicicleta ladeira acima. Sempre no mesmo ritmo: com muita dor nas
costas, empurrava dois minutos, mas descansava cinco. Toda vez que parava
me lembrava do amigo Leandro Valverdes, de quem havia comprado a bicicleta
em São Paulo, que me desaconselhou a levá-la nessa empreitada:
— A Blitz Comodo é muito pesada. Não foi fabricada para trilhas com
tantas subidas. Você não vai aguentar! — alertava-me.
No fundo, eu sabia que ele estava certo. Mas não via sentido em usar
outra, emprestada, se esta era minha parceira. Um outro colega cicloativista de
São Paulo deu-me o aval que eu procurava: “Experimente-a!”.
Foram três horas e meia subindo nesse ritmo. No meio do caminho, dois
agricultores haviam deixado a lida e seguiam para casa, em Catuné, no mesmo
percurso que eu fazia.
— Nós levamos 40 minutos para chegar lá. — garantiram-me.
Eram quatro da tarde. Animei-me e desci pedalando na frente. Mas eles,
a pé, ultrapassavam-me nas subidas. Eu, curvada para frente, aplicava uma
força de gigante para fazer os pneus rodarem, mas os agricultores nem
olhavam. Pensei em pedir para eles empurrarem um pouquinho a bike na
subida, enquanto eu alongasse a coluna. Fiquei envergonhada. Eles também
não pareceram incomodados com o meu esforço nas ladeiras. Às cinco da
tarde, minhas forças esvaíram-se. Meu reservatório de água secou. Tudo doía:
pulsos, braços, joelhos, nádegas, lombar. Os senhores haviam sumido. Teriam
chegado?
Nos meus últimos suspiros de energia, enquanto empurrava a bicicleta
com os pés arrastados sobre a terra seca, avistei uma casa. Com os cotovelos
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apoiados no muro, uma senhora de cabelos compridos grisalhos mirava com
seus olhos azuis os montes ao longe.
— Ainda falta muito para eu chegar a Catuné? — perguntei ofegante.
— Não, minha linda, você chegou. É caminhante?
Eram 17h30, e a escuridão começava a ser esboçada no horizonte. Para
concluir aquela rota, faltava ainda passar pela gruta da Pedra Santa. Mas, para
mim, naquele dia, era o fim do caminho. Entrei na casa de Dona Maria Helena,
reidratei-me, tomei um café quentinho e disfarcei a fadiga com um demorado
bate-papo. Ela me explicou como chegar à casa de Dona Dulce Fulmian, onde
me hospedaria naquela noite. Entrei em uma acomodação aconchegante, com
um quarto perfumado e arrumado com carinho para os peregrinos. Na mesa do
jantar, servido para toda a família, estava posta uma iguaria mineira: arroz,
feijão com paio, frango à milanesa, bisteca, salada de horta e um reconfortante
doce de tangerina. Foram algumas horas de muitas histórias. Até eu pegar no
sono.
***
Na vila de mil habitantes, ronda um mistério: como a gruta da Pedra
Santa, que há um século tinha 150 metros quadrados, expandiu sua área para
1.200 metros quadrados e 35 metros de altura sem que tenha sido vista uma
única rocha cair de suas paredes? Os moradores de Catuné contam que a
gruta era local de pernoite para índios que saíam da região litorânea e, no
mesmo percurso do atual Caminho da Luz, rumavam até o Pico da Bandeira —
para eles, a “Montanha Sagrada” — com o objetivo de encontrar a “Terra dos
Sem Males”.
Antes de pedalar até a cidade de Pedra Dourada, a 23 quilômetros de
distância, voltei à gruta. A tronqueira que protege a sua entrada ainda estava
fechada às oito da manhã. Pedi, mentalmente, licença para entrar no local,
considerado sagrado, graças às histórias multiplicadas de muitos milagres e
preces atendidas a quem até ali se dirigia. Águas cristalinas pingavam de suas
rochas sem, no entanto, fazer qualquer barulho. O silêncio era a única música.
No fundo da furna, uma pequena capela azul fora construída, em frente de
bancos espalhados para acomodarem religiosos durante as celebrações e
festas. No teto, bandeirolas coloridas animavam o ambiente. Sentei-me por
poucos minutos e fiz alguns pedidos.
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— Que minha jornada termine com muitas descobertas.
Antes de sair, passei as mãos pelas paredes de pedras e, como sinal de
respeito, fiz uma oração em frente à estátua de Nossa Senhora de Lourdes,
protetora dos enfermos. Era preciso absorver a áurea de um lugar sagrado.
***
As descidas não são fáceis. Para quem não está acostumado a
manobrar a bicicleta em grande velocidade, é preciso apuração redobrada para
segurar, além do peso do ciclista, os trinta quilos fincados na bike, cujas rodas
deslizam na terra ladeada de pedregulhos e de folhas secas. O som do freio é
de um chiado ininterrupto, que abafa a música da natureza circundante.
— Shhhhhhuuuuuuuuu. Shuuuuuuuuuuuuu.
Depois de uma subida permanente, do Km 3,9 ao Km 7,6, até o Lombo
do Burro e o Vale do Silêncio — trechos que beiram as encostas do alto do
morro —, desci com a mão no freio traseiro até o fim do rebaixamento, na
altura do Km 9,3, onde avistei uma praça bem afeiçoada, com árvores
frondosas e, sob elas, bancos para estimular uma prosa. Chegava à
comunidade de Água Santa — também distrito de Tombos —, com mil
habitantes. Aproveitei para descansar, sob a sombra, e fazer meu lanchinho de
almoço: maçã, nozes, castanhas e passas. Do outro lado da rua, um cavalo
aguardava seu dono comprar mantimentos na Padaria Lazaroni e, na mesma
calçada, a avó Sonia Lazaroni e sua vizinha acomodavam-se no degrau, diante
da Farmácia Ramos — “Na dor e na alegria, sempre em sua companhia” —,
para ajudarem o neto Henrique Lazaroni, de oito anos, a concluir a lição de
português.
— Avó é masculino ou feminino? — quer saber o menino.
— É feminino, veja! Tem um espetinho na letra, não chapeuzinho! — a
avó, prontamente, soluciona a questão gramatical e levanta-se para me
atender na padaria.
— Vó, traz uma bala!
— Uai, vem buscar! Não sei que bala você quer.
— É de caramelo, vó! — agita-se o menino.
Sonia Lazaroni é avó e mãe de Henrique há mais de seis anos, desde
que sua filha morreu de parada cardíaca aos 26 anos de idade. Enquanto ela
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me servia um refrigerante, eu observava as fotos de sua filha coladas no vidro
que protege o caixa da padaria. A filha, que era professora primária, também
era apaixonada pelo mar. Sonia lembra-se dela aos prantos e me confessa:
— Minha missão é fazer meu neto formar-se doutor. Aqui em Água
Santa já saíram médicos, advogados, farmacêuticos, contabilistas. Não há
escola de ensino médio na região. Mas estou guardando dinheiro para me
mudar para outra cidade quando o Henrique completar a idade certa.
No planejamento familiar, os médicos do distrito costumam sugerir às
mulheres que tenham seus filhos em intervalos de cinco anos. Assim, quando
os pais terminarem de pagar a faculdade de um, começam a bancar o curso
superior de outro. E o calendário familiar é estipulado para que seus filhos
tenham uma vida estudada. E digna.
Saí de Água Santa antes das duas da tarde, e já sabia que seria
impossível alcançar Carangola, tal como havia planejado com a operadora
credenciada antes de conhecer as dificuldades das ladeiras de Minas.
Portanto, faltavam apenas 14 quilômetros de descida até Pedra Dourada —
município cujo nome foi inspirado em uma enorme pedra que, nos primeiros
minutos da manhã, é presenteada com uma pintura dourada pelas luzes do sol
que raiam o dia. Como não havia sido feita reserva no hotel da cidade, liguei
para a agência, que me orientou a procurar por Rosângela, dona da pousada.
Aproveitei a chegada breve para dar um banho na bike, enquanto Rosângela
preparava a janta. Quando foi servida na enorme mesa da cozinha, seu marido
aguardava os convidados. Percebi que já o conhecia: era Paulo Fernando de
Almeida, que havia me dado as primeiras informações na rodoviária de
Carangola, cidade para onde eu voltaria no dia seguinte.
***
Da sacada da pousada, dei bom dia aos montes verdejantes de Pedra
Dourada. Estava com energia para pedalar 48 quilômetros até Carangola,
depois de, no meio do caminho, carimbar a credencial na cidade de Farias
Lemos.
— Você vai pegar uma subida brava, logo de início, mas, depois de
ultrapassá-la, seguirá tranquila. — mapeou em prosa mineira o casal
Rosângela e Paulo.
17
No início da subida, como de costume, zerei a contagem do
ciclocomputador e consultei a metragem no mini-mapa. Memorizei o número
8.100 metros, onde queria fazer uma parada mais demorada para sentir as
energias advindas da Pedra do Lagarto — local onde índios, pajés e xamãs
faziam cantos de louvação a seus deuses quando partiam em busca da “Terra
dos Sem Males”.
Na minha desastrada maneira de empurrar a bicicleta na velocidade de
tartaruga que não aguenta seu casco, zerei a quilometragem do aparelho com
o cotovelo. Como já havia pedalado dois quilômetros, refiz os cálculos. Nas
minhas contas, quando o ciclocomputador marcasse 10,1 quilômetros, chegaria
ao destino almejado.
O tempo, um pouco nublado, amenizava o suadouro do esforço. Depois
de passar por um longo trecho em obras, no qual precisei dividir a estradinha
com tratores que, ao meu lado, pareciam dragões assombrosos, fiz uma curva
acentuada logo após uma ponte. Em marcha lenta, sorvi um cheiro conhecido,
de preces, velas acesas, que não identifiquei de onde vinha. A 100 metros
abaixo, uma vaca desgarrada abandonou o pasto e se postou no meu caminho
no momento em que eu me equilibrava na descida. De frente para mim, ela me
olhava. Freei bruscamente, desci da bicicleta e esperei ela voltar a ficar
faminta. Olhei a marcação no aparelho, que indicava seis quilômetros
percorridos, quatro antes do destino que esperava alcançar logo.
— Sai vaquinha, deixe-me passar, não tenho o dia todo. Vai pastar! —
dialogava. Mas o animal não se movia.
Olhei para os lados, saquei uma fruta do alforje e mastiguei-a no mesmo
ritmo das outras vacas, que, impassíveis, mantinham-se do lado de dentro da
cerca. Mas não percebia um único gesto da vaca estacionada no centro da
estradinha que sugerisse que sairia do meu caminho em breve. Como que
colocando em primeira marcha o meu veículo, respirei ao contrário e apertei o
passo, com a bike ao lado, até ultrapassá-la. Seu olhar me seguia. Observei de
espreita e fui correspondida: a vaca, de costas para mim, virava-se.
— Muuuuuuuuuuuuuuu! — soltou um lamúrio.
Para compensar o tempo ali perdido, saí em alta velocidade. Usei todas
as minhas energias para deslizar até o destino. Quando cheguei à marca do
Km 10,1, não vi nada. Estranhei.
18
— Cadê a pedra em forma de lagarto? — peguei o livro-guia e me
certifiquei da metragem.
— Não é possível! Fiz a conta errada! Se eu já tinha pedalado dois
quilômetros quando zerei, sem querer, o cronômetro, então a Pedra do Lagarto
ficava no Km 6,1, não no 10,1. — refiz as contas mentalmente [6.100 metros +
2.000 metros = 8.100 metros].
Fiquei atordoada. O local sagrado ficava 100 metros acima de onde a
vaca se colocara no meu caminho. Bem onde sentira o cheiro de vela.
— Era um aviso da natureza? Ignorei uma advertência, que agora me
parece tão clara, tal como um trator é incapaz de perceber uma trilha de
formigas em seu caminho. Na minha vida cotidiana, quantas comunicações
dessa natureza eu desconsidero? Onde estão os meus olhos sensíveis, a
minha intuição, o meu sexto sentido? Definitivamente, sou uma pedra que
ainda não foi lapidada.
Tratava-se de um alerta? Uma lição? Estava a quatro quilômetros de
distância da Pedra do Lagarto, mas abdiquei de sentir a energia indígena que
tanto queria. Uma perda.
***
No quarto dia da jornada, esperavam-me os 25 quilômetros mais
fascinantes do percurso todo. No Km 9,3, uma porteira de madeira separa a
Parada General — da antiga estrada de ferro Leopoldina, construída no século
19 para levar o café da Zona da Mata mineira ao Rio de Janeiro — até as
construções ainda resistentes da Estação Ernestina. A trilha, tomada pelo
mato, é uma “passagem de volta no tempo”: entre os paredões rochosos à
esquerda e a encosta à direita, são avistados antigos casarios e um
assombroso túnel de pedra — perfurada para possibilitar o deslocamento de
trens que por ali circulavam. Pelo antigo leito férreo, samambaias e outras
vegetações despencam de paredões rochosos e formam uma cabana de
labirintos. Ali, devido ao isolamento, foi preciso aplicar doses de coragem na
veia para, junto com a adrenalina, eu não desistir da empreitada.
Quando abri a porteira da Parada General, uma chuva fina começou a
regar o caminho. Não demorou para a trilha, que beira a encosta do alto da
montanha, ficar escorregadia e lamacenta. Protegi-me com uma capa de chuva
azul, em forma de poncho, mas os pés ficaram à mercê do barro. Não era
19
possível andar de bike, apenas empurrá-la. Um redemoinho de energia
misteriosa brotava do solo, perpassava a minha alma e esvoaçava pelo
horizonte, o que desenhava no lugar uma aura de cidade fantasma. Eu estava
arrepiada: de medo, de frio, de excitação. Já havia lido histórias de terror sobre
esse trecho, como mortes de trabalhadores durante a construção da linha
férrea, túneis de pedras que desabaram e trens que descarrilaram vertente
abaixo. Tudo isso parecia caminhar comigo num dia encoberto.
Pela segunda vez durante o Caminho da Luz, tive a sensação de estar
perdida. Ao me deparar com a trilha literalmente despedaçada, com as pedras
molhadas por um rastro de água, dei-me conta de que não era possível
continuar no caminho. Liguei para o operador da agência de turismo, Vitor
Hugo, e pedi ajuda.
— Vitor, devo estar perdida. Aqui é uma encosta, ou passo eu, ou a
bicicleta. Isso está muito perigoso! Peguei o caminho errado?
Vitor tentava me tranquilizar pelo telefone. Refez verbalmente todo o
percurso por onde passaria, o que me fez visualizar um caminho mais sereno.
— Depois de passar pela ruína da antiga Estação Ernestina, você
percorrerá um trajeto estreito, muito bonito, encoberto por plantas até uma
tronqueira. Ali, tome cuidado, você deve abri-la e seguir à esquerda. Não vá
para a direita! — advertiu-me.
A chuva deu uma trégua. Para seguir em frente, tirei o tênis encharcado,
descarreguei a bagagem da bicicleta e a transportei no ombro direito,
vagarosamente, com as meias sobre os pedregulhos molhados. Caí e me
levantei algumas vezes. Depois, voltei para buscar as malas. Menos de um
quilômetro à frente, mais um caminho desfeito. Repeti o procedimento.
Em toda aquela trilha que parecia circundar um trecho inexistente, não
subi na bicicleta. Empurrei-a sob o túnel de pedra e alcancei a Ernestina, num
total de sete quilômetros de chão de pedras desde a entrada, na Parada
General. Ainda faltavam nove quilômetros até chegar à cidade de Caiana. Mas
já eram quatro da tarde.
Às cinco, estava em frente à tronqueira descrita por Vitor. Mas ela não
abria. Escurecia. De tão cansada e faminta, decidi desistir do caminho e tentei
avisar a agência de turismo. Não havia sinal para o celular. Tentei mais uma
vez não esfacelar a mão no arame farpado, mas não tinha forças. Desesperei-
20
me. Quando a abri, entrei numa plantação de café, onde havia sacos da
colheita ainda abertos — sinal de que os trabalhadores rurais estavam ali havia
pouco tempo. Estava esgotada para empurrar a bicicleta numa ladeira de terra
íngreme, por isso, descarreguei a bagagem e voltei para buscá-la, uma a uma.
Pela estradinha de terra ao lado, uma caminhonete passava. Gritei por socorro.
— Moço, me ajuda, estou perdida! Moço! Moço! — a caminhonete
seguiu seu caminho.
Saí da plantação sob o céu já preto. Liguei a laterna pisca-pisca da
bicicleta e as sinalizações vermelhas afixadas no capacete. Eu devia parecer
um alienígena a bordo de uma nave terrestre brilhante. Naquela altura, restava-
me apenas procurar uma pedra, ao lado da qual eu pudesse esperar até ser
localizada na escuridão. Alguém sentiria minha falta mais tarde. Ou não?
Sentei e chorei.
— Que visões eu teria aqui de madrugada? E se o gado me achasse
aqui à noite? E o frio, eu aguentaria? Ai meu Deus, e as assombrações, que,
pelas histórias populares, aparecem por esse trecho aos montes? Não, não
vou ficar aqui. Terei de andar até onde conseguir.
Meus passos não queriam obedecer a minha vontade. Esbarrei noutra
porteira, que me introduzia na casa de um gado numeroso, mas fingi não me
incomodar com isso. Logo à frente, havia um casebre à beira da estrada, cujas
luzes estavam acesas. Os cachorros começaram a fazer um escândalo à
medida que minhas luzes pisca-pisca se aproximavam. A escuridão dominava.
— Calma cachorrinho, chama seu dono para me ajudar! — tentava
abrandar o resmungo dos animais. — Ô de casa! Alguém, por favor, estou
perdida — gritava, batia palmas, mas ninguém aparecia. Fui embora.
Sozinha e perdida no meio da estrada, percebi o barulho de uma moto
se aproximando. Chamei. Ela freiou.
— Moço, como faço para chegar a Caiana? É muito longe? Estou
fazendo o Caminho da Luz, mas não tenho como chegar no hotel da cidade
nesta escuridão. Por favor, não me deixe aqui sozinha! — soluçava aos
prantos.
O motoqueiro havia acabado de sair da casa onde eu tanto gritara. A
televisão estava ligada, por isso, ninguém havia escutado. Ele chamou seu
irmão, que abriu a porta desesperado por achar que algo de mais grave me
21
havia acontecido. Tranquilizou-se ao saber que se tratava de... medo. Para
mim, era mais do que isso. Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, sem
luz alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada
no caminho. Aos 31 anos de idade, vividos no meio urbano, estava
acostumada com os perigos que permeiam as grandes cidades, não com os
fantamas da noite no mato.
Seu Geiton e a esposa, Cilene, que trabalham na colheita de café,
receberam-me em sua casa. Acomodaram minha bagagem, prepararam um
café quentinho, cujos grãos haviam sido torrado por ele e moídos naquele
momento. Improvisaram um cinzeiro, já que não fumavam, para que eu ficasse
à vontade. Como eu estava enlameada e molhada, pediram para eu tomar um
banho. O casal já havia jantado, mas não aceitaram que eu recusasse a janta.
Cilene fritou bisteca, cozinhou arroz e requentou o feijão. Enquanto isso,
Geilton fazia ligação via satélite — instalado em sua casa — para alguns
estabelecimentos da cidade à procura do contato do hotel onde me hospedaria.
Consegui ligar a cobrar para a agência do Caminho da Luz, já que os créditos
do celular de Geilton se acabaram. Enquanto conversava com ele sobre a safra
de café e o novo Código Florestal, Vitor Hugo planejava buscar minha bicicleta
com um automóvel 4x4. Geilton se ofereceu para me levar de moto até a
cidade. Estava tudo resolvido.
***
No último dia — o quinto de pedalada —, 44 quilômetros me separavam
de Alto Caparaó, cidade localizada ao pé do Pico da Bandeira. São quatro
municípios que integram esse percurso (Caiana, Espera Feliz, Caparaó e Alto
Caparaó). De Caiana a Espera Feliz, onde pararia para carimbar a credencial,
eram apenas dez quilômetros. Ali me desfiz dos pesos: despachei a bagagem
de táxi até a pousada. Por ser o trecho mais tranquilo e com pouca declividade,
a situação era excelente para pedalar sentindo o vento na face, escutando a
música dos pássaros e a dissonância ritmada do mugido do gado. Aproveitei
para curtir a música selecionada por meu marido: Bob Dylan estava em
harmonia com a paisagem bucólica e romântica desse último dia.
Depois de tantos trechos a vencer medos e obstáculos, meu corpo já se
sentia sadio, a mente, livre, e a alma, equilibrada.
22
Quando cheguei à noite na pousada, minha bagagem já me esperava.
Fazia frio na região montanhosa. Como, inicialmente, havia programado
pedalar em quatro dias, não em cinco, perdi o grupo agendado para subir a
montanha. Uma última equipe sairia naquela madrugada. Da tronqueira do
Parque Nacional do Caparaó — onde se inicia a trilha a pé — são 6,9
quilômetros de subida pesada até o cume, ou aproximadamente, três horas e
meia de caminhada apenas na ida. Depois de um dia inteiro de esforço físico,
essa empreitada era, para mim, impossível.
Do orelhão em frente à praça da cidade, liguei para o diretor de redação
da revista onde trabalho, em São Paulo, para avisar que minha jornada
terminaria ao pé do pico. Havia prometido levar a ele uma matéria de
ecoaventura a partir da minha cicloviagem, para justificar os seis dias ausentes.
— Oi Wilson, estou aqui em Alto Caparaó. Não, não subi no Pico da
Bandeira, pedalei um dia a mais. É que as montanhas são muito íngremes,
estou acabada. Meus joelhos doem, tenho câimbras constantes, estou um
bagaço. Ãh? Não, não dá mais para subir. Teria que contratar um guia só para
mim. É muito caro. Deixa para uma próxima vez, já tenho imagens fantásticas.
— Não acredito que você foi até a porta do céu e está se recusando a
ver Deus? — repreendeu-me.
Refiz os planos.
***
Com o cajado estilizado em mãos, guia contratado e corpo descansado,
subi no jipe às oito da manhã do domingo, dia 22 de maio. O sol brilhava.
Mesmo assim, fui agasalhada, já que os relatos eram de que, no cume da
montanha, a temperatura despenca.
Nas primeiras pedras escaladas, as câimbras não davam trégua. Jaci, o
guia, alongava-me. Cajado na mão direita, mão esquerda apoiada no braço do
guia, só assim me equilibrava na tarefa de ultrapassar o labirinto de pedras. A
vegetação rasteira esverdeada contrastava com a terra pardacenta. Alcançar a
verticalidade de um lugar considerado sagrado parecia exigir que o prazer
fosse diluído no sofrimento.
Logo à frente, três jovens rapazes estavam estendidos sobre volumosas
pedras. Ao olhá-los, escutei um desabafo:
23
— Pra que subir até o cume? É frio e cansativo. Aqui embaixo é também
tão bonito...
Os aventureiros que escalaram o pico durante a madrugada voltavam.
Às seis da manhã, no topo da montanha, a névoa não abriu a cortina para
apresentar a paisagem. O sol que nascia não foi visto.
— Lá em cima é imprevisível. Em segundos, a neblina tanto pode fechar
tudo quanto pode desaparecer e dar lugar a uma imagem deslumbrante. —
ponderou o guia.
Para mim, esse detalhe já não importava. O que almejava era cumprir
minha jornada. Ao alcançar o cume com o corpo doído e arqueado, tal como se
eu tivesse o peso de uma idade avançada, minha expedição acabava. Em
segundos, as cenas do percurso se misturaram. Como uma metáfora da vida, o
Caminho da Luz me levou a altos e baixos, iluminou meus temores, colocou-
me obstáculos e me apresentou as simplicidades naturais da existência. Todas
as agruras não foram capazes de sombrear as belezas apresentadas. Nesse
momento, eu sentia-me bem-aventurada.
— Nesse caminho, eu segui! Consegui! E na vida?
***
24
Making of A peregrinação de uma narrativa
“Um caminho no meu caminho — Peregrinação de bicicleta pelas
montanhas de Minas” é uma narrativa de viagem, gênero que apresenta,
segundo Edvaldo Pereira Lima, “um grau de aproximação ao ensaio pessoal e
aos textos de memórias porque é também, em essencial, um texto
autobiográfico” (LIMA, 2009, p. 433).
O tema foi escolhido na aula de narrativa de viagem ministrada pelo
Prof. Edvaldo Pereira Lima, em 28/2/2011. O fato de a narrativa permear o
ensaio pessoal, no qual o protagonista-autor se mostra ao leitor e faz uma
reflexão sobre sua viagem externa e interna, era, para mim, um grande desafio
a ser superado. Acostumada a redigir matérias de ecoturismo para uma revista
do segmento, não apresento a viagem do ponto de vista das minhas
transformações pessoais, tampouco a narro em primeira pessoa. Entretanto,
Lima adverte que “a humanização que se destaca nesse caso é a do próprio
escritor, sua vulnerabilidade diante dos acontecimentos sumamente tocantes.
(...) O movimento para expor seu mundo interior procede das entranhas. A cura
vem pela exposição” (2009, p. 432).
O foco dessa narrativa de viagem é a peregrinação a qual me propus a
fazer de bicicleta pelo Caminho da Luz, da cidade de Tombos ao Pico da
Bandeira. Trata-se de uma jornada em busca do autoconhecimento — tema
explorado a partir de meus temores internos, iluminados a cada etapa
cumprida, e reconhecidos com o término da viagem, em pleno cume da
montanha. Dessa forma, assumo o papel de protagonista na história e tento
levar o leitor a explorar as descobertas simbólicas desse caminho
desconhecido.
Para narrar a viagem, procurei delinear as conotações da Jornada do
Herói — estrutura básica averiguada pelo mitólogo norte-americano Joseph
Campbell, na obra “O Herói de Mil Faces”, publicada em 1949, que permeia as
narrativas míticas, nas quais é relatada a evolução do herói durante a sua
jornada em busca de ampliar a sua consciência do ponto de vista pessoal e
comunitário (MARTINEZ, 2005, p. 5).
25
Em sua pesquisa de doutorado defendida em 2002 pelo Núcleo de
Epistemologia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo, Monica Martinez sugere uma combinação das estruturas propostas por
Campbell, pelo analista de roteiros da Companhia Wall Disney Christopher
Vogler — que faz adaptações importantes à obra original — e pelo Prof.
Edvaldo Pereira Lima, que, ao perceber o potencial da Jornada do Herói como
uma ferramenta para a construção de histórias de vida, sintetiza a jornada em
oito etapas com intuito de torná-la mais funcional no jornalismo (MARTINEZ,
2005, p. 7).
A proposta de Martinez engloba 12 etapas, nas quais me fundamentei
para estruturar a narrativa de viagem com o objetivo de mapear uma
experiência particular dentro de um contexto universal, isto é, cujas fases da
aventura são permeadas por fatores verificados na vida dos seres humanos.
Ao optar por construir a narrativa usando as premissas da Jornada do Herói,
apliquei a técnica de jornalismo em prol da tentativa de compreender que as
experiências — individuais ou coletivas — são complexas, cujos fatores podem
ser percebidos não apenas a partir de dados concretos, mas, como enfatiza
Martinez, por meio de muitos mistérios (MARTINEZ, 2005, p.17).
A sequência apresentada pela autora não foi seguida à risca devido às
opções de edição que levaram em conta a apresentação de um “suspense”
inicial para instigar a leitura. São elas:
1. Cotidiano: etapa que apresenta o universo do protagonista. Nessa
narrativa, trata-se de uma ciclista que optou por adquirir uma bicicleta como
forma de “viver um dia a dia sem rotinas” num momento de crise conjugal —
ideia narrada apenas na página 8, quando apresento as minhas dificuldades
de fazer reparos na bicicleta, devido ao pouco tempo de uso, o que se revela,
ao mesmo tempo, como a situação responsável por romper com o meu
cotidiano, cuja etapa, de certa forma, mescla-se com a que vem a seguir.
2. Chamado à aventura: não está descrito explicitamente o motivo pelo
qual me lanço a fazer a peregrinação de bicicleta. Entretanto, na sequência
inicial de reflexão sobre as peregrinações, na página 4, dou uma pista: “De
minha parte, fazer o Caminho da Luz, de bicicleta, não era sinônimo de
penitência, de pagar promessa ou de venerar uma religião. Assim como a
maioria dos peregrinos-viajantes-turistas, fui atraída por um chamado de
26
introspecção e autoconhecimento, que se aprofundam, em viagens solitárias,
por meio do genuíno contato com a natureza e pela interação sociocultural com
as comunidades locais. Era a minha primeira viagem sem companhia, e estava
determinada a conhecer os meus limites na iniciação em cicloviagens”.
Portanto, o autoconhecimento buscado por mim levava em conta uma viagem
que nunca havia feito, ainda mais sozinha, mas que, para isso, era necessário
aprender a manusear a bicicleta, tal como um viajante de carro precisa saber
dirigi-lo e ter noções de manutenção do veículo.
3. Recusa do chamado: para eu ingressar na aventura, procurei
ciclistas experientes em cicloviagens para analisar se eu teria condições de
fazê-la. Não se tratou de relutar ao chamado, mas de balancear os prós e
contras da viagem, o que poderia resultar em minha desistência. Alguns
mentores me orientaram sobre os perigos da cicloviagem, tal como fez o
ciclista Leandro Valverdes, que me sugeriu trocar de bicicleta para conseguir
superar as subidas do caminho, cuja cena foi citada na página 13.
4. Travessia do Primeiro Limiar: apesar das minhas limitações de
saúde, estava convicta de que tinha condições de entrar aventura, sozinha.
Mas só simbolizo que apresento essa dificuldade quando o clínico geral me
adverte sobre os riscos do esforço físico, narrado nas páginas 6 e 7. Aqui
entra em cena o personagem denominado por Martinez como “Guardião do
Limiar”, que me chama a atenção para os limites aceitos pelo meu organismo
nessa expedição.
5. Testes, aliados, inimigos: trata-se dos tempos de crises, que me dão
oportunidades de crescimento. Essa etapa permeia toda a narrativa: seja
quando me sinto perdida ao adentrar a “Mata do Banco”, descrito na página 11, ou quando fico sozinha com uma manada, sem saber lidar com ela, tal
como narrei na página 12, ou ainda, quando ignoro um “aliado oculto”, que
tenta me avisar de que cheguei ao destino almejado, na página 17. Todos os
personagens envolvidos nessas cenas são seres da natureza, ou a própria
natureza , com a qual não tenho intimidade.
6. Caverna Profunda: o momento mais crítico da partida, inclusive por
mim internalizado, aconteceu na cena em que percebi que não escuto os sinais
(sobre-humanos) da natureza. O monólogo interior narrado na página 17 tem o
objetivo de sinalizar isso: “— Era um aviso da natureza? Ignorei uma
27
advertência, que agora me parece tão clara, tal como um trator é incapaz de
perceber uma trilha de formigas em seu caminho. Na minha vida cotidiana,
quantas comunicações dessa natureza eu desconsidero? Onde estão os meus
olhos sensíveis, a minha intuição, o meu sexto sentido? Definitivamente, sou
uma pedra que ainda não foi lapidada. “
7. Encontro com a Deusa: viajar sozinha e interagir com a natureza
circundante na maior parte do tempo não me permitiu trabalhar essa etapa na
narrativa de viagem. Entretanto, no último dia de pedalada, narrado na página 22, permiti-me escutar as músicas gravadas por meu marido em MP4, o que
não fiz em nenhum outro momento. As melodias que mais ouvi foram a de Bob
Dylan, cuja música “Like a Rolling Stone” foi por mim atribuída como trilha
sonora dessa viagem. Afinal, era também como me sentia num ambiente
desconhecido.
8. Provação Suprema: nesta etapa, o herói enfrenta seus maiores
medos, o que para mim aconteceu quando fiquei sozinha à noite na estrada de
terra. Na página 21, depois de já narrada a cena, eu confesso: “Eu estava em
pânico. Ficar na estrada rural, no interior dos caminhos da montanha, sem luz
alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada. Aos
31 anos de idade, vividos no meio urbano, estava acostumada com os perigos
que permeiam as grandes cidades, não com os fantamas da noite no mato.” O
medo do escuro no mato foi indicado desde o início da narrativa, quando
escrevi, na página 9, que “não tinha hora para sair, mas, como não queria ficar
à noite no meio do mato, necessitava chegar aos destinos até, no máximo,
17h30, horário em que o sol se punha”.
9. Recompensa: mesmo antes de chegar ao Pico da Bandeira, já
delineio as conquistas de conseguir percorrer em cinco dias o Caminho da Luz
até Alto Caparaó: “Depois de tantos trechos a vencer medos e obstáculos, meu
corpo já se sentia sadio, a mente, livre, e a alma, equilibrada.” (página 22).
Mas, tratava-se apenas de um dos desafios — cumprir o trecho de bicicleta —,
que pretendia findar com o trecho da escalada ao cume, só feito a pé.
11. Ressurreição: as etapas 10 e 12 (Caminho de Volta e Retorno com
Elixir) não foram trabalhadas no texto por questão de edição, já que a narrativa
está no seu limite de tamanho para uma leitura fluente, não cansativa.
Portanto, a Ressurreição está descrita no ínicio da história (que, justamente,
28
começa pela catarse da conquista: de ter conseguido terminar a jornada). O
“último e mais perigoso encontro com a morte” acontece, entretanto, nas
páginas finais, quando ligo para o diretor de redação e comunico que não teria
mais forças de subir a montanha. Mas, desisto de desistir, e solto um grito de
missão cumprida no cume.
Os pilares do jornalismo literário e suas técnicas O jornalismo literário vale-se de técnicas da literatura para comunicar um
fato com criatividade e qualidade. A descrição detalhada de lugares, feições,
atmosferas etc., a construção cena a cena, os diálogos, as figuras de
linguagem, as digressões, os monólogos interiores e os fluxos de consciência
são recursos que, além de tornarem a narrativa mais atraente, contribuem para
humanizar a história. É o que defende Ormaneze (2003, p. 3) quando conceitua
o jornalismo literário como “uma corrente que prega a utilização das
ferramentas de um repórter e as estratégias e técnicas textuais dos bons
escritores para o relato dos fatos verídicos.” Com uma ressalva: a construção
do enredo deve ser fiel ao que foi apurado.
Esta narrativa de viagem está permeada pela maioria das técnicas
indicadas. Há descrições pormenorizadas de construções, tal qual o Hotel
Serpa, descrição de feições, como fiz com a Dona Rogéria, também no Hotel
Serpa, descrições dos ambientes da mata, não apenas de aspectos físicos,
mas dos cheiros, das cores etc. Os diálogos aparecem sempre que um
personagem entra na história, para valorizá-lo, o que também ajuda a inserir o
leitor no ambiente da narrativa. Já as digressões, como a que inseri na página 4 sobre os demais caminhos de peregrinações existentes no Brasil, são
recursos que ajudam a contextualizar a temática da reportagem, de forma
breve, sem que a sequência e o ritmo da narrativa se percam.
Como sou a protagonista da história — e entro na aventura sem
companhia —, externalizo meus pensamentos na forma de monólogos
interiores, que contêm os medos, as dúvidas, as reflexões e os pensamentos
durante a cicloviagem. Para a narrativa ficar mais dinâmica, essa exteriorização
está grafada com travessão, tal como se fosse um diálogo com outros
personagens:
29
— Quem se aventura por caminhos desconhecidos tem os medos
iluminados com a lanterna da sabedoria? — pela primeira vez desde que iniciei
a jornada, questionei-me, em silêncio, enquanto sopros intermitentes
dissipavam a névoa e mostravam os contornos ensolarados do horizonte
recortado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
A única tentativa de inserir um fluxo de consciência (que se diferencia do
monólogo interior por estar apresentado de forma desordenada) está na
seguinte seguência, retirada da página 11:
— Ixi, o celular está sem sinal... pra quem eu vou perguntar se ando no
caminho certo? E se uma cobra me picasse agora, para que lado procuraria
socorro? Cadê as placas indicativas? Com este mato fechado, devo realmente
estar perdida. Isso não tem a menor graça...
A ideia era dar voz ao meu medo interior, que era processado como um
amontoado de temores que explodiam na mente.
Mas as figuras de linguagem foram os recursos mais bem explorados na
narrativa. Segue um quadro resumido com exemplos retirados do texto:
ALITERAÇÃO
• Depois de um suspiro espichado, o grito de missão cumprida ressoava sem sobressaltos pela paisagem de dunas verdejantes
• névoa espessa pintasse um cenário alvacento • frio intenso avivado pela ventania • o uivo dos ventos entoava louvores à liberdade por mim sentida • Ali, a floresta alta chega a encobrir o céu que vigia o viajante • No fundo da furna, uma pequena capela azul fora construída
.
COMPARAÇÃO • Ao seguir as placas — como se fossem uma intuição do peregrino
externalizada • precisei dividir a estradinha com tratores que, ao meu lado, pareciam
dragões assombrosos • Eu devia parecer um alienígena a bordo de uma nave terrestre
brilhante • Ao alcançar o cume com o corpo doído e arqueado, tal como se eu
tivesse o peso de uma idade avançada • maneira de empurrar a bicicleta na velocidade de tartaruga que não
aguenta seu casco METÁFORA
• Antes de o ônibus silvar seu caminho • Com os passos murchos
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• Sou uma pedra que ainda não foi lapidada • Pelo antigo leito férreo, samambaias e outras vegetações despencam de
paredões rochosos e formam uma cabana de labirintos • Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, sem luz alguma, era o meu
principal temor, a sombra que não queria ver iluminada no caminho • reproduzia no pensamento o som dos parafusos sendo enroscados,
enquanto, sonolenta e com o corpo enferrujado, olhava pesadamente para as portas dos estabelecimentos ainda fechados
• a cidade parecia fazer uma sesta coletiva • meu medo perdeu a validade • aplicava uma força de gigante
METONÍMIA
• Não queria chamar a atenção, embora os chapéus de palha e as mochilas estudantis que circulavam àquele horário pela rodoviária já olhassem em tom de estranheza uma moça, sozinha, com tanta bagagem
ONOMATOPEIA
• Trim, trim! • Nheeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec... • Muuuuuuuuuu! Muuuuuuuuuu! • Shhhhhhuuuuuuuuu. Shuuuuuuuuuuuuu.
PERSONIFICAÇÃO
• cada membro da bicicleta apeada, sem deixá-la deficiente • Fui visitada por uma enorme mariposa negra, que não queria se
retirar do meu quarto, apesar de tê-la convidado, espalhafatosamente, a sair pela janela com uma toalha
• no bagageiro, estavam pendurados, um de cada lado, os dois alforjes traseiros e, sobre ele, o tripé descansava
• Não estava acostumada com a intimidade de flores e plantas esbarrando em meu corpo e na bagagem assim que as ultrapassava
• uma enorme pedra que, nos primeiros minutos da manhã, é presenteada com uma pintura dourada pelas luzes do sol
• Da sacada da pousada, dei bom dia aos montes verdejantes de Pedra Dourada.
• porteiras que pedem para ser abertas e fechadas pelo viajante
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Mas, o jornalismo literário é baseado em alguns princípios que o
diferenciam da ficção. Todos eles foram aplicados nesta narrativa de viagem:
1. IMERSÃO: Para Lima (2009, p. 373), só há uma maneira de o
repórter compreender a realidade: mergulhar nela. “O autor precisa partir a
campo, ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam seus
personagens. Precisa interagir com eles. (...) É sua tarefa esforçar-se para
vencer suas próprias barreiras e seus condicionamentos de percepção de
mundo, alterando o seu próprio olhar para o olhar de seus personagens”.
Assim, ao fazer uma peregrinação de bicicleta, mergulhei em dois mundos,
para mim até então desconhecidos: o das pessoas que procuram o
autoconhecimento por meio de viagens e de aventureiros que viajam utilizando
como meio de transporte uma bicicleta. Toda a interação nos sete dias de
aventura foi transformada em narrativa. Além disso, pesquisei livros, relatos,
artigos que descrevessem esse dois mundos antes de partir a campo, de forma
que conseguisse afinar meus sentidos para o que de mais interessante poderia
ser explorado nessa experiência.
2. HUMANIZAÇÃO: não existe narrativa do real se nela não estiverem
presentes os personagens. Mais do que isso: eles não devem ser descritos
como caricaturas, mas destrinchados em suas peculiaridades humanas. Nesta
narrativa, tentei me despir sem máscaras para os leitores, com o cuidado de
não me fazer parecer uma heroína endeusada, nem patética em meus medos.
Todos os demais personagens que aparecem na história são tratados a partir
de sua força humana no ato de solidarizar-se, de acolher, de sonhar a vida.
3. EXATIDÃO E PRECISÃO: pilar fundamental do jornalismo, esse
quesito diferencia-se no jornalismo literário apenas na forma como as
informações são apresentadas: com mais criatividade e sem relatórios
estafantes ou burocráticos. Neste trabalho, chequei todas as informações
apresentadas, desde os nomes dos personagens até os números da população
nas diferentes cidades e nos distritos por onde passei no Caminho da Luz,
economia das cidades, tamanho da cachoeira, quilometragem do percurso,
localização dos pontos turísticos, informações geográficas etc., que foram
incluídas no decorrer da narrativa.
4. ESTILO PRÓPRIO E VOZ AUTORAL/ 5. CRIATIVIDADE: Segundo
Lima (2009, p. 369), o leitor não espera um discurso da “verdade absoluta”,
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mas sim uma leitura individual, marcada por seu modo de captar e expressar a
realidade. Tendo isso em vista, toda a produção desta narrativa está alicerçada
na minha experiência como peregrina-cicloturista, sobretudo no modo como
exteriorizo a realidade por mim vivenciada, cujos pilares foram explicitados no
item anterior, a partir das técnicas de jornalismo literário, responsáveis por
imprimir um tom de criatividade na construção da narrativa.
6. SIMBOLISMO: esta história tem como pano de fundo a busca pelo
autoconhecimento. Mas isso não é explicitado a todo momento. Como essa
procura dá sentido à narrativa do início ao fim, os símbolos de luz e sombra,
medo e coragem etc. são ícones que sugerem, de modo sutil, as lanternas que
iluminam a alma do protagonista.
7. RESPONSABILIDADE ÉTICA: apesar de utilizar recursos de
linguagem comuns na literatura para a construção da narrativa, toda ela está
alicerçada na realidade. Não houve falas inventadas, passagens fictícias ou
copiadas de outras reportagens e personagens criadas. Toda a narrativa é
construída a partir de uma experiência do autor, que utilizou material
jornalístico (como gravador, máquina fotográfica, anotações em bloquinho) com
o intuito de transmitir uma realidade compreendida, nunca uma verdade
absoluta.
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Referências bibliográficas
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brasileiro que fez a volta ao mundo em uma bicicleta. 3ª edição. São Paulo:
LCTE Editora, 2008.
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NEVES, Albinno; ESTEVES, André; BASSTOS, Paulo. Um Caminho dentro do
Caminho: uma peregrinação pelas lendas, cantos e contos do Caminho da Luz,
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ORMANEZE, Fabiano. Quando as palavras dizem mais do que seus verbetes
no dicionário: uma análise do uso de figuras de linguagem no jornalismo
literário. Fundamentos Narrativos II. Texto 3
SANTOS, Glauber Eduardo de Oliveira; FAGLIARI, Gabriela Scuta.
Peregrinação e turismo: as novas rotas religiosas do Brasil. Turismo Visão e
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