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Trabalhadores Rurais e o surgimento do MST na Bahia (1978-1989) Leonardo Dantas D’Icarahy 1 Considerações iniciais Existe um consenso entre autores que se debruçaram sobre a história do MST de que o surgimento deste movimento social só pode ser entendido, analisando-se um conjunto de fatores. Entre eles estão: a política agrícola da Ditadura Militar que acentuou a questão agrária brasileira; o trabalho político de cristãos, especialmente através da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), e do movimento sindical; a conjuntura de luta pela democratização; e as inciativas dos trabalhadores rurais de realizarem ocupações de terra (FERNANDES, 1999; GRYNSZPAN, 2003; STÉDILE & FERNANDES, 2005). Outra concordância entre os autores está na necessidade de se recuar ao período da fundação institucional do MST para melhor compreender a sua formação (GRYNSZPAN, 2003; SIGAUD; ERNANDEZ; ROSA, 2010). Em consonância com esse debate, aproveitamos a proposição do historiador inglês E. P. Thompson, em seu estudo sobre a formação da classe operária, de que esta se forma e é formada ao mesmo tempo (THOMPSON, 2002). Isto implica em perceber os trabalhadores atuando enquanto sujeitos mesmo em condições determinadas. Por outro lado, no caso da análise sobre os trabalhadores sem-terra, nos leva a indagar: qual a relação entre a luta destes e dos trabalhadores rurais que o precederam? Consideramos, igualmente, para a nossa pesquisa, a noção de experiência de Thompson e sua ideia alargada de exploração, que vai da esfera econômica à alteração dos modos de vida (THOMPSON, 2004, 2002). No Brasil, pesquisadores vinculados a História Social do Campesinato tem utilizado a concepção do autor de que, em certos casos de luta de classes, noções de direito e justiça possuem grande relevância para seu entendimento. Márcia Motta, por exemplo, coloca que historicamente posseiros ou 1 Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da UFBA.

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Trabalhadores Rurais e o surgimento do MST na Bahia (1978-1989)

Leonardo Dantas D’Icarahy1

Considerações iniciais

Existe um consenso entre autores que se debruçaram sobre a história do MST

de que o surgimento deste movimento social só pode ser entendido, analisando-se um

conjunto de fatores. Entre eles estão: a política agrícola da Ditadura Militar que

acentuou a questão agrária brasileira; o trabalho político de cristãos, especialmente

através da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Comunidades Eclesiais de Base

(CEB’s), e do movimento sindical; a conjuntura de luta pela democratização; e as

inciativas dos trabalhadores rurais de realizarem ocupações de terra (FERNANDES,

1999; GRYNSZPAN, 2003; STÉDILE & FERNANDES, 2005).

Outra concordância entre os autores está na necessidade de se recuar ao

período da fundação institucional do MST para melhor compreender a sua formação

(GRYNSZPAN, 2003; SIGAUD; ERNANDEZ; ROSA, 2010). Em consonância com

esse debate, aproveitamos a proposição do historiador inglês E. P. Thompson, em seu

estudo sobre a formação da classe operária, de que esta se forma e é formada ao mesmo

tempo (THOMPSON, 2002). Isto implica em perceber os trabalhadores atuando

enquanto sujeitos mesmo em condições determinadas. Por outro lado, no caso da análise

sobre os trabalhadores sem-terra, nos leva a indagar: qual a relação entre a luta destes e

dos trabalhadores rurais que o precederam?

Consideramos, igualmente, para a nossa pesquisa, a noção de experiência de

Thompson e sua ideia alargada de exploração, que vai da esfera econômica à alteração

dos modos de vida (THOMPSON, 2004, 2002). No Brasil, pesquisadores vinculados a

História Social do Campesinato tem utilizado a concepção do autor de que, em certos

casos de luta de classes, noções de direito e justiça possuem grande relevância para seu

entendimento. Márcia Motta, por exemplo, coloca que historicamente posseiros ou

1 Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da UFBA.

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intrusos tinham um sentimento de justiça em relação à sua posse da terra, pois haviam

sido eles que derrubaram as matas, limparam e cuidaram da terra (MOTTA, 2001).

Uma questão que consideramos relevante é o que leva os trabalhadores

decidirem lutar pela terra. Pensando nos sem-terra, o que levariam estes a decidir entrar

no MST? No texto, “As condições de possibilidades das ocupações de terra”, Lygia

Sigaud, a partir do estudo do MST da zona da mata pernambucana, defende que entrar

neste movimento social é uma opção do trabalhador rural para melhorar de vida, como

poderia ser arrumar um outro emprego, sob melhores condições. Enfatiza a autora que

trata-se de “uma alternativa nova, mas ainda uma alternativa, como qualquer outra.”

(SIGAUD, p. 266, 2004). Nossa análise do caso baiano tem nos levado a outro

entendimento que iremos debater ao longo do texto.

Nosso objetivo é realizar uma análise, na perspectiva da História Social, do

processo de luta de trabalhadores rurais da região extremo sul da Bahia, debatendo as

duas questões que colocamos acima sobre a motivação do sem-terra em entrar no MST

e a relação desta luta com as outras que a antecederam no período de 1978 e 1989. Para

tanto, utilizaremos fontes variadas: I. entrevistas com ex-agentes pastorais, sindicalistas

e assentadas do MST; II. Jornais; III. documentação escrita dos arquivos da Diocese de

Teixeira de Freitas/Caravelas e CPT NE III (sediada em Salvador); IV. documentação

digitalizada do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno.

A Luta dos posseiros: o caso de Itabatã

No dia 22 de outubro de 1980, o bispo de Caravelas divulga um documento,

intitulado “Carta Aberta ao Povo, ao Governador e à Imprensa”2, denunciando que 37

pessoas foram presas, na região de Itabatã, entre elas três crianças, enquanto faziam suas

roças em terras devolutas3. Ficaram encarcerados entre os dias 2 e 6 de outubro, nas

piores condições de higiene, sem poder se alimentar até seus familiares chegarem e

sofrendo todo o tipo de violência. Declarava ainda a Carta do bispo que, no dia 7 de

2 Dom Filipe. Carta ao Povo, ao Governador e à Imprensa, 22 de out. 1980. 3 Terras devolutas são aquelas que pertencem ao Estado e, de modo geral, não estão sendo utilizadas.

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outubro, policias, grileiros e um oficial de justiça invadiram a residência dos padres, em

Teixeira de Freitas, forçando um animador da Igreja a assinar um papel em branco.

Como aponta Mainwaring, um dos fatores que levou a Igreja a assumir uma

postura crítica em relação à Ditadura militar foi a violação dos direitos humanos e a

perseguição a membros do clero (MAINWARING, 2004). Além disso, boa parte dos

membros da Igreja diocesana de Caravelas já vinham se posicionando favoravelmente

aos trabalhadores rurais em suas lutas, o que explica a atitude de divulgação da Carta.

Os documentos da Diocese que acessamos colocam que desde pelo menos 1973 já se

incentivava a formação de CEB’s e, em 1975, começou a ser formada uma equipe de

assessoria pastoral, que mais tarde originou a Pastoral Rural diocesana.

Voltando ao conflito, é preciso dizer que ele não nasceu em outubro, desde

abril há registros de queixas dos trabalhadores que foram expulsos da terra pelo Sr.

Rosalino Queiroz de Matos. Porém, no mês de agosto a temperatura esquentou. Dia 4,

os posseiros ocupam novamente as terras. No dia 15, é publicada no Jornal A TARDE,

uma mensagem da filha de Rosalino colocando que o pai dela tinha a documentação que

comprova que a terra era dele. A FETAG e a Igreja diocesana publicam notas

repudiando a mesma. Por fim, no âmbito judicial, o juiz de Caravelas concede pedido de

reintegração de posse em favor do senhor Rosalino em 18 de agosto. Quatro dias

depois, é publicado em diário oficial do Estado, decisão de um desembargador

concedendo Mandato de Segurança aos posseiros, isto implicava que eles poderiam

ficar nas terras até que a justiça decidisse o litígio4.

Esta descrição detalhada mostra de que modo agiam posseiros e a família de

Rosalino. Em momentos diferentes, foram à imprensa tentar conquistar à opinião

pública a seu favor. Foram à justiça, para ampliar seus limites na correlação de forças da

disputa, tentando enfraquecer o outro lado. E, além de tudo, agiram no campo central da

luta: os posseiros ocupando a área que acreditavam ser devoluta e Rosalino tentando os

expulsar, dizendo-se dono delas. No entanto, é preciso ponderar três elementos: no

período da prisão dos posseiros, denunciada na carta pública do bispo, estava valendo

um Mandato de Segurança de uma instância superior à local em favor dos posseiros;

4 Carta de Lúcia Lyra à Dom Filipe, 03/09/1980.

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havia indícios de que o documentos em mãos da família de Rosalino eram ilegais5; o

processo de encarceramento dos posseiros desconsiderou qualquer ideia de direitos

humanos.

A carta de Dom Filipe possui outro componente importante. Fora escrita em

período próximo a visita do governador Antônio Carlos Magalhães à região. O Jornal A

TARDE do dia 27 de outubro noticiou a ida do governador ao Extremo Sul da Bahia e a

Carta do Bispo6. Tivemos acesso a documentos trocados, a partir de então, entre os dois

sobre a situação dos posseiros. Em carta enviada à ACM no dia 29 de maio7, Dom

Filipe solicita providências ao governador e aproveita para anexar cartas dos posseiros,

provavelmente, com o intuito de sensibilizá-lo para situação das famílias. Antônio de

Jesus Miranda, posseiro envolvido no conflito de Itabatã, escreveu:

“Eu vou contar meu sofrimento. Eu sou pai di oito filhos. Já fui preso

na região. A FIM di defender o pão. Que as coisas tá muito precuara.

Robar não podi matar pior. Já tou atraz di uma terra prá trabalhar pra

dá di comer a mulher e os filhos. Si a gente for trabalhar um dia não

vali nada. Trinta e cinco companheiros foram presos. Essis homens

trabalhando pra ganhar 200,00 conto não têm condições com a casa

cheia di filhos [...] quanto mais pressa melhor que os pobres está

passando fomi demais”8.

Na carta, Antônio é muito claro em dizer que foi a situação de necessidade,

sendo pai de oito filhos, que o levou a ocupar a terra, pois trabalhar como diarista não

lhe dá o suficiente para o sustento da família. Além disso, fica evidenciado que é na

condição de camponês possuidor ou proprietário de uma terra, que o mesmo vê a

possibilidade de viver dignamente.

Não encontramos indícios de que a situação tivesse sido resolvida em favor dos

trabalhadores. Em agosto de 1981, cerca de 100 posseiros, entre eles os de Itabatã,

escreveram a sua Carta ao Povo, ao Governador e à Imprensa, anunciando que

voltariam a ocupar as terras já que nenhuma medida foi tomada. Porém, foram

5 Carta de Lúcia Lyra à Dom Filipe, 03/09/1980. 6 Jornal A TARDE, 27/10/1980. 7 Carta de Dom Filipe ao governador Antônio Carlos Magalhães, 29/05/1981. 8 Carta de Antônio ao INTERBA, 17/05/1981.

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ameaçados por pistoleiros que difundiram a informação de que se eles ocupassem

novamente as terras, cinco pessoas iriam morrer. Diante da ameaça acabaram recuando9.

Reforma Agrária

No ano de 1983, provavelmente entre maio e julho10, houve uma atividade

promovida por agentes pastorais com trabalhadores sobre a Reforma Agrária. Tal

atividade se relacionava com a Campanha pela Reforma Agrária, lançada em abril, por

diversos setores que lutavam por ela, tais como CONTAG, CPT, CNBB, ABRA e etc

(MINC, 1985). No relatório, há 27 depoimentos de trabalhadores rurais ligados a uma

delegacia sindical da região de Itabatã. Um dos depoentes anônimos, declarou:

“apoiando a reforma agrária quando mais ligeiro melhor. E quero

também terra porque sou pobre não tenho aonde trabalhar as vezes

mim chama de boia fria porque trabalho muito e o que ganho não dá

para comer e sou trabalhador rural.”11.

Tudo indica que são os posseiros envolvidos nos conflitos já mencionados.

Parte deles, pelo menos vinte e sete, resolveram continuar na luta para ter uma terra. No

depoimento, aparece novamente o desejo de ter a própria terra, desta vez para superar a

condição de boia-fria.

Foi marcada, pelo movimento sindical e Comissão Pastoral de Terras da

região, uma concentração pela Reforma Agrária em 20 de novembro de 1983 em

Teixeira de Freitas. Estiveram presentes cerca de 3 mil trabalhadores. A manifestação é

considerada um marco para pessoas que entrevistamos. Celso Favero12, agente pastoral

na época, acredita que a mesma foi a culminância de todo um trabalho realizado pela

Igreja junto aos trabalhadores nos anos anteriores. Já Pedro dos Anjos13, que viria a ser

integrante do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itamaraju, colocou que o momento

foi propício para o surgimento de novas lideranças entre os trabalhadores, inclusive ele

mesmo.

9 Boletim Especial Olhando o Extremo sul da Bahia, out. 1981. 10 Encontros sobre Reforma Agrária, s/d. 11 Respostas da Pesquisa, s/d. 12 Entrevista Celso Favero, 16/10/2014. 13 Entrevista Pedro dos Anjos, 10/01/2016.

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Dois conflitos de terra, entre os anos de 1985 e 1986, nos foram relatados em

entrevistas realizadas14. Um litígio na fazenda Nova Delhi, que, segundo relatos, foi

uma área em que trabalhadores rurais realizaram uma ocupação recente. E outro na

fazenda Corte grande, envolvendo posseiros e um proprietário que tinha abandonado

suas terras. Os posseiros de lá vinham sofrendo ameaças e perseguições no ano de 1985

e 30 famílias chegaram a ser expulsas da área15.

Um fator conjuntural fez todo o diferencial entre esses conflitos e o de Itabatã.

Vivia-se a transição democrática, com suas limitações claro, mas o governo Sarney dava

sinais de que poderia realizar a Reforma Agrária, especialmente, com a promulgação do

I Plano Nacional de Reforma Agrária, que previa o assentamento de 6,4 milhões de

famílias nos primeiros quatro anos de vigência (MINC, 1985). Ao que parece, esta

fazenda Nova Delhi estava entre as áreas do Extremo Sul com chances de serem

desapropriadas16. A possibilidade de vitória certamente incentivou os trabalhadores para

a ação. As duas fazendas foram desapropriadas no segundo semestre de 198617.

As Sem-terra e o MST

O surgimento institucional do MST, se deu nos seu primeiro encontro nacional

em 1984, embora seja possível pensar que o mesmo já vem sendo gestado desde 1979,

ano das primeiras ocupações de terra no Rio Grande do Sul (FERNANDES, 1999).

Mesmo com participação de vários estados no seu I Congresso em 1985, efetivamente,

o MST estava organizado nos estados do Centro-Sul e possuía contatos de sindicalistas

e agentes pastorais de Igrejas cristãs em outros estados do Brasil18.

14 Entrevista Pedro dos Anjos, 10/01/2016 e entrevista Frei Chico Scarpellino, 08/01/2016. Frei Chico

juntamente com Frei Dílson eram os responsáveis pelo seminário da Ordem do Capuchinhos em

Itamaraju. Eles tiveram uma atuação destacada nas lutas dos trabalhadores rurais da região. 15 Histórico da situação dos posseiros do Corte Grande – Município de Prado – Ba, 23/11/1985. 16 Entrevista Frei Chico Scarpellino, 08/01/2016. 17 Jornal A TARDE. INCRA considera áreas de tensão pacificadas, 29/07/1986; Jornal Tribuna da Bahia.

Aprovada novas desapropriações, 02/09/1986. 18 Entrevista Ademar Bogo, 11/01/2016.

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A vinda do MST para a Bahia, estava dentro da estratégia da organização de se

expandir para o Nordeste. Ademar Bogo, dirigente do Movimento19 em Santa Catarina,

foi o primeiro militante a vir ao estado. Ele estabeleceu contatos com sindicalistas,

agentes da Igreja diocesana e freis da ordem dos capuchinhos e foi iniciado o trabalho

de organização de famílias. As duas primeiras ocupações foram feitas em áreas em que

já se sabia estarem destinadas a desapropriação pelo I PNRA no ano de 1987. Precisava-

se criar o clima da possibilidade de vitória20. Até 1989, foram feitas mais oito

ocupações. Considero que neste ano, o MST já havia se estabelecido no estado, pois

além destas ações, conquistou dois assentamentos, viu surgir lideranças do próprio

estado e já havia ganhando certa projeção na imprensa.

Uma das questões que vem norteando nosso trabalho é entender a motivação

do trabalhador sem-terra em entrar em um movimento social. Procuraremos desenvolver

nosso ponto de vista a partir do MST da Bahia. Traremos dois casos de trabalhadoras

que entraram no MST e hoje moram em Assentamentos, D. Eulália e D. Neusa.

Dona Eulália21 nasceu na zona rural do município de Guaratinga. Seu pai tinha

uma pequena terra, onde foram criados todos os filhos. D. Eulália só saiu de lá aos 18

anos quando se casou e foi morar em Minas Gerais. Anos depois, voltou à Bahia, ao

município de Itabela. Ela trabalhava em uma loja na cidade, enquanto seu marido, Seu

André, ficava na roça do sogro, trabalhando na terra. Sobre o desejo dos dois, ela

contou: “A gente tinha vontade de ter uma terra da gente também né”22.

D. Eulália participava de um trabalho em uma Comunidade Eclesial de Base na

periferia de Itabela, organizada por freiras da Congregação das Irmãs de Chamberry.

Até que um dia, uma das freiras, sua amiga, foi em sua casa para lhe convidar para uma

reunião. Na ocasião, conversou com um integrante do MST, Toinzinho, que a chamou

para ocupação dizendo que era a chance dela de conquistar uma terra23.

19 Trataremos do MST também como Movimento, assim como fazem carinhosamente seus membros. 20 Entrevista Ademar Bogo, 11/01/2016.

21Entrevista realizada em 04/01/2016, no Assentamento Riacho das Ostras, município de Prado.

22Entrevista D. Eulália, 04/01/2016.

23Entrevista D. Eulália, 04/01/2016.

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Segundo ela, Toinzinho garantiu que não haveria conflito, pois se tratava de

uma terra desapropriada pelo I PNRA. Como trabalhava na loja, D. Eulália, de imediato,

teve receio de abandonar o emprego. Mas se encarregou de chamar pessoas para

participar de reuniões, no salão da Comunidade Eclesial de Base, com o intuito de

organizar a ocupação. Em seguida, mandou a notícia da ocupação de terra para Seu

André, que estava na fazenda de seu pai, o mesmo decidiu que gostaria de ir. O casal,

então, participou da primeira ocupação do MST na região, mas não ficaram na área. Seu

André participou da segunda ocupação, o Riacho das Ostras, e até hoje o casal reside na

área24.

Já D. Neusa25 morava em Itamaraju com o marido e os filhos. Trabalhava em

uma barraca da feira, onde vendia produtos comprados de pequenos agricultores. Ficou

sabendo do MST na região pela irmã, que estava participando de reuniões e lhe

convidou. Ela participou de encontros preparatórios para a primeira ocupação. No

momento em que as pessoas estavam reunidas para ir à primeira ocupação, D. Neusa

precisou voltar até sua casa e quando retornou não encontrou o grupo, que já havia ido

ocupar a terra.

Ela continuou a participar das reuniões do MST. Em fevereiro de 1988, esteve

presente em uma ocupação na fazenda do deputado estadual, Jaime Mascarenhas. A

ocupação foi duramente reprimida pela polícia, os barracos das famílias destruídos,

pessoas foram agredidas fisicamente e um líder do MST sofreu torturas. No dia 1º de

abril, reocuparam a terra e permaneceram. A data e a experiência da conquista foram tão

emblemáticas que o nome do Assentamento ficou 1º de Abril26.

Relatando a sua decisão de ocupar uma terra, D. Neusa articula sua opção à sua

própria história de vida e a expropriação que seus pais e ela sofreram:

Leonardo - O que que motiva, mesmo diante dessas dificuldades todas,

querer ocupar uma terra e ficar no acampamento?

D. Neusa - Então, é a vontade de ter uma terra pra trabalhar.

Leonardo – Sua mesma.

24 Entrevista D. Eulália, 04/01/2016.

25 Entrevista realizada em 28/06/2015 no Assentamento 1º de Abril, município de Prado.

26 Entrevista D. Neuza, 28/06/2015.

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D. Neusa- Sim. Porque a gente não pode comprar. E inclusive nós

perdemos as nossas. Porque meus pais tinham terra, e aí, os

fazendeiros tomaram na época. Aí a nossa vontade era de retribuir,

né... [risos] Pegar de volta, o que a gente tinha perdido no passado.

Os pais da gente, muitos, na época, morreram porque os fazendeiros

tomaram as terras. E nós acabamos indo pra cidade, mas nossa

vontade era voltar pra terra27.

Percebe-se nos dois casos que o que levou as mulheres a entrarem no MST e

participar de uma ocupação foi a desejo de ter sua própria terra. As duas nasceram na

zona rural, viveram como camponesas, pois seus pais possuíam terras. No caso de D.

Eulália, mesmo tendo ido morar na cidade, a vontade viver no campo estava presente. Já

D. Neusa, expõe que a terra de seus pais foi tomada por fazendeiros, ela enxergou sua

inserção no MST como a possibilidade de dar o troco, retomar o que lhe era de direito.

Considerações Finais

A presença de pessoas da Igreja ao lado dos trabalhadores, seja na luta dos

posseiros ou do MST, parece ser um elemento de conexão entre esses processos. Desde

o final da década de 1970, os trabalhadores enxergavam agentes da Igreja como possível

aliado e em alguns momentos estes assumiram a direção de suas lutas. A ação dos

agentes católicos teve por consequência a eleição de chapas em sindicatos de

trabalhadores rurais do extremo sul, que serviram, depois, como apoio ao

estabelecimento do MST na região.

Os depoimentos e cartas onde podemos “ouvir” as vozes dos trabalhadores nos

permitem perceber o desejo de possuir a própria terra, seja pela necessidade básica de

tirar o alimento dela ou para não cair em uma condição de proletarização. Na verdade, é

possível dizer que os casos analisados são processos de luta camponesa, seja para

resistir ou para ocupar uma terra e estabelecer esse modo de vida. Fernandes, por

exemplo, avalia corretamente que uma das consequências do MST foi recompor parte

27 Entrevista D. Neuza, 28/06/2015.

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do campesinato que fora desgarrado da terra pelas transformações socioeconômicas

ocorridas no mundo agrário brasileiro nas décadas de 1970 e 1980 (FERNANDES,

1999).

Por isso, temos desacordo com a perspectiva de Sigaud (2005), em apontar que

a entrada no MST é mais uma possibilidade de mudar de vida como outra qualquer.

Preocupado em evitar uma interpretação excessivamente politizada que acredita que o

sujeito entra no MST por uma conversão à luta pela terra, a autora deixa escapar os

sentidos sociológicos e antropológicos do problema, ou seja, os trabalhadores estavam

procurando melhorar sua vida através de uma luta de classes para preservar ou

recompor seu modo de vida enquanto classe camponesa.

Referências Bibliográficas

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formação e territorialização do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST

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Fontes

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Filipe, 03/09/1980.

Arquivo da Diocese de Teixeira de Freitas/ Caravelas. Caixa 33: Diocese 1970 a 1982;

Maço Problemas de Terras na Diocese de 1979 a 1981. Carta de Dom Filipe ao

governador Antônio Carlos Magalhães, 29/05/1981.

Arquivo da Diocese de Teixeira de Freitas/ Caravelas. Caixa 33: Diocese 1970 a 1982;

Maço Problemas de Terras na Diocese de 1979 a 1981. Carta de Antônio ao INTERBA,

17/05/1981.

Arquivo da Diocese de Teixeira de Freitas/ Caravelas. Caixa Pastoral da Criança e

Pastoral da Terra 1983 a 1990; Maço Assuntos da Pastoral do Operário 1985. Boletim

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23/11/1985.

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SEDOC/CPT NE III. Caixa Formação Regional. Respostas da Pesquisa, s/d.

SEDOC/CPT NE III. Caixa Formação Regional. Encontros sobre Reforma Agrária, s/d.

Orais:

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Entrevista D. Neuza, 28/06/2015.

Entrevista D. Eulália, 04/01/2016.

Entrevista Ademar Bogo, 11/01/2016.

Entrevista Celso Favero, 16/10/2014.

Entrevista Pedro dos Anjos, 10/01/2016.

Entrevista Frei Chico Scarpellino, 08/01/2016.