Tópoi

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O LUGAR DA INVESTIGAÇÃO DOS TOPOI NA LÍRICA CONTEMPORÂNEA DE LÍNGUA PORTUGUESA: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS. Rafael Campos Quevedo (UFMA) 1 I. O problema norteador desta comunicação diz respeito à possibilidade de se empregar o método da investigação tópica tendo como corpus a lírica contemporânea em língua portuguesa. O problema só pode ser assim formulado uma vez que há uma relativa e aparente incongruência entre o método e o corpus. A razão disso advém do fato de que os chamados topoi na poesia são típicos de uma época (aqui chamada tradicional) em que era não apenas comum, como também recomendável, que o autor empregasse como referência criativa a obra de outros poetas, valendo-se de convenções consagradas e atualizando, conforme sua perícia poética, os lugares-comuns do patrimônio da arte a que se encontrava vinculado. Essa prática perdura até o século XIX quando recebe sua sentença de morte com o movimento romântico, mas é no século XX que ela se encontra, em definitivo, com o seu ocaso. Para fins de exposição do assunto, partirei de uma reflexão sobre os prováveis motivos do relativo esquecimento da investigação tópica para, em seguida, propor argumentos favoráveis à sua validade. Topos, tópico (ou tópica) e lugar-comum, aqui empregados como sinônimos são, no dizer de Segismundo Spina: “uma designação genérica, que compreenderá não apenas os esquemas de pensamento, de sentimento, de atitude, de argumentação, como ainda os próprios esquemas na sua forma estereotipada” (SPINA, 2009, p. 54). Na página seguinte, ao demarcar a diferença entre topos e estereótipo, afirma o autor que este “gira em torno de uma palavra de sentido dominante, que constitui o núcleo de sua formulação” (SPINA, 2009, p. 55) ao passo que, no lugar-comum: “o que verificamos é apenas um conteúdo constante, que também circula, mas não possui uma solução verbal, uma fórmula literária mais ou menos definida” (SPINA, 2009, p. 55). Ainda no mesmo capítulo, traça a fronteira definitiva entre um e outro conceito: “O que 1 Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília e Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Desenvolve pesquisa na área de poesia contemporânea em língua portuguesa. E-mail: [email protected]

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Breve reflexão sobre a presença de tópois na poesia lírica moderna.

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  • O LUGAR DA INVESTIGAO DOS TOPOI NA LRICA CONTEMPORNEA

    DE LNGUA PORTUGUESA: CONSIDERAES METODOLGICAS.

    Rafael Campos Quevedo (UFMA)1

    I.

    O problema norteador desta comunicao diz respeito possibilidade de se

    empregar o mtodo da investigao tpica tendo como corpus a lrica contempornea

    em lngua portuguesa. O problema s pode ser assim formulado uma vez que h uma

    relativa e aparente incongruncia entre o mtodo e o corpus. A razo disso advm do

    fato de que os chamados topoi na poesia so tpicos de uma poca (aqui chamada

    tradicional) em que era no apenas comum, como tambm recomendvel, que o autor

    empregasse como referncia criativa a obra de outros poetas, valendo-se de convenes

    consagradas e atualizando, conforme sua percia potica, os lugares-comuns do

    patrimnio da arte a que se encontrava vinculado. Essa prtica perdura at o sculo XIX

    quando recebe sua sentena de morte com o movimento romntico, mas no sculo XX

    que ela se encontra, em definitivo, com o seu ocaso. Para fins de exposio do assunto,

    partirei de uma reflexo sobre os provveis motivos do relativo esquecimento da

    investigao tpica para, em seguida, propor argumentos favorveis sua validade.

    Topos, tpico (ou tpica) e lugar-comum, aqui empregados como sinnimos so,

    no dizer de Segismundo Spina: uma designao genrica, que compreender no

    apenas os esquemas de pensamento, de sentimento, de atitude, de argumentao, como

    ainda os prprios esquemas na sua forma estereotipada (SPINA, 2009, p. 54). Na

    pgina seguinte, ao demarcar a diferena entre topos e esteretipo, afirma o autor que

    este gira em torno de uma palavra de sentido dominante, que constitui o ncleo de sua

    formulao (SPINA, 2009, p. 55) ao passo que, no lugar-comum: o que verificamos

    apenas um contedo constante, que tambm circula, mas no possui uma soluo

    verbal, uma frmula literria mais ou menos definida (SPINA, 2009, p. 55). Ainda no

    mesmo captulo, traa a fronteira definitiva entre um e outro conceito: O que 1 Doutor em Literatura pela Universidade de Braslia e Professor do Departamento de Letras da

    Universidade Federal do Maranho. Desenvolve pesquisa na rea de poesia contempornea em lngua

    portuguesa. E-mail: [email protected]

  • caracteriza o lugar-comum apenas o assunto, o contedo; o que caracteriza o

    esteretipo no s o contedo, mas ainda a sua estrutura lingustica (SPINA, 2009, p.

    56).

    A obra de onde foram extrados os fragmentos acima intitula-se Do formalismo

    esttico trovadoresco e dedicada inteiramente produo potica medieval. Somente

    esse fator j suficiente para tornar legtima a adoo da metodologia da abordagem da

    tpica potica se se leva em considerao o fato de que, no perodo em questo (ou mais

    propriamente na poca que vai da Antiguidade ao Romantismo), a produo de poesia

    era marcada pela mais ou menos disciplinada obedincia a convenes e frmulas

    consagradas, razo pela qual a repetio de contedos ou formas de expresso de um

    poema para o outro no constitua, em si mesmo, um demrito do autor, mas, s vezes,

    era a prpria exibio de sua qualidade como poeta. Nas palavras de Roberto Brando:

    O fato de o poeta deixar transparecer suas fontes, o que a muitos crticos do

    passado pareceu plgio, revela um aspecto prprio do modo tradicional como cada poeta se relacionava com seus antecessores, especialmente

    aqueles j canonizados pela opinio. Era antes uma homenagem e um

    atestado de bons antecedentes poticos, que o poeta fazia questo de expor.

    (BRANDO, 2001, p.13)

    Com a campanha movida pelo Romantismo em nome da deposio do princpio

    clssico da imitao artstica e pelo coroamento de uma poesia como expresso da

    individualidade do poeta, a circulao dos topoi sofre, inevitavelmente, forte abalo, uma

    vez que certas convenes deixam de ter o status que possuam na lrica tradicional e

    passam a ser vistas como artifcios e entraves plena fluidez da vazo sentimental, cujo

    desaguadouro deveria ser o prprio poema. Dois documentos tpicos dessa nova

    mentalidade na lrica brasileira so os prefcios de Gonalves de Magalhes e

    Gonalves Dias aos seus Suspiros poticos e saudades (1836) e Primeiros cantos

    (1846), respectivamente. Os trechos abaixo, dos dois poetas mencionados, ilustram a

    nova tomada de posio:

    At aqui, como s se procurava fazer uma obra segundo a Arte, imitar era o

    meio indicado: fingida era a inspirao, e artificial o entusiasmo.

    Desprezavam os poetas a considerao se a Mitologia podia, ou no, influir

    sobre ns. [...] como se pudesse parecer belo quem achasse algum velho

    manto grego, e com ele se cobrisse. Antigos e safados ornamentos, de que

    todos se servem, a ningum honram! (MAGALHES, 1981, p. 40)

    Muitas delas [das poesias] no tm uniformidade nas estrofes, porque

    menosprezo regras de mera conveno; adotei todos os ritmos da

  • metrificao portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor

    com o que eu pretendia exprimir. (DIAS, 1981, p. 44)

    Declaraes como as citadas acima, embora tenham as convenes clssicas, as

    aluses mitologia, os ritmos e as regras de versificao como alvos visados, tambm

    se estendem aos lugares-comuns da tradio, uma vez que o fundamento do ataque o

    alegado engessamento da livre expresso individual, pelas quais tais convenes

    supostamente seriam responsveis.

    Nesse particular, a situao da lrica no sculo XX no apresenta uma negao

    das reivindicaes romnticas, sobretudo se considerarmos o sculo em questo como a

    era da instaurao da tradio da ruptura, expresso cunhada por Octavio Paz para

    caracterizar uma poca em que a negao do passado em nome da afirmao da

    novidade se afigura como o prprio modo de ser artstico, a mola propulsora das

    realizaes no mbito da arte. Relao semelhante pode ser encontrada no seminal A

    estrutura da lrica moderna de Hugo Friedrich, para quem a poesia moderna um

    Romantismo desromantizado (FRIEDRICH, 1978, p. 30), expresso que tem em

    comum com a tradio da ruptura de Paz, alm do paradoxo que elas encerram, o fato

    de flagrarem, na modernidade, a persistncia da concepo romntica de arte.

    Assim encarada, a relativa soluo de continuidade existente entre romantismo e

    modernidade parece atentar diretamente contra a viabilidade de uma leitura da lrica do

    sculo XIX at os nossos dias pelo vis do estudo dos topoi poticos, uma vez que tudo

    converge para a derrocada da tradio e isso, em princpio, implica na varredura de seus

    contedos e frmulas lingusticas.

    Este breve panorama encerra, portanto, a primeira parte desta exposio,

    destinada a apresentar os acontecimentos que tiveram impacto direto no relativo

    esquecimento da anlise tpica. Parto para o segundo momento da discusso, agora

    acerca da legitimidade da anlise dos topoi tendo como corpus a produo lrica

    contempornea.

    II.

    Primeiramente penso ser necessrio considerar a impossibilidade (ao que me

    parece, lgica) de haver uma produo potica totalmente isenta de seus lugares

    comuns, ainda que dentro de uma conjuntura radicalmente oposta da tradio clssica.

  • Mesmo se considerarmos as afirmaes em tom vanguardista avant la lettre de Dias e

    Magalhes, que nenhuma ordem dever mais ser seguida pelos poetas, o prprio decreto

    da absoluta ausncia de ordem j poderia sinalizar, sintomaticamente at, para a

    emergncia germinal de uma nova tpica, atuante na lrica contempornea, que seria

    aquela segundo a qual a poesia nasceria a cada vez que um poema produzido, como

    alguns poemas metalingusticos modernos sugerem. Assim, ainda na esteira de Spina,

    interessante lembrar que Todos os movimentos literrios criam as suas categorias,

    estilsticas, valores estticos elementares, temas e motivos, que, atravs da experincia

    da prpria gerao, sobretudo no domnio da poesia, vo buscando uma estabilidade

    expressional, uma vitrificao verbal (SPINA, 2009, p. 50). Talvez fosse o caso,

    portanto, de se pensar se o paradigma da dissonncia, to pormenorizadamente estudado

    por Friedrich em obra j citada, no estaria em vias de vitrificao nesses mais de dois

    sculos de existncia. Em suma: a possibilidade de pensarmos numa tradio de ndole

    romntica no nada absurda e talvez o prprio recenseamento de seus topoi

    recorrentes possa informar muito a respeito2

    Voltar o olhar sobre a lrica contempornea se valendo da anlise tpica requer

    um ajuste dessa metodologia no seguinte aspecto: estaria fora do escopo do pesquisador

    a tarefa de rastrear as fontes e as influncias de onde determinado poeta pudesse ter

    haurido determinado topos. J no se trata mais, como na obra mxima de referncia

    desse mtodo, o Literatura europeia e Idade Mdia latina, de Ernst Robert Curtius, de

    identificar uma unidade, qualquer que seja, entre a poesia de hoje e a do passado, j que

    se parte, agora, da considerao aceita da descontinuidade da tradio.

    Tal reajuste metodolgico proposto para a investigao tpica representa outro

    enquadramento da questo na medida em que a primazia das relaes de influncia e

    transmisso cultural cede lugar noo de dilogo intertextual. Em termos tericos, a

    categoria de dilogo no exige, como condio operatria, o pertencimento das obras

    que compem o corpus analisado a uma mesma tradio, regida pelos mesmos valores

    formadores. Para efeito de ilustrao tome-se o exemplo da tpica da mquina do

    2 Ainda tomando como exemplos casos da literatura de lngua portuguesa, interessante atentar para a

    explanao feita por Graa Aranha na conferncia de abertura da Semana de 1922. Com o propsito de

    legitimar e apresentar os fundamentos da modernidade artstica (presente nas obras expostas no referido

    evento), o escritor maranhense vincula o advento da esttica moderna ao movimento romntico sugerindo

    uma soluo de continuidade entre os dois momentos literrios.

  • mundo. O poeta vanguardista Haroldo de Campos e o mineiro Carlos Drummond de

    Andrade dedicaram poemas a esse topos clssico presente em Cames e Dante.

    Contudo, a produo dos dois poetas do sculo XX no pode ser diretamente conectada

    mesma corrente da poesia tradicional que abriga o autor de Os lusadas e o da Divina

    comdia, ainda que estes tenham sido poetas possivelmente admirados pelos autores

    brasileiros em questo. Ocorre que tanto a obra de Haroldo quanto a de Drummond no

    so representativas de uma legtima soluo de continuidade da tradio clssica e nem

    a ela est ligada por uma relao de influncia, imitao ou algo equivalente, razo pela

    qual a atualizao da tpica antiga deve ser observada, nesse caso, pelo prisma do

    dilogo intertextual, relao essa possvel entre obras de quaisquer quadrantes temporal

    e espacial.

    Mais do que isso, o estudo das recorrncias dos lugares-comuns do passado em

    obras lricas atuais constitui um fecundo meio de compreenso acerca da prpria noo

    de contemporneo e das relaes da poesia com as questes de sua poca. Tento

    explicar essa afirmao. Se admitirmos como vlida a explicao acerca do que ser

    contemporneo fornecida por Giorgio Agambem em seu ensaio O que o

    contemporneo, cito:

    Pertence verdadeiramente ao seu tempo, verdadeiramente contemporneo,

    aquele que no coincide perfeitamente com este, nem est adequado s suas

    pretenses e , portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,

    exatamente atravs desse deslocamento e desse anacronismo, ele capaz,

    mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN,

    2009, 58-59 pp.)

    Ou seja, se admitimos, como disse, tal explicao sobre o contemporneo, e ainda, se

    reconhecemos por conseguinte, que certa inadequao e certa inatualidade so

    inerentes aos topoi da lrica, parece inevitvel a concluso de que a presena de um

    topos tradicional num poema lrico atual ou, mais propriamente, a atualizao feita por

    um poeta do sculo XXI de um lugar-comum do passado, pode ser algo bastante

    revelador acerca do prprio contemporneo, justamente pelo deslocamento e

    anacronismo implicados na revitalizao do topos3.

    3 As seguintes palavras de Donizete Antonio Pires enquadram bem a questo: O fato revela no apenas a relao conflituosa ou no do poeta com os precursores, mas tambm o modo como dado momento histrico-cultural recebeu a vasta herana desses precursores, problematizando-a sob diferentes ngulos. (PIRES, p. 19)

  • Os tpicos nascem como frutos de circunstncias histricas ou morais;

    continuam a circular pela literatura, independentes da existncia das

    circunstancias geradoras. O que flutua, pois, o nexo entre o tpico e a

    realidade histrica ou moral que o justifica. Logo, o tpico pode explicar-se

    como mero expediente literrio, recurso expressivo; ou pode acumular os

    dois valores, isto , ser tambm a representao de uma conjuntura histrica,

    de uma posio moral do poeta perante a realidade. (SPINA, 2009, p. 203)

    Fugindo um pouco do mbito estritamente terico dessas consideraes e

    partindo para a apreciao de um poema contemporneo a fim de tornar mais palpvel o

    argumento, observemos o seguinte poema de Nelson Ascher presente em seu livro Parte

    alguma:

    Horas, dias, anos

    Nem a ave-bala que, perdida

    porm certeira, voe secreta-

    mente, nem, quando cruza a reta

    final, um carro de corrida

    passam mais rpido que a vida

    til de algum cuja obsoleta

    doutrina nem sequer o inquieta

    se chega a um beco sem sada.

    Moscou tocou-se e voc no?

    Voc s vai entrar em frias

    caso persista em seus enganos.

    As horas nunca o perdoaro:

    horas que esto limando os dias,

    Dias que esto roendo os anos. (ASCHER,2005, p.14)

    O soneto de Ascher atualiza o topos da efemeridade da vida numa clave histrica

    peculiar que tem como moldura o contexto da derrocada das utopias, em especial a que

    se refere ao socialismo. O poema uma admoestao (v. 9), por parte do sujeito lrico, a

    algum ainda aferrado a um ideal supostamente obsoleto (vv. 6-7). O tempo

    dimensionado historicamente enquanto marcha da Histria e cruzado com a clave

    existencial que o topos originalmente carrega (v.12) (existencial aqui empregado como

    experincia da pequenez do indivduo frente magnitude assoladora do tempo). As duas

    quadras do soneto exibem marcas indicativas de um modo de representao do tempo

    que passou a nos ser familiar a partir do sculo XX. Refiro-me, em especial, s

    referncias ao carro de corrida e bala, expresses que aludem aos manifestos futuristas

    (no que diz respeito ao elogio guerra e exaltao da velocidade do automvel) e, por

  • extenso, lgica vanguardista em geral, cujas implicaes, entre as quais o fetiche da

    novidade e a radicalidade das rupturas, ditaram o tom e o modo de ser de parte da arte

    do sculo XX.

    O fato que poetas contemporneos de lngua portuguesa no se abstiveram em

    se apropriar de vrios dos topoi da tradio (fugacidade da vida, carpe diem, exegi

    monumentum4 so alguns dos presentes apenas no livro de Nelson Ascher), em alguns

    casos movidos por explcita inteno pardica e, em outros, talvez por uma topada no

    topos, o que se explicaria pelo fato de tais topoi serem formulaes para um motivo que

    mantm com a experincia humana uma ntima e universal relao. Se concordarmos

    com uma definio de lrica como o gnero da interioridade por excelncia (espao

    ntimo da comunicao, na definio de Frye citada por Achcar), esta jamais poder

    deixar de fornecer formulaes a esse motivo. Assim, mesmo o poeta mais

    desconhecedor da tradio ir topar com esse topos, para usar aqui o jogo de palavras

    praticado por Affonso Romano de Santanna em um poema que trata da conscincia do

    topos que , em si mesmo, um topos:

    Forma melhor de escrever ler e ler nos outros

    o que pensamos ser s nosso e de tantos, h tanto,

    que nada de novo existe, topos com que topo eu,

    lugar-comum de tantos tipos que me reescreveram.

    (SANTANNA, 1999, p. 107)

    Gostaria, para finalizar, de trazer tona uma sugesto implcita no trecho citado

    do poema de Santanna, que pode muito bem ser transformada em argumento a favor da

    produtividade da anlise tpica aplicada poesia contempornea. No trecho citado, o eu

    lrico revela uma conscincia do lugar-comum do nada de novo existe e reconhece a

    fecundidade do contato com a poesia do passado como forma de se nutrir poeticamente

    (Forma melhor de escrever ler e ler nos outros). Consideremos, contudo, um caso

    diverso de se topar com o topos que seria aquele no motivado por uma deliberao

    consciente do poeta, mas sim pelo acaso: o poeta, pensando estar a expressar algo

    proveniente de sua elaborao pessoal, esbarraria num lugar-comum consagrado pela

    tradio. possvel que tal possibilidade no fosse acatada pelo comparatismo tpico

    4 Ergui um monumento mais duradouro que o bronze/mais alto que a rgia construo das pirmides/que

    nem a voraz chuva, nem o impetuoso vento do norte,/nem a inumervel srie dos anos,/nem a fuga do

    tempo podero destruir (Horcio - traduo de Pedro Maciel)

  • tradicional como um caso vlido, dada, por exemplo, a ressalva de Spina com relao ao

    trabalho de Curtius com relao ao perigo de se confundir continuidade histrica com

    poligenesia literria. E tal perspectiva, o topos representaria os elos, as articulaes da

    cadeia de uma continuidade cultural. O caso da poligenesia se explicaria, ao contrrio,

    pela coincidncia de condies culturais similares que gerariam expresses literrias

    anlogas, sem qualquer contato entre as culturas envolvidas. Pelo ajuste metodolgico

    aqui proposto, tal risco, embora ainda existente, passaria a ser relativizado no seguinte

    sentido: se substitumos o pressuposto da continuidade histrica pelo de dilogo,

    noo perfeitamente cabvel, como j foi observado, para casos culturalmente distantes,

    passa a ser possvel o cotejo entre um poema contemporneo e outro de poca diversa,

    desde que certo esquema de pensamento (que caracteriza o topos) e/ou certas frmulas

    lingusticas anlogas (que caracterizam o esteretipo) se comprovem efetivamente

    correspondentes.

    O fundamento ltimo desse argumento estaria amparado, a meu ver, e sem

    qualquer temor de incorrer em essencialismo, em algo que constitutivo do gnero

    lrico tal como ficou mencionado, de passagem, em um momento anterior desta

    exposio. Trata-se da concepo segunda a qual, em ltima instncia, a lrica lidaria

    com um vasto, porm finito, repertrio de motivos, os quais possuem ligaes muito

    profundas com o mbito da experincia humana (o tempo, a morte, o amor etc.). Toda a

    histria da poesia seria, por fim, um grande mostrurio de inmeras variaes desses

    motivos, como sugere a seguinte citao do poeta romano Tertuliano: multicolor, de

    vrias cores, versicolor, nunca a mesma, mas sempre outra, embora sempre a mesma

    quando outra, tantas vezes enfim mudando-se quantas movendo-se.

    Referncias:

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