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Tomi Adeyemi Filhos de Sangue e Osso Tradução Catarina F. Almeida

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Tomi Adeyemi

Filhos de Sangue e Osso

TraduçãoCatarina F. Almeida

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Para a minha mãe e para o meu pai,que sacrificaram tudo para me dar esta oportunidade

&Para Jackson,

que acreditou em mim e nesta história muito antes de eu acreditar

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Orixá

ChândombléTemplo lendário na Selva

Funmilayo

GombeCidade que foi base militar

IkoyiCidade costeira

IlorinCidade destruída

JimetaCidade de perigosa,

povoada por bandidos

KadunaIlha no mar Lokoja

LagosCidade principal

MinasSituadas em Calabrar

MinnaTerra de agricultores

Palácio Real

Situado em Lagos

Sokoto

Pequena povoação

Templo Sagrado

Próximo de Jimeta

WarriUma pequena aldeia

perto do litoral

ZariaCidade de comerciantes

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Os clãs Maji

Clã AIYEMAJI DO FERRO E DA TERRA

Título Maji: TRITURADOR + SOLDADORDivindade: ÒGÚN

Clã ÌMÓLÈMAJI DA TREVA E DA LUZ

Título Maji: ILUMINADORDivindade: OCHUMARE

Clã ÌWÒSÀNMAJI DA SAÚDE E DA DOENÇA

Título Maji: CURANDEIRO + CANCRODivindade: BABALÚAYÉ

Clã ARÍRANMAJI DO TEMPOTítulo Maji: VIDENTE

Divindade: ORÚNMILA

Clã ERANKOMAJI DOS ANIMAISTítulo Maji: DOMADOR

Divindade: OXOSI

Clã IKÚMAJI DA VIDA E DA MORTE

Título Maji: CEIFEIRODivindade: OYA

Clã ÈMÍMAJI DA MENTE, DO ESPÍRITO E DOS SONHOS

Título Maji: SENHOR DA MENTEDivindade: ORÍ

Clã OMIMAJI DA ÁGUA

Título Maji: SENHOR DAS MARÉSDivindade: YEMOJA

Clã INÁMAJI DO FOGO

Título Maji: INCINERADORDivindade: SÀNGÓ

Clã AFÉFÉMAJI DO AR

Título Maji: SENHOR DOS VENTOSDivindade: AYAO

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Clã AIYEMAJI DO FERRO E DA TERRA

Título Maji: TRITURADOR + SOLDADORDivindade: ÒGÚN

Clã ÌMÓLÈMAJI DA TREVA E DA LUZ

Título Maji: ILUMINADORDivindade: OCHUMARE

Clã ÌWÒSÀNMAJI DA SAÚDE E DA DOENÇA

Título Maji: CURANDEIRO + CANCRODivindade: BABALÚAYÉ

Clã ARÍRANMAJI DO TEMPOTítulo Maji: VIDENTE

Divindade: ORÚNMILA

Clã ERANKOMAJI DOS ANIMAISTítulo Maji: DOMADOR

Divindade: OXOSI

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Tento não pensar nela.Mas, quando penso, lembro-me do arroz.Quando a minha mãe estava em casa, a cabana cheirava sem-

pre a arroz jollof.Penso na sua pele escura, que brilhava como o sol de Verão,

e no seu sorriso, que dava uma nova vida a Baba. Penso no seu cabelo branco, que se frisava e encaracolava, uma coroa indomável respirando e medrando.

Ouço os mitos de que ela me falava à noite. O riso de Tzain quando jogavam Agbön no parque.

Os gritos do Baba quando os soldados lhe puseram uma cor-rente à volta do pescoço. Os gritos dela quando a arrastaram para dentro da escuridão.

Os encantamentos que jorraram da sua boca, como lava.A magia da morte que a afastou do caminho.Penso no seu cadáver, pendurado naquela árvore.Penso no rei que a levou.

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Capítulo 1

Escolhe-me a mim.Mal consigo impedir‑me de gritar. Enterro as unhas na madeira de

marula de que é feito o meu bordão e aperto‑o para não dar sinais de impa‑ciência. Sinto gotas de suor a pingarem‑me pelas costas, mas não sei se se devem ao calor prematuro da madrugada ou à força do meu coração, a bater‑me no peito. Lua após lua, fui preterida.

Hoje, isso não pode repetir‑se.Entalo um caracol de cabelo cor de neve atrás da orelha e esforço‑me

por ficar quieta. Como sempre, a Mãe Agba faz a sua escolha com um ar severo, fitando cada uma de nós até nos fazer estremecer.

Franze as sobrancelhas, concentrada, e as rugas da sua cabeça rapada acentuam‑se. Com a pele castanho‑escura e o cafetã de cores esbatidas, seria fácil confundi‑la com qualquer outra anciã da aldeia. Nada na sua aparência nos diz que uma mulher da sua idade pode ser tão letal.

– Hum. – Yemi pigarreia na frente do ahéré, um sinal não muito subtil de que já passou este teste. Faz‑nos um sorriso de troça enquanto gira o seu cajado, esculpido à mão, ansiosa por saber qual de nós irá derrotar no confronto de graduação. A maior parte das raparigas teme a perspectiva de enfrentar Yemi. Hoje, eu anseio por ela. Pratiquei e sinto que estou pronta.

Sei que consigo vencê‑la.– Zélie.A voz envelhecida da Mãe Agba atravessa o silêncio. As outras quinze

raparigas que não foram escolhidas expiram em uníssono. O nome ressalta nas paredes de juncos entretecidos do ahéré até eu tomar consciência de que foi a mim que a Mãe Agba chamou.

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– A sério?Ela faz um estalido com os lábios.– Posso escolher outra pessoa…– Não! – Ponho‑me de pé num salto trôpego e faço uma vénia apres‑

sada. – Obrigada, Mãe. Estou pronta.O mar de rostos castanhos separa‑se e atravesso a multidão. A cada

passo que dou, concentro‑me nos meus pés nus e no modo como os arrasto pelo chão de juncos da cabana da Mãe Agba, testando o atrito de que vou precisar para ganhar este confronto e enfim completar a minha formação.

Quando chego ao tapete preto que delimita a arena, Yemi é a primeira a baixar‑se numa vénia. Fica à espera que eu faça o mesmo, mas o seu olhar só desperta o fogo que trago dentro de mim. Não há respeito no gesto, nem a promessa de um combate justo. Está convencida de que, como eu sou uma divîner, estou abaixo dela.

E acha que eu vou perder.– Inclina-te, Zélie. – Embora o aviso seja evidente na voz da Mãe Agba,

não consigo obrigar‑me ao movimento. Àquela distância, o voluptuoso cabelo preto de Yemi enche‑me a vista, assim como a sua pele castanha, tom de casca de coco, muito mais clara do que a minha. A tez de Yemi é desse tom castanho‑claro dos habitantes de Orixá que nunca passaram um único dia a trabalhar ao sol, uma vida privilegiada que o dinheiro de um pai que ela nunca conheceu pôde comprar. Um nobre qualquer que, por vergonha, desterrou a sua filha bastarda na nossa aldeia.

Lanço os ombros para trás e espeto o peito em frente, endireitando as costas em vez de curvar‑me. As feições de Yemi destacam‑se no meio da multidão de divîners adornadas com cabelos cor de neve. Divîners que já foram forçadas a vergar‑se, uma e outra vez, perante aqueles que têm a apa‑rência de Yemi.

– Zélie, não me obrigues a repetir a ordem.– Mas, Mãe…– Inclina‑te ou abandona a arena! Estás a fazer‑nos perder tempo.Sem alternativa, cerro os dentes e curvo‑me numa vénia, fazendo nascer

nos lábios de Yemi o seu insuportável sorriso de troça.– Foi assim tão difícil? – Yemi torna a inclinar‑se numa vénia, jogando

pelo seguro. – Se vais perder, ao menos perde com honra.Risinhos abafados rebentam no meio das raparigas, logo silenciados

pelo aceno crispado da mão da Mãe Agba. Lanço‑lhes um olhar furioso, antes de concentrar‑me na minha adversária.

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Vamos ver quem se põe aos risinhos quando eu vencer.– Assumam os vossos lugares.Recuamos até ao limite do tapete e, com um pontapé, levantamos os

nossos bordões do chão. O esgar de desdém de Yemi desaparece e os seus olhos semicerram‑se. O seu instinto homicida assume a dianteira.

Olhamo‑nos de cima a baixo, à espera do sinal. Por momentos, temo que a Mãe Agba prolongue a espera para sempre, até ouvir, enfim, o seu grito.

– Comecem!De imediato, vejo‑me à defesa.Antes de eu pensar em desferir o primeiro golpe, Yemi chicoteia o ar em

seu redor com a velocidade de uma chitanaire. Tão depressa o bordão lhe rodopia em torno da cabeça como se lança direito ao meu pescoço. Atrás de mim, as raparigas sustêm a respiração, mas o meu coração não pára.

Yemi até pode ser rápida, mas eu sou mais rápida ainda.Quando o bordão se aproxima, arqueio as costas até aos limites do pos‑

sível, desviando‑me da investida. Ainda estou arqueada quando Yemi volta a atacar, desta vez desferindo um golpe com a força de uma rapariga com o dobro do seu tamanho.

Salto para o lado, rebolando pelo tapete no preciso momento em que o seu bordão embate no chão de junco. Yemi recua para voltar a atacar e eu tento recuperar o pé.

– Zélie – avisa a Mãe Agba, mas eu não preciso da sua ajuda. Num movimento fluido, levanto‑me e lanço o bordão para cima, bloqueando o golpe de Yemi.

Os nossos bordões colidem com estrondo. As paredes de junco estre‑mecem. A minha arma ainda não parou de reverberar quando Yemi rodopia para me desferir um golpe contra os joelhos.

Avanço uma perna e lanço os braços para trás para ganhar balanço, fazendo a roda suspensa no ar. Ao saltar por cima do seu bordão estendido, vejo a minha primeira abertura – a oportunidade de passar à ofensiva.

– Ui! – resmungo, usando o balanço do salto para lançar o ataque. Vamos lá…

O bordão de Yemi embate no meu, travando o ataque antes mesmo de este começar.

– Paciência, Zélie – grita a Mãe Agba. – Não é a tua vez de atacares. Observa. Reage. Espera pelo golpe da tua adversária.

Reprimo o meu desabafo, mas aquiesço, recuando com o bordão. Terás a tua oportunidade, digo para comigo. Espera pela tua ve…

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– É isso mesmo, Zél. – Yemi baixa a voz para que só eu consiga ouvi‑la. – Ouve a Mãe Agba. E porta‑te como o bom Verme que és.

Ei‑la.A palavra.A ofensa degradante.Sussurrada sem um pingo de consciência. Embrulhada naquele arro‑

gante sorriso de troça.Perdendo todo o controlo, lanço o bordão para a frente, a um fio de

cabelo do ventre de Yemi. À conta disto, apanharei mais tarde uma daquelas infames tareias da Mãe Agba, mas a centelha de medo nos olhos de Yemi já fez com que valesse a pena.

– Ei! – Embora se vire para a Mãe Agba, em busca da sua intervenção, Yemi não tem tempo para se queixar. Rodo o meu bordão com uma velo‑cidade que faz com que os seus olhos se dilatem antes de poder lançar o contra‑ataque.

– Não é este o exercício! – guincha Yemi, saltando para evitar o golpe que desferi contra os seus joelhos. – Mãe…

– Será que ela tem de lutar por ti? – pergunto, com uma risada. – Vamos lá, Yem. Se vais perder, perde com honra!

A raiva acende‑se nos olhos de Yemi como nos de uma leonaire com cornos de touro pronta para saltar. E ela aperta o cabo do bordão com uma força vingativa.

É aqui que a verdadeira luta começa.As paredes do ahéré da Mãe Agba começam a zunir com a força do

embate repetido dos nossos bordões. Trocamos golpes à procura de uma brecha, da oportunidade de lançar o ataque definitivo. Vejo‑a quando…

– Ui!Tropeço para trás e curvo‑me, sentindo o ar a fugir‑me dos pulmões e

a náusea a subir‑me à garganta. Por momentos, receio que Yemi me tenha partido as costelas, mas a dor que sinto no ventre sufoca o medo.

– Alto…– Não! – interrompo a Mãe Agba, com uma voz roufenha. Obrigo os

meus pulmões a encherem‑se de ar e amparo‑me no bordão para me erguer e endireitar as costas. – Estou bem.

Ainda não acabei.– Zélie… –  diz‑me a Mãe, mas Yemi não espera que ela termine a

frase. Avança contra mim com uma fúria cega, o bordão à distância de um dedo da minha cabeça. Quando recua para atacar, rodopio para longe do

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seu alcance. Antes que ela possa voltar a girar, chicoteio o ar com o meu cajado, espetando‑lho no esterno.

– Ah! – arqueja Yemi. O seu rosto contorce‑se de dor e de choque quando é lançada para trás pela força do meu golpe. Nunca foi atingida numa das aulas da Mãe Agba. Não conhece a sensação.

Sem esperar que Yemi recupere, rodopio e atinjo‑a no estômago. Preparo‑me para desferir o golpe final quando os lençóis castanho‑aver‑melhados que cobrem a entrada do ahéré se abrem como num golpe de vento.

Bisi entra de rompante, com o cabelo branco a esvoaçar. O  seu pequeno peito trepida e os olhos fixam‑se nos da Mãe Agba.

– O que foi? – pergunta‑lhe a Mãe.Os olhos de Bisi enchem‑se de lágrimas.– Desculpe – geme –, adormeci, eu… eu não estava…– Desembucha, criança!– Eles vêm aí! – exclama Bisi, por fim. – Estão perto, já estão quase

aqui!Por momentos, não consigo respirar. Creio que ninguém consegue.

O medo paralisa‑nos dos pés à cabeça.Depois, o instinto de sobrevivência assume o comando.– Rápido – silva a Mãe Agba. – Não temos muito tempo!Estendo a mão para ajudar Yemi a levantar‑se. Ainda está ofegante,

mas não tenho tempo de confirmar se está bem. Agarro no seu bordão e vou a correr recolher os outros.

O ahéré irrompe numa névoa de caos quando todos correm a esconder a verdade. Metros e metros de tecidos de cores brilhantes voam pelo ar. Ergue‑se um exército de manequins de junco. Com tanta coisa a aconte‑cer no mesmo instante, não há como saber se teremos tempo para escon‑der tudo. Resta‑me concentrar‑me na tarefa entre mãos: meter todos os bordões por baixo do tapete da arena, para que não se vejam.

Quando termino, Yemi põe‑me uma agulha de madeira nas mãos. Ainda estou a correr na direcção do meu posto quando os lençóis que cobrem a entrada do ahéré se abrem de novo.

– Zélie! – vocifera a Mãe Agba.Paraliso. Todos os olhares no interior do ahéré se viram para mim.

Antes de eu conseguir articular uma palavra que seja, a Mãe Agba dá‑me um estalo na nuca; sinto o choro a percorrer‑me as costas, como uma ferroada.

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– Fica no teu posto – diz‑me, com aspereza. – Bem precisas de praticar.– Mãe Agba, eu…Inclina‑se para mim enquanto o meu coração dispara, e a verdade brilha

nos seus olhos.Uma distracção…Uma forma de conseguirmos mais tempo.– Desculpe, Mãe Agba. Perdoe‑me.– Volta para o teu posto.Mordo os lábios para reprimir um sorriso e inclino a cabeça num gesto

apologético, baixando‑me o suficiente para inspeccionar os guardas que acabaram de entrar. Tal como a maior parte dos soldados de Orixá, o mais baixo dos dois possui um tom de pele como o de Yemi: castanho, da cor do couro coçado, emoldurado por um cabelo preto e denso. Apesar de sermos um grupo de jovens raparigas, o soldado conserva a mão sobre o punho da espada. E esta mão cerra‑se em torno da arma como se, a qual‑quer momento, uma de nós pudesse atacar.

O outro guarda é alto, tem um ar solene e sisudo e uma pele muito mais escura do que a do seu companheiro. Permanece junto da entrada, de olhos postos no chão. Talvez tenha a decência de sentir vergonha do que quer que eles se preparam para fazer.

Ambos exibem o brasão do rei Saran, em relevo nos peitorais de ferro. Basta‑me olhar de relance para o ornamento do leopardaire das neves, súbita recordação do monarca que os enviou, para sentir um aperto no estômago.

Finjo voltar a concentrar‑me, amuada, no meu manequim de juncos, com as pernas a tremer de alívio. O que antes se parecia com uma arena é agora o cenário convincente de um atelier de costura. Tecidos tribais de cores vivas adornam os manequins à frente de cada rapariga, cortados e presos com alfinetes de acordo com os padrões da autoria da Mãe Agba. Cosemos as bainhas dos mesmos dashikis que costuramos há anos, traba‑lhando em silêncio enquanto esperamos que os guardas se retirem.

A Mãe Agba percorre de uma ponta à outra os corredores de raparigas, inspeccionando o trabalho das suas aprendizas. Apesar do meu nervosismo, não consigo deixar de sorrir ao vê‑la fazer os soldados esperar, recusando‑se a reconhecer a sua presença indesejada.

– Posso ajudar‑vos? – pergunta‑lhes, por fim.– Está na hora de pagar os seus impostos – resmunga o guarda mais

escuro. – Pague.

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No rosto da Mãe Agba, a temperatura cai como o calor quando anoitece.– Paguei os meus impostos a semana passada.– Não é o imposto sobre o comércio. – Os olhos do outro guarda pas‑

sam a pente fino todas as divîners com compridos cabelos brancos. – Os impostos sobre os Vermes subiram. Como tem muitos, os seus impostos também subiram.

Naturalmente. Agarro no tecido do meu manequim com tanta força que me doem os pulsos. O rei não se contenta em subjugar os divîners. Tem de vergar todos aqueles que procuram ajudar‑nos.

Cerro os dentes e tento esquecer o soldado, tento esquecer o modo como a palavra verme lhe ardeu nos lábios. Não interessa que nunca nos transformemos nos maji que estávamos destinados a ser. Aos olhos deles, seremos sempre vermes.

Para além disso, nunca verão mais nada.A boca da Mãe Agba cerra‑se numa fina linha. Ela não tem onde ir bus‑

car esse dinheiro.– Vocês já vieram cobrar o imposto sobre os divîners no ciclo lunar que

passou – argumenta. – E no outro, antes desse.O guarda mais leve dá um passo em frente, de mão na arma, pronto a

repreender o primeiro sinal de rebeldia.– Talvez não devesse envolver‑se com Vermes.– Talvez vocês devessem parar de roubar‑nos.As palavras fogem‑me da boca antes que eu consiga reprimi‑las.

A  cabana em peso sustém a respiração. A  Mãe Agba endurece, gelada, os seus olhos negros suplicando‑me que não diga mais nada.

– Os divîners não estão a ganhar mais dinheiro. De onde esperam que venha o pagamento destes novos impostos? – pergunto. – Não podem estar sempre a aumentá‑los. Se continuarem a aumentá‑los, nós não conseguire‑mos pagar!

O guarda aproxima‑se de mim de uma forma tão pausada que me faz ansiar pelo meu cajado. Com o golpe certo, eu até conseguia pô‑lo no chão; com a estocada certa, talvez lhe esmagasse o pescoço.

Pela primeira vez, porém, dou‑me conta de que a espada que ele traz consigo não é uma arma comum. A sua lâmina preta cintila por dentro da bainha, um metal mais precioso do que o ouro.

Majacite…Uma liga usada para o fabrico de armas e forjada pelo rei Saran antes do

Raide. Criada para enfraquecer a nossa magia e arder na nossa pele.

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Tal como a corrente preta que amarraram à volta do pescoço da minha mãe.

Uma maji poderosa talvez fosse capaz de combater a sua influência, mas a rara liga metálica costuma ser debilitante para a maior parte de nós. Embora eu não tenha magia a suprimir, a proximidade da lâmina de maja-cite ainda me irrita a pele quando o soldado me encurrala.

– Aconselho‑te a fechares a boca, criança.Ele tem razão. Era o que eu devia fazer. Fechar a boca, engolir a minha

raiva. Sobreviver a mais um dia.Contudo, ao sentir o seu rosto tão próximo do meu, tenho de fazer um

grande esforço para não enfiar a minha agulha de costura no seu brilhante olho castanho. Talvez eu devesse ficar calada.

Ou talvez ele devesse morrer.– Tu é que…A Mãe Agba empurra‑me para o lado com tanta força que caio redonda

no chão.– Toma – interrompe, com uma mão‑cheia de moedas. – Leva‑as.– Mãe, não…Ela vira‑se de repente e olha‑me com uma fúria que me petrifica. Fecho

a boca e ponho‑me de pé, a medo, tentando desaparecer no meio do tecido estampado do meu manequim.

Ouve‑se um tilintar enquanto o guarda conta as moedas de bronze que lhe foram colocadas na palma da mão. Quando termina, deixa escapar um grunhido.

– Não chega.– Tem de chegar – replica a Mãe Agba, o desespero esganiçando‑lhe a

voz. – É o que tenho. É tudo o que tenho.O ódio fervilha‑me por debaixo da pele, como uma agulha afiada e

escaldante. Não é justo. A Mãe Agba não devia ter de suplicar. Levanto os olhos e o meu olhar cruza‑se com o do guarda. Um erro. Antes de poder desviá‑lo, ou disfarçar a minha aversão, ele agarra‑me pelos cabelos.

– Ah! – grito, ao sentir uma dor lancinante no crânio. Num ápice, o homem lança‑me para o chão, de cara virada para baixo, tirando‑me o ar dos pulmões.

– Até podes não ter dinheiro. – Enterra o joelho nas minhas costas. – Mas tens uma boa provisão de vermes. – Agarra‑me a coxa com rudeza. – Começo por esta.

Sinto a pele mais quente ao tentar sorver o ar, fechando as mãos com força para esconder os tremores. Quero gritar, partir todos os ossos que

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o guarda tem no corpo, mas, a cada segundo que passa, esmoreço. O seu toque anula tudo o que sou, tudo o que lutei tão arduamente por tornar‑me.

Nesse momento, volto a ser a rapariguinha indefesa que viu um soldado a levar‑lhe a mãe.

– Basta. – A Mãe Agba empurra o guarda para trás e puxa‑me para junto do seu peito, rosnando como uma leonaire com cornos de touro a proteger a cria. – Tens aí as minhas moedas e não vais levar mais nada. Saiam. Agora.

A audácia incendeia a fúria do guarda. Este quase desembainha a espada, mas o outro soldado impede‑o.

– Vamos. Temos de cobrir a aldeia até ao pôr do Sol.Embora o guarda mais escuro fale num tom descontraído, os  seus

dentes cerram‑se. Talvez veja, nos nossos rostos, uma mãe ou uma irmã, a recordação de alguém que tivesse querido proteger.

O outro soldado fica imóvel por uns instantes, tão imóvel que não sei o que fará a seguir. Por fim, acaba por largar o punho da espada, lacerando apenas com o olhar.

– Ensina estes Vermes a manterem‑se na linha – avisa, dirigindo‑se à Mãe Agba. – Ou serei eu a fazê‑lo por ti.

Depois, desvia o olhar na minha direcção; embora eu esteja a pingar de suor, por dentro, sinto‑me gelada. O guarda olha‑me de cima a baixo, dizendo‑me que pode tirar‑me tudo.

Tenta, quero replicar, mas sinto a boca demasiado seca para falar. Fica‑mos em silêncio até os dois soldados saírem e o tropel das suas botas com solas de metal se dissipar à distância.

A força da Mãe Agba extingue‑se como uma vela apagada pelo vento. Agarra‑se a um manequim, em busca de amparo, a guerreira letal que eu conheço reduzindo‑se agora a uma frágil e envelhecida desconhecida.

– Mãe…Aproximo‑me para ajudá‑la, mas ela dá‑me um estalo na mão.– Òdę!Idiota, repreende‑me, em Iorubá, a língua dos maji, proscrita depois do

Raide. Já não ouço a nossa língua há tanto tempo que levo uns instantes a lembrar‑me do significado da palavra.

– O que se passa contigo, em nome dos deuses?De novo, todos os olhares no interior do ahéré se fixam em mim. Até

a pequena Bisi me observa com curiosidade. Mas como pode a Mãe Agba gritar comigo? Em que medida tenho eu a culpa de estes guardas vigaristas serem ladrões?

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– Estava a tentar protegê‑la.– Proteger‑me? – repete a Mãe Agba. – Tu sabias que o teu descara‑

mento não mudaria coisa nenhuma. Podias ter causado a morte de todas nós!

Cambaleio, surpreendida com a violência das palavras. Nunca vi no seu olhar uma desilusão tão grande.

– Se não posso combatê‑los, o que fazemos aqui? – pergunto, e falha‑me a voz, mas consigo reprimir as lágrimas. – De que vale treinar se não conse‑guimos proteger‑nos? Porquê fazer isto se não podemos protegê‑la a si?

– Pelos deuses, pensa, Zélie. Pensa um pouco nos outros também! Quem protegeria o teu pai se tu ferisses aqueles homens? Quem manteria o Tzain a salvo quando os guardas viessem exigir vingança?

Abro a boca para responder, mas não há nada que eu possa dizer. Ela tem razão. Ainda que eu derrubasse alguns guardas, não conseguiria dar conta de um exército inteiro. Mais tarde ou mais cedo, acabariam por encontrar‑me.

Mais tarde ou mais cedo, conseguiriam vergar as pessoas que eu amo.– Mãe Agba? – É a voz sumida de Bisi, pequena como a de um ratinho.

Está agarrada às calças de balão de Yemi, com os olhos cheios de lágrimas. – Por que razão nos odeiam?

Um cansaço instala‑se na postura da Mãe. Ela abre os braços para aco‑lher Bisi.

– Eles não te odeiam, filha. Eles odeiam aquilo que estavas destinada a ser.

Bisi esconde‑se por dentro das pregas de tecido do cafetã da Mãe, aba‑fando os seus soluços de choro. Enquanto ela chora, a Mãe Agba escrutina a sala em redor, vendo todas as lágrimas que as outras raparigas se esforçam por conter.

– A Zélie perguntou por que razão estamos aqui. É uma pergunta legí‑tima. Falamos muitas vezes da forma como devem lutar, mas nunca falamos do porquê. – Pousa Bisi no chão e faz sinal a Yemi para que lhe traga um banco. – Vocês, raparigas, têm de lembrar‑se de que o mundo não foi sem‑pre assim. Houve um tempo em que estávamos todos do mesmo lado.

Quando se senta numa cadeira, as  raparigas reúnem‑se à sua volta, ansiosas por ouvir. Todos os dias, as lições da Mãe Agba terminam com uma história ou fábula, um ensinamento vindo de uma outra época. O meu hábito é pôr‑me à frente para saborear cada palavra. Hoje, fico na periferia, demasiado envergonhada para me aproximar.

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A Mãe Agba esfrega as mãos uma na outra, devagar, metodicamente. Apesar de tudo o que aconteceu, um sorriso dança‑lhe nos lábios, um sor‑riso que apenas uma história é capaz de invocar. Incapaz de resistir, chego‑‑me para mais perto, abrindo caminho por entre algumas raparigas. Esta é a nossa história. A nossa memória.

Uma verdade que o rei tentou enterrar com os nossos mortos.– No princípio, Orixá era uma terra onde os maji, raros e sagrados, vice‑

javam. Todos os clãs, eram dez, tinham recebido uma dádiva dos deuses, sendo atribuído a cada clã um poder específico sobre a terra. Havia maji que sabiam controlar a água, outros que comandavam o fogo. Alguns possuíam o poder de ler a mente, outros conseguiam até espreitar o futuro!

Embora todas nós já tenhamos ouvido esta história numa ou noutra ocasião – dos lábios da Mãe Agba ou de pais que já não temos –, ouvi‑la de novo não rouba o assombro que nos suscita cada palavra. Os nossos olhos iluminam‑se quando a Mãe Agba descreve os maji com o poder da cura e a habilidade de causar a doença. Inclinamo‑nos para a frente quando ela fala de maji que conseguiam domar as feras selvagens da terra, ou daqueles que sustinham a luz e a treva na palma das suas mãos.

– Os maji nasciam com o cabelo todo branco, um sinal de que tinham sido tocados pelos deuses. Usavam os seus dons para cuidar do povo de Orixá e eram reverenciados por toda a nação. Mas nem todos recebiam a dádiva dos deuses. – A Mãe Agba abarca com um gesto a sala em redor. – Por causa disso, sempre que nasciam novos maji, províncias em peso rejubilavam, celebrando o primeiro vislumbre dos seus caracóis brancos. As crianças escolhidas não podiam praticar magia antes de completarem treze anos, pelo que, até os seus poderes se manifestarem, eram chamadas ibawi, «os divinos».

Bisi levanta o queixo e sorri, lembrando‑se da origem do nosso título divîner. A Mãe Agba baixa a mão e puxa‑lhe uma mecha do cabelo branco, uma marca que todas nós fomos ensinadas a esconder.

– Os maji ergueram‑se por toda a Orixá, tornando‑se os primeiros reis e rainhas. Naquela altura, todos viviam em paz, mas essa paz não ia durar. Aqueles que estavam no poder começaram a abusar da sua magia e, como castigo, os deuses retiraram‑lhes os seus dons. Quando a magia lhes foi sugada do sangue, o cabelo branco desapareceu em sinal do pecado que tinham cometido. Ao longo das várias gerações, o amor pelos maji con‑verteu‑se em medo. O medo tornou‑se ódio. O ódio transformou‑se em violência, no desejo de limpar os maji da face da terra.

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O espaço escurece ao som do eco das palavras da Mãe Agba. Todas nós sabemos o que vem a seguir; a noite de que nunca falamos, a noite que nunca conseguiremos esquecer.

– Até àquela noite, os maji tinham conseguido sobreviver porque usa‑vam os seus poderes para se defenderem. Todavia, há onze anos a magia desapareceu. Só os deuses sabem porquê. – A Mãe Agba fecha os olhos e deixa escapar um suspiro pesaroso. – Um dia, a magia ainda respirava. No dia seguinte, morreu.

Só os deuses sabem porquê?Por respeito à Mãe Agba, reprimo as minhas palavras. Ela fala como

falam todos os adultos que viveram nos tempos do Raide e sobreviveram. Num tom resignado, como se os deuses nos tivessem roubado a nossa magia para nos punir, ou apenas porque mudaram de ideias.

Lá no fundo, eu sei a verdade. Soube‑a no momento em que vi os maji de Ibadan acorrentados. Os deuses morreram com a nossa magia.

E nunca mais vão voltar.– Naquele dia fatídico, o rei Saran não hesitou – continua a Mãe Agba.

– Usou essa hora de fragilidade dos maji para atacar.Fecho os olhos, tentando conter as lágrimas que querem cair. A corrente

que puseram à volta do pescoço da minha mãe. O sangue a pingar na terra.As memórias silenciosas do Raide enchem a cabana de juncos, enchar‑

cando o ar de sofrimento.Nessa noite, todos nós perdemos os membros maji das nossas famílias.A Mãe Agba suspira e levanta‑se, indo buscar essa força que todas

conhecemos. Olha para cada rapariga ali presente como um general a ins‑peccionar as suas tropas.

– Ensino a arte de manejar um bordão a qualquer rapariga que queira aprender, porque, neste mundo, nunca deixará de haver homens que dese‑jam o vosso mal. Mas comecei este treino para os divîners, para todos os filhos de maji caídos. Embora a vossa possibilidade de se tornarem maji tenha desaparecido, o ódio e a violência contra vós mantém‑se. É por isso que estamos aqui. É por isso que treinamos.

Com um assobio que corta o ar, a Mãe Agba recupera o seu cajado duro e bate com estrondo no chão.

– Os vossos adversários trazem espadas. Por que razão vos treino na arte do bordão?

As nossas vozes ecoam o mantra que ela já nos obrigou a repetir vezes sem conta.

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– «O bordão evita em vez de ferir, fere em vez de mutilar, mutila em vez de matar: o bordão não destrói.»

– Ensino‑vos a serem guerreiras no jardim para que nunca tenham de ser jardineiras no campo de batalha. Dou‑vos a força que vos permitirá lutar, mas todas vós terão de aprender a força da contenção. – A Mãe vira‑‑se para mim, de ombros virados para trás. – Tens de proteger aqueles que não podem defender‑se. É essa a arte do bordão.

As outras raparigas aquiescem, mas a única coisa que eu consigo fazer é fixar os olhos no chão. Mais uma vez, estive à beira de provocar uma catás‑trofe. Mais uma vez, desiludi os outros.

– Muito bem – suspira a Mãe Agba. – Por hoje, basta. Reúnam os vossos pertences. Amanhã retomamos o treino onde o deixámos hoje.

As raparigas saem da cabana em fila, gratas por poderem escapar. Tento fazer o mesmo, mas a mão enrugada da Mãe Agba agarra‑me pelo ombro.

– Mãe…– Silêncio… – ordena. As últimas raparigas da fila lançam‑me olhares

solidários. Esfregam os seus traseiros, talvez calculando quantas chicotadas o meu traseiro está prestes a receber.

Vinte por ignorar o exercício… cinquenta por falar inoportunamente… cem por quase ter causado a morte de todas nós…

Não. Cem seria demasiado generoso.Reprimo um suspiro e preparo‑me para a ferroada. Vai ser rápido, digo

a mim mesma. Estará tudo terminado antes que…– Senta‑te, Zélie.A Mãe Agba estende‑me uma caneca de chá e serve‑se. O aroma ado‑

cicado desperta‑me os sentidos enquanto o calor da caneca me aquece as mãos.

Franzo as sobrancelhas.– A Mãe envenenou isto?Os cantos dos lábios da Mãe Agba estremecem, mas ela esconde o seu

divertimento atrás de um rosto severo. Escondo o meu com um gole de chá, saboreando o choque de mel que me explode na língua. Viro a caneca e passo os dedos sobre os botões de alfazema engastados na sua borda. A minha mãe tinha uma caneca como esta – os seus botões eram de prata, um ornamento em honra de Oya, a Deusa da Vida e da Morte.

Por momentos, a memória distrai‑me da desilusão da Mãe Agba, mas, à medida que o sabor do chá se dissipa, o travo amargo da culpa regressa. Ela não devia ter de lidar com isto. Não por causa de uma divîner como eu.

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– Perdoe‑me. – Dedilho os botões em torno da caneca para evitar olhar para cima. – Eu sei… Eu sei que não lhe facilito a vida.

À semelhança de Yemi, a  Mãe Agba é uma kosidán, uma natural de Orixá que não possui o dom da magia. Antes do Raide, acreditava‑se que os deuses escolhiam quem nascia divîner e quem não nascia, mas agora que a magia desapareceu não compreendo a relevância da distinção.

Livre do cabelo branco dos divîners, a Mãe Agba podia misturar‑se com os outros habitantes de Orixá e evitar a tortura dos guardas. Se não se envolvesse connosco, talvez os guardas não a incomodassem de todo.

Parte de mim deseja que ela nos abandone, que se poupe a essa dor. Com os seus dotes de costureira, é possível que se tornasse uma comer‑ciante e recebesse a sua justa maquia de moeda, em vez de ser saqueada a todo o momento.

– Estás a começar a ficar parecida com ela, sabias? – A Mãe Agba bebe um pequeno gole de chá e sorri. – Quando gritas, a parecença é assustadora. Herdaste a sua raiva.

A minha boca abre‑se de espanto; a Mãe Agba não gosta de falar daque‑les que perdemos.

Poucos de nós gostam.Escondo a minha surpresa bebendo mais um gole de chá e aquiesço.– Eu sei.Não me lembro quando aconteceu, mas a mudança em Baba foi inequí‑

voca. Deixou de olhar‑me nos olhos, incapaz de enfrentar‑me sem ver no meu rosto o da sua mulher assassinada.

– Isso é bom. – O sorriso da Mãe Agba estremece atrás do sobrolho franzido. – Eras uma criança nos tempos do Raide. Temi que pudesses esquecer.

– Não conseguiria esquecer ainda que tentasse. – Porque a minha mãe tinha o sol no rosto.

É esse rosto que tento recordar.Não o cadáver com sangue a pingar do pescoço.– Sei que lutaste por ela. – A Mãe Agba passa a mão pelos meus cabelos

brancos. – Mas o rei é implacável, Zélie. Mais depressa chacinava o reino inteiro do que permitia a dissidência dos divîners. Quando o teu adversário não tem honra, tens de lutar de maneiras diferentes, mais astuciosas.

– E alguma dessas maneiras inclui ferir aqueles cretinos com o meu cajado?

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Ela ri‑se baixinho e a pele engelha‑se‑lhe em torno dos olhos castanho‑‑avermelhados.

– Promete‑me que vais ter cuidado. Promete‑me que escolherás o momento certo para lutares.

Agarro nas suas mãos e curvo a minha cabeça numa vénia profunda, mostrando‑lhe o meu respeito.

– Prometo, Mãe. Não voltarei a desiludi‑la.– Óptimo, porque tenho uma coisa que não quero arrepender‑me de

ter‑te mostrado.Enfiando a mão numa das pregas do seu cafetã, tira para fora uma vara

estreita e preta. E dá‑lhe um piparote com força. Salto para trás quando a vara se expande, transformando‑se num bordão de metal reluzente.

– Oh, deuses – expiro, contendo o impulso de agarrar na obra de arte. Símbolos antigos cobrem toda a extensão do metal preto e cada entalhe relembra uma lição que a Mãe Agba nos ensinou. Como uma abelha atraída pelo mel, os meus olhos descobrem primeiro a akofena, as lâminas cruzadas, as espadas da guerra. A coragem nem sempre é um rugido, disse ela, naquele dia. A bravura nem sempre brilha. Os meus olhos deslizam para o akoma ao lado das espadas, o coração da paciência e da tolerância. Naquele dia… Tenho quase a certeza de que apanhei uma tareia nesse dia.

Cada um dos símbolos faz‑me recuar a uma dada lição, a uma outra história, a uma determinada sabedoria. Olho para a Mãe, que está à espera. Será uma dádiva ou o objecto que ela vai usar para me bater?

– Toma. – Coloca o metal macio nas minhas mãos. De imediato, sinto o seu poder. Revestido de ferro… com o peso certo para esmagar crânios.

– Isto está mesmo a acontecer?A Mãe confirma com um aceno.– Hoje, lutaste como uma guerreira. Mereces graduar‑te.Ergo‑me para girar o cajado e maravilho‑me com a sua força. O metal

lacera o ar como uma faca, mais letal do que qualquer bordão de carvalho que eu já tenha esculpido.

– Lembras‑te do que eu te disse quando começámos a treinar?Aquiesço e imito a voz cansada da Mãe Agba.– Se vais andar à caça de escaramuças com os guardas, é melhor aprenderes

a ganhar.Embora me dê uma bofetada na cabeça, a sua gargalhada franca ressoa

nas paredes de juncos. Devolvo‑lhe o cajado e ela enterra‑o no chão; a arma torna a contrair‑se numa vara de metal.

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– Tu sabes como se ganha – diz‑me. – Mas certifica‑te de que sabes quando deves lutar.

Orgulho, honra e dor formam um turbilhão no meu peito quando a Mãe Agba volta a depositar o cajado na palma da minha mão. Não con‑fiando na voz nesse momento, ponho os braços à volta da sua cintura e inalo o aroma familiar a chá doce e tecidos acabados de lavar.

Embora, num primeiro instante, fique rígida, a Mãe Agba devolve‑me o abraço e segura‑me com força, abafando a dor. Ainda recua para dizer algo, mas detém‑se quando os panos da entrada do ahéré se abrem de novo.

Agarro na vara de metal, preparada para zurzi‑la, mas reconheço o meu irmão mais velho, Tzain, parado à porta. A cabana de juncos encolhe‑se de imediato ante a sua presença volumosa, toda feita de músculos retesados. Os tendões destacam‑se, salientes, na pele escura. O suor escorre‑lhe do cabelo preto sobre a testa. Os olhos fixam‑se nos meus e uma pressão súbita aperta‑me o coração.

– É o Baba.