Todorov-Introducao Ao Verosimil

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POÉTICA DA PROSA TZVETAN TODOROV Título original: Poétique de la prose © Éditions du Seuil, 1971 Tradução: Maria de Santa Cruz Capa: Alceu Saldanha Coutinho Reservados todos os direitos para os países de Língua Portuguesa ~ edições 70 Av. Duque de Avila, 69-r/c Esq. - Lisboa-l Telfs.: 556898/572001 Distrib. no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 - São Paulo

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Todorov, introdução ao Verosimil

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POÉTICADA PROSATZVETAN TODOROV

Título original: Poétique de la prose© Éditions du Seuil, 1971Tradução: Maria de Santa CruzCapa: Alceu Saldanha CoutinhoReservados todos os direitos para os países de Língua Portuguesa

~ edições 70

Av. Duque de Avila, 69-r/c Esq. - Lisboa-lTelfs.: 556898/572001Distrib. no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTESRua Conselheiro Ramalho, 330/340 - São Paulo

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Um dia, no século V antes de Cristo, na Sicília,dois indivíduos discutiam; seguiu-se um acidente. Elescomparecem no dia seguinte diante das autoridadesque devem decidir qual dos dois é o culpado. Mas comoescolher? Os juízes não tinham presenciado a disputa,não puderam observar nem constatar a verdade; asopiniões são insuficientes; só resta um meio: escutaras narrativas dos litigantes. Este facto vem modificara posição destes ú:ltimos: já não se trata de estabeleceruma verdade (o que é impossível), mas de se acercaremdela, de darem a impressão da verdade; e esta im-pressão será tanto mais forte quanto mais hábil fora narrativa. Para ganhar o processo, é mais importantefalar bem do que ter procedido bem. PIatão escreveráamargamente: «Com efeito, nos tribunais, ninguém tema mínima preocupação de dizer a verdade, mas depersuadir, e a persuasão depende da verosimilhança.»Mas, por isso mesmo, a narrativa, o discurso, deixa deser, na consciência dos que falam, um reflexo subme-tido às coisas, para adquirir um valor independente.Portanto, as palavras não são simplesmente os nomestransparentes das coisas, elas formam uma entidadeautónoma, regida por leis próprias, e que pode serjulgada em si mesma. A importância das palavras ul-trapassa a das coisas que elas supostamente reflectiam.

Nesse dia assistiu-se ao nascimento simultâneo daconsciência da linguagem, de uma ciência que formulaas leis da linguagem, a retórica, e de um conceito, overosímil, que vem preencher o vazio entre essas leis 95

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e o que se pretende ser a propriedade constitutiva dalinguagem: a sua referência ao real. A descoberta dalinguagem dará em breve os seus primeiros resultados:a teoria retórica, a filosofia da linguagem dos sofistas.Mas mais tarde, pelo contrário, vai tentar-se esquecera linguagem, proceder como se as palavras não fossem,mais uma vez, senão os dóceis nomes das coisas; ecomeça-se hoje a entrever o fim do período anti-verbalda história da humanidade. Durante vinte e cinco sé-culos tentar-se-á fazer crer que o rea:l é uma razãosuficiente da palavra; durante vinte e cinco séculosserá preciso reconquistar, continuamente, o direito deperceber a linguagem. A literatura, que simboliza aautonomia do discurso, não foi suficiente para vencera ideia de que as palavras reflectem as coisas. O traçofundamental de toda a nossa civilização continua a seresta conoepção da linguagem-sombra, com formas tal-vez modificáveis, mas que não deixam de ser as conse-quências dir,ectas dos objectos que reflectem. Estudaro verosímil significa mostrar que os discursos não sãoregidos por uma correspondência com o seu referente,mas pelas suas próprias leis, e denunciar a fraseologiaque, no interior desses discursos, quer fazer-nos acre-ditar no contrário. Trata-se de fazer sair a linguagemda sua transparência ilusória, de ensinar a percebê-lae de, ao mesmo tempo, estudar as técnicas de que elase serve para, como o invisível de Wells engolindo asua poção química, deixar de existir a nossos olhos.

O conceito de verosímil já não está em moda.Não o encontramos na literatura científica «séria»;em compensação, continua a dominar nos comentáriosde segunda ordem, nas edições escolares dos clássicos,na prática pedagógica. Eis um exemplo desta utiliza-ção, extraído de um comentário ao Mariage de Figaro(Les petis olassiques Bordas, 1965): «O movimento fazesquecer a inverosimilhança. - O Conde, no fim dosegundo acto, tinha enviado Bazile e Gripe-Soleil àaldeia, por dois motivos precisos: prevenir os juízes;encontrar «o camponês do bilhete» (...). É muito poucoverosímil que o Conde, agora perfeitamente ao correnteda presença de Chérubin, pela manhã, no quarto daCondessa, não peça nenhuma explicação a Bazile sobrea sua mentira e não tente confrontá-lo com Figaro cujaatitude lhe parece cada vez mais equívoca. Sabemos, eisso é confirmado no quinto acto, que a espera do seuencontro com Suzanne não basta para o perturbar aesse ponto quando se trata da Condessa. - Beaumar-chais tinha consciência dessa inverosimilhança (ano-

tou-a nos seus manuscritos) mas pensava, e com razão,que, no teatro, nenhum espectador se aperceberiadisso.» Ou ainda: «Beaumarchais confessava esponta-neamente ao seu amigo Gudin de la Branellerie 'quehavia pouca verosimilhança nos enganos das cenas noc-turnas'. Mas acrescentava: 'Os espectadores prestam-sede boa mente a esta espécie de ilusão quando delaresulta um imbroglio divertido'».

O termo «verosímil» é utilizado aqui no sentidomais ingénuo de «conforme a realidade». Consideram-seinverosímeis certas acções ou atitudes que parecem nãopoder produzir-se na realidade. Corax, primeiro teóricodo verosímil, já tinha conseguido ir mais longe: o vero-símil não era, para ele, uma relação com o real (comoé o verdadeiro), mas com o que a maioria das pessoasjulga ser o real, por outras palavras, está em rela-ção com um outro discurso (anónimo, impessoal), enão com o seu referente. Mas se lermos com atençãoo comentário precedente, verificaremos que Beaumar-chais se referia ainda a outra coisa: ele explica a si-tuação do texto com uma referência, não à opiniãocomum, mas às regras particulares do género queadopta (<<noteatro, nenhum espectador se aperceberiadisso», «os espectadores prestam-se de boa mente aesta espécie de ilusão», etc.). No primeiro caso, não setrata, portanto, da opinião pública, mas simplesmentede um género literário que não é o de Beaumarchais.

Assim nascem vários sentidos do termo verosímile é deveras necessário distingui-los, porque a polisse-mia da palavra é preciosa e não nos podemos desem-baraçar dela. Separemos apenas o primeiro sentido in-génuo, segundo o qual se trata de uma relação com arealidade. O segundo sentido é o de Platão e Aristó-teles: o verosímil é a relação do texto particular comum outro texto, geral e difuso, que se chama: opiniãopública. Encontramos já, nos clássicos franceses, umterceiro sentido: a comédia tem o seu próprio vero-símil, diferente do da tragédia; há tantos verosímeiscomo géneros, e as duas noções têm tendência para sereunir (o aparecimento deste sentido da palavra marcaum passo importante na descoberta da linguagem: pas-sa-se aqui do nível do dito para o nível do dizer).Enfim, nos nossos dias, torna-se predominante um ou-tro emprego da palavra: fala-se da verosimilhança deuma obra, na medida em que ela tenta fazer-nos crerque se submete ao real e não às suas próprias leis;quer dizer, o verosímil é a máscara com que se dissi-7

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mulam as leis do texto, e que nos daria a impressãode uma relação com a realidade.

Consideremos ainda um exemplo desses diferentessentidos (e diferentes níveis) do verosímil. Encontra-mo-lo num dos livros mais contrários à fraseologiarealista: Jacques le Fataliste. Em todos os momentosda narrativa, Diderot está consciente das múltiplaspossibilidades que se lhe oferecem: a narrativa não édeterminada a priori, todos os percursos são (em abso-luto) bons. A essa censura, que vai obrigar o autor aescolher um deles, chamamos: verosímil. «... Viram umgrupo de homens armados de varapaus e de forquilhasque avançavam para eles em grande correria. [Os lei-tores] vão julgar que eram os homens da estalagem,os criados e os aventureiros brigões de que falámos.(... ) Vão pensar que este pequeno exército vai cairsobre Jacques e o seu amo, que vai haver uma cenasangrenta, pancadaria e tiros, e só de mim dependeriaque isso acontecesse; mas, nesse caso, adeus verdadeda história, adeus narrativa dos amores de Jacques.(...) É bem evidente que o que faço não é um romance,pois desprezo aquilo que um romancista não deixariade utilizar. Quem acreditasse que o que escrevo é averdade ,estaria talvez menos enganado do que quemjulgue tratar-se de uma fábula.»

Neste breve trecho, é feita uma alusão às princi-pais propriedades do verosímil. A liberdade da narra-tiva é limitada pelas exigências internas do própriolivro (<<a verdade da história», «a narrativa dos amoresde Jacques»), por outras palavras, porque o livro per-tence a um género; se a obra pertencesse a um outrogénero, as ,exigências seriam diferentes (<<oque façonão é um romance», «um romancista não deixaria deutilizar»). Ao mesmo tempo, ao declarar abertamenteque a narrativa obedece à sua própria economia, à suafunção própria, Diderot sente a necessidade de acres-centar: o que escrevo é a verdade; se escolho umdesenvolvimento de preferência a um outro, é porque,os acontecimentos que relato assim se processaram.Ele tem de mascarar a liberdade com a necessidade,a relação com a escrita com uma relação com o real,por meio de uma frase que se torna muito mais am-bígua (mas também mais convincente) depois da decla-ração que a precedeu. Aí estão dois níveis essenciaisdo verosímil: a verosimilhança como lei discursiva,absoluta e inevitável; e o verosímil como máscara,como sistema de processos retóricos, que tende a apre-

sentar essas leis como outras tantas submissões aoreferente.

Alberta French quer salvar o marido da cadeiraeléctrica; este é acusado do assassínio de sua amante.Alberta tem de encontrar o verdadeiro culpado; sódispõe de um único índice: uma caixa de fósforos,esquecida pelo assassino no local do crime, na qual selêem as suas iniciais, a letra M. Alberta encontra aagenda da vítima e vai conhecendo sucessivamentetodos aqueles cujo nome começa por um M. O terceiroé o dono dos fósforos; mas, convencida da sua ino-cência, Alberta procura o quarto M.

Um dos mais belos romances de William Irish,O Anjo (Black Angel) é construído, portanto, a partirde uma falha lógica. Ao descobrir o dono da caixa defósforos, Alberta perdeu o fio condutor. Há tantasprobabilidades de encontrar o assassino na quarta pes-soa cujo nome começa por M., como em qualqueroutra pessoa cujo nome figure na agenda. Do pontode vista da intriga, o quarto episódio não tem razãode ser.

Como é que Irish não se apercebeu de tal inconse-quência lógica? Porque é que não colocou o episódioreferente ao dono dos fósforos depois dos outros três,de forma a que essa revelação não cortasse a sequênciade probabilidade? A resposta é fácil: o autor temnecessidade de mistério; até ao último momento nãodeve revelar-nos o nome do culpado; ora uma lei nar-rativa geral 'pretende que, à sucessão temporal, corres-ponda uma gradação de intensidade. Seguindo essa lei,a última experiência deve ser a mais forte, o culpadoé o último dos suspeitos. É para se esquivar a esta lei,para impedir uma revelação demasiado fácil, que lrishcoloca o culpado antes do fim da série de suspeitos.É, pois, para respeitar uma regra do género, paraobdecer ao verosímil do romance policial que o escri-tor quebra com o verosímil do mundo que refere.

Esta ruptura é importante. Ela demonstra, pelacontradição que estabelece, a multiplicidade dos verosí-meis e, ao mesmo tempo, a forma como o romance poli-cial se submete às suas regras 'Convencionais. Esta sub-missão não é evidente, bem pelo contrário; o romancepolicial 'procura mostrar-se perfeitamente livre, e, parao fazer, utilizou um meio engenhoso. Se todo o dis-curso entra em relação de verosimilhança com as suas

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próprias leis, o romance policial utiliza o verosímilcomo tema; já não é apenas a sua lei, mas tambémo seu objecto. Um objecto invertido, por assim dizer:porque a lei do romance policial consiste em instauraro anti-verosímil. Esta lógica da verosimilhança inver-tida não tem, aliás, nada de novo; é tão antiga comoqualquer reflexão sobre o verosímil, pois encontramosnos inventores desta noção, Corax e Tisias, o seguinteexemplo: «Que um forte tenha vencido um fraco, istoé fisicamente verosímil, pois ele tinha todos os meiosmateriais para o fazer; mas é psicologicamente inve-rosímil, porque é impossível que o acusado não tenhaprevisto as suspeitas.»

Em qualquer romance de enigma se observa amesma regularidade. Houve crime, é preciso descobriro seu autor. Partindo de algumas peças isoladas, deveconstituir-se um todo. Mas a lei da reconstituição nuncaé a da verosimilhança comum; pelo contrário, são preci-samente os suspeitos que se revelam inocentes, e osinocentes, suspeitos. O culpado, no romance policial,é o que não parece culpado. O detective vai apoiar-se,no seu discurso final, numa lógica que vai relacionaros elementos até então dispersos; mas essa lógica de-pende de uma possibilidade científica e não do vero-símil. A revelação deve obedecer a estes dois impera-tivos: ser possível e inverosímil.

A revelação, quer dizer, a verdade, é incompatívelcom a verosimilhança. É testemunho disso toda umasérie de intrigas policiais fundadas na tensão entreverosimilhança e verdade. No filme de Fritz Lang AInverosímil verdade (Beyond a reasonable doubt), estaantítese é levada até ao limite. Tom Garett quer provarque a pena de morte é excessiva, que muitas vezes secondenam inocentes; com a cumplicidade do seu futurosogro, escolhe um crime que a polícia não conseguedecifrar e finge ser o seu autor: vai semeando habil-mente indícios que provocam a sua prisão. Até aí,todos os personagens do filme julgam que Garett é oculpado; mas o espectador sabe que ele está inocente:a verdade é inverosímil, a verosimilhança não é verda-deira. Nesse momento produz-se uma dupla viragem:a justiça descobre documentos provando a inocência deGarett; mas, ao mesmo tempo, nós ficamos a saber quea sua atitude não passou de uma maneira particular-mente hábil de dissimular o seu crime: pois foi naverdade ele quem cometeu o assassínio. De novo, odivórcio entre verdade e verosimilhança é total: quandonós sabemos que Garett é culpado, os personagens de-

vem julgá-lo inooente. Só no fim é que se juntam averdade e a verosimilhança; mas isso significa a mortedo personagem e a morte da narrativa: esta só podecontinuar se houver um desnível entre verdade e vero-similhança.

A verosimilhança é o tema do romance policial; oantagonismo entre verdade e verosimilhança é a sualei. Mas ao estabelecer esta lei, estamos de novo emrace do verosímil. Ao apoiar-se no anti-verosímil, oromance policial submeteu-se à lei de um outro vero-símil, o do seu próprio género. Por mais que contesteas verosimilhanças vulgares, estará sempre sujeito auma qualquer verosimilhança. Ora este facto repre-senta uma grave ameaça à existência do romance poli-cial fundado no mistério, porque a descoberta da leileva à morte do enigma. Não haverá necessidade deseguir a engenhosa lógica do detective para descobriro culpado; basta lembrar a lógica, muito mais simples,do autor de romances policiais. O culpado não seránenhum dos suspeitos; não será particularmente fo-cado em nenhum momento da narrativa; estará sempreligado, de uma certa forma, aos acontecimentos, masuma razão, aparentemente muito importante, mas naverdade secundária, faz com que não o consideremosum culpado em potência. Portanto, não é difícil des-cobrir o culpado, num romance policial: basta seguira verosimilhança do texto e não a verdade do mundoevocado.

Tem algo de trágico, a sorte do autor de romancesnoliciais: o seu ob;ectivo era contestar as verosimi-lhanças; ora, quanto melhor o conseguir, mais forte-mente estabelecerá uma nova verosimilhança, aquelaque liga o seu texto ao género a que pertence. O ro-mance policial oferece-nos, assim, a imagem mais re-presentativa de uma imnossibilidade de fUl!Ír ao vero-símil. Quanto mais condenarem o verosímil, mais eleos domina.

O autor dos romances policiais não é o único asofrer este destino; todos nós o sofremos e a cadamomento. À primeira vista encontramo-nos numa situa-ção menos favorável que a dele: ele pode contestar asleis da verosimilhança, e até fazer da anti-verosimi-lhança a sua lei; nós, embora descobrindo as leis e asconvenções da vida que nos envolve, não temos o poderde as mudar, seremos sempre obrigados a conformar-mo-nos com elas, apesar da submissão se tornar dupla-mente difícil depois dessa descoberta. Temos entãouma surpresa amarga ao apercebermos um dia que a

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nossa vida é governada pelas mesmas leis que desco-brimos nas páginas do France-Soir, e que não as pode-mos alterar. Saber que a justiça obedece às leis doverosímel, 'e não às do verdadeiro, não impedirá nin-guém de ser condenado.

Mas, independentemente deste carácter sério eimutável das leis do verosímil a que nos referimos, overosímil espreita-nos a cada passo e não lhe podemosescapar - tal como acontece com o autor de romancespoliciais. A lei constitutiva do noso discurso a isso nosobriga. Se falo, o meu enunciado obedece a uma certalei e inscreve-se numa verosimilhança que não possoexplicar ou rejeitar sem me servir de um outro enun-ciado cuja lei estará implícita. Pelo subterfúgio daenunciação, o meu discurso dependerá sempre de umverosímil; ora a enunciação não pode, por definição,ser explicitada até ao fim: se falo já não é dela quefalo, mas de uma enunciação enunciada, que tem a suaprópria enunciação e que não poderei enunciar.

A lei que, ao que parece, os Hindus tinham formu-lado a propósito do auto-conhecimento relaciona-secom efeito, precisamente com o sujeito da enunciação:«Entre os numerosos sistemas filosóficos da lndia quePaul Deussen enumera, o sétimo nega que o eu possaser um objecto imediato de conhecimento, 'porque sea nossa alma pudesse ser conhecida, seria preciso umasegunda para conhecer a primeira e uma terceira paraconhecer a segunda'. As leis do nosso discurso são, aomesmo tempo, verosímeis (pelo simples facto de seremleis) e impossíveis de conhecer, porque só um outrodiscurso poderá descrevê-las. Ao contestar o verosímilo autor de romances policiais mergulha num verosímiÍde um outro nível, mas não menos forte.

Assim, este mesmo texto, que trata do verosímil,também o é: obedece a uma verosimilhança ideológicaliterária, ética, que nos leva hoje a acuparmo-nos d~verosímil. Só a destruição do discurso pode destruir--lhe o verosímil, embora o verosímil do silêncio nãoseja muito difícil de imaginar ... Apenas estas últimasfrases dependem de um verosímil diferente, de umgrau superior, e nisso parecem-se com a verdade: estaserá algo mais que um verosímil distanciado e diferido?

Em Adolphe, a palavra parece ser dotada de umpoder mágico. «Uma palavra minha tê-lo-ia acalmado:porque não conseguia pronunciá-la?» (p. 146). «Elainsinuava-me que uma única palavra bastaria para quefosse toda minha» (p. 149). «Uma palavra fez desapa-recer essa turba de adoradores» (p. 151)1.

Este poder da palavra traduz, de forma conden-sada, a importância concedida à palavra no mundo deConstant. O homem é, para ele, antes de mais, umhomem que fala, e o mundo, um mundo discursivo.Ao longo de Adolphe, os seus personagens não fazemmais nada senão proferir palavras, escrever cartas oufecharem-se em silêncios ambíguos. Todas as qualida-des, todas as atitudes se traduzem por uma certa ma-neira de discorrer. A solidão é um comportamentoverbal; o desejo de independência, outro; o amor, umterceiro. A degradação do amor de Adolphe por Ellé-nore não é mais que uma sequência de diferentesatit~des linguísticas: as «palavras irreparáveis», nocapItulo quarto; o segredo, a dissimulação, no quintocapítulo; a revelação feita diante de uma terceira pes-soa, no capítulo oito; a promessa de Adolphe diantedo barão e a carta que lhe escreve, no capítulo nove.Isto vai até à morte; o último acto que Ellénore ten-tará executar, é falar. «Ela quis falar, mas já não tinhavoz: deixou cair a cabeça como que resignada, nobraço que a apoiava; a sua respiração tornou-se maislenta; alguns instantes depois, já não existia» (p. 173).

1 Os números entre parêntesis remetem para as páginas: nocaso de Adolphe, da edição Garnier-Flammarion (Paris, 1965); nocaso dos outros escritos, para a da Pléiade (Paris, 1957).