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“Toda técnica sempre implica uma metafísica.”

Jean-Paul Sartre

Este livro* conta e mostra a trajetória, as pesquisas, as experiências e a arte de Máximo Soalheiro. Uma viagem que começa nos barrancos de Minas Gerais, em busca de argila, passa por anos de pesquisa para dominar técnicas, tecnologias, matérias e elementos, transformando barro em obras de arte, e desemboca num enlace feliz da cerâmica com a tipografia. As duas vistas sob um olhar inédito e inusitado.

Por Marília Scalzo

*Devido aos trâmites do projeto, o livro sai agora quando o atelier Soalheiro faz 28 anos, mas comemora seus 25 anos, completados em 2003.

Chove. Soalheiro, menino, segue seu padrinho por uma estrada de terra até chegar a uma construção. Pequeno, seus dois pés encaixam-se alinhados na pegada deixada na lama pela galocha preta do padrinho. A cena, lembrança mais antiga na memória do artis-ta, acontece em Sardoá, cidade do interior de Minas Gerais, onde nasceu. Devia ter três, quatro anos. Lembra-se do barro, da cor, da textura, do desenho que a pegada imprimia na terra.

As capacidades de enxergar forma, desenho e beleza em tudo o que vê e de mergu-lhar num universo de conhecimento e apropriar-se de suas técnicas e processos marcam o trabalho e a vida de Soalheiro.

Dos tempos de criança, no interior de Minas, recorda-se da mesa posta com quitan-das de todos os tipos na casa da avó como uma instalação. Tem gravados na memória o desenho e as cores da lata de margarina que o governo norte-americano mandava para os escoteiros mirins de países subdesenvolvidos. Quando vê a primeira televisão, uma Telefunken, interessa-se pelo desenho do objeto, mais do que pelo conteúdo transmitido.

Num de seus primeiros trabalhos, já em Belo Horizonte, ajudando o pai numa loja do Mercado Novo, cria balcões e expositores com a marca de seu desenho simples, enxuto. Estuda sistemas de circulação de ar para construir a geladeira que estocaria os produtos.

Aos 1� anos, em busca de trabalho, visita seu tio Rafael, que tinha uma loja de mate-rial de construção no Jardim das Alterosas, em Betim, cidade próxima a Belo Horizonte, e ali se encanta primeiramente com o visual do lugar – um complexo de olarias que seguia a maneira mais antiga e singela de fazer tijolos. Era um terreiro, um rio, barro de aluvião, um burro, uma roda de madeira, um eixo, os tijolos arrumados para secar, a caieira. Em seguida, encanta-se pelos processos.

Decide fazer tijolos e parte para Tambaú, no interior de São Paulo, para aprender a desenvolver máquinas e equipamentos – marombas, esteiras – e fazer tijolos em escala industrial. Começa também a estudar o uso de outros materiais para queima além da lenha, como o carvão de rejeito do processo de transformação do ferro gusa.

Com os tijolos, que depois se tornariam elementos construtivos importantes em seu trabalho, começa o gosto pela descoberta da cerâmica. Aqueles que queimavam demais ficavam deformados e tinham uma cor que só a cerâmica de alta temperatura podia dar. Apareciam cores ferruginosas, colorações de azul, o ferro que quase virava aço dentro do tijolo – começa a aproximação com os minérios. Percebe que sua ligação com a cerâmica vai além dos tijolos.

A paixão pela armação da caieira é outra marca desse período. Caieira é o forno mais primitivo, uma construção retangular, do tamanho de uma casa, retilínea, com uma portinha de vinte centímetros para colocar lenha voltada para o vento predominante. A lenha queima ali e o ar vai levando e espalhando esse fogo ao toque do vento. A caieira pode passar até doze dias queimando. À noite, depois de alguns dias, transforma-se num prédio incandescente que solta rajadas de estrelas na direção do vento. Para Soalheiro, era um lindo objeto, uma obra de arte, cuja forma e proporções reaparecem em seus trabalhos e construções até hoje.

Também vem da caieira e da arrumação dos tijolos em pacotes um ritmo, um dese-nho, que vai aparecer nos trabalhos com cerâmica e tipografia.

Para fazer tijolos, foi necessário um tipo de conhecimento. Saber a hora certa de tirar o barro, a proporção na mistura das argilas mais e menos plásticas. Por isso, os quatro anos passados na olaria já foram anos de estudo. Resolve problemas e constrói equipa-mentos, por falta de dinheiro para comprar máquinas. Começa a dominar um conheci-mento que seria vital na seqüência.

O atelier de cerâmica de Soalheiro nasce da experiência com os tijolos e alimenta-se dela. Em 1���, com um forno a lenha tradicional redondo, no bairro de Santa Tereza (no mesmo lugar onde está até hoje), começa a produzir as primeiras peças. São vasos, alguidares, quartinhas e filtros, que inauguram uma história e uma tradição – a de o ate-lier utilizar o dinheiro ganho com a venda de peças no financiamento de pesquisas para desenvolvimento de novos projetos.

Em todos esses anos de existência, nada entrou pronto no atelier. Das argilas aos for-nos, das tintas aos móveis que apóiam os computadores – as ferramentas, os suportes, as tecnologias – tudo foi descoberto, estudado, desenvolvido. Muitos dos equipamentos e instalações não existiam mesmo e precisaram ser feitos, mas, mesmo quando havia produtos no mercado, a escolha era reinventá-los dentro do atelier. Isso imprime ao local uma atmosfera própria muito integrada à arte de Soalheiro.

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Do tijolo para os filtros de água o salto foi grande, ainda na produção em série. Mas o caminho estava preparado para os próximos passos. Soalheiro não queria mais fazer cerâmica industrial. Sua alma, seu coração e sua imaginação pediam outro caminho.

Cerâmica é arte delicada e complexa. Segundo o poeta e crítico de arte inglês Herbert Read, “a mais simples e a mais difícil de todas as artes”. Exige conhecimentos que, no Brasil, não estão sistematizados e reunidos. Soalheiro começa a estudar e a experimentar. Química fina, balanço de óxidos, química de solo, geologia, térmica – o atelier transforma-se em universidade e laboratório.

Nessa hora – de realizar projetos sem ter a tradição cultural e o conhecimento organizado –, sua capacidade de observar, mergulhar e aprofundar-se nos processos é fundamental.

A riqueza e a diversidade geológica de Minas Gerais são um desafio. Ele vai atrás das argilas, dos minérios, das melhores misturas. Começa a pesquisar, a pesar, a misturar, a medir e a construir fornos. Testa fórmulas, descobre jeitos de queimar, transforma mi-nérios em cores. Vai aperfeiçoando os fornos e vendo o que dá certo e o que dá errado dentro deles. As experiências aprofundam o conhecimento.

Em seis anos, Soalheiro faz estudos e maquetes, e chega a construir quatro grandes fornos, para chegar ao que queria. Um deles, de aproximadamente 25 toneladas, tomou seis meses do estudo à construção e, na noite de sua inauguração, mostrou que não ser-via para a queima de alta temperatura. Na manhã seguinte, foi destruído, depois de dar a maior lição sobre os princípios de isolamento térmico – a de que era preciso construir o forno com o material isolante mais leve possível, para que a temperatura chegasse aos níveis ideais.

O atelier havia gasto tudo o que ganhara nessa construção e o forno mostrara-se inviável. Ao invés de desistir, Soalheiro resolve aprofundar os estudos. O erro propicia novo período de aprendizado.

Começa aí a grande pesquisa sobre isolamento térmico, para entender todo o processo de queima e os materiais nela envolvidos. Um mergulho no universo dos materiais, das argilas e minérios, e de seu comportamento de acordo com a atmosfera. Vai descobrir do que são fei-tas as cores e como se comportam em cada temperatura. Chega ao desenho do forno ideal.

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Com esse forno e os materiais pesquisados durante seis anos – mais de mil provas de diferentes massas e cores –, o resultado foi um sucesso. Saíram 146 peças do forno, em grès e porcelana, todas certas e lindas, com os desenhos, as cores e a textura que são a marca da cerâmica de Soalheiro.

A pergunta surgida naquele momento foi: o que fazer dali em diante? O mergulho nas pesquisas de processos e materiais havia sido tão intenso, o tempo passado na co-zinha do atelier, pesando, misturando, testando receitas fora tão grande, que Soalheiro sentia-se misturado aos minérios, às argilas. Ele ainda não conseguia enxergar todas as possibilidades que nasciam daquelas experiências. Sentia que apenas ter o conhecimento, fundamental para a cerâmica, não bastava. Não percebia naquele momento que tinha nas mãos um vocabulário que o acompanharia pela vida toda e que ele transformaria tantas vezes quanto quisesse.

“Soalheiro é daquelas pessoas que conhecem profundamente a atividade na qual trabalham. Tem o domínio do fogo, dos fornos, da temperatura, do mundo mineral. Ele domina a técnica cientificamente e tem talento artístico”, Guto Lacaz, artista plástico.

“Poucas pessoas no mundo têm a coragem do enfrentamento com a matéria como ele. É transformador. Tem a coragem de transformar e reler a cerâmica, uma arte ancestral. Seu inventário de pigmentos e argilas não vira manual – tem estrutura poética, capacidade de síntese”, Marcelo Drummond, designer gráfico e professor da Escola de Belas Artes da UFMG.

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“Fico impressionada com sua maneira de trabalhar a cerâmica de forma profunda. A busca da matéria, da essência. Sua pesquisa, conhecimento, fabricação e a forma como utiliza o material”, Márcia Larica, designer gráfica.

A exposição de 1��5 que apresenta toda a pesquisa é um sucesso. A cerâmica de alta temperatura desenvolvida pelo atelier tem olhos para a mais fina tradição asiática (Japão, China, Coréia), mas realiza-se de um jeito pessoal e brasileiro. Na época, o ceramista Megumi Yuasa frisou que “o respeito, a humildade e a relação amorosa com que Soalheiro reconhece e experimenta o conhecimento de outros povos e outras épocas permitiram ao poeta gozar do mesmo brinquedo desses povos e retirar encantado do forno sangue de boi chinês e outros esmaltes franceses, ingleses, japoneses etc.”; e conclui: “como não poderia deixar de acontecer, Soalheiro descobre e desenvolve seu próprio repertório de massas e esmaltes, produzindo uma cerâmica genuinamente mineira.”

Numa viagem ao Japão, em 1���, Soalheiro se dá conta do enorme caminho que trilhou sozinho, quando visita fornos de �00 anos de idade e artistas que fazem cerâmica no forno que já era operado por seu tataravô.

Hoje, a técnica (da cerâmica e tantas outras que se incorporaram) está totalmente amalgamada à vida do atelier e é uma sofisticada base para o trabalho. Soalheiro continua escolhendo suas argilas. De tempo em tempo vai às fontes, extrai a argila, traz para o atelier, mói, pesa, mistura, faz as massas. Num processo que fez do atelier um laboratório, as massas são pesadas com rigor diversas vezes – os pós e a água – para que fiquem no ponto exato para resistir às altas temperaturas do forno. A umidade deve ficar por volta de 25% no ponto de amassamento – com mais do que isso, ela não toma forma ao ser trabalhada. Depois de misturada, a massa descansa para ganhar plasticidade. A plastici-dade é determinada pela composição e pelo descanso. Por isso os chineses dizem que o avô tira a argila para o neto trabalhar.

As peças trabalhadas no torno, seguindo o desenho exato e enxuto de Soalheiro, saem ainda moles e ficam secando até perderem a água e chegarem no ponto de couro

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– um ponto em que ficam de cor cinza, com consistência de couro, e têm resistência para sofrer o primeiro acabamento.

Além de pesquisar as massas, Soalheiro também desenvolveu receitas de engobes – pastas que têm formulação similar à da argila e são passadas nas peças em ponto de couro, no acabamento, para servir como uma pele, para que a cor da massa, dependendo do resultado a que se quer chegar, não interfira na cor do esmalte. O engobe funciona como um fundo para a aplicação das cores.

A primeira queima, a �00 graus, que resulta no que se chama de biscoito, tira o resto da água. A cerâmica fica clara nessa fase de biscoito porque, na queima, perde a matéria orgânica.

Depois da primeira queima, as peças são pintadas por imersão, por aspersão ou com pincel – ou misturando duas dessas técnicas. No atelier foram desenvolvidas todas as tintas – uma gama de cores impressionante com cerca de 1.500 provas – com base na mistura de minérios.

Pintadas, as peças seguem para a segunda queima, a 1.300-1.320 graus. Nesse segundo forno, além de controlar a temperatura, controla-se também a atmosfera, o ar. A queima pode ser feita numa atmosfera oxidante ou redutora (saturada de monóxido de carbono). O controle do ar define as cores. Por exemplo, a mesma mistura de minérios pode resultar em vermelho (vermelho de cobre, o famoso sangue de boi chinês) numa queima de redução, e em verde na de oxidação. Uma complexa química fina. Na temperatura alta, tudo tende a desaparecer, a volatilizar. Para ter alguma precisão, é necessário conhecer muito. Como abrir um forno depois de ter trabalhado um mês ou dois e correr o risco de ver tudo perdido?

A queima dura entre 14 e 1� horas e durante todo esse tempo a atmosfera é controlada. Há uma curva de queima que deve ser respeitada. As cores continuam a ser construídas dentro do forno sem que se possa vê-las, só com o controle da temperatura e do ar.

Os utilitários de Soalheiro são tão especiais porque ele faz massas que garantem, nas peças, a espessura que seu desenho enxuto pede. As xícaras são finas, o encaixe da alça é delicadíssimo, o som que emitem ao toque é único. A extensa gama de cores,

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além de bonita, remete aos barrancos, à vida na terra. Essas peças são, na sua maioria, fruto de queimas redutoras – ele consegue a cristalização da hematita nessa atmosfera e a peça parece de aço (e no fundo é). De suas fornadas saem peças com vidros de várias colorações, todos eles muito resistentes, fáceis de lavar e pouco porosos, por isso ideais para utilitários.

Depois das horas de queima, as peças esfriam no forno fechado por 4� horas, no mínimo. Antes disso, nada de ver os resultados. A abertura de um forno é quase um ritual, muita expectativa, enfim, confirmações seguras das cores esperadas, às vezes lindas surpresas.

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Desse mergulho profundo no conhecimento da cerâmica, que atravessa eras e civilizações, Soalheiro sai com um trabalho consistente e um vocabulário riquíssimo que permite incursões por diferentes fazeres artísticos. Sua cerâmica é muito particular e especial, mas é um suporte difícil para alguns projetos. Ela não se presta, por exemplo, a grandes objetos – coisas muito grandes não existem em cerâmica. A questão da cor, de chegar à cor que se quer, é outra dificuldade. Antes da queima, o que pode se transformar em azul no forno de alta temperatura é no máximo um cinza claro. Todas as peças entram no forno cinzas, parecendo iguais, e saem com cores completamente diferentes. Não se vê o que se imagina antes da alquimia mágica do forno. Dependendo das condições tér-micas e atmosféricas dentro dele, não se consegue garantir a existência de uma cor.

Da discussão da materialidade da cerâmica – e das dificuldades que ela impõe –, Soalheiro parte para as experiências com papel. Duas velhas impressoras – uma Heidel-berg de 1�50 e uma Guarani de 1�30 – e um prelo Shelter Giesecke da década de 1�30, que ele havia comprado e restaurado, começam a ganhar espaço nos trabalhos do atelier. Antes, faziam apenas as lindas embalagens que embrulhavam a cerâmica. No papel, Soa-lheiro continua buscando a personalidade que sempre procurou nas massas para imprimir suas cores, seus minérios, e para construir seu desenho.

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A tipografia e o trabalho com imagens digitais permitem maior controle visual. Tran-sitar com os minérios nessas mídias é a possibilidade de chegar mais perto das cores desenhadas na cabeça. É também a possibilidade de ampliar esse universo e de usar todas as cores que nasceram de tanto tempo de pesquisa com os minérios que colorem a cerâmica. As novas técnicas possibilitam um olhar mais ampliado sobre o mesmo uni-verso.

O atelier expande-se para além da cerâmica mantendo sua característica básica que é o aprofundamento do conhecimento e o domínio dos processos. Soalheiro apropria-se das velhas impressoras e dos tipos móveis de madeira e metal, aprende a trabalhar com eles e reinventa seu uso. É um novo mergulho na pesquisa – os tipos de papéis, as gramaturas, como reagem às tintas e às diversas formas de impressão. Ele mistura as técnicas e chega a passar o papel pelo forno para conseguir a fusão de minérios, com resultados surpreendentes.

Paralelamente, aprofunda seus conhecimentos nas novas tecnologias digitais de impressão, de captação de imagens, de edição. Como na cerâmica, ele reúne os fazeres mais antigos à tecnologia de ponta para dispor de todas as técnicas a seu favor.

“Soalheiro usa a tecnologia de forma única. Ele entende o equipamento e cria coisas novas. Usa a técnica antiga para fazer o inédito”, Márcia Larica.

“Ele comprou e restaurou as impressoras – isso é maravilhoso. Agora mistura tipografia com mineralogia. Faz a peça gráfica passar pelo forno. É um bruxo, que articula com tudo que tem à mão, com tudo o que conhece”, Guto Lacaz.

“Soalheiro imprime um novo olhar na tipografia. Não é tipografia nem cerâmica – fica difícil denominar, encontrar lugar, renomear”, Marcelo Drummond.

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Considerando a existência dos três paradigmas de produção da imagem, classifi-cados por Lúcia Santaella no texto “A imagem pré-fotográfica-pós” – o paradigma pré-fotográfico, o fotográfico e o pós-fotográfico –, nota-se que no primeiro paradigma estão os processos artesanais de produção de imagens, imagens feitas à mão, que dependem da habilidade manual de um indivíduo. No segundo, estão os processos automáticos de captação de imagem, entre eles a fotografia, o vídeo, o cinema. O terceiro paradigma refere-se às imagens sintéticas, inteiramente calculadas por computação, vetorizadas – são a transformação de uma matriz de números em pixels visualizados sobre uma tela.

Soalheiro passeia entre eles, embaralha os três e utiliza-os da maneira mais apropiada para cada uma de suas obras. Mas a força maior de seu trabalho, sua base, está no primeiro paradigma, que tem como característica básica a realidade material das imagens, a forma acentuada com que os suportes físicos, as substâncias e os instrumentos utiliza-dos impõem sua presença. São esses os elementos que ele leva para todas as mídias.

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Os novos elementos que habitam o atelier ampliam o universo de referências e, de

algum modo, retomam temas antigos. Os brancos da tipografia – peças de metal que serviam para construir o espaço branco em volta do texto tipográfico e que nunca eram impressas – entram nas composições, com sua textura e sua forma valorizadas. Soalheiro se apropria desse elemento tipográfico de maneira inédita, imprimindo o que não era para ser impresso e transformando em traço de desenho o que antes era invisível. Novamente, é o mergulho no entendimento dos processos e o domínio de um conhecimento que permitem esse olhar diferenciado. É como se, devido à profundidade do mergulho, ele conseguisse chegar ao avesso das coisas.

“Quando Soalheiro dá visibilidade ao que nasceu para não ser visto, ele ativa a voz dos espaços brancos. Faz arquitetura gráfica, propondo um empilhamento de tijolos, de proporções e de espaços. Na tipografia, os brancos são infinitamente mais importantes do que o impresso, porque dão voz ao impresso. Ele muda a relação entre as partes impressa e não impressa”, Marcelo Drummond.

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“Soalheiro vai fundo quando imprime o branco – quando imprime o que não era para ser impresso –, enfatiza os detalhes, as texturas do papel, do metal”, Márcia Larica.

Os brancos servem como matéria e como elemento de desenho para suas composi-ções e decomposições. Assim como serviram os tijolos, os potes, os minérios, as cores. Eles também se prestam a uma busca do sentido de ordem, e entram nesse processo criativo de construções e alquimias, ora como forma, ora como matéria, para sair como criação de uma nova linguagem.

“O desenho perpassa tudo. Ele cria um léxico – tudo é enxuto, sofisticado, preciso. Há uma métrica, uma edificação do desenho, equações do desenho. Há espaços para criar as equações do desenho e a construção de um vocabulário gráfico”, Marcelo Drummond.

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Até pelo nome, reúnem-se nesses trabalhos cerâmica e tipografia. A azulejaria tipo-gráfica de Soalheiro seleciona elementos gráficos entre ornamentos de antigas oficinas gráficas para servir a uma das questões de fundo de seu trabalho, a modulação. Os elementos são fotografados e depois reproduzidos vetorialmente em computador, para transformar-se em desenho – um resgate instigante e cheio de beleza.

Assim como azulejaria é modulação e seriação, olaria, cerâmica utilitária, tipos móveis de tipografia e pixels também são. Nesse sentido, as imagens da azulejaria tipográfica repetem o ambiente do atelier, em que estantes moduladas expõem objetos modulados, organizados numa ordem, num desenho próprio. O que marca as repetições é sempre a busca da singularidade.

Esse azulejo “tipográfico digital” é impresso sobre um fundo de cor mineral – as cores pesquisadas para a cerâmica são agora transformadas em tintas gráficas e continuam a ser produzidas no atelier. O trabalho utiliza impressão mecânica – o fundo de cor é chapado um a um no prelo manual – e captação digital, para dar a cada matéria o volume, a textura e a definição que merecem. Tudo se mistura: os nomes, os conhecimentos e as técnicas, para virar forma, para estampar o processo criativo.

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Dentro de um universo tão extenso, Soalheiro faz escolhas inéditas e precisas, olha para os elementos por ângulos diferentes e os vê como ninguém viu. Para ele, o conhe-cimento só ganha sentido se puder determinar escolhas e se estiver a serviço da neces-sidade de se descobrir e se contar. O vocabulário vasto precisa dos limites da expressão para ganhar força.

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Hoje, o processo de criação no atelier de Soalheiro e o que ele engendra não podem ser divididos em departamentos, não podem ser classificados. O trabalho de agora, que está estampado no livro, revela um processo de construção e desconstrução que busca nas matérias e no desenho suas partidas e chegadas. As voltas giram inteiras e o artista faz e refaz seu percurso muitas vezes para cada escolha, cada imagem.

Da cerâmica para a tipografia e de volta para a cerâmica, a evolução do trabalho acontece dentro dos processos e também é exposta. Ela mostra que é possível enxergar novas formas no que se vê há tanto tempo.

“Soalheiro consegue achar formas novas num mundo repleto e mostrar o que não foi mostrado ainda”, Guto Lacaz.

“Ele é um híbrido que trabalha com a dissolução de fronteiras entre linguagens”, Marcelo Drummond.

Na hora em que uma das voltas se completa e que começa a imprimir na cerâmica, Soalheiro volta à questão ancestral, como já havia voltado no desenvolvimento das argilas

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e das cores. De certa forma, retorna à história da escrita, nas tabuletas de argila gravadas. Junta essas placas com as imagens que descobriu no universo da tipografia e assim, como diz o designer gráfico Marcelo Drummond, “faz uma edição na linha do tempo com um olhar que só o artista tem”.

Se este livro pode hoje contar histórias que usam como suporte a cerâmica, os minérios, a tipografia, os processos de impressão, a tecnologia digital, é porque todos esses caminhos foram compostos e decompostos por Soalheiro. Misturar pigmentos minerais, computação gráfica e impressão tipográfica é o caminho natural de um artista que construiu seus fornos, pesou e balanceou cada uma de suas massas e de seus minérios, e desenvolveu a ferramenta específica para cada trabalho. No livro, ele encontra a excelência, lança mão de todas as linguagens e encarna seus múltiplos personagens – o ceramista, o tipógrafo, o autor, o editor, o impressor, o artista.

Esta brochura foi composta com a fonte Univers corpo 11 e tipos móveis de madeirados anos 1�30 digitalizados para uso em títulos, impresso em papel Reciclato �0g/m2,

Belo Horizonte, Minas Gerais, em maio de 2006, para Soalheiro.

Para ver imagens do projeto e conteúdo audiovisual acesse:www.soalheiro.com.br/livro

Parte integrante do livro Tipografia/Cerâmica.