Tipos Gestao Claudia
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Patrimonialismo, Burocracia e Gerencialismo:
Construindo o Leviat ps-moderno
Ana Cludia Niedhardt Capella
Outubro 1998
Favor no citar este trabalho sem prvia comunicao autora: [email protected]
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Introduo
Uma das crticas mais contundentes que se faz ao Estado brasileiro, neste
momento de reforma, diz respeito ao modelo burocrtico de administrao pblica. De
acordo com diagnstico contido no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado,
urgente redefinir o papel do Estado, devido a dois motivos principais: o processo de
globalizao econmica e a crise do Estado. A crise do Estado, por sua vez, seria
causada por trs fatores: uma crise fiscal aguda; o esgotamento da estratgia
estatizante de interveno do Estado; e a crise da administrao pblica burocrtica
(Brasil: 1995). O documento aponta o arcaico modelo burocrtico como grande mal
a ser superado, em direo modernidade do novo modelo gerencial1.
Est implcito neste argumento que a burocracia weberiana teria sido
implementada no Brasil durante o Estado Novo, atravs da criao do Dasp
(Departamento Administrativo do Servio Pblico)2. Baseado em critrios de
impessoalidade e legalidade, o modelo burocrtico teria possibilitado a racionalizao
da administrao pblica, atravs de uma ntida separao entre as esferas pblica e
privada. Desta forma, o modelo institudo pelo Dasp teria o mrito de romper com
prticas clientelistas vigentes, neutralizando a mquina administrativa dos jogos de
convenincia e interesse prprios da dinmica poltica e imprimindo-lhe uma
racionalidade burocrtica. Mas, por outro lado, teria tambm apresentado uma srie
de disfunes com as quais nos defrontamos at hoje (morosidade, excesso de
papelrio, custos elevados).
Este trabalho pretende fazer um estudo mais criterioso do processo histrico
brasileiro, para lanar novas luzes sobre esta leitura da realidade, hoje dominante nos
crculos ligados ao poder. Em primeiro lugar, cabe questionar a possibilidade de uma
neutralidade tcnica em relao dinmica poltica. Entendemos que, sob um regime
(continua)
1O modelo ps-burocrtico, chamado por Bresser Pereira de administrao gerencial, tem suas razes no gerencialismo britnico da dcada de 80, no modelo americano de Reinventando o Governo e nas tcnicas de administrao adotada nas empresas privadas. 2 Os fundamentos tericos que sustentam o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado baseiam-se nos escritos do atual Ministro da Administrao e Reforma do Estado, Lus Carlos Bresser Pereira; tendo, ele prprio, redigido grande parte do documento. Em trabalhos anteriores, Bresser Pereira aceita a implantao do modelo burocrtico de
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autoritrio, utiliza-se freqentemente este tipo de argumento para legitimao de suas
atividades, justificando a supresso da expresso pblica em nome da seriedade e da
no-contaminao com o clientelismo. Mas, na prtica, como veremos aqui,
constatamos tratar-se apenas de um discurso ideolgico, j que, embora os
instrumentos democraticamente legtimos de canalizao de demandas da sociedade
estivessem ausentes durante um longo perodo, as prticas de cooptao e de
representao direta de interesses dentro do Estado estiveram mais presentes do que
nunca.
Ao analisarmos o movimento de 30, veremos que no se estabelece um marco
de ruptura no plano poltico, o que implica tambm na continuidade da prtica
administrativa. No decorrer deste estudo, pretendemos analisar as mudanas no papel
do Estado a partir dos anos 30 de forma a compreender o que se apresenta,
aparentemente, como uma contradio entre o amplo recurso s prticas cooptativas
e patrimonialistas, ao mesmo tempo em que se tenta instituir um modelo burocrtico
de administrao.
Um dos padres de relacionamento Estado-sociedade o clientelismo, que no
governo Vargas lhe permitiu manter as velhas oligarquias sob controle, atravs da
acomodao destas no Estado de Compromisso. Em seu segundo governo, e no
governo Kubitschek, outro padro se torna preponderante: o insulamento
burocrtico3, que permitiria de uma certa forma driblar a irracionalidade populista
considerada ento inerente aos polticos. Este trabalho pretende demonstrar que no
houve uma substituio de um tipo de relacionamento por outro, mas uma
complementaridade entre eles, como o modelo terico do neopatrimonialismo nos
permite compreender.
Assim, esta constatao tem importantes implicaes sobre a afirmativa de que
a atual crise do Estado causada pelo modelo burocrtico de administrao, pois, se
este modelo no se consolidou, mas se sobreps ao padro patrimonialista moderno
(continua)
administrao no Brasil durante o Estado Novo, e a partir da dcada de 80, passa a salientar a atual crise deste modelo. 3 Este padro de relacionamento assim definido por Nunes: na linguagem da teoria organizacional contempornea, o insulamento burocrtico o processo de proteo do ncleo tcnico do Estado contra a interferncia oriunda do pblico
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de gerncia de demandas, como atribuir a crise burocracia?
O movimento de 30
Para compreendermos a aparente contradio entre a racionalidade burocrtica
e a permanncia de relaes patrimonialistas no interior do aparelho do Estado que se
constri a partir de 30, fundamental termos em mente que a Revoluo de 30 no
foi nem a ascenso da burguesia industrial ao poder, nem uma revoluo das classes
mdias. Esta tese, sustentada por Boris Fausto, til no sentido de apontar a
coexistncia de setores diferentes dentro do aparelho do Estado, imprimindo-lhe suas
caractersticas prprias.
Entender a Revoluo de 30 como a ascenso da burguesia industrial
dominao poltica implica, como explica Fausto, numa concepo dualista da
sociedade brasileira. Esta concepo polariza dois setores distintos e antagnicos
dentro da sociedade brasileira: de um lado um setor pr-capitalista, arcaico,
tradicional e rural; e por outro lado um setor capitalista, moderno, racional e urbano.
A sociedade moderna, na busca pelo desenvolvimento, deveria superar o atraso
ultrapassando os obstculos impostos pela sociedade arcaica. Nesta concepo, a
Revoluo de 30 marcaria o fim da hegemonia da burguesia do caf sociedade
arcaica - em favor de um suposto setor industrial, representante do setor moderno e
dinmico da sociedade.
Entretanto, nem o governo tinha projetos industrialistas, nem a burguesia
industrial tinha esta pretenso (Fausto: 1994, Diniz 1978). Alm de a industrializao
estar ausente enquanto projeto de governo, as polticas econmicas adotadas eram
muitas vezes contraditrias em relao industrializao: coexistiam tanto medidas
favorveis indstria quanto favorveis aos setores tradicionais. Por outro lado, na
campanha eleitoral para a sucesso de Washington Lus, as associaes industriais
paulistas apoiavam Jlio Prestes - candidato governista - pois assim teriam garantida
ou de outras organizaes intermedirias (Nunes: 1997, 34).
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a continuidade do programa financeiro em execuo. E no h qualquer indcio, afirma
Fausto, de que a grande indstria tenha mudado de atitude nos preparativos
revolucionrios aps a derrota da candidatura Getlio Vargas, e no curso da Revoluo
de 30 (Fausto: 1994, 30). O episdio de 1932 em So Paulo tambm demonstra a
oposio da burguesia industrial paulista em relao ao governo institudo com a
revoluo. Nos outros estados que se opunham a Jlio Prestes, como Rio Grande do
Sul e Minas Gerais, os quadros polticos ligados diretamente Revoluo de 30 no
estavam vinculados a interesses industrialistas. A prpria Aliana Liberal no tinha um
programa industrialista.
, contudo, indiscutvel a existncia de conexes entre o processo de
industrializao brasileira e a Revoluo. Embora o desenvolvimento industrial no
tivesse sido planejado pelo governo revolucionrio, nem pelos prprios industriais, o
perodo ps-30 foi marcado por intensas transformaes na estrutura econmica no
Brasil. Desta forma, a burguesia teria sido beneficiada pelos chamados efeitos
reflexos da ao do Estado (Fausto, 1994). Baseados nesta realidade, muitos dos
tericos que aceitam o episdio revolucionrio como a forma de ascenso poltica da
burguesia, afirmam que esta assumiu o poder no de uma forma direta, mas como
conseqncia das polticas que passam a ser desenvolvidas pelo Estado. Esta
argumentao tambm refutada por Fausto, pois ele mostra que no apenas os
interesses da burguesia industrial foram atendidos nos anos posteriores a 30, mas
tambm os interesses das outras fraes da burguesia, como por exemplo a do caf.
Assim, a revoluo de 1930 (...) no foi um movimento que tenha conduzido a
burguesia industrial dominao poltica (Fausto: 1994, 13).
As classes mdias, entendidas como populao civil urbana, que trabalha por
conta prpria ou que recebe salrios por trabalho no-manual, abrangendo os
pequenos empresrios e comerciantes, funcionrios pblicos, empregados do
comrcio, profissionais liberais (Fausto: 1994, 54) protagonizam o episdio
revolucionrio para outra corrente de pensadores4. Outros autores, embora no
confiram este peso exclusivamente s classes mdias, a identificam diretamente com
4 O autor cita, por exemplo Virgnio Santa Rosa, Guerreiro Ramos e Hlio Jaguaribe.
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o movimento tenentista5. Nesta linha de interpretao, os tenentes seriam portadores
da ideologia da classe mdia, representando-a no governo aps a Revoluo.
Boris Fausto, adverte porm que do ponto de vista mais geral das relaes
entre o tenentismo e as populaes urbanas, certo que a corrente contava com a
simpatia popular (...). Mas no se pode inferir da simpatia popular para com os
tenentes a existncia de uma estreita vinculao entre o movimento e as chamadas
camadas mdias (Fausto: 1994, 62). As relaes entre classes mdias e tenentismo
no se concretizam nem sob a forma da efetiva organizao destas classes pelo
movimento, nem pela sua representao especfica como potncia governamental
(81). Portanto, assim como ocorre com a burguesia industrial, o papel das classes
mdias no movimento de 30 no pode ser desconsiderado. Mas tambm no se pode
alegar que foi uma revoluo desta classe, nem que sejam seus principais
beneficirios.
A refutao destas duas anlises sobre a Revoluo de 30 pode ser considerada
como a demonstrao da impossibilidade, neste episdio, de interpretaes classistas
(Schwartzman: 1982). Sem ser to categrica a esse respeito, Diniz desloca a ateno
para o plano das relaes entre os grupos, o que segundo ela, confere maior
flexibilidade anlise (Diniz: 1978).
De qualquer forma, o Estado brasileiro, a partir de 30, deixa de representar
diretamente os interesses de qualquer setor da sociedade. A burguesia do caf est
deslocada do poder, em conseqncia da crise econmica; as classes mdias no tm
condies para assumir seu controle; os tenentes fracassaram como movimento
poltico autnomo; os grupos desvinculados do setor cafeeiro, especialmente o
industrial, no se encontram em condies de ajustar o poder medida de seus
interesses, seja porque tais interesses coincidem freqentemente com os daquele
setor, seja porque o caf, apesar da crise, continua a ser um dos centros bsicos da
economia. O Estado encontrar condies de abrir-se a todos os tipos de presses
sem se subordinar exclusivamente aos objetivos imediatos de qualquer delas
5 Octavio Ianni, Francisco Weffort.
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(Fausto: 1971). Este pacto entre grupos rurais, industriais, militares e setores da
classe mdia foi chamado de Estado de compromisso.
A estrutura estatal a partir de 30
A convivncia destes setores dentro do Estado no poderia ser pacfica. Uma
vez que o Estado de compromisso abarcava interesses muitas vezes contraditrios,
o governo Vargas concentrou-se em contentar todos esses setores, o que acabou por
gerar polticas em diversas direes: algumas visavam proteger a indstria,
concedendo financiamentos ao setor (Diniz: 1978); outras buscavam amparar a
burguesia cafeeira, uma vez que a crise de 29 continuava produzindo efeitos nefastos
ao setor (Fausto: 1994); outras polticas tinham como objetivo incorporar e
domesticar os trabalhadores (Weffort: 1980).
Uma das caractersticas mais marcantes do perodo Vargas a interveno do
Estado na economia e a centralizao poltica. De uma forma geral, tem incio um
processo crescente de criao e expanso de agncias governamentais, com
acentuada centralizao destas no Executivo federal. Esta expanso, que se deu de
forma acelerada e diversificada, pode ser classificada, do ponto de vista da estrutura
organizacional, em trs nveis, e refletem as presses dos grupos na nova uma forma
institucional do governo.
Num primeiro nvel, houve uma grande expanso de rgos da administrao
direta: ministrios, autarquias e novas agncias. So rgos ativos no sentido
executivo da administrao e denotam aspiraes permanncia e
institucionalizao, com poder de regulamentao, direo, fiscalizao e controle.
Alguns exemplos so a criao do Ministrio da Educao e Sade (1930), Ministrio
do Trabalho, Indstria e Comrcio (1930), Instituto do Acar e do lcool (1933),
Instituto do Mate (1938), Instituto do Sal (1940), Instituto do Pinho (1941), Comisso
de Similares (1934), Comisso Executiva do Plano Siderrgico Nacional (1940).
Por meio da administrao indireta, principalmente de empresas estatais, se d
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o segundo nvel de expanso. Exemplos da expanso empresarial do so a Companhia
Siderrgica Nacional (1941), Companhia Docas da Bahia (1941), Companhia Vale do
Rio Doce (1942), Companhia de Ao e Ferro Vitria (1943), Fbrica Nacional de
Motores (1943), Companhia Nacional de lcalis (1943), Companhia Itabira de
Produtores de Ao (1944), Companhia Hidroeltrica de So Francisco (1945).
Num terceiro nvel de expanso do Estado, esto os rgos formuladores de
polticas pblicas, principalmente na rea econmica. Estes rgos que assumem a
forma de conselhos - permitiam a associao dos interesses de grupos econmicos
privados (grupos de interesses agrrios e industriais) com o governo, mas por terem
um carter de assessoramento no detinham, entretanto, poder decisrio, e sim
consultivo. Algumas organizaes caractersticas deste nvel de expanso foram:
Conselho Nacional do Caf (1931), Conselho Federal de Comrcio Exterior (1934),
Conselho Nacional de Petrleo (1938), Conselho de guas e Energia Eltrica (1939),
Comisso de Siderurgia (1940), Comisso de Combustveis e Lubrificantes (1941),
Conselho Nacional de Ferrovias (1941), Comisso do Vale do Rio Doce (1942),
Conselho Nacional de Poltica Industrial e Comercial (1943) e Comisso de
Planejamento Econmico (1944). Alguns desses rgos tiveram durao efmera, ou
cumpriram apenas parcialmente seus objetivos; outros se estabilizaram, deixando de
serem rgos de assessoramento atividade do executivo para se transformarem em
rgos da administrao direta, autarquias e alguns acabaram posteriormente se
transformando em empresas estatais.
A principal caracterstica destes rgos, portanto, a interveno do Estado no
campo da poltica econmica, mas no atravs de organismos de execuo direta. Isso
significa que estes rgos no tinham poder deliberativo, mas nem por isso foram
menos importantes, pois exerciam grande presso sobre os rgos de execuo.
Muitas vezes, as decises destes conselhos eram contrrias aos propsitos dos outros
rgos da administrao direta, o que chegou a causar bloqueio do sistema decisrio e
imobilismo. Diniz, que faz um detalhado estudo sobre o funcionamento destes rgos,
nos fornece um exemplo desta tenso na rea financeira: se em certos rgos do
aparelho estatal, como o Ministrio da Fazenda e o Banco do Brasil, principais
responsveis pela formulao e execuo da poltica financeira do governo, podemos
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constatar o predomnio de uma orientao mais tradicional caracterizada pela
preocupao com certas metas de austeridade financeira, preciso lembrar que as
decises econmicas sofriam tambm a interferncia de outros rgos, como as
comisses e os conselhos tcnicos. Embora sem poder deliberativo, dada sua natureza
consultiva, tais rgos freqentemente desencadeavam presses conflitantes com os
propsitos definidos pela instncia executiva (...) Em alguns casos, como a poltica de
controle de preos, a diversidade de presses chegaria a provocar o bloqueio do
sistema decisrio (Diniz: 1978, 77-78). Os conselhos, alm de funcionarem como
instncia de assessoramento nas questes de poltica econmica, desempenharam
tambm um papel de expresso da sociedade civil, principalmente aps 1937, perodo
no qual os canais tradicionais de representao e expresso estavam bloqueados.
Esta forma de organizao do poder executivo corresponde estratgia do
governo Vargas de conciliar os interesses de fraes da burguesia atravs da
associao com os interesses de outros setores que apoiavam o governo. Por um lado
operou-se um movimento de centralizao atravs dos rgos localizados na
administrao direta, pressionados por uma estrutura rgida e subordinados
diretamente a Vargas; e por outro instituiu-se a desconcentrao administrativa
(criando uma estrutura paralela administrao direta) locus dos conselhos,
comisses tcnicas e dos assuntos econmicos em geral, com uma estrutura mais
flexvel.
Dasp: racionalidade tcnica ou instrumento de centralizao?
Para compatibilizar essa estrutura bsica do aparelho administrativo do Estado
com o modelo intervencionista que ora se institua, foi deflagrado um processo de
reforma administrativa, criando em 1936 o Conselho Federal do Servio Pblico,
sucedido em 1938 pelo Departamento Administrativo do Servio Pblico - DASP.
Concebido sob variada inspirao (baseou-se no servio civil britnico, francs,
italiano, e mais marcantemente no servio civil americano e alemo), o Dasp foi
criado para atuar nos campos da organizao e racionalizao dos mtodos e na
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reviso de estruturas; administrao de pessoal, atravs da formao de uma poltica
de administrao de pessoal consolidada no Estatuto dos Funcionrios Pblicos da
Unio e baseada no sistema de mrito; administrao de material com simplificao,
padronizao e aquisio racional do material; e mais tarde elaborao e execuo
oramentria, com a instituio da funo oramentria enquanto atividade formal e
permanente vinculada ao planejamento.
A criao e organizao do DASP pautou-se, segundo Beatriz Wahrlich
(Wahrlich: 1983), pelos princpios da administrao cientfica, bastante difundidos na
poca, como unidade de comando, diviso do trabalho, especializao das funes,
cujos expoentes foram Taylor (com a teoria da administrao cientfica e sua
metodologia para maior economia e eficincia), Fayol (princpios da administrao e
introduo das funes de planejamento, direo, coordenao e controle), alm de
encontrar na teoria dos departamentos de Willoughby (com clara distino entre
atividades-fim e atividades meio) a sua fonte direta de inspirao. Estes modelos
cientficos, segundo os organizadores do DASP, proporcionariam administrao
pblica uma racionalizao e conseqente eficincia administrativa semelhante a da
empresa privada, atributos considerados indispensveis num momento no qual o
Estado passa a intervir em todos os setores da atividade nacional, principalmente na
atividade econmica.
A criao do DASP tem sido apontada tambm como o momento da implantao
de uma burocracia weberiana no Brasil, a qual era entendida como a forma mais
eficiente e racional de exerccio do governo. Segundo a concepo weberiana, a
burocracia pautada pela hierarquizao e racionalidade da autoridade, o que
pressupe a diviso do trabalho; a autoridade limitada do cargo, regida por normas
explcitas; a remunerao fixa e de acordo com a hierarquia; a competncia tcnica
dos funcionrios, nomeados e no eleitos para o cargo, que devem exerc-lo em
princpio como sua nica ocupao, no qual so estveis e tm perspectivas de
carreira; a separao entre a propriedade do funcionrio e a propriedade da
administrao, ou seja, entre o estatal e o privado; a nfase em regras gerais e
comunicaes escritas; a disciplina racional; tudo, enfim, acentuando a
impessoalidade, a imparcialidade e a neutralidade do funcionrio (Weber: 1982).
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Alm de equipar tecnicamente o Estado para suas crescentes atividades, a
implantao de uma burocracia moderna objetivava excluir uma estrutura
patrimonialista de administrao, que estava presente at ento, como reflexo da
estrutura clientelista, predominante nas relaes polticas. Basicamente, acreditava-se
que o Dasp seria um rgo neutro, uma ilha de racionalidade e especializao tcnica,
voltado para a introduo dessas caractersticas em todo o servio pblico,
semelhana do modelo gerencial utilizado na administrao de empresas; capaz de
proteger essa racionalidade das interferncias oriundas do pblico ou de outras
organizaes intermedirias e neutralizar as presses dos grupos que sustentavam o
governo.
um equvoco, no entanto, tomar a burocracia como modelo prescritivo de
eficincia a ser adotado na gerncia dos negcios pblicos. O modelo burocrtico deve
ser considerado no contexto do mtodo de pesquisa utilizado por Weber, que emprega
o recurso da constituio de tipos ideais6. As caractersticas da burocracia descritas
pelo autor no representam fielmente a realidade, mas fazem parte do exerccio de
simplificao e exagero da realidade emprica. Assim, a afirmao de que o Dasp
construiu uma burocracia weberiana no Brasil encerra em si um erro terico, pelo
simples fato de basear-se em um modelo que no encontra correspondncia na
realidade emprica.
Alm de um erro terico, a suposta implementao do modelo burocrtico
encontra dificuldades de verificao tambm na prtica. Embora tivesse como
objetivo promover a eficincia administrativa, principalmente atravs da criao de
um servio pblico de elite, com controle rgido dos mecanismos de seleo e
promoo do funcionalismo, o discurso tcnico e de neutralidade poltica que
justificava o Dasp na verdade encobria a real tarefa deste: a centralizao de poder.
Mais do que um rgo tcnico, o DASP foi um poderoso instrumento poltico: atravs
6 O recurso aos tipos ideais utilizado por Weber para enfatizar determinados traos da realidade at conceb-los na sua expresso mais pura e conseqente, que jamais se apresenta assim nas situaes efetivamente observveis (Cohn: 1991,8). Note-se que o tipo ideal - e isto de extrema importncia neste estudo no constitui nem uma hiptese, nem uma proposio, nem uma verificao da realidade: um recurso puramente metodolgico como advertiu o prprio Weber (Weber: 1974).
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deste rgo foram introduzidos os instrumentos de controle que permitiram a
centralizao do poder nas mos de Vargas. A partir do momento em que os
governadores dos estados foram substitudos por interventores, estes passaram a
serem nomeados diretamente pelo presidente, gozando de poderes executivos,
legislativos e aplicando medidas tpicas do estado de emergncia7. At as polcias
estaduais dependiam dos interventores (e, portanto, de Vargas), de forma a impedir
formaes paralelas e contrrias ao governo federal. Para supervisionar as atividades
desses interventores, so criados nos estados dos "daspinhos", comandados por
burocratas nomeados pelo Presidente. Desta forma, as relaes entre o governo
central e os estados foram regulamentadas de modo a eliminar os ltimos resqucios
de federalismo, que caracterizava a Repblica Velha (Sola: 1971 , 268).
Alm de permitir a centralizao de poder, o departamento tambm serviu, na
prtica, para aliar o discurso tcnico vontade poltica de Getlio Vargas. Estando o
DASP subordinado diretamente ao presidente da Repblica, muitas vezes o corpo
tcnico do departamento era chamado a opinar sobre diversos assuntos, fazendo
assim com que o seu prestgio de rgo tcnico fosse utilizado para fazer passar
decises do presidente.
A caracterstica do movimento de 30, como vimos, foi uma poltica de no-
ruptura do governo revolucionrio com quaisquer grupos; uma poltica de
acomodamento de diversos setores dentro do governo. Assim, a estrutura
governamental tambm seguiria este padro, ou seja, a idealizao de um modelo de
gesto que seguisse imune s presses, acima da racionalidade poltica - tida como
nefasta aos interesses pblicos - estaria fadada ao insucesso. Ao detalharmos, na
seo anterior, os trs nveis de expanso do Estado, chamamos a ateno para a
criao de inmeros rgos regulamentadores da atividade econmica, colocados
margem da estrutura administrativa convencional, destinados a abrigar os interesses
especficos de cada setor. Estes rgos, nos quais acreditamos que se dava a dinmica
real de funcionamento do governo, escapam racionalidade burocrtica daspiana,
7No incio do Estado Novo foi declarado estado de emergncia em todo o pas, o que tornava possvel ordenar prises, exlios, invaso de domiclios e tornava-se legal a censura. Estes atos no eram submetidos deciso do judicirio, sendo deliberados apenas por Vargas.
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tornando clara a ambigidade da estrutura: por um lado criado na administrao
direta uma aparelho burocrtico, rgido, baseado em procedimentos; ao mesmo tempo
em que, por outro lado, so criados espaos para a insero direta de interesses -
expresso institucional do clientelismo.
O mrito do Dasp foi, sim, possibilitar a verdadeira condio de hegemonia do
Estado: introduziu os instrumentos de controle, que permitiram a definida
centralizao do poder e a integrao nacional (Sola: 1971, 268) e no romper com a
cultura clientelista profundamente enraizada. O conceito de neopatrimonialismo, que
veremos agora, nos fornece um importante instrumental terico para compreender o
porqu desta aparente contradio.
Neopatrimonialismo
O conceito de patrimonialismo, usado nos termos weberianos, refere-se a um
sistema de dominao tradicional no qual no h clara diferenciao entre as esferas
pblica e privada; e onde, ao mesmo tempo, as atividades econmicas so carreadas
pelo Estado. O argumento desenvolvido por Schwartzman que o patrimonialismo
no simplesmente um sistema pr-capitalista do passado, mas til no sentido de
auxiliar na compreenso da organizao social e poltica atual.
Na literatura weberiana, o modelo patrimonial de dominao d lugar ao modelo
burocrtico, como resultado da uma dinmica poltica de centralizao crescente do
poder, e o aumento progressivo da participao poltica nas sociedades de massa.
Entretanto, esta substituio no feita de forma completa; h uma continuidade
temporria entre os dois sistemas. Foi assim que, na Europa Ocidental, o poder
patrimonial eventualmente promoveu a racionalidade formal da lei e da administrao,
o que se choca com a tendncia natural dos governos patrimoniais de promoverem
justia substantiva e baseada no favoritismo pessoal. (...) neste sentido que a
dominao poltica racional-legal [exercida atravs da burocracia] filha do
casamento entre o patrimonialismo dos regimes absolutistas e a burguesia
emergente: uma forma de dominao de base contratual, bastante eficiente e
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adequada s necessidades do capitalismo moderno (Schwartzman: 1982, 47).
Se esta foi a realidade verificada por Weber em relao Europa Ocidental, o
autor coloca a intrigante questo do que teria acontecido em pases sem um passado
feudal e que se formaram margem da revoluo burguesa. Nestas sociedades, ele
diz, tem lugar um certo tipo de patrimonialismo moderno, ou neopatrimonialismo, que
no simplesmente uma forma de sobrevivncia de estruturas tradicionais em
sociedades contemporneas, mas uma forma bastante atual de dominao poltica
(...) pela burocracia e a chamada classe poltica (Schwartzman: 1982, 46). Este fato
tem importantes implicaes sobre a forma de relacionamento desenvolvida entre
Estado e sociedade, e lana novas luzes sobre a aparente contradio entre o
desenvolvimento de uma estrutura estatal na qual convivem, ao mesmo tempo, um
setor burocrtico, nos moldes weberianos, justaposto a um setor de atendimento de
demandas, discricionrio, ou seja, patrimonialista.
Schwartzman explica que todas as sociedades polticas tm uma mistura de
corporativismo (associao de grupos profissionais, sindicatos, para proteger seus
direitos das oscilaes do mercado) e representao poltica (baseada na disputa entre
classes pelo controle das oportunidades de mercado). O que h de peculiar no caso
brasileiro que, devido s fortes caractersticas neopatrimoniais do Estado, o
relacionamento entre esses dois sistemas de participao se traduziu na cooptao
poltica, que foi o processo pelo qual o Estado tratava, e ainda trata, de submeter a
sua tutela formas autnomas de participao (...). Quando so efetivos, [os
mecanismos de cooptao] tendem a reduzir o conflito poltico pela limitao de seu
escopo, ao estabelecer monoplios irredutveis de privilgios. Eles criam, ao mesmo
tempo, estruturas de participao poltica dbeis, sem consistncia interna e
capacidade organizacional prpria (Schwartzman: 1982, 53). Esta a caracterstica
fundamental de um sistema neopatrimonial: a relao Estado-sociedade realizada
mais atravs da cooptao do que da representao poltica. Nestas condies,
estabelece-se uma negociao contnua entre o Estado neopatrimonial e setores da
sociedade, negociaes que podem levar institucionalizao da cooptao pelo
sistema (Ministrio do Trabalho e sistema previdencirio); excluso de setores
(como por exemplo o setor de trabalhadores rurais); expanso econmica do Estado
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(que permite distribuir privilgios a grupos privados nacionais e internacionais); e ao
populismo (que permite uma relao direta entre a liderana poltica e o povo, sem
intermediaes) (Schwartzman, 1982).
A poltica de cooptao dos setores mais ativos tem duas conseqncias
bsicas: diferentemente do sistema de representao, que gira em torno de polticas
pblicas bem delineadas, a cooptao concentra-se na distribuio de recursos entre
os setores cooptados - nos moldes patrimoniais - ao mesmo tempo em que torna
necessrio uma burocratizao crescente. Esta a origem da aparente contradio
apontada no incio: a persistncia de uma forma de organizao social de tipo
patrimonial aliada uma prtica cooptativa, enfraquece o poder decisrio central no
sentido de uma orientao precisa de polticas pblicas, tendendo a concentrar-se na
distribuio de recursos e, freqentemente, de cargos. Os cooptados so, desta forma,
transformados em clientes, em um sistema onde tudo gira em torno do Estado. Esta
dinmica incompatvel com o tipo de racionalidade que o Dasp pretendia impor na
administrao pblica federal, da o desenvolvimento de polticas em diversas direes
e a formao de uma estrutura de governo quase esquizofrnica. Por um lado, a
administrao direta, apoiada e comandada pelo Dasp, para qual so canalizadas
todas as presses, antes dispersas, para os altos nveis do executivo federal, o que
amplia os limites de manipulao do presidente. Por outro lado, administrao
paralela conduzida nos rgo da administrao indireta, com maior influncia dos
grupos privados participantes em cada comisso. Como conseqncia, temos um
sistema pesado, irracional em suas decises, que se torna presa de uma cadeia cada
vez maior e mais complexa de compromissos e acomodaes, at o ponto de ruptura
(Schwartzman: 1982, 13).
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Consideraes Finais
A anlise do movimento de 30 empreendida por Fausto, brevemente explorada
neste trabalho, nos induz a perceber que h uma acumulao de fenmenos onde no
ocorre ruptura, e o conceito de neopatrimonialismo de Schwartzman, com suas
implicaes aqui descritas, demonstra como o novo se amolda ao velho, e vice-versa.
O crescimento do aparelho do Estado se d, como exemplificam alguns autores que
recorrem a um paralelo com a geologia8, por sedimentao de estruturas sobrepostas
no tempo, sempre com a adio de uma nova camada constitutiva, e no atravs de
um rompimento com a estrutura anterior.
Estas camadas sobrepostas alimentaram uma macroceflica bifrontalidade,
onde duas avantajadas cabeas - uma racional-legal, outra patrimonialista -
comunicam-se e interpenetram-se funcionalmente em clima de recproca competio e
hostilidade, impedindo a imposio categrica de uma sobre a outra (Nogueira: 1996,
9). Desta forma, consti-se no plano administrativo (que um reflexo do plano
poltico) um hbrido, onde convivem uma estrutura pretensamente burocrtica e uma
estrutura patrimonialista, ainda que esta se atualize. Este hbrido, originrio do
governo Vargas, atinge sua maior expresso no governo Kubitschek, atravs da
instituio de uma verdadeira administrao paralela, mecanismo essencial na
manuteno da estabilidade no perodo 1956-1961 (Benevides: 1976). Para acelerar o
crescimento econmico, o governo Kubitschek no rompe com a estrutura
organizacional tradicional, mas cria um sistema paralelo que se encarrega de
implementar os cinqenta anos em cinco.
A considerao desse deslocamento de poder da estrutura direta para a indireta
no perodo Kubitschek muito importante, porque mostra que esse recurso no
utilizado exclusivamente por regimes autoritrios, como foi o caso analisado neste
estudo9. Este perodo, assinalado por muitos como o mais democrtico da histria
brasileira, buscou caminhos alternativos, mais flexveis, para implementar com maior
8 Alguns autores so Luciano Martins e Marco Aurlio Nogueira. 9 interessante lembrar que o governo atual, democrtico, alm de defender a utilizao deste mecanismo (atravs dos projetos de Agncias Autnomas e Organizaes Sociais), ainda se vale da prerrogativa das Medidas Provisrias).
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rapidez as medidas que julgava necessrias. preciso lembrar que o grande mrito da
burocracia, para Weber, a garantia da conformidade com as normas, neutralizando
assim, as decises pessoais. Com isso, podemos chegar a duas concluses: ou no
temos uma administrao burocrtica, ou a tradio autoritria de desviar-se dos
procedimentos burocrticos tem lugar mesmo em um regime democrtico.
Talvez as duas hipteses sejam verdadeiras, mas parece ter ficado claro neste
estudo que, ao contrrio do diagnstico do governo, o Dasp no implantou no Brasil o
modelo burocrtico. Temos, como j foi dito, um modelo hbrido de patrimonialismo e
burocracia. Os problemas exaustivamente atribudos pelo Ministro Bresser Pereira
burocracia, resultam exatamente da sobreposio destes dois modelos. E sua proposta
de reformar o Estado atravs da adoo de um terceiro modelo torna-se assim
profundamente questionvel, dado seu diagnstico impreciso. Na verdade, estamos
prximos de agregar macroceflica bifrontalidade uma nova cabea, com a adoo
da nova estrutura gerencialista. Ou seja, uma medusa.
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Bibliografia
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Estabilidade Poltica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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1980.