Tinhorão Desvenda Origem Da Música Urbana

download Tinhorão Desvenda Origem Da Música Urbana

of 5

Transcript of Tinhorão Desvenda Origem Da Música Urbana

  • 8/11/2019 Tinhoro Desvenda Origem Da Msica Urbana

    1/5

    Tinhoro desvenda origem da msica

    urbana

    Lus Antonio Gron

    A satanizao da obra do socilogo da msica, pesquisador, colecionador e

    jornalista Jos Ramos Tinhoro vem da poca em que ele fazia crtica no Jornal do

    Brasile achincalhava a Bossa Nova. Desde os anos 60, Tinhoro vem sendo

    identificado com postura xenfoba e mtodo marxista. Suas primeiras obras saram

    em 1966 e, desde essa poca, resenhistas como Caetano Veloso (aclito de Joo

    Gilberto) retrucavam vingativamente, tachando suas idias de retrgradas. O crticoteve a capacidade de atacar as pessoas erradas na hora errada. Houvesse calado,

    como tantos o fazem por convenincia, hoje seria reconhecido por todos os

    msicos como o maior pesquisador da MPB deste sculo. O fato um: mesmo

    tendo abandonado a crtica no incio da dcada de 80 e mesmo tendo descoberto

    fatos inditos no mbito da histria da cultura brasileira e portuguesa ao longo dos

    ltimos 20 anos, todos odeiam, mas pouqussimos lem Tinhoro. um trao da

    cultura tupinamb repudiar qualquer ameaa aos rituais de consenso.

    J venceu a data de redimensionar a contribuio de Tinhoro aos estudos da

    msica popular brasileira. Os pesquisadores de verdade vo aos livros dele porque

    constituem uma fonte imensa de informao. Pode-se no concordar com as

    fundaes materialistas de seu mtodo, mas da a estigmatiz-lo por isso seria uma

    burrice na qual os expertsno ousariam incorrer... No, no bem assim. Por no

    possuir um ttulo universitrio (sua formao jornalstica), os acadmicos no o

    citam, no o consideram, no o convidam para dar palestras e conferncias. Nada

    mais justo; com os altos currculos atingidos por ulicos da academia que assumema misso de clonar idias alheias e captar recursos para viajar pelo mundo com

    saldo maior no carto de crdito do que no crebro, no possvel aceitar a

    sabedoria do pesquisador independente, que nunca teve ajuda de instituio

    alguma. A comparao seria injusta. "Os acadmicos comem Tinhoro e arrotam

    Mrio de Andrade", brinca.

    O imenso intrito serve para introduzir o petardo lanado por Tinhoro no dia 29 de

    janeiro de 1997, em Lisboa, em direo s convices do "protocolo dos sbios da

  • 8/11/2019 Tinhoro Desvenda Origem Da Msica Urbana

    2/5

    MPB" organismo atualmente gerido pela classe artstica, produtores, editores,

    msicos togados de acadmicos, bares e viscondes de sabugosa do som. No

    livroAs Origens da Cano Urbana, Editorial Caminho, Lisboa, 203 pgs., o

    estudioso faz uma pergunta que nenhum historiador da msica conseguiu

    responder at hoje: "Quando surgiu o cantar tpico das cidades, que hoje informa

    todo esse sistema sob o nome de msica popular?".

    Tinhoro desenvolve o conceito de cano popular como o da msica vocal

    acompanhada por instrumento harmnico, individualista, desfolclorizada, que nasce

    como contraposio msica mondica da Antigidade e polifnica da Idade

    Mdia, ambas carregadas de coletivismo. Tinhoro afirma que o "negcio novo"

    chamado de "msica popular" se consolidou em Portugal no final do sculo XVIII,

    com a introduo na Corte da modinha e do lundu, pelo cantor e compositor

    brasileiro Domingos Caldas Barbosa. Assim, dois gneros da msica popular

    brasileira praticada na Bahia e no Rio inauguraram, segundo ele, a msica de

    mercado no mundo, precedendo em meio sculo a canoneta de cabar parisiense

    e a canoneta napolitana. Enquanto a msica de cabar saiu de moda para ceder

    lugar ao tango argentino, aoragtimee ao one-step, s resistiram a canoneta

    napolitana, a modinha e o lundu.

    "A cano est morrendo", diz Tinhoro. "Hoje se assistem a rituais coletivos

    de rockepop, no h mais a prtica da melodia privada. No Brasil, os msicos

    continuam fazendo modinhas e lundus, apesar de no saberem. Modinhas o Chico

    Buarque compe at hoje. E para citar um exemplo de lundu, s ouvir 'L Vem o

    Nego', que um grupo aqui de So Paulo acha que pagode. Mas quem sabe se

    d conta de que a msica puro lundu. Tem a estrutura rtmica sincopada e

    repetitiva do lundu".

    O resultado das descobertas do livro provm de uma vida inteira de pesquisas em

    fontes raras, achadas em alfarrabistas e arquivos inacessveis. Entre as convices

    que a obra pretende abalar esto a de que a moda surgiu como gnero em

    Portugal, dando origem modinha no Brasil; a de que a modinha teve bero

    erudito; e a de que o sistema tonal conseqncia natural da evoluo formal da

    polifonia pera, no plano da erudio pura. Pois Tinhoro afirma que a modinha

    nasceu no Brasil, tinha sotaque original negro-brasileiro e conquistou Lisboa, onde

    conviviam e se misturavam desde o final do sculo XV, antes da descoberta doBrasil, brancos e negros. Indo s origens do canto acompanhado, o autor quer

    http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=113124&sid=155201113785336309446218&k5=3617F6DD&uid=http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=113124&sid=155201113785336309446218&k5=3617F6DD&uid=http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=113124&sid=155201113785336309446218&k5=3617F6DD&uid=http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=113124&sid=155201113785336309446218&k5=3617F6DD&uid=
  • 8/11/2019 Tinhoro Desvenda Origem Da Msica Urbana

    3/5

    acreditar que a cano surgiu da entoao pica grega e do romance medieval.

    Com o surgimento de formas de lazer na Renascena (para ele o sinnimo artstico

    do Mercantilismo), a cano lrica se imps junto s camadas populares, que

    trataram de criar novas formas de elocuo verbo-musical.

    Tais afirmaes so extraordinrias e Tinhoro jura que no recebeu contestao

    delas at agora. "No sou musiclogo. Caber a eles dizerem se h ou no

    procedncia no que afirmo. Eu descrevo as condies histricas e culturais.

    Gostaria que algum me demonstrasse, por exemplo, que existe um gnero urbano

    definido e com continuidade antes da modinha e do lundu. No encontrei nem um".

    Os musiclogos podem argumentar que o canto dos troveiros e trovadores, desde o

    sculo XI, j eram canes formatadas para serem cantadas na Rensacena. "Mas

    eram melodias eruditas, escritas e entoadas segundo o padro de prosdia do

    latim, revezando slabas curtas e longas. As fontes folclricas dos trovadores so

    estilizadas. No caracterizam um gnero popular, e sim palaciano". E as canes

    de rua inglesas, coletadas por John Gay e John Christopher Pepusch naBeggar's

    Opera(1728)? No se tornaram produto, surgiram do contexto erudito (de fato, as

    canes "populares" esto ali para satirizar a pera italiana) e no voltaram s ruas,

    retruca o pesquisador. O fator determinante para ele est na impresso, divulgao,

    consumo e prtica massiva da modinha e do lundu em Portugal e na Europa na

    poca.

    O melhor do volume o modo abelhudo como o autor vai tecendo informaes

    detalhadas, fontes remotas e aparentemente no associveis. A leitura dos

    captulos curtos e mesmo das notas de rodap saborosa. A argumentao possui

    o cristal da convico. A descrio que faz de Lisboa por volta de 1550 obra de

    artista-restaurador. Ele mostra a capital portuguesa povoada de gente de todas asraas e com uma oferta de servios superespecializada que chegava a trs

    centenas de atividades. Para uma populao de 50 mil habitantes, havia cerca de

    doze escrives " minuta", que armavam mesinhas ao ar livre na Praa do

    Pelourinho Velho, oferecendo todo tipo de texto. Havia as mulheres especializadas

    em recuperar escravos fisicamente destrudos pelas viagens de navio. Isso sem

    falar nos construtores de instrumentos (especializados na viola de quatro cordas,

    que se folclorizaria no Brasil), nos vendedores de aguardente e naqueles que

    vendiam "refeies cozinhadas de antemo e dirigidas em especial a braais e aforasteiros", como descreveu o historiador Antonio Borges Coelho. O cenrio era

  • 8/11/2019 Tinhoro Desvenda Origem Da Msica Urbana

    4/5

    apropriado para a corte amorosa, os folguedos, o cantar "garganteado" e "guaiado"

    (cheio de "ais") que a cano mais simples podia oferecer.

    Devido ausncia de material sobre manifestaes populares, Tinhoro encontra

    pistas sobre a prtica musical em Portugal no sculo XVI no teatro da poca.

    Descobriu, por exemplo, que Gil Vicente foi o primeiro autor a usar a expresso

    "cantar solo". O verso "Vers como canto solo" est noAuto da F, de 1510. "A

    possibilidade de qualquer pessoa poder recrear-se cantando, solitariamente, versos

    lricos-amorosos (...) fora anunciada em crculo mais restrito pela cano dos

    trovadores, desde pelo menos o sculo XIII", escreve, explicando que o solatz,

    palavra provenal para definir a consolao, o alvio, era j resultado de uma

    atitude social nova: a visita entre nobres e as reunies sociais privadas. Surgiram

    ento diversas palavras em portugus para tentar dar conta daquele estado indito,

    o de cantar sozinho: "sols" ,"solau", "s" e "solo".

    Entre as descobertas de impacto do livro est a de um gnero inteiro, nunca

    abordado pelos historiadores: o da "cantigas do deserto", ou cantigas de despedida,

    comuns em Portugal em todo o sculo XVIII. Muitas dessas cantigas sobreviveram

    em folhetos de cordel. O "dezerto", explica o autor, nada mais do que o ambiente

    rural no cultivado, o exlio, o ermo. O trao dessas cantigas era a primeira pessoa

    e o carter danante: "Eu heide hir para o Dezerto,/ J que meu mal he to grave,/

    Que primeiro morreri,/ Do que o teu rigor se acabe", diz uma delas.

    Quando a modinha e o lundu apareceram, nos anos 80 do sculo XVIII, j era

    costume da populao se divertir com a msica dos negros vindos do Brasil, como

    o gandum e a fofa. Quem trouxe a modinha e o lundu foi o poeta tocador de viola

    de cordas de arame carioca Domingos Caldas Barbosa (1742-1800), o Lereno. Sua

    msica impressionou o escritor ingls William Beckford (autor do romance Vathek),que descreveu-a como extremamente sensual. Lereno apareceu numa poca em

    que a palavra "moda" estava na ponta da lngua de Lisboa. Desde 1774 as

    comdias e entremeses se intitulavam Loucuras da Moda,Amor Moda. Os cegos

    vendiam na rua, por volta de 1785, folhetos como Namorar por Moda Nova o Velho

    Impertinente,A Sociedade da ModaeAs Convulses, Desmaios e Desgostos de

    um Peralta da Moda, na Infausta Morte de Seu Cozinho Cupido. A modinha

    brasileira seria citada pela primeira vez no entrems Os Casadinhos da Moda, de

    Leonardo Jos Pimenta e Antas, lanado em 1784. Diz um conquistador: "E cantar!Isso ento belo, e rebelo./ Ensinaram-me certa moda nova,/ Cspite que modinha!

  • 8/11/2019 Tinhoro Desvenda Origem Da Msica Urbana

    5/5

    Tudo encova/ a letra o Peralta presumido." Segundo Tinhoro, Caldas Barbosa

    impressionou os sales lisboetas por causa de sua originalidade e chulice, capaz

    de versos como: "Ai rum rum/ Vence fandangos e gigas/ A chulice do lundum". A

    moda que refugava a giga francesa e o fandango espanhol era ento o canto

    requebrado, amoroso e americano do mulato brasileiro. Uma mania to grande que

    enfureceu o poeta Bocage. Em diversos poemas, ele desancou Lereno e a "turba

    americana" que o acompanhava nos saraus.

    A msica popular urbana nasceu para render dinheiro no sculo XVIII e seu esprito

    se mantm intacto at hoje. uma arte ligada ao lucro. Para ilustrar um

    procedimento pragmtico tpico dos fazedores de msica popular, Tinhoro cita

    uma quadra dos folhetos doAlmocreve de Petas, publicado de 1817 e 1819 em

    Portugal por Jos Daniel Rodrigues, e bastante comum na Colnia. A quadra a

    seguinte: "O inverno rigoroso/ J dizia a minha av/ Quem dorme junto tem frio/

    Quanto mais quem dorme s". O trecho foi reaproveitado no lundu "Isto Bom", do

    ator, compositor e cantor brasileiro Xisto Bahia (1870-1944). Curiosamente, esta foi

    a primeira msica brasileira a ter sido gravada, em disco 10.001 da Odeon, lanado

    em 1902 pelo cantor Bahiano. O dado inteiramente novo na historiografia da

    MPB. Para Tinhoro, Xisto Bahia agiu "como autntico criador pioneiro da ento

    nascente indstria cultural", ponto culminante de um processo iniciado com a

    modinha e o lundu. De certa forma, a msica popular urbana gravada no Brasil

    nasce da apropriao indbita, da malandragem do plgio.

    Pelas descobertas citadas e muitas outras, "As Origens da Cano Urbana" um

    livro que deve ser acatado pelos especialistas e lido com gosto pelo grande pblico.

    Apesar de recusar o ttulo, Tinhoro o grande musiclogo popular brasileiro.