TIM MAIA TV E FILME NÃO MOSTRAM QUE ELE ENFRENTOU DONOS DE GRAVADORAS E DE RÁDIOS, E FOI...

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TIM MAIA: TV E FILME NÃO MOSTRAM QUE ELE ENFRENTOU DONOS DE GRAVADORAS E DE RÁDIOS, E FOI ABANDONADO PELA CLASSE ARTÍSTICA! Muito bom ver parte da história de Tim Maia nos cinemas e TVs. Melhor ainda é sempre ouvi-lo. E ele ainda será cultuado por muito tempo, como acontece com todos cujo espirito é louco, rebelde e indomável, o que o torna eternamente jovem, carismático e, acima de tudo, questionador das regras sociais. Tim Maia é o maior cantor da MPB segundo a revista Rolling Stones, e segundo eu mesmo, rs. E é também segundo aquela revista o nono maior artista - no sentido completo enquanto músico - da MPB. Aí eu discordo. E que me desculpem os outros oito, mas para mim ele é o primeiro artista também. Cantava, compunha, tocava instrumentos de corda, de sopro, de percussão, e fazia arranjos. Era maestro na prática e na teoria. Os oitos que estão à sua frente na lista são de excelência, mas nenhum tão completo o quanto ele. Aceito dizerem que Tim Maia misturou a Soul Music, que é filha do Rhythm and blues (R&B), que por sua vez é filha da Black Music, mãe esta de muitos filhos com a música brasileira. É aceitável e, de certa forma, louvável. Mas o fato é que ao comparar a Soul Music de Tim com a Soul Music americana do mesmo período, fica claro a riqueza que Tim Maia deu à musicalidade negra pop. Enquanto os cantores americanos, mesmo trabalhando com as estruturas básicas de baixos e metais, além é claro de guitarra, bateria e vários outros instrumentos, davam prioridade à própria voz, Tim Maia ousou em aumentar o volume de toda a instrumentalidade musical de sua música, sem medo de que enquanto cantor ele saísse do centro das atenções da melodia e dos ouvidos e perdesse para o instrumental. Isso só foi possível graças a sua voz imbatível, furiosa e incomparável. Faça o teste e compare (indico Earth, Wind & Fire, Carl Douglas e KC and the Sunshine Band com reservas, pois esta última banda vai além do Soul e do Funk). Só Tim conseguiu equilibrar o tom entre a voz e o alto e vigoroso instrumental da R&B. Isso é muito evidente. O resultado foi uma música incrivelmente melódica e tão intensa nos instrumentos que a compõe quanto na voz do artista. Uma parceria tão perfeita que além de levar Tim ao sucesso, levou também a sua banda musical, a famosa Banda Vitória Régia. Pode parecer que isto não tem tanta importância em se tratando de R&B, mas é uma diferença fundamental. Compare, por exemplo, Michael Jackson até 1982 quando até então a voz do cantor era a principal estrutura da sua música e Michael Jackson depois de 1982 quando MJ começa a dar um instrumental mais possante às suas músicas, em busca de uma modernização influenciada pelo Funk e, mais tarde, pela E-Music. Você vai perceber um Michael muito mais profundo e tocante na primeira etapa, enquanto

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TIM MAIA: TV E FILME NÃO MOSTRAM QUE ELE ENFRENTOU DONOS

DE GRAVADORAS E DE RÁDIOS, E FOI ABANDONADO PELA CLASSE

ARTÍSTICA!

Muito bom ver parte da história de Tim Maia nos cinemas e TVs. Melhor ainda é sempre ouvi-lo. E ele ainda será cultuado por muito tempo, como acontece com todos cujo espirito é louco, rebelde e indomável, o que o torna eternamente jovem, carismático e, acima de tudo, questionador das regras sociais. Tim Maia é o maior cantor da MPB – segundo a revista Rolling Stones, e segundo eu mesmo, rs. E é também segundo aquela revista o nono maior artista - no sentido completo enquanto músico - da MPB. Aí eu discordo. E que me desculpem os outros oito, mas para mim ele é o primeiro artista também. Cantava, compunha, tocava instrumentos de corda, de sopro, de percussão, e fazia arranjos. Era maestro na prática e na teoria. Os oitos que estão à sua frente na lista são de excelência, mas nenhum tão completo o quanto ele. Aceito dizerem que Tim Maia misturou a Soul Music, que é filha do Rhythm and blues (R&B), que por sua vez é filha da Black Music, mãe esta de muitos filhos – com a música brasileira. É aceitável e, de certa forma, louvável. Mas o fato é que ao comparar a Soul Music de Tim com a Soul Music americana do mesmo período, fica claro

a riqueza que Tim Maia deu à musicalidade negra pop. Enquanto os cantores americanos, mesmo trabalhando com as estruturas básicas de baixos e metais, além é claro de guitarra, bateria e vários outros instrumentos, davam prioridade à própria voz, Tim Maia ousou em aumentar o volume de toda a instrumentalidade musical de sua música, sem medo de que enquanto cantor ele saísse do centro das atenções da melodia e dos ouvidos e perdesse para o instrumental. Isso só foi possível graças a sua voz imbatível, furiosa e incomparável. Faça o teste e compare (indico Earth, Wind & Fire, Carl Douglas e KC and the Sunshine Band com reservas, pois esta última banda vai além do Soul e do Funk). Só Tim conseguiu equilibrar o tom entre a voz e o alto e vigoroso instrumental da R&B. Isso é muito evidente. O resultado foi

uma música incrivelmente melódica e tão intensa nos instrumentos que a compõe quanto na voz do artista. Uma parceria tão perfeita que além de levar Tim ao sucesso, levou também a sua banda musical, a famosa Banda Vitória Régia. Pode parecer que isto não tem tanta importância em se tratando de R&B, mas é uma diferença fundamental. Compare, por exemplo, Michael Jackson até 1982 – quando até então a voz do cantor era a principal estrutura da sua música – e Michael Jackson depois de 1982 – quando MJ começa a dar um instrumental mais possante às suas músicas, em busca de uma modernização influenciada pelo Funk e, mais tarde, pela E-Music. Você vai perceber

um Michael muito mais profundo e tocante na primeira etapa, enquanto

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que na segunda parte de sua carreira fica evidente o espaço bem mais amplo que os instrumentos musicais ganham. E curiosamente as músicas de maiores sucessos nesta era são, geralmente, aquelas nas quais o artista deixou de lado por um momento o instrumental intenso, e priorizou a voz. Bem, não precisamos nem dizer que a contrapartida da segunda etapa da sua carreira foi um MJ ainda mais dançante (se é que isto era possível) e espetacularmente bem coreografado.

Mas esta disputa sonora entre instrumentos e voz é uma decisão que Tim Maia, o rei do Soul brasileiro, nunca precisou fazer. E se ele,

que viveu durante anos nos EUA, não obteve sucesso na terra do Tio Sam, muito se deve pelo fato de ele ter sofrido o preconceito de ser sul-americano, e pelos furtos e prisões que andou fazendo e frequentando por lá. Talvez por isso a Motown, principal gravadora da música negra

americana das décadas de 1960 e 1970, tenha perdido (ou jamais soube que existia) a chance de lançar um músico que teria mudado mundialmente as bases da R&B. Quem bom, pois assim pudemos ter o

nosso Tim influenciando profundamente a MPB. Mas como eu estava dizendo no começo, é bom ver um filme que celebre a musicalidade e o artista que foi e é Tim Maia. Melhor ainda é quando se viveu e se viu boa parte da história de Tim acontecer publicamente. Eu vi e me lembro bem, e posso dizer como testemunha ocular, que o filme recém lançado não conta como é que Tim Maia foi o primeiro artista no Brasil a questionar os tubarões da gravadoras. Bem, que as gravadoras, assim como as editoras de livros, sempre ficaram e ficam com a maior parte do dinheiro que o artista editorialmente produz, todo mundo sempre soube. Mas isso sempre foi tido por todos como um mal necessário. Por todos, menos por Tim Maia. Ainda na década de 1970 Tim começou a perceber a exploração que artistas e compositores

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sofrem das gravadoras de discos (atuais CDs). Tal luta iria ter o seu auge na década de 1990, quando Tim contesta severa e publicamente esse processo industrializador da cultura musical. Este fato é muito importante já que Tim Maia, embora heroicamente sozinho, levanta a questão e mostra como a classe artística trabalhadora era e é explorada pela classe dos que detêm a riqueza e o monopólio da produção artística industrial. Enquanto um artista ganha um milhão com a sua obra, donos de gravadoras ganham pelo menos entre três a cinco vezes mais milhões explorando a mesma obra. Nesta comparação um cantor é um trabalhador milionário e de luxo, mas um trabalhador, e cujo intelecto e o talento são apropriados por uma classe dominante. Pode parecer conversa clichê, mas Tim viu exatamente assim há (pasmem!) quatro décadas. E quanto toda essa polêmica fervilhou na década de 1990, o público descobriu também que as rádios estavam começando então a inverter a relação rádio/artista. Em vez de pagarem direitos autorais para tocarem as músicas, as rádios estavam cobrando dos cantores e etc. para tocarem as suas músicas. Essa inversão indecente tem como importante alicerce um senhor chamado Armando Campos, fundador da Tropical FM, rádio da cidade do Rio de Janeiro da década de 1980, que tinha como característica tocar apenas Samba e Pagode, e que teve como mérito ser a lançadora de artista como Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Almir Guineto, entre outros tantos grandes, além de rejuvenescer o interesse nacional pelo samba. Tal episódio tem como marco o ano de 1986. E mesmo cobrando para tocar músicas a rádio foi um importante divisor de águas para o Samba e, de certa forma, para a própria MPB, que ficou ainda mais enriquecida. Fato é que a moda pegou, e as rádios cobram para tocar músicas até hoje. É por isso que aquela música inexpressiva e de baixa qualidade que você jamais imaginou cantar, hoje não sai da sua cabeça. Mas Tim Maia esbravejava: “Eu sou o Tim Maia! Imagina se eu vou pagar "pras" rádios tocarem a minha música?!”. E não pagou mesmo. Além de ser o primeiro artista a se recusar publicamente a isto, foi o primeiro a questionar a indústria das gravadoras e o primeiro a (pasmem novamente!) gravar os próprios CDs e os comercializar por conta própria, algo que ele já vinha fazendo desde 1972. O selo se chamava Seroma (inicias de Sebastião Rodrigues Maia, nome oficial do artista). Tim Maia era tão visionário que hoje a maioria dos grandes artistas têm o seu próprio selo, a sua própria gravadora. Depois que Tim levantou esta bandeira (bem depois) quase todos os artistas de ponta resolveram comercializar o seu próprio disco (CD). Isso se tornou algo tão comum quanto importante que até mesmo Roberto Carlos hoje tem o seu próprio selo. Entretanto na época em que Tim Maia foi mais profundamente contra a exploração das gravadoras nenhum, eu disse NENHUM, colega, parceiro ou amigo ficou publicamente do seu lado.

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Outra sacada genial é que Tim "em 1997 foi o primeiro artista brasileiro a criar faixa interativa em seus discos, a misturar áudio, vídeo e Internet...", mostrando mais uma vez ser um visionário, já que a interatividade é hoje um dos pilares principais das mídias de massa, e atualmente a Internet mudou de vez a relação público/cantor/música.

Essa coragem de Tim Maia em combater a classe dos donos das gravadoras e das rádios faz dele um artista ainda mais único e cultuado, tanto pelos admiradores da boa música quanto pelos que enxergam nesta atitude uma busca por uma justiça socioeconômica mais coerente, digna e ética, além da defesa do talento e da cultura frente à força da indústria. E pouco importa se ele estava pensando apenas no seu bolso. O que importa é que Tim Maia é o pioneiro na luta que viria mais tarde a se estabelecer entre a classe artística e a classe da gravadoras. Além disso a Seroma (depois Vitória Régia Discos) carregará para sempre o título de primeira gravadora independente do Brasil e uma das primeiras do mundo. O filme não conta, mas Tim foi impiedosamente abandonado na década de 1990, quando a diferença entre a classe das gravadoras e a classe artística, assim como também a questão do pagamento às rádios, foram mais aprofundadas, discutidas e polemizadas por ele. Suas declarações sobre o assunto eram entregues pela mídia à dimensão da sandice e da incoerência, nos levando a confundir a realidade dos bastidores comercias da MPB com uma simples revolta pessoal e descabida do cantor, já que ele sempre foi de uma personalidade impulsiva, inquieta e contestadora das regras hipócritas e exploratórias de nossa sociedade, o que lhe dava aos olhos do senso comum um ar de louco isolado. Também as suas inúmeras faltas aos shows ajudavam a lhe dar um perfil de pouca credibilidade. Lutou sozinho, protagonizou a questão, foi injustiçado, mas abriu caminho para mudanças importantes nessa relação artistas/gravadoras. Perto do fim da sua vida Tim Maia intensificou o trabalho de ajuda às crianças de um orfanato, algo que ele já desenvolvia há algum tempo, e parecia fazer isto com muita dedicação. Eu mesmo o vi cercado de crianças certa vez dentro de um supermercado empurrando um carrinho de compras. Parecia feliz naquele momento. Morreu quase abandonado pelos pares, tanto os do círculo mais próximo, como os da sua classe. Lembro-me muito bem que o seu funeral foi noticiado nas rádios e nas TVs, e que poucos artistas estiveram presentes na despedida daquele que até hoje é o maior cantor da MPB. Neste dia enquanto a memória de Tim era ovacionada e literalmente cantada pela multidão, raros artistas apareceram. Vi apenas Erasmo Carlos (no velório) e Jorge Benjor (no sepultamento). Embora estes dois tenham sido fieis ao amigo até o último momento, a ausência de muitos outros contrasta com a importância de um artista

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tão cultuado, e cujos compositores têm a honra de dizer que tiveram uma música gravada por ele, e cujos cantores ostentam orgulho ao declararem que gravaram com ele. É que o rei do Soul e avô do Funk brasileiros tinha sido demonizado pela mídia por ousar enfrentar os barões das gravadoras e das rádios. E quase ninguém do mundo da música estava a fim de aparecer lá pelo seu funeral e se “contaminar”.

Postado por SERGIO LUIZ RIBEIRO GRADUANDO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

UFRRJ / ORIENTANDO EM PESQUISA DE ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO

(JUVENTUDE, EDUCAÇÃO, SOCIEDADE, TECNOLOGIA)

http://rollingstone.uol.com.br/listas/100-maiores-vozes-da-musica-brasileira/

http://rollingstone.uol.com.br/listas/os-100-maiores-artistas-da-musica-brasileira/

http://timmaia.com.br/vitoria-regia-seroma-producoes