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  • 7/25/2019 Tiburi_Como Conversar Com Um Fascista

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    1 edio

    2015

    R I O D E J A N E I R O S O P A U L OE D I T O R A R E C O R D

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    Agradecimento

    Os textos a seguir tem um propsito filosfico-poltico: pensar com os

    leitores sobre questes da cultura poltica experimentada diariamente, de

    um modo aberto, sem cair no jargo acadmico. O jargo assombra a vida

    de muita gente limitando o alcance pblico da reflexo.

    Outras formas de fazer filosofia que ultrapassem o sempre igual, de-

    pendem da experincia que pessoas em geral podem ter com a linguagem

    de que dispem. com a linguagem que fazemos filosofia. A filosofia , de

    qualquer maneira, um acontecimento da linguagem. A linguagem disponvel

    a lngua de todo mundo que usamos diariamente para nos comunicar e

    nos expressar. Verdade, que em sociedade funcionam jogos de linguagem

    e no existe um jogo nico que possa ser jogado por todo mundo. Mas existe

    um jeito de reunir os jogos, um elemento que constri o comum: o dilogo.

    preciso hoje em dia fazer filosofia com as pessoas. Insistir em uma

    filosofia em comum que no seja o simples consenso, mas a coragem do

    dilogo. O dilogo no surge sem esforo. Um esforo que, de to complexo,

    equivale ao mtodo. Que, de to difcil, equivale resistncia. Que, de to

    potente, equivale transformao social em seu nvel mais estruturador.A formao da subjetividade para o dilogo algo que importa quando

    desejamos uma sociedade democrtica e essa a grande contribuio da

    filosofia para a nossa poca em que o autoritarismo cresce e aparece. Dilogo

    a forma especfica do ativismo filosfico. A democracia que salvaguarda os

    direitos e impede a violncia est ameaada em todos os espaos da cultura,

    das instituies e do cotidiano. No podemos fingir que nada est aconte-

    cendo enquanto muitos descobrem essa verdade na prpria pele.Demandas de transformao social interpelam o pensamento filosfico

    pedindo atitudes. A filosofia corre o risco de perder seu lugar tico-poltico

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    ao buscar uma imagem de neutralidade metafsica diante dos fatos. O pen-

    samento no neutro, ou ele confirmao do estado de coisas, ou crtico

    e transformador das subjetividades na direo de um pensamento lcido

    entrelaado prticas lcidas em tempos obscurantistas.

    Em nome disso que este livro foi escrito. E no teria sido publicadosem que Lucas Bandeira, meu editor, tivesse aberto seu caminho. Se Luciana

    Villas-Boas no se mantivesse sempre atenta e cuidadosa a cada detalhe.

    Agradeo a eles sinceramente.

    Do mesmo modo, agradeo a Daysi Bregantini por tantas provas de

    amizade, sobretudo, pela j histrica generosidade do espao da revistaCult

    onde publiquei parte considervel do que aparece aqui.

    Rubens Casara sugere um livro como esse h tempos. Ao escrever aapresentao dessa edio, ele no imagina que, agradecendo por sua leitura

    cuidadosa e sempre atenta, e pelo dilogo intenso em todos os momentos,

    aproveito para dedicar a ele esse pequeno livro. No entanto, com amor

    imenso.

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    Sumrio

    Apresentao 11

    Prefcio 17

    1. Questes preliminares: experincia poltica e experincia

    da linguagem ou o dilogo como desafio 23

    2. Como conversar com um fascista 29

    3. Mquina de produzir fascistas A origem e a transmisso

    do dio 32

    4. Afeto contagioso 33

    5. Paranoia como condio social 35

    6. Treino para o dio 37

    7. Um desafio terico-prtico 39

    8. Tudo o que no presta 41

    9. Experimentum Crucis 44

    10. Abertura 48

    11. Indstria cultural da antipoltica O carter manipulador 51

    12. O analfabeto poltico antipoltico 53

    13. Democracia: a palavra mgica 55

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    14. A partilha da misria 57

    15. Distorcer poder 58

    16. Consumismo da linguagem: o rebaixamento dos discursos 60

    17. Democracia e autoritarismo 66

    18. Flerte antidemocrtico 68

    19. Sobre o desejo de democracia 70

    20. Neofundamentalismo 74

    21. Crena til 76

    22. A violncia e os meios de comunicao 77

    23. Linchamento Cumplicidade e assassinato 79

    24. Prepotncia 81

    25. Em nome da angstia Uma meditao sobre a morte 84

    26. Vida como categoria poltica 85

    27. Histeria de massas 86

    28. Depresso: uma questo cultural 87

    29. Luto proibido 90

    30. O peso mais pesado dio e meios de produo do

    ressentimento 92

    31. Mais amor, por favor 96

    32. O amor histrico 98

    33. Eu te amo 99

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    34. A cultura do assdio 101

    35. A lgica do estupro 104

    36. Condenao prvia e responsabilidade 105

    37. Toda mulher estuprvel ou o sexo apenas lgico 107

    38. O que ser mulher enquanto ser estuprvel? 110

    39. Pensar na vtima e esquecer o criminoso 111

    40. Como algum se torna um estuprador? 112

    41. Ignorante com poder e sem poder Um problema no

    mbito da legalizao do aborto 113

    42. As pessoas no sabem o que dizem quando falam contra a

    legalizao do aborto 115

    43. O aborto e a bondade das pessoas de bem 116

    44. A postura a favor da ilegalidade 118

    45. Olho gordo Uma pequena nota sobre a inveja, o medo

    e dio na televiso 120

    46. Coronelismo intelectual 123

    47. Intelectual servial 125

    48. A arte de escrever para idiotas 127

    49. O consumismo da linguagem 133

    50. Deriva 136

    51. O ato digital 139

    52. O outro lado 141

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    53. Falao mecnica 143

    54. Mito e ressentimento brasileiros 146

    55. O Brasil dos outros 148

    56. Brasil recalcado 149

    57. Terra de ningum simblica 150

    58. O Brasil para brasileiros 152

    59. O Brasil contemporneo 153

    60. Alteridade, redes sociais e a questo indgena no Brasil 158

    61. A internet e a questo indgena como retorno do recalcado 162

    62. Redes sociais Crculo cnico, senso comum, laboratrio

    de alteridade 166

    63. Contraconscincia do assassinato 171

    64. Uma verdade outra, um outro in-comum 175

    65. Reconhecimento 178

    66. A violncia hermenutica e o problema filosfico do outro 181

    67. A paranoia da autorreferencialidade 190

    Bibliografia 193

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    Prefcio

    Este livro para o que nasce

    Jean Wyllys

    Alguns dizem que a histria de um povo ou nao tem um movimento

    pendular; outros dizem que ela se move numa espiral, ora ascendente ora

    descendente (confesso que eu prefiro esta segunda alegoria). Qualquer que

    seja o movimento dessa histria, ideias que estiveram encarnadas em pessoas

    e episdios que fizeram sofrer indivduos e/ou coletivos costumam retornar

    como fantasmas ou assombraes desejando reencarnar. Este retorno exige

    a evocao de poderosos espectros que possam combater e espantar essesfantasmas, como em Hamlet, de William Shakespeare.

    A maioria da populao brasileira est h dcadas alijada do direito a

    uma educao de qualidade que lhe faa cidad com capacidade de pen-

    samento crtico e de reconhecimento da diversidade cultural e humana. A

    ampliao do acesso ao sistema formal de educao incluindo a o ensino

    superior , sobretudo na era Lula, no significou acesso a uma educao de

    qualidade. Muitas universidades e faculdades, principalmente privadas,tm diplomado analfabetos funcionais* por estabelecerem com os alunos

    *De acordo com pesquisa divulgada em 2012 pelos Ministrios da Educao e da Culturapara a construo do Plano Nacional do Livro e da Leitura, 38% dos estudantes universit-rios brasileiros foram avaliados apenas como alfabetizados funcionais (nveis rudimentare bsico); este nmero atingia 23% dos universitrios em 2001. O nmero de universitriosplenamente alfabetizados, por outro lado, declinou de 76% em 2001 para 62% em 2011. Cer-

    tamente a ausncia da competncia plena de leitura prejudica o desempenho dos estudantesbrasileiros em todas as reas de conhecimento, indicando a necessidade clara da intensifi-cao de medidas que priorizem o acesso leitura plena em todos os nveis como uma dasformas mais consistentes de apoiar a melhoria da qualidade da educao em nosso pas.

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    uma relao pautada no direito do consumidor. Mais de 70% dos brasileiros

    no leem livros. A maioria se informa apenas por tevs e rdios, que, pela

    prpria dinmica da comunicao de massa, no aprofundam as questes de

    interesse pblico e divulgam as informaes de acordo com interesses pol-

    ticos e financeiros de seus concessionrios ou administradores. Ao mesmotempo, e graas incluso via consumo de bens materiais garantida pelas

    polticas sociais da assim chamada Era Lula, parte expressiva e crescente

    dessa maioria plugou-se na internet um dilvio de informaes falsas e

    verdadeiras nem sempre fceis de distinguir para algum sem repertrio

    cultural ou habilidade em interpretar texto e se organizou em redes sociais

    digitais por meio de novas tecnologias da comunicao e da informao,

    como os smartphones. Ora, isso s poderia levar esse contingente a aderiraos discursos demaggicos e manipuladores que interpelam preconceitos

    e sensos comuns histricos e propem solues fceis, mas mentirosas e/

    ou autoritrias para as questes complexas que nos envolvem diariamente,

    como a criminalidade e a violncia urbanas, as desigualdades social e de g-

    nero, as tenses raciais, a diversidade de orientao sexual e identidade de

    gnero, a intolerncia religiosa, a mobilidade urbana, os conflitos agrrios e

    os desastres ambientais. Essa situao acrescida da lgica egosta farinha

    pouca, meu piro primeiro que as crises econmicas e/ou financeiras

    como a que estamos vivendo costumam trazer so provas irrefutveis do

    retorno e reencarnao de um fantasma perigoso chamado fascismo.

    Diante desse mal, h que se evocar espectros que possam exorciz-lo.

    A filosofia e as cincias humanas no podem, portanto, abrir mo da res-

    ponsabilidade de evocar a razo iluminista, o conhecimento cientfico, a

    honestidade intelectual, as liberdades civis e a democracia. o que faz a

    filsofa Marcia Tiburi neste Como conversar com um fascista reflexes

    sobre o cotidiano autoritrio brasileiro, num texto que impressiona pela

    combinao da profundidade e sofisticao intelectuais com uma enorme

    generosidade com o leitor que no compartilha de seu repertrio cultural.

    Portanto, este livro para o que nasce!

    Preocupada com o fascismo que vem afetando a poltica brasileira nos

    ltimos cinco anos e ciente de que este costuma prescrever a elimina-

    o simblica e/ou fsica dos inimigos que constri como forma de se

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    justificar, Marcia Tiburi prope o dilogo como forma de resistncia

    banalizao do mal a que assistimos atnitos, indiferentes ou indignados,

    ou para a qual damos nossa contribuio, seja em forma de postagens ou

    comentrios no Facebook, seja em aes concretas contra o outro (como, por

    exemplo, chutar e insultar dois garotos negros rendidos pela polcia apenasporque envolvidos numa briga de colegiais que assustou frequentadores de

    um shopping de luxo).

    A filsofa judia Hannah Arendt cunhou a expresso banalidade do

    mal quando analisou o julgamento de Eichmann, um dos nazistas levados

    ao tribunal. Com esta expresso, a filsofa se referia ao mal que no en-

    raizado (que no radical, para usar a expresso de Kant) nem praticado

    como atitude deliberadamente maligna. A banalizao do mal feita peloser humano comum que no se responsabiliza pelo que faz de ruim ou acha

    que o que faz de ruim no tem consequncias para os outros; no reflete,

    no pensa.

    Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa tomada pelo vazio do

    pensamento; como um imbecil que no pensava; que repetia clichs e era

    incapaz de um exame de conscincia e que, por tudo isso, banalizava o

    mal que praticava. A banalidade do mal pode, portanto, ser feita por qual-

    quer pessoa carente de pensamento crtico e, por isso, insensvel dor do

    outro e s consequncias de seus atos.

    O fascista aquele que banaliza o mal. Para Marcia Tiburi, ele burro

    na medida em que no acessa o campo do outro porque lhe falta conheci-

    mento e imaginao para tal. A burrice o cancelamento do processo de

    conhecimento e de imaginao. Nesse sentido e para usar as palavras da

    prpria filsofa o fascismo a mscara morturia do conhecimento.

    Outro aspecto desse mal apontado por Tiburi o analfabetismo poltico.

    O dramaturgo Bertolt Brecht afirmou, num texto memorvel, que o pior

    analfabeto o analfabeto poltico. Concordo com esta afirmao desde o

    momento em que a conheci j consciente de que eu era um animal po-

    ltico, para citar a expresso de Aristteles. Porm, porque os tempos eram

    outros (e, naqueles tempos, o dramaturgo alemo sequer sonhava com as

    transformaes sociais, culturais e tecnolgicas de que somos testemunhas,

    promotores e produtos), Brecht definia o analfabeto poltico como aquele

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    que no ouve, no fala, nem participa dos acontecimentos polticos;

    aquele que to burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a

    poltica. Dessa definio brechtiana do analfabeto poltico, a nica carac-

    terstica que sobrevive aos dias atuais o proclamado e contraditrio dio

    poltica, analisado por Tiburi com acuidade e sem condescendncias naspginas seguintes.

    O que leva um indivduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com

    cuidado crtico nas causas e consequncias dos seus atos configura aquilo

    que chamamos de analfabetismo poltico. Mas, no caso dos personagens

    jovens que surgem atualmente, lderes do fascistoide Movimento Brasil

    Livre, est em jogo a forma mais perversa de analfabetismo poltico. Aquele

    de quem foi manipulado desde cedo e no teve chance de pensar de modoautocrtico porque sua formao foi, no sentido poltico, de-formao, a

    interrupo da capacidade de pensar, de refletir e de discernir, argumenta.

    Mas, sem discordar de Tiburi e apenas dando minha modesta contri-

    buio para a sua excelente e necessria reflexo, digo que, por causa das

    transformaes sociais, culturais e tecnolgica que experimentamos, o

    analfabeto poltico dos dias atuais bem diferente daquele dos tempos

    de Brecht. O analfabeto poltico da atualidade fala e participa dos aconteci-

    mentos polticos mesmo renunciando tarefa de se informar melhor sobre

    eles ou partindo de preconceitos, boatos ou mentiras descaradas sobre tais

    acontecimentos.

    O analfabeto poltico da contemporaneidade ao contrrio daquele

    dos tempos de Brecht participa dos acontecimentos polticos opinando

    sobre eles nas redes sociais digitais sem qualquer cuidado crtico. Eu po-

    deria recorrer a muitos exemplos do atual comportamento do analfabeto

    poltico, mas, para encurtar este prefcio, j que o que interessa mesmo

    o texto de Marcia Tiburi, vou me restringir a uma das muitas estupidezes

    escritas em minha pgina no Facebook por ocasio da aprovao do Marco

    Civil da Internet: O marco servil [sic] vai acaba [sic] com o facebook e

    traze [sic] o comunismo vai manda [sic] mata [sic] todo mundo comeando

    por voc seu viado filhodaputa [sic]. Este comentrio um exemplo do

    analfabetismo poltico contemporneo, mas tambm o sintoma de uma

    ameaa democracia e vida com pensamento: a maioria dos analfabetos

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    polticos que vociferaram nas redes sociais digitais, principalmente a

    maioria daqueles que fazem meno ao comunismo ou ao socialismo,

    deixaram claro quais as fontes de suas afirmaes acerca do acontecimento

    em questo: os colunistas da revista marrom semanal; o senil reacionrio que

    se diz filsofo; e a famlia de parlamentares (deputado federal, deputadoestadual e vereador) que parasita o poder pblico para difamar adversrios e

    estimular o fascismo. Nesse sentido e apesar da virulncia e arrogncia com

    que afirma sua ignorncia, o analfabeto poltico uma vtima daquele que

    Brecht considera o pior de todos os bandidos: o poltico vigarista, desonesto

    intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporaes.

    Portanto, preciso ter alguma compaixo pelo analfabeto poltico: in-

    sistir na luta para que ele tenha acesso a educao de qualidade e s artes,em especial s artes vivas, com destaque para o teatro. preciso insistir

    no dilogo com o fascista. Mas isso possvel? Como conversar com um

    fascista? Leia este livro e voc ter as respostas.

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    1. Questes preliminares: experinciapoltica e experincia da linguagemou o dilogo como desafio

    Como conversar com um fascista reflexes sobre o cotidiano autoritrio

    brasileirorene reflexes sobre o estado psicopoltico e cultural de nossa

    poca. O pressuposto que estrutura essas reflexes que a poltica define-se

    como experincia de linguagem e que a qualidade dessa experincia nos une

    ou nos separa, tornando-nos seres polticos ou antipolticos.

    Se nosso ser poltico se forma em atos de linguagem, precisamos pensar

    nessa formao quando o empobrecimento desses atos se torna to evidente.

    O autoritarismo o sistema desse empobrecimento. Ele o empobrecimento

    dos atos polticos pela interrupo do dilogo. Interrupo que se d, por

    sua vez, pelo empobrecimento das condies nas quais o dilogo poderia

    acontecer. Essas condies so materiais e concretas. Elas referem-se a me-

    canismos, na forma de dispositivos criadores de hbitos, que impedem as

    prticas de dilogo. Esses dispositivos so criados por racionalidades que

    operam na linguagem. A linguagem est como que fora e dentro das pes-soas, forjando-as e sendo forjada por elas. O dilogo uma atividade que

    nos forma e que formada por ns. um ato lingustico complexo capaz

    de promover aes de transformao em diversos nveis. Poderamos nos

    perguntar o que acontece conosco quando entramos em um dilogo e o

    que acontece caso isso no seja possvel. O dilogo uma prtica de no

    violncia. A violncia surge quando o dilogo no entra em cena.

    O que chamo de fascista um tipo psicopoltico bastante comum. Suacaracterstica ser politicamente pobre. O empobrecimento do qual ele

    portador se deu pela perda da dimenso do dilogo. O dilogo se torna

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    impossvel quando se perde a dimenso do outro. O fascista no consegue

    relacionar-se com outras dimenses que ultrapassem as verdades absolutas

    nas quais ele firmou seu modo de ser. Sua falta de abertura, fcil de reconhe-

    cer no dia a dia, corresponde a um ponto de vista fixo que lhe serve de certeza

    contra pessoas que no correspondem sua viso de mundo preestabelecida.A outra pessoa o que o facista no pode reconhecer como outro. O outro

    reduzido a uma funo dentro do crculo no qual o fascista o enreda. Talvez

    como a aranha que v na mosca apenas o alimento que he serve e que precisa

    ser capturado em uma teia. Mas essa imagem seria ingnua, pois o fascista

    capaz de olhar para o outro com tanto dio que at mesmo perde o senso

    de utilidade. O outro negado sustenta o fascista em suas certezas. O crculo

    vicioso. A funo da certeza negar o outro. Negar o outro vem a ser umaprtica totalmente deturpada de produo de verdades.

    Fechado em si mesmo, o fascista no pode perceber o comum que h

    entre ele e o outro, entre eu e tu. Ele no forma mental e emocionalmente

    a noo do comum, por que, para que esta noo se estabelea, dependemos

    de algo que se estabelece com uma abertura ao outro. Fascista aquela pessoa

    que luta contra laos sociais reais enquanto sustenta relaes autoritrias,

    relaes de dominao. s vezes por trs de uma aparncia esteticamente

    correta de justia e bondade. Mesmo em circunstncias esteticamente as

    mais corretas, e politicamente as mais decentes, o dio uma fora que

    tende a falar bem alto. O fascista usa o afeto destrutivo do dio para cortar

    laos potenciais, ao mesmo tempo que sustenta, pelo dio, a submisso do

    outro. Como personalidade autoritria, ele luta contra o amor e as formas

    de prazer em geral. Um fascista no abraa. Ele no recebe. um sacerdote

    que pratica o autoritarismo como religio e usa falas prontas e apressadas que

    sempre convergem para o extermnio do outro, seja o outro quem for.

    Refiro-me ao elemento psicolgico de nossas experincias polticas,

    nossa vida em comum, sem nenhuma pretenso psicanaltica ou hermenu-

    tica. Eu poderia escrever a palavra tica para me referir esfera psicolgica

    que antigamente era chamada de moral. Hoje, usamos o termo tica para

    falar dessa questo, mas justamente enquanto a moral o que se questiona

    por meio da tica. Quando pergunto como algum se forma, como algum

    se torna o que , e como , estou na esfera da tica. O que est em jogo

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    a experincia subjetiva das pessoas que se encontram entre si e podem ou

    no entrar em um processo dialgico, na forma de ser de cada um, no que

    podemos chamar de formao da subjetividade. Subjetividade, por sua vez,

    uma palavra usada aqui com a inteno de expressar o que prprio de

    cada um, mas, mais ainda, o que cada um vive na pele. Refiro-me quelasexperincias que independem de ns e que vm a nos machucar em nveis

    diversos. Isso de que somos feitos. O termo interioridade poderia nos

    dizer alguma coisa, mas seria pouco, pois a subjetividade implica tambm

    a exterioridade. Implica o que est nos acontecendo e que transcende o

    que podemos compreender. Aquilo que est nos acontecendo enquanto

    algo perpetrado pelo outro, no apenas a pessoa fsica de um outro, mas as

    instituies, a sociedade, a cultura, o mbito espiritual e simblico em quenos tornamos quem somos, sem que estejamos jamais prontos e acabados.

    Por isso, a pergunta o que estamos fazendo uns com os outros? to

    importante. Do mesmo modo, a questo tambm pensar o ato poltico

    como ato lingustico (sendo que todo ato lingustico poltico) e perguntar

    o que estamos fazendo quando estamos dizendo coisas uns aos outros.

    Por que no existe poltica nem a forma antipoltica, que o fascismo, sem

    prticas lingusticas, que constroem ou destroem a poltica.

    A palavra autoritarismo usada para designar um modo antidemocrtico

    de exercer o poder. A centralidade da autoridade o atributo ou a caracte-

    rstica de um governo, de uma pessoa ou at mesmo de uma cultura, que

    fornece o ncleo gerador da ao no exerccio do poder autoritrio. Dilogo

    e participao coletiva em decises so impensveis no espectro do autori-

    tarismo que se define pela imposio fora de leis que interessam a quem

    exerce o poder. O outro, seja o povo (Estado), seja o prximo (indivduo),

    seja a sociedade ou outras formas de cultura, manipulado, quando no

    violentado, tanto fsica quanto simbolicamente.

    Talvez no tenha sido percebido ainda que o autoritarismo seja mais do

    que uma postura, ele essencialmente um regime de pensamento. Uma

    operao mental que, em sentido amplo, se torna paradigmtica agindo

    sobre a cincia, a cultura e o senso comum. O autoritarismo como regime

    de pensamento poderia ser superado por aquilo que podemos chamar de

    paradigma do pensamento democrtico. No o pensamento sobre a demo-

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    cracia, mas uma operao mental em si mesma democrtica. Em ambos os

    casos, trata-se de modos de pensar, de ver o mundo e de um especfico uso

    da linguagem que se efetiva em aes.

    A operao de pensamento autoritria est profundamente arraigada em

    tudo o que fazemos e parece fortalecer-se em certas pocas. Essa operaose d no apagamento da funo oblativa (a funo do outro). A atmosfera

    niilista evidente no esprito de nossos dias relaciona-se solido do pen-

    samento que no encontra nada diferente dele para fecundar. A operao

    do pensamento autoritrio infrtil e rgida, ela se basta em repetir o que

    est dado, pronto ou resolvido (mesmo que apenas aparentemente). O ou-

    tro (seja o povo, seja o prximo, seja a cultura alheia, seja a natureza ou a

    sociedade, seja o outro como uma voz que no se quer ouvir) apagadono processo mental, que um processo de linguagem. Nesse processo,

    aquele que se constituiu como sujeito autoritrio pensa (ou des-pensa)

    a partir de falas prontas que ele toma como suas, mas que so introjetadas.

    O sujeito autoritrio tem orgulho de seus pensamentos como se fossem

    verdades teolgicas que somente ele detm. Da que haja tanta gente autori-

    tria professando verdades. Toda pessoa autoritria se sente meio sacerdote

    de alguma coisa. As falas autoritrias so como cacos colados fora para

    formar uma imagem mental sobre o mundo ao redor, um objeto, algo que

    se poderia tentar conhecer, mas que no preciso conhecer, porque est de

    antemo, na fico do autoritrio, j conhecido. A operao propriamente

    dita do conhecimento que se entrega novidade do objeto , no entanto,

    desnecessria. Em outras palavras, podemos dizer que o sujeito autoritrio

    pergunta e responde a si mesmo a partir de um ponto de vista previa-

    mente organizado no qual, a cada momento, o outro precisa ser descartado.

    Como se no existisse outro ponto de vista, outro desejo, outro modo de ver

    o mundo, outro que conhecer, ele procede mentalmente como o paranoico

    que detm todas as verdades antes de chegar a pesquisar o que as sustenta.

    E claro que no dialoga com ningum, porque a operao lingustica que

    implica o outro impossvel para ele.

    Quando escrevi o ensaio que d nome ao livro, pensei em um experi-

    mento terico-prtico. Pensei em como desencadear a operao considerada

    impossvel de conversar com algum enrijecido em sua viso de mundo.

  • 7/25/2019 Tiburi_Como Conversar Com Um Fascista

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    Algum que no se dispe a escutar. Algum que no fala para dialogar,

    mas apenas para mandar e dominar. Algum que se tornou o sacerdote das

    verdades de sua vida e das vidas alheias. Algum que sabe tudo previamente

    e est fechado para o outro. Perdidos em suas ilhas, alguns esto muito certos

    de que as coisas no podem ser diferentes porque o mundo est pronto emseus sistemas de pensamento. Ora, sistemas de pensamento so sistemas

    de linguagem. O cerne do pensamento conservador que , em seu ntimo,

    opressor est em um pano de fundo lingustico enrijecido. Um pano de

    fundo no qual o autoritrio se camufla como uma mariposa que se defende

    dos predadores. Claro que o sacerdote do autoritarismo , como todo pa-

    ranoico, algum que tem muito medo. Aquele que pensa que ele mesmo, o

    outro, a vida, a sociedade no podem ser diferentes no se abre ao dilogo.H uma dimenso idealizadora e utopista em todo dilogo. Mas o fascista

    no quer saber disso ou sequer analisar esta hiptese. O outro, esse algum

    que o agente fascista trata como ningum, diferena demais para sua ca-

    bea cheia de ideias prontas e bem encaixadas no mesmo lugar de sempre.

    O fascismo a forma do autoritarismo quando ele se torna radical. H

    em todo Estado essa semente porque a ordem em si mesma, a ordem pr-

    pria ao Estado, sua essncia. No cotidiano, o autoritarismo sobrevive nas

    posturas e atitudes psquicas ou moralmente rgidas. A frieza das posturas,

    pensamentos e aes, , em seu ntimo, alimento do fascismo potencial.

    Toda a nossa incapacidade para amar em um sentido que valorize o outro

    fonte do fascismo.

    O autoritarismo da vida cotidiana o conjunto de gestos to fceis de

    realizar quanto difceis de entender. E ainda mais difceis de conter. Em

    nossa poca, crescem manifestaes de preconceito racial, tnico, religioso,

    sexual, que pensvamos superadas. direita e esquerda, a partir de todos

    os credos, de todas as defesas que deveriam ser as mais justas e generosas.

    Ao mesmo tempo que idiossincrasias brutais se afirmam contra pessoas e

    grupos, sentimentos socialmente necessrios, aqueles que se voltam para o

    outro na inteno de compreend-lo, acolh-lo em uma palavra, am-lo

    no tm lugar entre ns. A mais bsica abertura a uma conversa se torna

    invivel quando os indivduos esto fechados em seus pequenos universos

    previamente formados e informados de tudo o que supem saber.

  • 7/25/2019 Tiburi_Como Conversar Com Um Fascista

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    Desaprendemos a conversar e somos incapazes de constituir um cenrio

    tico-poltico diferente. O problema , afinal, nesse contexto discursivo,

    sempre do outro. O outro, esse algum que tratamos como se no fosse

    ningum, o desafio tico-poltico em uma sociedade que trabalha pela

    garantia de direitos fundamentais e pelo respeito singularidade. O desafiodo outro, de conversar com esse outro para quem facilmente nos fechamos,

    eis o que se prope nas pginas que seguem.

    Precisamos tentar intensamente o dilogo que est to esquecido e faz

    muita falta entre ns. O dilogo uma prtica de escala mida que poderia

    inspirar escalas maiores. Instaurador do comum, ele deveria ser a base de

    uma tica do dia a dia, aquele lugar do me tornar quem sou. A tica seria uma

    boa base de construo de outra poltica. Talvez o experimento que deu incioa este livro pudesse se tornar um mtodo existencialmente til no cotidiano.

    Ele nos faria resistir ao autoritarismo de nossa poca, ao avano do fascismo

    do dia a dia. Penso agora que, se esse experimento no alcanar sucesso na

    arte de conversar com um fascista, que possa nos afastar do fascismo em

    nossa prpria autoconstruo. Se puder colaborar com isso, ento o esforo

    terico e prtico que o engendrou no ter sido em vo.