Ti cs e novo papel professor versao 19 06 (03)

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Adail Sobral (PPGL – UCPEL)

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Adail Sobral (PPGL – UCPEL)

Não são as tecnologias em si que me interessam, mas suas possibilidades de uso com base numa concepção de ensino que dê margem a uma maior liberdade (e consequente responsabilidade) aos alunos e aos professores. Esse enunciado poderia incluir a expressão "que dá margem", mas isso poderia parecer pressupor que essa concepção já é posta em prática generalizadamente, o que talvez não seja o caso.

Dizer "que dê margem" pode induzir a pensar que essa até agora misteriosa concepção de ensino-aprendizagem de que vou falar pode não dar margem a uma maior liberdade, o que não me parece o caso. Dizer “que dá margem” é contar o fim do filme; dizer “que dê margem” é duvidar da afirmação ou querer correr um risco. Duvidar de si mesmo é ser professor? Espero tê-los inquietado, induzido a imaginar que raio de concepção será essa e em que difere da ainda vigente.

Marc Prensky criou as expressões “nativos digitais” e “imigrantes digitais”, para designar quem nasceu antes de surgir a Internet e aqueles que já nasceram com ela e não podem passar sem ela, ou melhor, que não concebem o mundo sem ela! Ele mesmo seria um "imigrante", mas uma reflexão mais ampla o faria ver que ele talvez seja mais um "mestiço digital", categoria que criei a partir de Prensky e na qual me situo.

O nativo digital tem suas apreciações, percepções e ações moldadas pelo ambiente digital? Ele parte dessa "matriz" para transpor duradouramente suas disposições para atividades fora do ambiente digital? Ao que parece, sim, e basta-nos considerar alguns alunos de 17 anos que entram na universidade para perceber que assim é. Isso, como veremos, tem várias implicações para o ensino -- que hoje já conta com alguns nativos.

Como agem os imigrantes? De modo geral, eles não têm suas apreciações, percepções e ações moldadas pelo ambiente digital, nem partem dessa "matriz" para transpor duradouramente suas disposições para atividades fora do ambiente digital. Assim sendo, de certo modo "resistem" ao habitus, ainda que, como "imigrados", não possam deixá-lo mais de lado. Mas a sua permanece uma relação tensa, ou ao menos "insegura", uma vez que não são nativos.

Um mestiço digital compartilha com os nativos a familiaridade com o habitus, e partilha com os imigrantes certa reserva, advinda do fato de terem imigrado mais cedo do que os imigrantes "normais", mas terem nascido antes do surgimento do mundo digital, quando já haviam adquirido modalidades de apreciação, percepção e ação "analógicas"!

Separo os imigrantes dos imigrados: estes últimos são os que, apesar de si mesmos, tiveram de imigrar. Para os “assustados”, que são em sua maioria imigrados, e que mais nos interessam, as tecnologias são quase uma invasão, ou uma deportação, um país estrangeiro que, paradoxalmente, os ocupou em vez de ser adotado por eles. Para os “fanáticos”, em sua maioria nativos, o mundo digital foi ocupado por eles e lhes pertence, e é mais real do que o dito real.

A resistência às TICs me parece vir, de um lado, do temor das tecnologias per se, como se despersonalizassem a relação ensino-aprendizagem. Não há aí nenhum questionamento da relação tradicional, não mediada por TICs, sobre se ela é de fato satisfatória etc., mas o pressuposto de que é "personalizada" e, portanto, passível de despersonalização pelas TICs. Assim, a personalização é considerada positiva em si, sem que se questione sua natureza; e a dita “despersonalização”, negativa em si, também sem questionamento.

Cabe assim perguntar: há hoje uma parceria produtiva entre TICs e ensino-aprendizagem? Ou o ensino apenas "usa", seja de bom grado ou apesar de si mesmo, as TICs que chegaram ao ambiente escolar?

Em outras palavras, haverá a busca de uma parceria da parte dos profissionais de ensino ou eles simplesmente as aceitam como "um mal necessário" ou ao menos como "mais um recurso?

Afirmei em Internet na Escola (1999), que a Internet combina "perfeitamente com os novos rumos da educação por ser adequada à nova relação aluno-professor, que deve ser centrada no aluno e na ação deste como sujeito, e que requer do professor que se torne um companheiro, mais experiente, na jornada do conhecimento". Não mudei de ideia e, na verdade, aprofundei essa posição, talvez com menos idealismo....

Alguns nativos acham simplesmente que o que está na Internet pode ser copiado e colado como se fosse um texto seu! Ao mesmo tempo, não haverá "autoria" no fato de não haver dois nativos que copiem as coisas na mesma ordem nem as mesmas coisas? Não poderíamos incluir a seleção entre as habilidades autorais? Ou ao menos partir disso para trabalhar tanto a questão de evitar o plágio como a de assumir uma posição autoral? O que isso nos impõe?

Como se sabe, o ambiente escolar (em todos os seus níveis) tem uma longa tradição de instituição de práticas vinculadas à produção de discursos, tanto docentes como discentes, que são parte integrante dele, em vez de vincular-se com outras práticas discursivas; são os chamados “discursos escolares”, produzidos com o fim de promover e avaliar a aprendizagem escolar. Hoje, usam-se também exemplares reais (no âmbito de gêneros), mas o problema é como se usam.

A tecnologia é por definição “burra”. Porque nenhuma tecnologia é capaz de determinar - por si só - o sucesso de um empreendimento, e menos ainda se for um empreendimento de ensino-aprendizagem, que envolve complexas interações que vão dos estilos de ensino e de aprendizagem dos envolvidos a questões institucionais e de imagem social e histórica dos papeis de aluno e de professor – um espectro que vai do subjetivo estrito ao “espírito de época”.

As sociedades modernas, um dia unificadas (por bem ou por mal) hoje vivem (por bem ou por mal) uma situação de fragmentação, de diversidade, de reconhecimento de que não há um único padrão seguir. Se isso de um lado desestabiliza, de outro abre horizontes assustadores ou recompensadores, a depender da atitude. Temos hoje de ultrapassar a ideia de “aceitar as diferenças” e/ou de “acolher a diversidade” para chegar à ideia, mais justa, de que “somos todos diferentes”.  

“Aceitar as diferenças” e “acolher a diversidade” supõem um padrão de igualdade a partir do qual se define o “diferente”, que é sempre “o outro”, o “não-eu”.

Reconhecer que “somos todos diferentes” é reconhecer que (1) não há um único padrão e talvez nem haja padrão fora a ética (2) cada pessoa tem suas necessidades e seu ritmo; (3) o processo de ensino-aprendizagem tem de respeitar essas diferenças irredutíveis e adaptar-se a eles.

Além de permitir que o professor também aprenda com o aluno, a Internet facilita a motivação deste, promovendo o trabalho em grupo e a troca dinâmica de informações com os colegas. A Internet facilita a atual tarefa do professor - a de guia da aprendizagem, em vez de transmissor do conhecimento -, e permite ao aluno um contato mais direto com o mundo, o que atende a mais uma necessidade atual: o da experiência direta como modalidade de aprendizagem mais propícia ao desenvolvimento da capacidade de resolução criativa de problemas.

 

Pode-se assim dizer que, como transmissora de conhecimentos, a Internet é bem mais eficiente do que qualquer professor. Mas, como profissional que, enquanto aprende com seus alunos, é capaz de guiá-lo na filtragem do que há de relevante na Internet e principalmente no processo de construção de conhecimentos, todo professor pode ser bem mais eficiente do que qualquer recurso de mera transmissão. Logo, o papel do professor é o de coach, um orientador, não treinador.

É ajudar a ver, a construir, acompanhar num processo complexo de autoformação, de autoevolução, na qualidade de aluno eterno e de companheiro mais experiente que promove a descoberta e construção pelos alunos de conceitos, de saberes, de subjetividade relacional. Para isso, o professor deve aprender a colocar toda e qualquer tecnologia a serviço da proposição aos alunos de desafios que os levem a se tornar pessoas mais complexas, mais capazes, mais conscientes, mais cidadãs.

Há uma dessimetria constitutiva na interação professor-aluno. Mas isso não implica uma hierarquia em termos do valor de cada pessoa; os papéis são socialmente distintos, mas os sujeitos que os ocupam são fundamentalmente iguais. Na verdade, não há a rigor ensino como ação de um agente sobre um paciente, este passivo e aquele ativo, mas sim “autoformação”, que pode receber a contribuição da “co-formação”, ou seja, o contato entre pares em que um deles é mais experiente num dado plano.

Mudam os papéis de professores e alunos. Os alunos, que antes se limitavam a ouvir e tomar notas, passam a ensinar a si mesmos, com a orientação dos professores. Daí a real necessidade de usar ferramentas que os ajudem a aprender. O papel do aluno passa a ser de pesquisador, de usuário especializado em tecnologia. O professor passa a ter papel de guia e de orientador. Ele estabelece metas para os alunos e os questiona, garantindo o rigor e a qualidade da produção da classe.

 

Em nossos dias, o que se exige do professor, para além do “domínio” de suas áreas de saber e de capacidades de ensino, é que ele seja um parceiro mais experiente que:

Orienta e guia Cria metas e questiona - Projeta o processo de

aprendizagem Descreve o contexto Estabelece critérios de rigor Garante a qualidade

O professor deve promover a autonomia, o protagonismo, dos alunos. Isso exige mudar a(s) mentalidade(s). Como criar autonomia em meio a uma estrutura que faz os alunos esperarem professores "tia" ou "tio"? “Mestres” dotados de um suposto saber, julgado transmissível como conteúdo, ou autoritários, inseguros, paternalistas.

Minha geração lutou pela autonomia. A de nossos atuais alunos por vezes parece ter desistido disso. Será porque ser livre impõe responsabilidade?

Mas essa responsabilidade é a única maneira de aprender. Professores não ensinam; eles expõem o saber aos alunos e estes dele de apropriam, ou não, à sua própria maneira.

Claro que não se renuncia ao papel de parceiro mais experiente. Mas a principal função dos professores é se tornar inúteis. Quanto menos os alunos precisam deles, tanto mais eficientes terão eles sido!

Isso é assustador para os professores-transmissores e os alunos receptores!

Trava-se essa batalha contra alguns inimigos, que, simplificando, chamo de o "vale nota?" e o "não vai dar aula?". O primeiro é a mentalidade bancária, behaviorista: o que não é “pago” não tem valor! O segundo, a ideia do professor como transmissor: aula é sempre o professor falando - usando a voz, giz, lousa eletrônica, PowerPoint ou o que for!

E os alunos passivamente anotando. Ser passivo é manter-se na zona de conforto. E o professor tem de tirar os alunos dela.

Não há nada errado nesse tipo de aula. Em certas situações, ela é necessária e suficiente – desde que o professor seja bom expositor. Mas, sem “colocar a mão na massa”, não se aprende, embora se possa ser aprovado. Só que ser aprovado sem aprender é ser reprovado, é “rodar”, sem se dar conta. Logo, aprender é responsabilidade dos alunos quando lhes é oferecida autonomia. Ser autônomo é ser também responsável. E isso assusta!

 

Sempre se paga um “preço” na vida, profissional e pessoal: seja porque se fez algo ou porque se deixou de fazer. Logo, cabe-nos escolher o motivo pelo qual vamos pagar. Só erra quem tenta fazer algo. Quem não tenta já fez a opção errada. Não fazer pode ser uma opção. Mas esta tem de ser resultado de re-flexão, de “fletir de novo”, “olhar outra vez” (Rauber), e não de desistência. Uma coisa é calar por tática ou estratégia; outra bem distinta emudecer (ou deixar-se emudecer).

Promover a apropriação e co-criação de conhecimentos/sentidos, o que supõe naturalmente não haver um detentor do saber, mas orientadores dotados de maior ou menor habilidade, dos saberes possíveis numa dada sociedade num dado momento histórico (claro que há o que se pode chamar de “verdades universais”, como a caracterização da tortura como ação condenável, mas não é esse nosso foco).

Voltada para favorecer a criação de cidadania por meio da promoção da responsabilidade pela própria aprendizagem, em parceria com o professor. Ela não só aceita como busca promover a inovação, a contestação, a atitude crítica e a reflexão constantes, desestabilizando a posição do professor, sem no entanto privá-lo de sua posição constitutiva de parceiro mais experiente num dado plano

O que determina a eficácia da aula não é o que se usa, mas como se usa. Um professor que nem sabe ver seus emails está num mundo alheio aos de seus alunos. Além disso, o papel da didática e da pedagogia na escola me parece ser a dissociação entre quem cria os recursos didáticos e os profissionais que os usam, ou seja, não é possível um profissional de didática e de pedagogia trabalhar com matérias específicas sem entender delas nem um especialista não saber usar esses recursos.

Quanto menos necessário se faz o professor, tanto mais autônomos terão se tornado seus alunos. E as tecnologias da informação podem ser uma utilíssima ferramenta (no sentido vigotskiano do termo). Creio firme e fundamentadamente que - com ou sem tecnologias da informação - só se ensina por se ser quem se é - e não o que se é.

Fica então, inevitavelmente, duas perguntas como "conclusão" desta fala. Em vez de alguma resposta superficial e/ou momentânea): Como professores, que sujeitos queremos ser? Como sujeitos, que professores queremos ser?