Thiago de Abreu e Lima Florencio A busca da salvação...

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Thiago de Abreu e Lima Florencio A busca da salvação entre a escrita e o corpo Nóbrega, Léry e os Tupinambá Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio. Orientadora: Profª Eunícia Barros Barcelos Fernandes Rio de Janeiro Setembro de 2007

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Thiago de Abreu e Lima Florencio

A busca da salvação entre a escrita e o corpo Nóbrega, Léry e os Tupinambá

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientadora: Profª Eunícia Barros Barcelos Fernandes

Rio de Janeiro

Setembro de 2007

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Thiago de Abreu e Lima Florencio

A busca da salvação entre a escrita e o corpo:

Nóbrega, Léry e os Tupinambá

Dissertação apresentada como requisito parcial paraobtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamentode História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Eunícia Barros Barrcelos Fernandes Orientadora

Departamento de História PUC-Rio

Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo Departamento de História

PUC-Rio

Profª. Luciana Villas Bôas Departamento de Letras

UERJ

Profº João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2007.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução

total ou parcial do trabalho sem autorização da

universidade, da autora e do orientador.

Thiago de Abreu e Lima Florencio Graduou-se em História pela PUC-Rio em 2003. Trabalhou como pesquisador e ator do CATAC (Centro de Antropologia do Teatro do Acre) entre 2001 e 2003, um projeto da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Acre. Especializou-se em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM (Universidade Cândido Mendes) em 2004, tendo defendido a monografia “Cangoma me chamou – a música na (re)construção da identidade negra no Brasil”.

Ficha Catalográfica CDD: 900

Florencio, Thiago de Abreu e Lima A busca da salvação entre a escrita e o corpo : Nóbrega, Léry e os Tupinambá / Thiago de Abreu e Lima Florencio ; orientadora: Eunicia Barros Barcelos Fernandes – 2007. 118 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Escrita. 4. Corpo. 5. Salvação. 6. Nóbrega. 7. Léry. 8. Tupinambá. I. Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Aos meus pais, Sergio e Sonia, pela distância sempre tão próxima.

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Agradecimentos À minha orientadora, professora Eunícia Fernandes, com quem tive o prazer de

iniciar esta aventura teórica, desde a monografia de graduação. Além de sua

competência e dedicação, que me estimularam a percorrer os caminhos da dissertação

com mais segurança, é uma pessoa de grande sensibilidade, e mais: um sorriso largo.

Ao professor Ricardo Benzaquen, com quem muito aprendi, desde a graduação e,

principalmente, no período inicial da dissertação, quando pode me orientar. Sou

muito grato por sua atenção e cuidado nas leituras de meus textos.

À professora Luciana Villas Bôas, que me conduziu, com sua sensibilidade e

precisão, a tecer reflexões mais profundas nesse complexo universo teórico.

Participar do grupo de estudos ao qual ela me encaminhou, foi fundamental para o

refinamento desta dissertação.

À Christina Osward, com quem aprendi sobre a França Antártica e me cedeu, além de

material bibliográfico, sua atenção e carinho. As tardes do grupo de estudos foram

apetitosas, não só pelas conversas, mas também pela agradável casa e um bolo

especial que sempre nos aguardava.

À Sheila Hue, outra integrante do grupo que, com sua paixão pelos quinhentistas,

sempre nos trouxe informações preciosas e muito contribuiu com comentários,

sugestões e estímulo.

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Aos professores do Departamento de História, especialmente a Ilmar Rohloff de

Mattos, Selma Rinaldi, Marcelo Jasmin, Edmilson Rodrigues, Maisa Mäder, Berenice

Cavalcanti e Cecília Martins. Ao departamento de História, especialmente à Anair,

Cleuza, Edna e Cláudio. Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os

quais este trabalho não poderia ter sido realizado.

À Beatriz Ramos, que me estimulou as descobertas interiores.

Ao Fernando Werneck, foi um privilégio ter recebido a revisão precisa de um escritor

de sua estirpe.

Ao Pedro Villas Bôas, pelas corridas sempre saudáveis, nossos ‘exercícios

espirituais’ que foram fundamentais para que eu não perdesse a razão ao longo desse

processo.

Ao João Alberto, pelo carinho, pelos florais e pelos toques do caboclo tupinambá.

Ao Sílvio, da selva Botafogo.

Aos do CATAC, aos do Acre: Clemilson, Raquel, Ney, Isis, Samirra, Rodrigo e Ju e

Neuza.

Aos amigos de já dez anos de História: Jerônimo Motta, Flavio Kactuz, Alex

Nietzsche, Meca, Ana Paula, Mirela, Fabíola, Érica, Gil Conti, Ive Cunha, Sartori,

Murilo Meihy. E aos novos: Alessandro Ventura, Janaína Oliveira, Joana Saraiva,

Daniel Pinha e Cassia Miranda.

À memória do Xará, com quem aprendi a jogar sinuca e torcer pelo meu time.

À Rádio Mec, onde trabalhei e que acompanhou minhas madrugadas de inspirações.

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À minha família, irmãos, primos e primas, tios e tias e minha avó Maria Thereza.

Aos recém ingressos nesse mundo, que suas idéias tomem corpo e amadureçam nossa

espécie: Janjão, Clarinha e a vindoura Helena.

E à Tá, que aqui está. Sempre. É quem torna o leito navegável.

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Resumo

Florencio, Thiago de Abreu e Lima; Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. A busca da salvação entre a escrita e o corpo. Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Rio de Janeiro, 2007. 118p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A proposta da dissertação é analisar como o Tupinambá se inscreve no

universo da salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry,

tendo como referência o jogo discursivo que se estabelece entre a escrita desses

autores e o corpo ameríndio. Nas Cartas do Brasil (1549-1560) e na Histoire d’un

voyage fait en la terre du Brésil (1578), pode-se verificar, respectivamente, que

Nóbrega e Léry viajaram ao Novo Mundo engajados no âmbito das Reformas

religiosas do século XVI. Entretanto, estes textos são diretamente marcados pela

experiência dos autores com os Tupinambá. Tendo em vista a posição central que

ocupa o corpo na sociedade Tupinambá e as preocupações teológicas, acentuadas

pelas Reformas, sobre a relação entre corpo e salvação, a dissertação afirma a

construção de uma representação ambígua e diferenciada do corpo ameríndio no

universo da salvação do jesuíta e do calvinista. Identifica-se uma polarização entre a

escrita desses autores e a nudez ameríndia, que teria servido como contraponto para a

edificação das narrativas exemplares da salvação desses religiosos.

Palavras chave Escrita; Corpo; Salvação; Nóbrega; Léry; Tupinambá.

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Résumé

Florencio, Thiago de Abreu e Lima; Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. La recherche du salut entre l’écriture et le corps. Nóbrega, Léry et les Tupinambás. Rio de Janeiro, 2007. 118p. Dissertation de Master – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Le propos de cette dissertation est d’analyser l’insertion du Tupinambá dans

l’horizon du salut du jésuite Manuel da Nóbrega e du calviniste Jean de Léry, en

ayant comme référence le jeu discursif qui s’établit entre l’écriture des auteurs et le

corps amérindien. Dans les Cartas do Brasil (1549-1560) et dans l’Histoire d’un

voyage fait en la terre du Brésil (1578), nous pouvons vérifier, respectivement, que

les voyages de Nóbrega et de Léry au Nouveau Monde sont compris dans le contexte

des Réformes religieuses du seizième siècle. Néanmoins, la rédaction de ces textes est

directement affectée par l’expérience des auteurs avec les Tupinambás. En vue de la

position centrale du corps dans les sociétés Tupinambás et des problèmes

théologiques concernant la relation entre le corps et le salut, suscités au cours des

Réformes religieuses, la dissertation affirme la construction d’une représentation

ambiguë et differenciée du corps amérindien dans l’horizon du salut du jésuite et du

calviniste. Il s’agit de mettre en évidence la polarisation entre l’écriture de ces auteurs

et la nudité amérindienne, qui semble servir comme contre-épreuve de l’édification

des récits exemplaires du salut de ces religieux.

Mots- clés Écriture; corps; salut; Nóbrega; Léry; Tupinambá.

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Sumário

1. Introdução 12

2. A salvação entre a escrita e o corpo 19

2.1.A salvação e o outro 19

2.2. O jogo entre a escrita e o corpo 27

3. O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas

religiosas 33

3.1. Léry: exílio e corte 33

3.2. Pragmatismo jesuítico: o missionário e a continuidade 47

4. Nudez: os dois corpos do Tupinambá 58

4.1. “Papel branco” ou “boca infernal”? Nóbrega e a conversão 58

4.2. “Filho de Cam” ou “nobre selvagem”? O calvinista e a

nudez do Tupinambá 74

5. A escrita e a salvação 84

5.1. Nóbrega e as cartas 84

5.2. Léry: a escrita e a eleição 96

6. Considerações finais: o “índio bestial” e o “bom selvagem” 105

6.1. O corpo domado: Nóbrega e o Plano Civilizador (1558) 107

6.2. O corpo estetizado: Léry e a inocência perdida 109

7. Referências bibliográficas 113

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Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade.

Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil,

Salvador [Baía] , 10 de agosto de 1549.

Mas são estes tão carniceiros de corpos humanos, que sem excepção de pessoas, a todos matam e comem (...) Este gentio é de qualidade que não se quer por bem, senão por temor e sujeição, como se tem experimentado (...) Os que mataram a gente da nau do Bispo se podem logo castigar e sujeitar (...)Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos (...)

Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil,

Baía, 8 de maio de 1558 Tanto os homens como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre materno, mas para parecem mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e manchado de preto. Parece-me mais verossímil que descendam de Cam (...) tanto é que vendo-os assim vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus, minha fé (a qual, Graças a Deus, sustenta-se alhures) não foi abalada. (...) Há grande diferença entre as pessoas iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os indivíduos abandonados à cegueira dos seus sentidos. Eu estou muito mais confirmado na garantia e na verdade de Deus.

Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, 1580.

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Introdução

O corpo do prisioneiro é amarrado pela cintura. Antes de ser abatido com um

único golpe de tacape, o guerreiro cativo profere as palavras de seu discurso final.

Um dos tópicos recorrentes desse discurso é exaltar a valentia dizendo quantos

antepassados da tribo que o mantém cativo já estiveram em suas mãos. : “sim, sou

muito valente (...) venci os vossos pais e os comi”1. Os nomes dos ‘pais’ devorados

estão inscritos, por meio de escarificações, no corpo do guerreiro, que agora é um

prisioneiro.

Ele está prestes a ser devorado. E seu nome será inscrito ao corpo do guerreiro

que o capturou. Sem ter um novo nome marcado em sua pele, fruto do

aprisionamento de um cativo, o jovem tupi não está apto a se casar e ter filhos2.

Quanto mais nomes inscritos ao corpo, maiores as chances do bravo guerreiro ter

acesso à bem-aventurança, como nos lembra o jesuíta Manuel da Nóbrega: “Sua bem-

aventurança hé matar e ter nomes, e esta é sua glória por que mais fazem.”3.

Enquanto o jovem guerreiro se inscreve ao Tempo social da comunidade por

meio da escarificação de um nome inimigo em seu próprio corpo, o restante da tribo

compartilha, por meio do ritual antropofágico, os nomes ancestrais inscritos nesse

corpo adversário. A vingança do inimigo é o que move o Tempo tupinambá, e tal

vingança se expressa numa relação entre a palavra e o corpo ou, como diz Viveiros de

Castro, em um “duplo esquematismo, verbal e canibal”4.

A palavra e o corpo: a tribo devora o contrário, com exceção do guerreiro que

o capturou. Este tem a palavra do inimigo a ser gravada em seu corpo. Antropofagia,

escarificações e tatuagens: é na relação com o inimigo, pelo duplo esquematismo

palavra/corpo, que se produz uma relação entre o passado e o futuro. “O corpo é uma

memória” – como nos lembra Pierre Clastres, em sua análise das inscrições corporais

1 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 96. 2 VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 228. 3 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, p. 249. 4 VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 238.

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indígenas5 – e a memória tupi é fabricada nessa relação potencial entre a palavra e o

corpo. O corpo é, portanto, o lugar privilegiado de produção da memória tupi.

Março de 1549. A Companhia de Jesus – que compunha a armada do primeiro

Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza – aporta nas terras da América

portuguesa. Liderada pelo padre Manuel da Nóbrega, a Companhia tinha como

finalidade primordial a conversão do gentio. A serviço da Coroa portuguesa e do

Papado, o jesuíta se insere no mundo como um agente integrador, cujo princípio

fundamental é a união de todos no corpo místico da Igreja. Como demonstra em suas

primeiras cartas, Nóbrega parece bem otimista quanto aos resultados iniciais de sua

missão. Já em agosto de 1549, ao se referir aos Tupinambá, ele afirmava: “Cá poucas

letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade”6.

O corpo tupinambá é destituído de sua memória, pois seria, aos olhos do

jesuíta, um ‘papel branco’ para se ‘escrever à vontade’. Reduzido ao grau zero da

nudez, esse corpo funciona como um suporte da salvação do jesuíta: é por intermédio

do ‘papel branco’, aberto aos sinais da escrita, que Nóbrega fundamenta sua presença

enquanto missionário de Deus que deve inscrever o gentio ao corpo místico da Igreja.

Fevereiro de 1557. Oito anos após a chegada de Nóbrega, a nau em que estava

o jovem que integrava a primeira missão calvinista ao Novo Mundo, Jean de Léry,

aporta nas terras do Novo Mundo. O viajante observa atentamente os “primeiros

selvagens que eu via de perto” e expõe suas impressões iniciais: “Tanto os homens

como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre materno, mas para

parecem mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e manchado de preto”7.

O corpo se destaca nessa primeira descrição que Léry faz do selvagem. Um

corpo que é, por um lado, reduzido à nudez natural de quem acaba de sair do ‘ventre

materno’ mas, por outro, coberto por sinais de tinta preta. Que sinais seriam esses?

Segundo Léry, tal tinta é usada apenas para que eles se pareçam ‘mais graciosos’.

Depossuída de sua força simbólica, torna-se um mero motivo carnavalesco, um

gracejo. Pergunta-se então: tal tintura preta seria realmente o jenipapo que marca na

5 CLASTRES, P., A sociedade contra o Estado, p. 201. 6 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil, Salvador [Baía] , 10 de agosto de 1549. 7 LERY, J. Voyage fait en la terre du Brésil, p. 60. (tradução minha).

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carne o tempo social do Tupinambá? Ou não seria a tinta da própria escrita do pastor

calvinista, que se apropria do corpo alheio, tornando-o a superfície em branco de sua

própria história. A primeira descrição que Léry faz do ameríndio parece estabelecer,

de imediato, uma relação simbólica entre a escrita do protestante e a nudez do corpo

ameríndio.

Esta dissertação analisa a representação do corpo ameríndio no universo da

salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Tendo com fio

condutor a dimensão escatológica desse encontro, procura-se destacar as diferentes

formas pelas quais ambos os autores constituíram suas narrativas da salvação por

intermédio do corpo tupinambá. Foram analisadas as Cartas do Brasil, escritas entre

os anos de 1549 e 1560, pelo primeiro jesuíta que esteve no Brasil, o Padre Manuel

da Nóbrega; e o livro Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil8 (1578), do

pastor calvinista Jean de Léry, que viveu na França Antártica no ano de 1557.

Parece haver um desejo similar, tanto do jesuíta quanto do calvinista, de

transformar as escarificações do corpo ameríndio na escrita de seus respectivos

testemunhos da salvação. Ambos parecem ocupados em reduzir esses corpos à

condição do papel branco. Esse processo de depossessão da memória tupi passa

necessariamente pela apropriação de seu corpo. As marcas de seu Tempo devem

apagar-se para que se inscrevam, por intermédio da escrita missionária, as palavras

do verdadeiro Deus.

Influenciado pela leitura do livro de Michel de Certeau, A escrita da História,

procurei esmiuçar a relação simbólica que parece constituir-se entre a escrita desses

autores e o corpo tupinambá. A hipótese central do trabalho pressupõe que a salvação,

tanto do jesuíta quanto do calvinista, constituiu-se a partir do Tupinambá, e que se

estabeleceu uma polarização entre a escrita dos autores e o corpo ameríndio. Tal

hipótese deriva do princípio de que a escrita tem um papel determinante na busca da

8 Esta dissertação utilizou a segunda edição do livro Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, publicada no ano de 1580. A versão em português só foi utilizada quando não se via problemas de tradução que pudessem comprometer o texto original.

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salvação dos religiosos, enquanto que a salvação do Tupinambá habita seu próprio

corpo.

Além disso, é importante ressaltar que o jesuíta e o calvinista representam

grupos religiosos distintos e opostos, inseridos no contexto de fragmentação religiosa

de meados do século XVI. Nesse período, as discussões teológicas sobre a relação

entre o corpo e a salvação ocupavam posição central, pois as diferentes práticas

litúrgicas, derivadas dessas discussões, tornaram-se um importante elemento de

diferenciação dos grupos religiosos.

Assim, procura-se analisar as diferentes representações da nudez ameríndia no

universo da salvação de Nóbrega e Léry, tendo em vista a polarização que parece

ocorrer entre a escrita dos religiosos e o corpo tupinambá. Essa polarização refletiu-se

numa descrição ambígua do Tupinambá. Diante de um mundo marcado pela discórdia

religiosa e pelas perseguições às heresias – estimuladas pelas polêmicas teológicas

sobre práticas referentes à relação entre o corpo e a salvação – o corpo dessa nova

humanidade, revelado em sua nudez, foi assimilado de diferentes formas.

Voltemos à nossa aventura à beira-mar, em meados do século XVI, para

compreender como se caracteriza a ambigüidade descritiva do corpo ameríndio. Em

fevereiro de 1557, quando a nau em que estava o calvinista Jean de Léry chegou às

terras do Novo Mundo, o jesuíta Manuel da Nóbrega já havia peregrinado, por mais

de sete anos, da Bahia ao sertão de São Vicente, pregando ao gentio e fundando

aldeamentos e colégios pelo caminho.

Enquanto Léry vivia o alumbramento da visão dos ‘primeiros selvagens que

eu via de perto’, Nóbrega voltava a Salvador para apresentar, ao recém chegado

Governador-Geral Mem de Sá, o esboço daquilo que se tornaria o seu novo plano de

conversão: o Plano Civilizador (1558). Desiludido com a persistência dos “maus

costumes” do ameríndio, Nóbrega já não era mais, a essa altura, aquele missionário

exaltado que via no corpo pagão um espelho de sua própria redenção, o ‘papel

branco’ em que se poderia ‘escrever à vontade’.

Já em fins de 1557, enquanto os Tupinambá do Recôncavo Baiano – cada vez

mais resistentes às imposições do Governo-Geral e à catequização jesuítica – estavam

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prestes a viver aldeados sob a “nova lei” do Plano Civilizador, os Tupinambá da Baía

de Guanabara acolhiam os calvinistas “exilados” da França Antártica, que por

discordâncias religiosas com seu comandante Villegagnon, fugiram do forte Coligny

para viver entre os índios. Vinte anos mais tarde, após viver o horror dos massacres

religiosos de São Bartolomeu, Léry publica um livro sobre sua experiência no Novo

Mundo. A memória a posteriori desse refúgio entre os Tupinambá evidencia a

exaltação do ameríndio, que se apresenta como ideal de renovação da fé diante da

crise religiosa européia.

O resultado final das experiências do jesuíta e do calvinista com os

Tupinambá é bem distinto. Nóbrega irá justificar um novo método de conversão do

ameríndio, fundamentado na sujeição destes a um severo e brutal controle sobre seus

corpos. ‘Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos’, escreve ele

em 1558. A narrativa de Léry, por sua vez, evidencia a exaltação nostálgica do

Tupinambá, muitas vezes descrito como um povo vivendo ainda um estado de pureza

edênica, em meio à natureza verdejante e ilimitada do continente americano:

“Lamento muitas vezes não estar entre os selvagens, nos quais como amplamente

demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos

de cristãos”9. Nota-se que o corpo tupinambá oscila entre os estados de pureza natural

e de bestialidade.

Ora um ideal de renovação, visto enquanto possibilidade concreta de retorno a

uma Verdade original, ora o símbolo da heresia de povos que não aceitam a fé de

Cristo. A ambivalência do Tupinambá parece constituir-se com o sentido de se

afirmar a identidade do próprio grupo religioso.

Portanto, para compreender as diferenças descritivas de Nóbrega e Léry sobre

o corpo ameríndio, procurou-se mapear, em um primeiro momento, o contexto

histórico de meados do século XVI. Nesse momento, as transformações advindas dos

descobrimentos marítimos e da expansão do sistema colonial, conjugaram-se aos

problemas teológicos suscitados pelas Reformas religiosas. Destacou-se a

exacerbação dos anseios salvacionistas, resultantes desse contexto de transformações

históricas, atentando para uma diferenciação básica: enquanto o jesuíta busca sua

9 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 250.

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salvação no Novo Mundo pela conversão do gentio, o calvinista deseja criar um

refúgio protestante, longe das perseguições católicas, para garantir a salvação de sua

comunidade.

A segunda parte esmiúça as diferentes motivações que levaram o jesuíta e o

calvinista ao encontro do Tupinambá. Procurou-se evidenciar tais diferenciações pela

análise do problema do corpo e da salvação no período das reformas religiosas.

Afirmou-se, assim, que o testemunho do calvinista – marcado pelo duplo corte,

oceânico e semiológico – se constitui enquanto narrativa de exílio. O jesuíta, por

outro lado, imerso no contexto de expansão ibérica, lançou-se ao Novo Mundo como

um novo Apóstolo de Cristo que procura transformar o “gentio” em mesmo, ou seja,

estabelecer a continuidade do mundo cristão pela América através da conversão.

A terceira parte analisa a descrição ambivalente da nudez ameríndia, tendo em

vista o jogo discursivo que se estabelece entre a escrita e o corpo tupinambá.

Procurou-se demonstrar que a ambigüidade descritiva do outro pode ser entendida

por meio da relação triangular estabelecida entre católicos, protestantes (ou hereges)

e Tupinambá. Além disso, tendo em vista a questão da corporalidade, procurou-se

demonstrar até que ponto a linguagem corporal jesuítica favoreceu o processo de

conversão dos Tupinambá.

A quarta parte analisa as diferentes formas pelas quais se organizam as

narrativas da salvação de Nóbrega e Léry, por meio da demonstração de que os

princípios norteadores da escrita católica se aproximam muito mais dos valores

ligados ao corpo do que aqueles que marcam as bases da escrita em Léry.

Por fim, procura-se mostrar as transformações ocorridas na representação do

Tupinambá a partir das diferentes experiências dos religiosos no Novo Mundo.

Nóbrega propõe um novo método de conversão que aproxima o poder secular da

atividade missionária: os ameríndios que recusassem receber a fé do pregador seriam

tratados como escravos adquiridos em guerra justa pelos colonos. A sujeição do

corpo tupinambá ao castigo do açoite e ao medo da escravização garantiria ao jesuíta

o sucesso de sua conversão. Por outro lado, Léry anuncia, em sua exaltação do

ameríndio, o posterior mito oitocentista do “Bom selvagem”. O corpo ameríndio, ao

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invés de sujeito a castigos e decapitações, torna-se o modelo de pureza natural. Em

seu corpo desenha-se a nostalgia das origens, o saudosismo de uma nudez perdida.

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2 A salvação entre a escrita e o corpo

2.1 A salvação e o outro

A principal premissa deste trabalho considera que é por intermédio da

experiência e representação do outro – nesse caso, o Tupinambá – que Nóbrega e

Léry irão edificar, através da escrita, suas narrativas exemplares da salvação10.

De 1549, momento em que Nóbrega chega ao Brasil, até 1560, quando põe em

prática um novo plano de conversão do gentio, percebe-se uma transformação na

forma do jesuíta representar o ameríndio e se relacionar com este. A percepção inicial

de que os índios eram como “papel branco em que se poderia escrever à vontade”11

transformou-se paulatinamente na imagem do “índio bestial”, que começa a

prevalecer no decorrer da experiência missionária. Tal transformação na forma de

representar o outro condiz com a adoção de novas práticas e atitudes face ao

Tupinambá.

Jean de Léry, por sua vez, chegou à França Antártica no ano de 1557. Jovem

sapateiro, ele integra a primeira missão calvinista no Novo Mundo. Sua narrativa foi

composta de forma fragmentada, atropelada pela sucessão de exílios que o futuro

pastor calvinista, perseguido pelos católicos, viveu durante o auge das guerras de

religião na Europa. Entre 1557 e 1578, quando publica a primeira edição de seu livro 10 A constatação de que os autores em questão constroem a narrativa exemplar de sua salvação por intermédio do ameríndio é proposta por alguns autores. Castelnau-L´Estoile, em Les ouvriers d´une vigne stérile, ao analisar o papel das cartas edificantes no processo de conversão, considera que os jesuítas vislumbram a sua própria salvação por intermédio da conversão do outro. Frank Lestringant, em Le Huguenot et le Sauvage, analisa a narrativa do pastor calvinista Jean de Léry a partir da construção do “mito da eleição pessoal”, na qual a experiência do selvagem será determinante para sua conversão interna, ou seja, para a tomada de consciência de sua vocação religiosa. Cf. CASTELNAU-L’ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile , p. 86 ; LESTRINGANT, F., Le huguenot et le sauvage, pp. 8-19. 11 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de 1549, p. 20.

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Histoire d´un voyage faict en la terre du Brésil, a Europa passa por um dos períodos

mais intensos das guerras de religião, cujo ápice de crueldade manifestou-se nos

levantes sangrentos do massacre de São Bartolomeu. Mais de vinte anos separam a

publicação de seu livro da experiência vivida entre os Tupinambá, o que resulta em

uma narrativa onde a figura desses índios é representada de forma ambígua,

alternando-se continuamente entre a exaltação e a detração.

Ora a exaltação do ameríndio, que anuncia o posterior mito do bom selvagem,

ressaltado em sua nudez pura e seu desapego material; ora o “maldito filho de Cam”,

condenado à “cegueira de seus sentidos” por não conhecer as Sagradas Escrituras e,

conseqüentemente, o verdadeiro Deus.

A tensão explicitada pelos autores na construção do lugar do Tupinambá

dentro do universo da salvação espelha a crise epistemológica de um mundo que

passa por grandes transformações. Os dois autores analisados expressam fortemente,

em suas narrativas, problemas epistemológicos e teológicos advindos da conjugação

de dois grandes fenômenos que marcaram o período renascentista: as Reformas

religiosas e os descobrimentos marítimos.

Crise epistemológica manifestada primeiramente pela chamada descoberta do

Novo Mundo. O oceano, antes um limite, reverte-se aos poucos em um horizonte

capaz de ser percorrido, o que resultou em um alargamento do mundo. A dimensão da

experiência, resultante do contato com diferentes culturas até então desconhecidas,

chocou-se com o universo de verdades prescritas na tradição bíblica. A presença dos

ameríndios suscitou o que Anthony Pagden denominou “problema do

reconhecimento”12.

Como nomear o desconhecido e diverso? Como situar o Tupinambá na

narrativa bíblica? Nesse ponto, a questão da nudez tornou-se um problema

significativo pois – ao observarem homens nus caminhando em um continente que até

o final do século XV sequer poderia existir – os viajantes não souberam, a princípio,

como situá-los em seu universo teórico e teológico. Em se tratando de Nóbrega e

Léry, dois homens religiosos, um problema ainda mais grave os perseguia: como

12 PAGDEN, A., The fall of natural man, p. 12.

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reconhecer povos que, aparentemente, nunca ouviram falar das Sagradas Escrituras e

que não são reconhecíveis a partir dos relatos bíblicos?

“E porque por toda a terra se espalha o Seu ruído, e até os confins do mundo

Sua voz”, diz o Salmo 18,5 da Bíblia. Como conceber a verdade da onipresença do

Deus cristão, diante da descoberta de povos tão diversos, que nunca tinham sequer

ouvido falar em Seu nome? A descoberta do Novo Mundo colocou, portanto, em

xeque crenças até então tidas como certezas inquestionáveis. Nesse sentido, é

importante perceber a experiência de Nóbrega e Léry com os Tupinambá como um

acontecimento que afetou a idéia cristã do lugar do Homem no mundo e de sua

relação com Deus.

De acordo com Reinhardt Koselleck, o advento da chamada época moderna é

fruto de uma tensão crescente que se dá entre o “espaço de experiência” e o

“horizonte de expectativa”. Na época medieval, o horizonte de expectativas estaria

situado predominantemente no Além, ou seja, no tempo sagrado da salvação, que

fugia do tempo finito e histórico dos homens mortais. O horizonte de expectativas na

Idade Média estava interligado à idéia de um passado perfeito e sem pecado,

enquanto o campo de experiência estava limitado pelo horizonte de expectativas, que

tinha como conceito fundamental a idéia da salvação eterna no tempo sagrado

primordial. Segundo Koselleck, os “tempos modernos” marcaram uma ruptura, no

sentido de que as expectativas se afastaram cada vez mais de todas as experiências

realizadas até o momento13. Assim, a experiência do Novo Mundo seria importante

no sentido de intensificar a dissociação paulatina que se dá entre o “espaço de

experiência” e o “horizonte de expectativa”.

A época moderna inaugura um momento em que a história passa a ser pensada

não mais exclusivamente como obra da Providência, mas como resultado de motivos

humanos, que se fazem sentir pela experiência do homem no mundo. Pagden também

analisa a descoberta do Novo Mundo sob a ótica do “primado da experiência”. O

autor se refere à categoria grega de “autópsia” (“ver com os próprios olhos”) para

explicar de que forma os viajantes do Novo Mundo começaram a valorizar mais

13 “C’est la tension entre l’expérience et l’attente qui suscite de façon chaque fois différente des solutions nouvelles et qui engendre par là le temps historique.” KOSELLECK, R., Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques, pp. 314 e 315.

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intensamente a experiência de seus sentidos em detrimento do olhar da autoridade

bíblica, para explicar a conexão entre o Velho e o Novo Mundo14.

É importante ressaltar que, embora a dimensão da experiência deva ser

destacada no universo desses religiosos que viajam ao Novo Mundo, a preocupação

que eles manifestam com a salvação ainda é predominante. Como já foi mencionado,

além dos descobrimentos marítimos, as Reformas religiosas foram fundamentais para

se compreender a crise epistemológica por que passava o continente europeu. As

noventa e cinco teses expostas por Lutero em 1517 trouxeram à tona diversos debates

teológicos que intensificaram a crise religiosa e, conseqüentemente, o forte

sentimento de insegurança diante da salvação.

Segundo o historiador Jean Delumeau, não se pode compreender plenamente a

intensidade da Reforma protestante sem situá-la na “atmosfera de fim de mundo que

reinava então na Europa e especialmente na Alemanha”15. De acordo com Lutero, o

papado representava o Anticristo, o que demonstraria seu medo de que a humanidade

estivesse chegando ao fim: “Tudo está consumado, o Império Romano está no fim de

seu curso e o turco no topo, a glória do papado está reduzida a nada e o mundo

desmorona por todos os lados”16. Calvino, discípulo de Lutero, também via no

papado a manifestação do Anticristo. Em sua luta contra as superstições e os abusos

de poder da Igreja católica, o pastor considerava-se um dos profetas dos últimos

dias17.

Assim, é preciso situar a experiência do Novo Mundo nesse contexto de

fermentação escatológica intensificado pela fragmentação religiosa. A descoberta da

América e de uma humanidade desconhecida foi interpretada por muitos dentro de

um plano teleológico18.

14 PAGDEN, A., European Encounters with the New World, p. 51. 15 DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 222. 16 LUTERO, M., APUD: DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 222. 17 DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 224. 18 Para um estudo mais aprofundado sobre a relação entre o descobrimento da América e os anseios milenaristas suscitados, cf. DELUMEAU, J., Historia do Medo no Ocidente; LESTRINGANT, F., Milléranisme et âge d´or: réformation et expériences coloniales au Brésil et em Floride (1555-1565); WOORTMANN, K., O selvagem e o Novo Mundo. Ameríndios, humanismo e escatologia.

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Pois é preciso em primeiro lugar que a Boa Nova seja proclamada a todas as nações”

(Marcos, 14:10).

Essa Boa Nova do Reino será proclamada no mundo inteiro em testemunho diante de

todos os povos. E então virá o fim” (Mateus, 24: 14)19.

Tendo em vista as citações bíblicas de Marcos e Mateus, é possível sugerir de

que forma o contato com essa nova humanidade da América de fato alimentou a idéia

da proximidade do fim dos tempos.

O descobrimento, como citado, apresentou-se sob uma perspectiva

escatológica, desde seus primórdios, quando Colombo, imerso no imaginário

milenarista de Joachim de Fiore, associou a descoberta do Novo Mundo ao

apocalipse20. A descoberta de um novo continente acendeu a perspectiva de que o

Evangelho seria agora conhecido por todo o mundo: a conversão dos ameríndios

anunciaria a volta gloriosa de Jesus Cristo. É significativo o fato de Colombo ter

chegado às Américas no mesmo ano em que os espanhóis haviam expulso os árabes

da Península Ibérica. Impulsionados pelo espírito da Reconquista, os ibéricos se

lançaram sobre o Novo Mundo dentro de uma perspectiva cruzadística de expansão

da fé católica.

O contexto de fragmentação da cristandade em razão da expansão protestante

acentuou o espírito messiânico ibérico, que, a partir de meados do século XVI,

começou a perceber a presença dos índios americanos a partir de uma perspectiva

providencial, entendida como “compensação oferecida por Deus à Igreja pela fratura

da Cristandade provocada pelo ‘maldito Lutero’”21. A chamada “teoria da

compensação” ajustava-se, segundo Barbosa Filho, à celebração do povo ibérico

como escolhido pela Divina Providência para anunciar a Boa Nova aos pagãos22.

A Companhia de Jesus se tornaria então a principal ordem religiosa a

participar do movimento de expansão marítima da Coroa portuguesa. Aliados ao

papado, os jesuítas foram fundamentais para fortalecer, com seus métodos inovadores

e anti-monásticos de pregação e conversão, o movimento da Contra-reforma 19 BÍBLIA. APUD: DELUMEAU, J., História do Medo no Ocidente, p. 213. 20 LESTRINGANT, F., 1492 e o conhecimento, p. 11. 21 BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282. 22 Idem, Ibidem.

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comandado pela Igreja católica. Inseridos no contexto de fragmentação da cristandade

e de expansão marítima dos ibéricos, os jesuítas se lançaram às Américas, em aliança

com as Coroas ibéricas e o Papado, a partir de uma perspectiva messiânica. A

iniciativa de fundar um Governo-Geral em terras brasileiras também atendia o desejo

de assegurar o monopólio comercial sobre um território ameaçado permanentemente

pela presença dos franceses. No entanto, não se pode isolar do expansionismo

português o desejo religioso de alargar o reino de Cristo pelo mundo, como

manifestou D. João III: “Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as

ditas terras do Brasil foi para [que] a gente dela se convertesse à nossa Santa Fé

Católica”23.

Nessa perspectiva, ao se referir aos Tupinambá como gentio, deve-se

compreender que Nóbrega associava os ameríndios aos povos idólatras e pagãos,

nomeados pela Bíblia e existentes ainda no tempo anterior à vinda de Cristo. A

conversão do gentio se refere ao ideal de uma “missão divina não cumprida”24 que

deveria reunir todos os povos no Corpo místico de Jesus Cristo. Nesse sentido, pode-

se construir a idéia de que a salvação da própria cristandade – e, conseqüentemente,

de Nóbrega – dependia diretamente da conversão do gentio25. É, portanto, no ato de

conversão do Tupinambá que estão depositadas todas as expectativas de salvação do

jesuíta. Assim que chega a terras brasileiras, o otimismo evangelizador traduz-se na

visão já pré-estabelecida sobre os Tupinambá: por serem gentios, só lhes restava

serem vistos como “papel em branco em que se pode escrever à vontade”26.

Se, por um lado, Nóbrega inclui o Tupinambá em seu universo da salvação, o

mesmo não pode ser dito de Jean de Léry. Enquanto calvinista, Léry é herdeiro da

doutrina da dupla predestinação: por não conhecer as sagradas escrituras, o

Tupinambá estaria condenado ao esquecimento divino. Enquanto os jesuítas

expandiam o Reino de Deus da Índia ao Novo Mundo, os calvinistas pareciam mais

23 SOUZA, T. Regimento Tomé de Souza, www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_regimentotome.htm. 24 BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282. 25 “O empreendimento evangelizador no Novo Mundo não era movido apenas pela intenção altruísta de salvar as almas dos novos gentios; tratava-se de salvar o mundo e, principalmente, a cristandade já constituída (...)”. WOORTMANN, K., O selvagem e o Novo Mundo, p. 221. 26 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de 1549, p. 20.

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preocupados em criar um refúgio protestante do que converter a humanidade. A

América e os indígenas adquirem um estatuto diferenciado: ao contrário do jesuíta,

para quem a ênfase da salvação está colocada na conversão dos nativos, o calvinista

percebe o continente americano como a “Nova Revelação” 27. A salvação protestante

não estaria na expansão do Reino de Deus e, sim, na fundação de um refúgio religioso

em que a comunidade religiosa se distancia daquilo que seria, segundo eles, o avanço

do Anti-Cristo. É nesse sentido que deve ser compreendido o significado mítico dado

ao continente americano. Ao invés de um milenarismo migratório, os protestantes

inserem-se no “Apocalipse da reabsorção”, onde a salvação dos eleitos implica na

perda da maioria28.

A partir da experiência do Novo Mundo, tornou-se intenso o debate teológico

sobre a inserção dos ameríndios na genealogia transcendental da Bíblia. Essa tensão

entre a experiência de uma nova humanidade e a expectativa da salvação, resultou na

ambígua representação do Tupinambá. Ambigüidade acentuada pela discórdia

religiosa entre católicos e protestantes.

De fato, procura-se demonstrar que a representação do ameríndio, feita por

Nóbrega e Léry, se insere no desejo desses homens em afirmarem a salvação de seu

grupo diante uma Europa fragmentada pela crise religiosa. Percorrendo um mundo

em movimento, trêmulo e instável, esses homens estão inseguros diante da angústia

do Juízo Final. O outro atende ao desejo de redenção do mesmo.

Com isso, procura-se ressaltar de que maneira a dimensão da experiência com

o Tupinambá operou uma transformação na forma de Nóbrega e Léry situarem o

indígena em seus diferentes projetos de salvação. A historiadora Eunícia Fernandes

analisou as práticas de consolidação dos aldeamentos jesuíticos partindo da

decalagem entre as predisposições da Companhia de Jesus, ou seja, seus projetos de

conversão, e as metamorfoses resultantes da experiência do encontro29. De forma

análoga, procura-se aqui perceber as metamorfoses ocorridas no modo de esses

27 VILLAS BÔAS, L., Travel Writing and Religious Dissent. Hans Staden’s Warhaftig Historia in Print. p.24. 28 LESTRINGANT, F. , Milléranisme et âge d´or: réformation et expériences coloniales au Brésil et en Floride (1555-1565), p. 193. 29 Cf. FERNANDES, E., Futuros outros: homens e espaços – os aldeamentos jesuíticos e a colonização na América portuguesa.

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homens religiosos representarem o Tupinambá dentro de seus universos de

expectativas salvíficas.

A partir da experiência contínua com os ameríndios, Nóbrega compreendeu

que a imagem do Tupinambá dócil, aberto aos sinais divinos como um papel em

branco, não poderia mais se sustentar. Tal percepção é substituída paulatinamente

pela imagem do “índio bestial”, que deve ser convertido a partir do temor e não mais

do amor30. Léry, por sua vez, ao mesmo tempo em que condena o Tupinambá à

danação eterna, lança um olhar nostálgico sobre o ameríndio, que parece ser exaltado

por suas características de pureza primordial, antagônicas ao contexto de uma Europa

imersa na barbárie das guerras de religião.

O principal objetivo desta dissertação é, portanto, acompanhar a representação

ambivalente do Tupinambá no universo de expectativas de salvação do jesuíta

Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Entre o “papel branco” e o “índio

bestial”, entre a exaltação que anuncia o mito do “bom selvagem” e o “maldito filho

de Cam”, o Tupinambá, como visto por Nóbrega e Léry, é ambíguo. Ambigüidade

caracterizada pelo movimento pendular que se dá entre dois pólos extremos e

concorrentes: o bom e o bestial31.

30 Cf. EISENBERG, J. , As missões e o pensamento político moderno. O cientista político José Eisenberg analisa as correspondências entre a experiência das práticas jesuíticas, principalmente de Nóbrega, com as transformações conceituais operadas no discurso político moderno. Em linhas gerais, o autor sustenta a tese de que a mudança conceitual nas práticas de conversão, operada por Nóbrega a partir do chamado Plano Civilizador (1558), resultou na legitimação da autoridade através do consentimento gerado pelo medo, tal como Hobbes argumentaria mais tarde no Leviatã. 31 Para uma análise acerca das representações ambivalentes sobre o ameríndio pelos primeiros viajantes que estiveram no Novo Mundo, Cf. PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos ibéricos; e LAPLANTINE, F., A pré-história da antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até nossos dias.

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2.2 O jogo entre a escrita e o corpo O movimento pendular entre o bom e o bestial aparece constantemente nas

descrições do corpo tupinambá, principalmente no que se refere à questão da sua

nudez. O propósito de analisar o discurso da salvação a partir da relação entre a

escrita religiosa e o corpo tupinambá, se insere na percepção do lugar privilegiado

que ocupa a escrita na dimensão salvacionista de Nóbrega e Léry. Além disso,

inseridos no contexto das guerras de religião, os religiosos estão imersos nas

infindáveis discussões teológicas referentes à relação entre o corpo e a salvação. Se

por um lado, como será visto, a escrita é o principal instrumento de consolidação das

expectativas salvíficas de Nóbrega e Léry, por outro, é no corpo que o Tupinambá

manifesta, primordialmente, sua relação com o sagrado.

Alguns acontecimentos como o advento da imprensa, a vinda de textos

orientais para a Europa, a interpretação dos textos religiosos sobre a tradição e o

magistério da Igreja, a tradução da Bíblia por Lutero, o princípio protestante da Sola

Scriptura, ajudam a compreender a presença essencial da escrita no século XVI32. De

fato, a escrita acompanha de forma decisiva a experiência de Nóbrega e Léry,

ocupando um lugar determinante no universo da salvação desses homens. A escrita

sistemática de cartas ocupa uma posição central na prática missionária de Nóbrega.

Por outro lado, a publicação do livro Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil,

será determinante na construção e garantia da eleição do calvinista, imerso no

princípio da Sola Scriptura33.

Por outro lado, apesar do foco da dissertação não ser o estudo das sociedades

tupinambá e sim a representação destes nas narrativas de um jesuíta e um calvinista, é

importante considerar a posição central que o corpo ocupa nas sociedades indígenas

brasileiras. O corpo se apresenta como ponto de convergência da oposição entre o

32 Cf. FOUCAULT, M. Les mots et les choses, p.53. 33 A Sola Scriptura foi um dos princípios doutrinários estabelecidos por Lutero que marcou a reforma protestante. Ao declarar a inutilidade da intercessão entre a Igreja e o fiel, o reformista estabeleceu algumas teses, entre as quais destacam-se a Sola Fide ( só a fé salva) e Sola Scriptura, que afirma que toda Verdade revelada por Deus está na Bíblia ou seja, a salvação encontra-se nos textos sagrados da Bíblia.

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individual e o social, ou seja, o “elemento pelo qual se pode criar a ideologia central,

abrangente, capaz de (...) totalizar uma visão particular do cosmos”34.

É nesse sentido que se deve compreender os rituais de passagem dos meninos

prestes a se transformarem em homens (seres sociais), que perfuram seus lábios e

orelhas: “ É essa penetração gráfica, física, da sociedade no corpo que cria as

condições para engendrar o espaço da corporalidade que é, a um só tempo, individual

e coletiva, social e natural”35. O fundamento da salvação tupinambá faz-se presente,

portanto, nessa relação “dialética básica entre corpo e nome”36. Como diz Certeau ao

se referir aos Tupinambá observados por Léry: “O significante não é destacável do

corpo individual ou coletivo. Não é, portanto, exportável. A palavra aqui é o corpo

que significa”37.

O corpo nu ameríndio causou estranhamento a esses religiosos. Como situá-lo

no universo da salvação? Como torna-lo compatível às doutrinas bíblicas? Estariam

os Tupinambá vivendo ainda o tempo da inocência, anterior ao pecado original, ou

seriam eles pecadores bestiais imersos em “apetites sensuais”? O corpo ameríndio é o

que melhor expõe o caráter ambíguo do Tupinambá visto pelos europeus: ora é o

lugar privilegiado dos sinais demoníacos (nudez, poligamia, antropofagia), ora é o

espaço em que se vislumbra a pureza das origens, a nudez gloriosa da inocência

primordial.

É importante ressaltar que o caráter ambivalente desse corpo foi acentuado

pelas discussões teológicas envolvendo a relação entre o corpo e o sagrado, que

ocupavam posição central no período das reformas religiosas. Os principais pontos

que marcaram a ruptura teológica protestante advinham da relação entre o corpo e o

sagrado: o fim do culto das relíquias, a discussão sobre a presença real do corpo de

Cristo na hóstia, a condenação da santidade38. Todos tratam da questão de como a fé e

o sagrado devem se relacionar com a dimensão corporal no plano terreno. A crítica

feroz dos protestantes à necessidade de um corpo político (a Igreja) como

34 SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras, p. 13. 35 Idem, p. 15. 36 Idem, p. 13. 37 CERTEAU, M., A escrita da História, p. 217. 38 Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré.

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intermediário entre o fiel e a Graça divina foi o ponto de partida para posteriores

questionamentos, principalmente dos calvinistas, sobre a relação entre o corpo e a

salvação.

Ao introduzir a doutrina da predestinação, Calvino estabeleceu como condição

da salvação o dom gratuito da Graça do Senhor: Deus seria o único a decidir,

previamente, se o homem será salvo ou condenado. Diferentemente dos católicos, que

admitem um corpo intermediário para administrar os pecados pelo sacramento da

confissão, os calvinistas acreditam que só Deus poderia decidir, previamente, acerca

da salvação de cada ser. Segundo Calvino, Deus é radicalmente transcendente, não

podendo portanto ser representado em forma alguma. Nesse sentido, torna-se

extremamente complicado atribuir um símbolo a Deus, pois qualquer símbolo

demonstra, na verdade, a significação de Sua essência incompreensível39. Todo

símbolo que for tomado literalmente como representação de Deus constitui, de fato,

uma idolatria, o que explica a condenação calvinista do teatro, da dança e das

imagens sobre a vida de Jesus – assim, qualquer tentativa de representar Deus em

estado de corporalidade é uma afronta à Sua Glória infinita.

A Graça sacramental, disponível ao católico como meio de compensação de

seus pecados, mostra-se inútil para o calvinista. Deus já determinou o destino

individual de cada um. Qualquer pessoa que se pretendesse intermediária entre Deus

e o homem para a concessão da Graça se aproximaria dos mágicos charlatões, dos

falsos profetas. Segundo Weber, com essa transcendência radical de Deus, realiza-se

a conclusão definitiva do longo processo histórico-religioso de desencantamento do

mundo. Deus teria se distanciado definitivamente do horizonte do homem, sua Graça

não estaria nos sacramentos monopolizados pela Igreja Romana, com sua hierarquia,

e sim na convicção interna do crente. Tal isolamento íntimo do ser humano

provocaria uma negação de todo elemento de ordem sensorial, ou seja, “fica

explicada a recusa em princípio de toda cultura dos sentidos em geral”40.

Por outro lado, os jesuítas – inseridos na cultura ibérica, atrelada ao

movimento de expansão da universalidade da Igreja Católica – reafirmavam com

39 PAUL, T., A History of Christian Tought, p.263. 40 WEBER. M., A ética protestante no espírito do Capitalismo, p. 96.

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veemência o caráter institucional da Igreja como legítima intermediária entre Deus e

os homens. Para a Coroa portuguesa, imersa na perspectiva da Segunda Escolástica41,

o indígena deveria ser integrado ao corpo místico da Coroa portuguesa e da Igreja

universal por meio da recepção da doutrina e dos sacramentos42. Os jesuítas

trouxeram ao Novo Mundo o ímpeto de reafirmar a presença dos santos e dos

sacramentos da Igreja católica. Os gestos corporais, as curas, as penitências públicas,

a confissão, a forte presença de imagens e relíquias, a aparição dos santos e apóstolos

– são práticas recorrentes entre os jesuítas e demonstram a relação intensa que

estabeleciam com a cultura dos sentidos.

O jesuíta deve agir como corpo intermediário entre Deus e o paganismo.

Dessa forma, enquanto membro do corpo místico da Igreja, Nóbrega deveria

restabelecer a unidade do catolicismo. Sua missão supõe uma continuidade entre os

dois mundos, o pagão e o católico, para que se concretize o fim determinado: a união

de toda a humanidade no corpo místico de Jesus Cristo. Finalmente, a percepção de

que Deus se manifesta materialmente, pela forte presença dos santos e das relíquias

em seu cotidiano, demonstra a relação de continuidade que se estabelece entre o

corpo e o sagrado entre os jesuítas. Sustenta-se a hipótese de que a predisposição

jesuítica à utilização de um forte aparato simbólico envolvendo os gestos corporais, o

uso de imagens e objetos litúrgicos, foi importante no sentido de garantir uma

receptividade dos Tupinambá às pregações do missionário.

Segundo Certeau, a formação de um “discurso sobre o outro”, ocasionado

pelos descobrimentos do Novo Mundo, se dá em contraposição à agrafia tupinambá -

a escrita se sobressaiu enquanto instrumento privilegiado capaz, ao mesmo tempo, de

“reter as coisas em sua pureza e de se estender até o fim do mundo”43. É no espaço

ameríndio – e, no entender dos ocidentais, sem escrita e sem memória – que se

41 42 PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos ibéricos, p. 39. 43 CERTEAU, M. , Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da História. p. 217.

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“fabrica a história ocidental”44. Nesse sentido, o corpo ameríndio é transmutado, pelo

olhar do europeu, no “campo de expansão para um sistema de produção”45.

As narrativas de Nóbrega e Léry, apesar de suas enormes diferenças, parecem

convergir nesse sentido: ambas utilizam o corpo ameríndio como campo de expansão

para um sistema de produção – o discurso da salvação.

Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à

vontade46.

Não é difícil perceber, pela citação de Nóbrega, que o ato da escrita perpassa a

presença do corpo tupinambá. Ao utilizar a famosa metáfora do papel branco, o

jesuíta estabelece uma relação simbólica entre o corpo tupinambá e a escrita

missionária. Metáfora que delimita uma ação: escrever sobre o corpo do outro os

sinais de Jesus Cristo. Ação do missionário que está inserido no mundo como um

novo apóstolo que deve converter o maior número de gentios para vislumbrar sua

salvação pessoal47. Nesse sentido, pela percepção de Nóbrega, escrever sobre o corpo

ameríndio é agir diretamente sobre ele, transformando-o na superfície edificada pelos

sinais da salvação. Salvação que, no entender de Nóbrega, se aplica tanto ao gentio

quanto ao próprio missionário.

Eis aí portanto um tema de dissertação suscetível de mostrar que os habitantes

da Europa, da Ásia e da África devem louvar a Deus pela sua superioridade

sobre os dessa quarta parte do mundo. Ao passo que os selvagens nada podem

comunicar entre si a não ser pela palavra, nós, ao contrário, podemos entender

e dizer os nossos segredos, por meio da escrita, pelas cartas que enviamos de

um a outro extremo da terra. Além da invenção da escrita, os conhecimentos

44 CERTEAU, M. , Prefácio à 2o edição. In: A escrita da História. p. 10. 45 Idem, Ibidem. 46 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Baía, 10 de Agosto de 1549, p. 54. 47 Castelnau L´Estoile percebe que a salvação pessoal do missionário se dá em conjunção com o ato da conversão pois é a mesma Graça divina que sustenta os dois projetos: a salvação do missionário e a do outro. Cf. CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p..86.

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de ciência que aprendemos pelos livros e que eles ignoram, devem ser tidos

como dons singulares que Deus nos concedeu 48.

A citação de Léry expõe claramente uma hierarquia entre os povos a partir da

presença da escrita. Os Tupinambá, que só podem comunicar-se verbalmente, são

destituídos de todos os privilégios que a escrita traz: a “ciência”, a comunicação que

se estende pelo espaço e, principalmente, a memória original das verdades divinas. A

comunicação Tupinambá parece estar, pelo olhar de Léry, presa ao próprio corpo e,

por isso, sujeita às intempéries do tempo e da distância. Aqueles que só “podem se

comunicar verbalmente” são, com isso, “inteiramente privados” dos “dons singulares

que Deus nos concedeu”. Enquanto o Tupinambá é então condenado ao esquecimento

de Deus, o calvinista Léry agradece o “dom singular” que lhe foi concedido. O

Tupinambá, aquele que é despossuído da escrita, é também despossuído dos sinais da

salvação. Condenado ao esquecimento de Deus, o Tupinambá irá esclarecer a

condição de eleito do futuro pastor calvinista.

Espaço que oscila entre a salvação e a danação, entre a exaltação e a detração,

o corpo tupinambá torna-se objeto de um jogo. Dizemos jogo, pois se cria uma

relação de trocas intensas – entre a escrita, jesuítica e calvinista, e o corpo ameríndio

– que suscitam emoções diversas, tensões, desejos, estratégias e consolos. Jogo, pois

há, nessa troca de experiências, a criação de uma forma significante explicitada de um

lado pela metáfora do “escrever à vontade sobre o papel branco”, e do outro pela

relação de superioridade que se estabelece entre a palavra escrita calvinista –

garantidora da memória pura de Deus – e a palavra tupinambá, presa ao corpo e

sujeita às intempéries do tempo e do espaço.

Se pensarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, como

diz Huizinga, numa certa “imaginação da realidade”, cabe procurar “o valor e o

significado dessas imagens e dessa imaginação”, para se compreender sua ação no

seio das diferentes experiências49. O jogo percebido se configura numa triangulação

entre a escrita, o corpo e a salvação.

48 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 206. 49 HUIZINGA, J., Homo Ludens, p. 7.

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3 O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas religiosas

3.1 Léry: o exilado e os cortes

Corte semiológico: o corpo e a ausência de Deus Após quatro meses de “exílio” marítimo, os missionários calvinistas foram

calorosamente recebidos pelo comandante da colônia francesa, Nicolas de

Villegagnon. No entanto, o que deveria ser o pouso acolhedor da nova religião

reformada mostrou-se logo o avesso. A discórdia religiosa entre Villegagnon e os

genebrinos não tardou a reverter o quadro de fraternidade. No dia 21 de março de

1557, foi celebrada pelos protestantes a primeira “santa ceia de Nosso Senhor.” Antes

de realizar a confissão pública de sua fé para receber a comunhão, Villegagnon pôs-se

de joelhos.

E ele próprio [Villegagnon] a fim de dedicar o seu fortim a Deus e fazer confissão de

sua fé em face da Igreja, ajoelhou-se num coxim de veludo (...) e pronunciou em voz

alta duas orações, das quais obtive cópia e aqui transcrevo, literalmente, para que se

melhor compreenda quanto é difícil conhecer o coração desse homem50.

Como conhecer a verdadeira fé de um homem que se confessa reformado, mas

que, simultaneamente, evidencia em seus gestos corporais a fé católica? O ato de se

curvar diante da hóstia supõe a crença de que o corpo de Cristo esteja realmente

presente na substância do pão. Calvino rejeitava de forma categórica a doutrina da

50 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, pp. 90-91.

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transubstanciação, ou seja, a concepção de que, durante a eucaristia, as substâncias do

pão e do vinho se transformavam de fato em corpo e sangue de Jesus Cristo. Segundo

o pastor, a doutrina da transubstanciação evidenciava a idolatria católica, fundada na

adoração de objetos materiais como sendo o próprio Deus. Assim, a genuflexão de

Villegagnon traduziria um gesto idólatra: adorar um pedaço de pão como sendo o

corpo divino.

O capítulo VI do livro de Léry é o único a tratar especificamente das relações

sociais da França Antártica, ou seja, do espaço delimitado pelo poder político de

Villegagnon. Curiosamente, esse capítulo trata quase exclusivamente da discórdia

religiosa em torno da eucaristia. O destaque da polêmica sobre a presença real do

corpo de Cristo na hóstia não é casual. Ele é reflexo da posição central que ocupavam

as discussões sobre a relação entre o corpo e a salvação durante o período das

reformas protestantes51. De fato, as reformas são marcadas pela polêmica lançada por

Lutero sobre o culto das relíquias e a venda de indulgências. A autenticidade desses

objetos, como corpos que conteriam de fato a Graça da salvação, foi posta em xeque

pelo então monge beneditino em suas famosas 95 teses, expostas em 1517.

É certo que, desde que a moeda cai na caixa, o ganho e a cupidez podem ser

aumentados; mas a intercessão da Igreja só depende da vontade de Deus. (...) Serão

condenados para toda a eternidade, com os seus mestres, aqueles que crêem estar

seguros da sua salvação por cartas de indulgências52.

Segundo Lutero, os cultos católicos se valeriam de um poder simbólico falso

para iludir os fiéis, vendendo-lhes imagens e objetos que seriam apenas o simulacro

da presença divina. Com isso, Lutero inverteu a condição do papado: este, a quem

antes se confiava a esperança da salvação, agora se mostrava o representante maior da

corruptibilidade humana – o próprio Anticristo. O ato de reconhecer o papa, não mais

como sucessor de Cristo, e sim como o seu possível opositor, intensificou o clima já

predominante dos medos apocalípticos. Pela lógica salvacionista de Lutero, se o

Anticristo reinava em Roma, a história humana estaria possivelmente se aproximando

51 Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré, Histoire du corps, p. 78 52 LUTERO, M., APUD: MARQUES, A., História moderna através de textos, p. 119.

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de seu fim53. É importante lembrar o quanto ainda é dominante, ao longo do século

XVI, a expectativa em torno da salvação após a morte, principalmente entre homens

religiosos como Calvino e Léry.

Na visão protestante, o culto das relíquias – assim como os excessivos gestos

de devoção – representariam o ato herege de reduzir a essência espiritual de Deus à

dimensão terrena e imperfeita da corporalidade. Se o papa é o Anticristo, onde então

encontrar a salvação? Lutero sugeriu que o verdadeiro Deus não deveria ser

procurado na Igreja – espaço dominado pela exacerbação simbólica e geradora de um

poder que falsificava a primitiva mensagem de Cristo – mas na fé interior. O sola

fidei procurou reduzir o poder exclusivo da Igreja e dos sacerdotes como legítimos

intermediários entre Deus e os homens.

Calvino, discípulo de Lutero, acentuou a discussão referente ao culto das

relíquias ao procurar esvaziar a possibilidade de um corpo intermediário (Igreja,

sacerdotes e santos) entre Deus e os homens. A doutrina da predestinação – princípio

teológico segundo o qual Deus é o único capaz de decidir sobre a salvação dos

indivíduos – transformou significativamente a forma de se conceber a relação entre o

corpo e a salvação. Diferentemente dos católicos – que poderiam redimir-se de seus

pecados através da intermediação dos santos, das relíquias ou de um corpo sacerdotal

– os calvinistas acreditavam que somente Deus, agora distanciado em sua abstração

espiritual, poderia intervir no destino individual de cada um.

A radical transcendência de Deus impossibilitaria atribuir-lhe um símbolo,

pois este seria sempre a demonstração de sua essência incompreensível54. A presença

do signo, na concepção calvinista, implica a ausência de Deus. Segundo Calvino, “os

signos humanos são antes figuras de coisas ausentes do que insígnias e marcas de

coisas presentes”55. Nesse sentido, a semiologia calvinista, como sugere Lestringant,

deve ser entendida como uma semiologia da disjunção, pois implica na dissociação

do signo em significado e significante56. Segundo Léry, Deus não pode estar presente

no pão e no vinho da Eucaristia, pois Ele não se encerra “nessas espécies materiais,

53 DELUMEAU, J. , História do Medo no Ocidente, p. 222. 54 PAUL, T. , A history of christian tought, p.263. 55CALVINO, J., Institution de la religion chrétienne. APUD: LESTRINGANT, F., Une sainte horreur, p. 22. (tradução minha) 56 LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 22.

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mas está no céu donde, por virtude do Espírito Santo se comunica espiritualmente

com os que recebem os sinais da fé”57.

O catolicismo, imerso na filosofia da Segunda Escolástica, explicava o

milagre da transubstanciação a partir da teoria aristotélica da matéria. Diferentemente

dos reformistas, que vão utilizar uma visão retórica e gramática da eucaristia, os

católicos justificavam o milagre da transubstanciação a partir do conceito aristotélico

de substância e acidente58. Os católicos estabeleciam, portanto, uma relação de

continuidade entre a dimensão sagrada e o mundo material e simbólico dos homens: a

eucaristia era – além de instrumento e signo visível da salvação individual – o ritual

que garantia a união da Igreja em torno da unidade do corpo místico de Jesus Cristo59.

Dentro da perspectiva de que Deus não poderia ser reduzido a nenhum símbolo, os

calvinistas compreendiam que a relação do pão e do vinho com o corpo e o sangue de

Jesus Cristo era puramente metonímica. Ou seja, as palavras de Deus na Bíblia seriam

expressas de forma figurada, como nos sugere Léry:

Essas palavras são figuradas, isto é, a Sagrada Escritura nomeia os signos dos

sacramentos pelo nome da coisa significada60.

A Bíblia nomeia os signos divinos a partir dos seus significantes. Léry, a

exemplo de Calvino, é adepto de uma leitura retórica do Evangelho. Dentro desse

princípio de dissociação semântica do sacramento, os genebrinos, na falta de vinho

para celebrar a cena eucarística, consideraram a possibilidade de substituir a

substância do vinho pela do cauim, bebida fermentada utilizada nos rituais

tupinambá. A forma significante em nada alteraria, segundo os genebrinos, o

57 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasi, p. 94. 58 WOORTMANN, K. , Religião e ciência no Renascimento, p. 86. Woortmann, explica da seguinte forma a influência de Aristóteles na concepção eucarística da Segunda Escolástica: “(...) a teoria da matéria aristotélica tornava o milagre possível: uma substância que existe em si, como o pão, é composta de uma matéria extensa, quantidade que fornece seu substrato, e de uma forma que imprime as qualidades ou propriedades nesse substrato. A substância apresenta-se aos sentidos mediante um conjunto de acidentes que determinam sua natureza, como a cor, o calor etc. A substância do pão tem como acidentes uma cor cinza, uma consistência mole etc. Pelo milagre eucarístico, os acidentes subsistem, enquanto a substância do pão é substituída pela substância do corpo do Cristo.” 59 LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 93. 60 LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 73. (tradução minha).

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significado essencial do ritual eucarístico, que é a união espiritual entre os fiéis e

Deus.

(...) ao instituir a ceia Jesus estava na Judéia, e portanto falava da bebida que era

usual ali. É claro que se estivera no país dos selvagens, onde outra era a bebida, a ela

se teria referido. Portanto, não hesitariam em celebrar a ceia com as coisas mais

comuns (na falta do pão e do vinho), à alimentação dos homens do país onde se

encontrassem61.

A condenação calvinista da transubstanciação marcou definitivamente o

embate entre Villegagnon e os genebrinos. Atacar o dogma fundamental do

catolicismo resultou em forte reação do comandante francês, que não tardou em

“promover disputas relativamente à doutrina e sobretudo à ceia”62. Ele inverteu sua

opinião sobre Calvino e seus seguidores, agora vistos como hereges e transviados da

fé63. Nesse momento, a ilha de França Antártica tornou-se para Léry , ao invés de um

refúgio da nova fé reformada, mais um espaço dominado pela perseguição religiosa.

É importante compreender a posição central que ocupam os rituais religiosos,

principalmente o da eucaristia, nos levantes ocorridos durante as guerras de religião.

A continuação que se percebe entre o rito eucarístico e o dissenso religioso, descrita

por Léry em sua vivência na França Antártica, é analisada por Natalie Davis a partir

da noção de “ritos de violência.” Segundo ela, “a ocasião para a maior parte da

violência religiosa era durante o culto ou ritual religioso, e o espaço, o que era usado

por um ou ambos os grupos com propósitos religiosos”64. É a partir da discórdia em

torno da presença real do corpo de Cristo na hóstia que se consome definitivamente

qualquer possibilidade de paz religiosa. A França Antártica deixa de ser a Terra

Prometida e se torna o espaço da perseguição e da violência. Os genebrinos são

forçados a se refugiar entre os Tupinambá, “pelos quais éramos tratados com mais

humanidade do que pelo patrício que gratuitamente não nos podia suportar”65. É

61 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, pp. 101 e 102. 62 Idem, p. 94. 63 Idem, p. 98. 64 DAVIS, N., Culturas do povo - sociedade e cultura no início da França moderna, p. 143. 65 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 102.

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nesse novo exílio calvinista, entre a natureza verdejante e seus habitantes

hospitaleiros, que parece se concretizar, na narrativa de Léry, o tão sonhado refúgio

da Terra Prometida.

Corte oceânico: as provações do corpo e a nostalgia das origens

Após descrever o embate definitivo com o católico Villegagnon, Léry

enumera uma série de atitudes do comandante que evidenciam apenas “um pouco de

sua inumanidade”66: ele “jurava a cada instante (...) que quebraria cabeça, braços e

pernas ao primeiro que o importunasse”; não cessou de dar “pancada no ventre” de

um dos franceses que costumava aprisionar; amarrou um índio escravizado para

“derramar-lhe toucinho derretido nas nádegas”67. O corpo do outro é submetido às

mais cruéis violências e torturas. A Terra Prometida, onde se constituiria a sonhada

paz da religião reformada, se transfigurou em um espaço dominado pela violência

física.

A degeneração católica se reflete também nas condições de putrefação da ilha

de França Antártica: não havendo fonte nem rio de água doce, a única água bebível,

armazenada numa cisterna, era tão “esverdinhada e suja como a de um charco de

rã”68. Essa água “fétida e corrompida”69 da França Antártica está também nas cidades

européias, com suas

fontes lodosas e pestilenciais que nos corroem os ossos, dessoram a medula,

debilitam o corpo e consomem o espírito, essas fontes em suma que, nas cidades, nos

envenenam e matam e que são a desconfiança e a avareza, os processos e intrigas, a

inveja e a ambição70.

66 LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p.77 (tradução minha) 67 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 99. 68 Idem, p. 86. 69 Idem, ibidem. 70 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 111.

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O mundo em decomposição parece associar-se aos sentimentos pecaminosos –

“desconfiança, avareza, intrigas, inveja, ambição” – que estariam dominando a

Europa. A corrupção moral do papado, denunciada inicialmente por Lutero,

estimulou a percepção de um mundo próximo de seu fim. Natalie Davis mostra que

um dos objetivos mais freqüentes dos levantes religiosos era livrar a comunidade de

uma temida poluição, causadora da ira de Deus71. Em Léry, as inúmeras descrições

da poluição católica explicitam o sentimento de temor diante da aparente iminência

do Apocalipse. É importante sublinhar que suas preocupações escatológicas estão

inseridas nesse contexto político das guerras de religião. Ao denunciar a decadência

moral católica, Léry fortalece o vínculo de solidariedade social da comunidade

calvinista, aproximando-a de uma possível salvação, longe da corrupção papista.

O calvinista procura os sinais de sua eleição separando-se desse mundo

putrefato dos católicos e se isolando em um território próprio. Esse é o sentido do

refúgio religioso: delimitar um espaço comunitário próprio, imune à corrupção

externa e, conseqüentemente, mais próximo da pureza divina. Em busca da Terra

Prometida, os calvinistas, ao invés de encontrarem refúgio na ilha de França Antártica

(onde foram perseguidos por Villegagnon), só puderam vivenciar a tão sonhada paz

religiosa do outro lado da baía de Guanabara, entre os Tupinambá. Em meio ao

“verdejar permanente” da floresta, a comunidade genebrina, fugindo da perseguição

católica, é acolhida pelos ameríndios.

(...) os selvagens do Brasil [são] (...) mais fortes, mais robustos, mais entroncados,

mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos

coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos

(sabem contar a idade pela lunação), poucos são os que na velhice têm os cabelos

brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o bom clima da terra, sem geadas nem

frios excessivos que perturbem o verdejar permanente dos campos e vegetação, mas

ainda que pouco se preocupam com as coisas desse mundo. (...) E parece que haurem

todos eles na fonte da Juventude72.

71 Cf. DAVIS, N., Culturas do povo - sociedade e cultura no início da França moderna, p. 134. “A poluição era perigosa numa comunidade, fosse do ponto de vista de um católico, fosse do de um protestante, porque seguramente provocaria a ira de Deus.” 72 LÉRY, J. , Viagem á terra do Brasil, p. 111.

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A exaltação do Tupinambá é recorrente na obra de Léry. Essa visão

enaltecedora do ameríndio, ainda rara em meados do século XVI, será recuperada por

Montaigne em seu famoso ensaio “Dos canibais” até chegar à construção

rouseauniana do mito do Bom selvagem73. No entanto, mais do que sublinhar as

influências de Léry no mito oitocentista do Bom selvagem, interessa-nos perceber

como essa exaltação está diretamente relacionada ao contexto das guerras de religião.

Ao longo de seu livro, as descrições que exaltam o Tupinambá são quase sempre

seguidas de um movimento inverso e complementar: a condenação do católico. Em

oposição aos católicos, imersos nas “fontes lodosas e pestilenciais”, sobressai-se a

“fonte da Juventude” dos Tupinambá. O ameríndio é envolvido num ambiente

edênico – onde prevalecem os sinais da pureza original: juventude, harmonia,

verdejar permanente – diametralmente oposto à putrefação dos papistas.

Hayden White, ao construir uma genealogia do termo selvagem, situa no

início do período moderno, segundo ele um momento de “crise cultural”, a redenção

do homem selvagem, que passa da condição de maldito à de eleito para “justificar a

revolta contra a própria civilização”74. Nesse momento, o selvagem deixa de ser visto

exclusivamente como antítese da “normalidade” (bárbaro ou pagão) para ser exaltado

como modelo de crítica intracultural75. No caso de Léry, as circunstâncias levam a

crer que a “crise cultural” a que Hayden White se refere seja o contexto das guerras

de religião.

De fato, ao se observar a trajetória do escritor, percebe-se que ela é composta

por inúmeros refúgios, marcados pelo corte da comunidade calvinista em relação ao

mundo da violência anômala dos católicos. É fundamental ter em vista que sua

narrativa sobre o Novo Mundo se insere nesse movimento de sucessivos cortes: entre

sua experiência no Novo Mundo (1557) e a publicação do livro (1578), há um

intervalo de mais de vinte anos, no qual o calvinista viveu um dos períodos mais

intensos das perseguições religiosas. É nesse contexto de “crise cultural” que o

73 Cf. LESTRINGANT, F., Jean de Léry, homme des Lumières. In: Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 231. 74 Cf. WHITE, H., As formas do Estado Selvagem. In: Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da cultura, p. 192. 75 Idem, p. 194.

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passado do Novo Mundo é construído enquanto memória da pureza original.

Portanto, é necessário perceber que a representação que Léry faz do Novo Mundo e

do Tupinambá se insere num movimento de corte espacial e temporal, no qual a

memória da pureza original é construída em resposta ao violento contexto das guerras

de religião.

O refúgio mais cruel desse longo intervalo de guerras religiosas foi certamente

em Sancerre, a “tragédia sangrenta que começou em Paris a 24 de agosto de 1572”76.

Nas recordações dos massacres de São Bartolomeu predominam o léxico da fome e

da putrefação, nos quais se destaca a barbárie da gula católica.

(...) entre outros atos horríveis de recordar, a gordura dos corpos humanos

(massacrados em Lyon de um modo mais bárbaro e cruel do que pelos selvagens,

após serem retirados do rio Saône) não foi publicamente vendida em leilão e

concedida ao maior comprador? Os fígados, corações e outras partes dos corpos de

alguns não foram comidos pelos assassinos sangrentos de que se horrorizam os

infernos? De modo similar, depois de miseravelmente massacrado, o coração de

Coeur de Roi, confessor da religião reformada na vila de Auxerre, não foi recortado

em pedaços e exposto à venda e, finalmente, depois de assado na grelha, devorado

para saciar a raiva desses cães mastins?77

São corpos despedaçados pela fome infernal do ventre católico. A gordura dos

mortos boiando no rio da discórdia religiosa é vendida publicamente em leilão para

ser comida junto aos “fígados, corações e outras partes de corpos”. Léry cria o

cenário de uma carnificina que se associa aos pecados da gula e da avareza. Liderados

pelos papas, são os católicos “grandes usurários que, sugando o sangue e o tutano,

comem vivos viúvas, órfãos e mais criaturas miseráveis”78. O banquete de corpos em

putrefação é o cenário apocalíptico retratado por Léry. A gula do papado chega a

ultrapassar “todos os limites” da crueldade:

76 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 150. (tradução minha) 77 Idem, p. 150. (tradução minha) 78 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 203.

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Ride Faraó / Achab, Nero / e também Herodes / vosso barbarismo / se olvida / ante o

fato presente79.

Ao procurar dissociar-se de um mundo próximo do Apocalipse, o refugiado

põe em evidência o corte que separa a comunidade huguenote – em busca da pureza

cristã que lhes garantirá a salvação – desse mundo degenerado pela gula católica. De

fato, a eleição do cristão reformado, como sublinha Lestringant, geralmente se

revelava a partir de uma separação brutal80. A viagem marítima se apresenta como

uma verdadeira “crônica sobre a travessia”81, que acentua o corte entre o Velho e

Novo Mundo. O heroísmo religioso e a confirmação do povo eleito são atestados pela

sobrevivência diante das inúmeras provações. Na travessia marítima as tempestades

ganham destaque como manifestação da ira de Deus.

(...) rezamos todos juntos o salmo 107, pois, com o furor das ondas, semi-

desfalecidos, cambaleávamos como ébrios e o navio sacudia a ponto de não haver

marinheiro por mais veterano que fosse que pudesse se conservar de pé. Com efeito,

não será uma grande maravilha de Deus o fato de subsistir assim em meio a um

milhão de sepulcros, quando com o tormento no mar somos erguidos ao alto dessas

incríveis montanhas de água, como que até o céu, e subitamente jogados tão baixo

como se devêssemos submergir nos mais profundos abismos? Indiscutivelmente sim.

E como em conseqüência do furor das ondas só nos separava do perigo a espessura

das tábuas com que são construídos os navios, lembrei-me do poeta, que escreveu

distar a morte apenas quatro dedos e ás vezes menos daqueles que andam no mar82.

O léxico empregado por Léry na descrição da tempestade é próprio de uma

batalha cósmica, de proporções espirituais, entre o navio, com a comunidade

huguenote dentro, e o caos das trevas marítimas. O navio, que sobe e desce entre o

79 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasi, p. 204. 80 Cf. LESTRINGANT, F., Une sainte horreur, p. 105. 81 Cf. CERTEAU, M., A escrita da História, p. 219. “(...) a separação (“de cá” e “de lá”) aparece, inicialmente como corte oceânico: é o Atlântico, fenda entre o Antigo e o Novo. Contando tempestades, monstros marinhos, feitos de pirataria, “maravilhas” ou avatares da navegação transoceânica, os capítulos do início e do final (...) desenvolvem esse corte estrutural sobre a forma histórica de uma crônica sobre a travessia.” 82 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 61.

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mais alto céu e o abismo das trevas, personifica o medo do viajante em busca da

confirmação de sua eleição. É interessante perceber que a narrativa da travessia se

confunde com o salmo 107, que atesta as maravilhas de Deus diante do exílio do

povo de Israel fugindo do Egito rumo à Terra Prometida. E, como diz Léry, “não será

uma grande maravilha de Deus o fato de subsistir assim em meio a um milhão de

sepulcros?” O povo escolhido é acolhido pelas maravilhas divinas, escapando

tempestades, monstros marinhos e fomes extremas, para viver a experiência espiritual

da aliança e da salvação. Essa “crônica sobre a travessia” se reverte, portanto, em

uma narrativa exemplar da salvação, na qual a comunidade genebrina busca

testemunhar os sinais da confirmação de sua eleição83.

A condição do navio, cercado pelo abismo tempestuoso do deserto de água,

condiz com a condição do calvinista em seus exílios terrestres, cercado pela danação

da violência católica. O navio e Léry são como ilhas flutuantes em meio ao caos

externo. Talvez essa correspondência entre os dois ajude a compreender as

semelhanças descritivas entre a travessia marítima e os cercos religiosos,

principalmente no que diz respeito ao emprego de um léxico da putrefação.

(...) tão pequena era a nossa ração que nos víamos obrigados a comê-la apodrecida

sem sequer desperdiçar os vermes que entravam por metade (...) Nossa água doce de

tal modo se corrompera e tanto bicho açoitava que (...) para beber se fazia mister

segurar o copo com uma das mãos e tapar o nariz com a outra84.

Assim como a ilha de França Antártica, com sua água “fétida e corrompida”, a

podridão acompanha o navio, cercado pelas trevas marítimas. É importante notar que,

durante a viagem da ida, as tempestades e as provações do corpo ocorrem

principalmente próximas à linha do Equador, onde a “navegação é difícil e

extremamente perigosa”85. Além da água podre do navio, os aventureiros que cruzam

a linha equatorial são também surpreendidos pela chuva ácida e fétida, que, “caindo

83 A questão da narrativa exemplar da salvação será aprofundada no capítulo 4, que trata da presença da escrita em Léry. 84 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p.74. 85 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 55.

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nas carnes de alguém provocam pústulas e grossas empolas”86. A linha equatorial se

apresenta como uma “difícil e perigosa passagem”87, que testa ao máximo o martírio

corporal dos exilados. Água podre, chuva ácida, tempestades, trevas marítimas: o

navio e Léry estão cercados pelas águas escatológicas do dilúvio. Mas, tão logo o

navio cruza a “cintura do mundo”, o turbilhão da ira divina se esvanece. Após o

martírio da passagem pelas mediações da linha equatorial, o navio parece flutuar em

outro oceano, tamanha paz e constância que se apresenta: “tivemos desde então vento

de oeste que nos foi propício e permaneceu tão constante que a 26 de fevereiro de

1557, pelas oito horas da manhã, avistamos a Índia Ocidental ou terra do Brasil”88.

Enquanto nas mediações da linha equatorial se representa o cenário

apocalíptico da ira de Deus contra os pecadores; do outro lado dessa mesma linha há

o esplendor da criação divina através da natureza harmoniosa89. Após atravessar o

Equador, os bons ventos marítimos dos trópicos levaram o navio rapidamente à costa

brasileira: “e logo pudemos admirar as florestas, árvores e ervas desse país, que –

mesmo em fevereiro, mês em que o gelo oculta ainda no seio da terra todas essas

coisas em quase toda a Europa – são tão verdes quanto na França em maio e junho. E

isso acontece durante todo o ano nessa terra do Brasil”90.

O Brasil é construído, pela memória do pastor calvinista, como o inverso de

uma Europa ameaçada pelas guerras religiosas. Após cruzar com grandes dificuldades

a linha que delimita a fronteira entre o lá e o cá, Léry adentra um espaço edênico. Ao

contrário do cerco, onde prevalece a degradação claustrofóbica, as terras Tupinambá

parecem não ter fim, abertas ao verdejar permanente da natureza. Das raízes e

tubérculos que se escondem sob a terra às penas coloridas dos pássaros que recortam

os céus, a descrição do espaço brasileiro é quase sempre resumida às belezas naturais.

É importante salientar que a França Antártica não faz parte desse cenário, pois estaria

corrompida pela violência e avareza dos papistas, comandados por Villegagnon. Fora 86 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil , p. 73. 87 Idem, p. 75. 88 Idem, p. 77. 89 Segundo Frédéric Tinguely, que aplica o estudo de Hartog sobre a “retórica da alteridade” à narrativa de Léry, a linha equatorial seria como um “espelho d’água”, que marca um princípio de inversão entre os dois mundos. Cf. TINGUELY, F., Jean de Léry et les vestiges de la pensée analogique. 90 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil , p. 78.

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da ilha, atravessando a baía, está o espaço brasileiro. As variadas espécies da fauna e

da flora são retratadas como uma benção da suprema criação divina.

A fome, a sede, a tempestade, a putrefação: a travessia, assim como os cercos

religiosos, seguem o mesmo roteiro das provações do povo de Israel diante da

iminência do apocalipse. Do outro lado da linha do Equador vislumbra-se a Terra

Prometida em meio à natureza. Mais uma vez, a narrativa bíblica acompanha o

exilado. Ao Salmo 107, que atesta as maravilhas de Deus diante dos perigos da

morte, soma-se à narrativa de Léry o Salmo 104, que louva a diversidade do Criador.

Por isso, quando a imagem desse novo mundo, que Deus me permitiu ver, se

apresenta a meus olhos, quando revejo assim a bondade do ar, a abundância de

animais, a variedade de aves, a formosura das árvores e das plantas, a excelência das

frutas e em geral as riquezas que embelezam essa terra do Brasil, logo me acode a

exclamação do profeta no salmo 104:

Senhor Deus, como tuas obras diversas

são maravilhosas em todo o Universo:

Como tudo fizestes com grande sabedoria!

Em suma, a terra está cheia de tua magnificência91.

Realização do sonho milenarista: a proximidade com a pureza divina parece

concretizar-se a partir da relação do calvinista com a natureza tropical. Léry atesta

sua relação privilegiada com o Criador nesse espaço que parece ter saído diretamente

de Suas mãos: o Novo Mundo, reduzido à natureza, é o livro pelo qual Deus

comunica diretamente sua Graça à criatura humana92. Em sua narrativa, Léry parece

influenciado pela idéia calvinista da natureza enquanto “livro do mundo como

instrumento da revelação”93. Só resta ao autor exaltar a “magnificência” do Criador

exclamando o Salmo 104. O livro da Bíblia, que contém as palavras vindas

diretamente da boca de Deus, junta-se ao livro da natureza, que se “apresenta aos

91 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 181. 92 Cf. LESTRINGANT, F., Millénarisme et âge d’or: réformation et expériences coloniales au Brésil et en Floride (1555-1565). 93 LESTRINGANT, F., Jean de Léry, ou l’invention du sauvage, p. 121.

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olhos” desse viajante como o espetáculo da pureza divina. Deus se manifesta ao então

sapateiro Léry, atestando sua vocação pastoral, que deverá ser escrita e impressa

como testemunho de sua fé.

Mas a experiência do retorno ao tempo mítico da pureza original, pelo qual o

futuro pastor testemunhou as maravilhas do Criador, é interrompida por mais um

corte que, dessa vez, força a volta do genebrino à Europa. Através do corte da volta,

Léry funda a memória nostálgica do Novo Mundo. Sua experiência com os

Tupinambá se constitui como memória de uma pureza original que, vinte anos depois,

parece ter sido desvanecida no desgastado continente europeu.

Assim, ao dizer adeus à América, aqui confesso, pelo que me respeita, pouca ou

nenhuma devoção que ainda subsiste e as deslealdades que usam uns para com

outros; tudo aí está italianizado e reduzido a dissimulações e palavras vãs, por isso

lamento muitas vezes não estar entre os selvagens, nos quais como amplamente

demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos

de cristãos94.

As maravilhas de Deus, atestadas pelo narrador a partir da travessia marítima e da

convivência com a natureza tropical, parecem confirmar a eleição de sua comunidade.

No entanto, é importante perceber que essa narrativa de um paraíso perdido se

constrói a partir de um corte no tempo e no espaço. Corte esse que marca a ruptura

definitiva entre o Velho e o Novo Mundo.

É a partir do contexto a posteriori de “crise cultural” que o Novo Mundo e o

Tupinambá irão emergir como memória consolidadora da pureza original. Vinte anos

depois da experiência na baía de Guanabara, diante de uma Europa imersa na

discórdia religiosa e de um Novo Mundo “massacrado” pela colonização espanhola e

portuguesa, a Terra Prometida de Léry parece ter se transformado em uma ausência

definitiva, capaz de ser revivida somente pela memória nostálgica: “lamento muitas

vezes não estar entre os selvagens”.

A pureza do Novo Mundo, onde se manifesta o sonho milenarista de um

retorno à origem paradisíaca, se constitui enquanto antítese desse mundo católico 94 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 250.

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“reduzido a dissimulações e palavras vãs”. Ao “dizer adeus à América”, Léry dá

adeus aos últimos resquícios da pureza original, ameaçada de extinção pela “avareza

e ganância” dos papistas. O Novo Mundo se constituirá enquanto recordação

nostálgica de um passado originário que se perdeu definitivamente do horizonte do

pastor, imerso na barbárie das guerras de religião.

3.2 Pragmatismo jesuítico: o missionário e a continuidade

Depois que me apartei deles, indo eu a passar pelos caminhos, diziam alguns em alta

voz o nome de Jesus como eu lhes tinha dito, de que eu não recebia pequena

consolação; e certamente, que ainda que o Senhor me não dê o Reino dos Céus, já

com estas semelhantes consolações me dou por pago.95

Enquanto a narrativa de Léry se apresenta, tendo em vista o duplo corte que a

caracteriza, como memória de uma pureza perdida, ou seja, de uma ausência que

parece definitiva, a de Nóbrega procura continuamente restituir a presença de Deus

em um mundo marcado por Sua ausência. O nome de Jesus repetido pela boca do

Tupinambá, graças à pregação de Nóbrega, marca os sinais da Palavra de Deus no

corpo ameríndio. Esses sinais que aproximam o Tupinambá de Cristo equivalem aos

sinais da salvação do próprio Nóbrega. De acordo com Castelnau-L´Estoile, é a

mesma Graça divina que sustenta os dois projetos: a salvação do missionário e a do

outro.96 Evocar a presença do Salvador em terras esquecidas de seu nome, unir a

diversidade (que representa o não cristão) em um só corpo: Jesus Cristo. Se ainda não

está seguro de seu lugar no Reino dos Céus, Nóbrega ao menos se dá “por pago” com

estas “consolações”. A repetição do nome de Jesus pelo Tupinambá testemunha o

95 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Baía, 10 agosto 1549, p. 55. 96 Cf. CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p..86.

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sucesso evangelizador de Nóbrega e, por conseguinte, sua possível salvação

individual.

A missão é como uma peregrinação, como um martírio, em que o homem

religioso se sacrifica pelos outros, como fez Jesus pela humanidade ao morrer na

cruz97. O que o jesuíta projeta sobre o corpo tupinambá são os sinais de sua própria

salvação. A metáfora do papel branco é condizente ao que o olhar quer ver: percebido

a - priori como gentio, ao índio só resta ser visto como espaço vazio que já está sendo

preenchido pelas palavras do Senhor.

O missionário busca reviver a narrativa exemplar do Mistério da Salvação.

Sua salvação depende do encontro do cristão com o não-cristão em um único ponto:

Jesus Cristo, o corpo de Deus que, pela encarnação, o sacrifício e a ressurreição,

trouxe a salvação para a Humanidade. O missionário, como um novo apóstolo, faz de

seu corpo martirizado a imagem sensível do corpo de Cristo, sendo assim o ponto de

ligação, o peregrino que leva a Graça divina aos pagãos. Como um santo, procura

aproximar a Graça do corpo de Cristo do corpo ausente de Graça, o corpo gentio. Os

sinais de São Tomé surgem entre as rochas do Novo Mundo como um santuário que

consola o novo Apóstolo de Cristo. Assim como as naus religam os continentes em

um único espaço cristão sob o comando do Rei de Portugal, o missionário religa os

povos em um único tempo: o tempo da salvação, expresso pela união de todos no

corpo místico de Jesus Cristo.

A nau e o corpo missionário: agentes intermediários

Esta terra he nossa empresa, e o mais gentio do mundo. Nom deixe lá V. R. mais que

huns poucos para aprender, os mais venhão. Tudo lá he miséria quanto se faz: quando

muito ganhão-se cem almas, posto que corrão todo o Reyno, cá he grande manchea98.

97 Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré, p. 71. 98 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 9 de Agosto de 1549, p. 34.

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É importante perceber a posição intermediária do missionário: entre dois

mundos, é ele quem interliga a diversidade dos elementos – sagrado e profano,

humano e divino, cristão e não cristão. Como a nau no oceano à procura da terra que

deverá unir-se aos domínios da Coroa portuguesa, Nóbrega busca alcançar o gentio

para incorporá-lo ao Corpo místico da Igreja. O Tupinambá é o campo onde atua o

missionário, inserido no mundo profano com o sentido de sacralizá-lo. Ao contrário

da narrativa de Léry, fundamentada no corte oceânico, Nóbrega procura unificar os

povos no tempo da salvação. O “cá” e o “lá”, que o calvinista separa, o missionário

procura aproximar a todo instante.

Cá: as terras do Novo Mundo, mais especificamente, a cidade recém fundada

de São Salvador. Em agosto de 1549, quando o jesuíta escreve a frase citada, as terras

do gentio já haviam sido nomeadas “São Salvador”, em alusão a Cristo, filho de

Deus, mártir que sacrificou corpo e sangue em nome da verdadeira fé. Essa cidade

encontra-se cercada pela “Baía de Todos os Santos”, nomeação que parece desafiar os

protestantes, que duvidavam da santidade dos santos99. Percebe-se aqui que o ato de

nomear dá sentido ao gesto de conversão, tornando explícita a necessidade de se

reafirmar o culto aos santos e a proximidade sensorial entre Deus e os homens100.

Nomear o espaço de fundação do Governo Geral de “São Salvador”, e sua

área circundante de “Baía de Todos os Santos”, significa demarcar a posse do

território a partir da reiteração da presença dos nomes salvíficos. O rito de nomeação

funciona como um processo de transformação do profano em sagrado101.

Lá: o reinado português de D. João III, que em 1549 decidiu reformar o

sistema de colonização das Américas ao estabelecer o primeiro Governo Geral na

província da Bahia, ponto eqüidistante das regiões de maior produtividade econômica

do litoral brasileiro. D. João III nomeia Tomé de Souza para fundar uma cidade na

Bahia, considerando a permanente ameaça dos franceses, e lhe ordena promover o

domínio do território e a conversão dos povos: a “principal coisa que me moveu a

mandar povoar as ditas terras do Brasil para [que] a gente dela se convertesse à nossa

99 Cf. VAINFAS, R., SOUZA, J.B., Brasil de Todos os Santos, p. 8. 100 FERNANDES, E., Futuros outros: homens e espaços – os aldeamentos jesuíticos e a colonização na América portuguesa, p. 63. 101 Idem, Ibidem. Cf. Também ELIADE, M. O sagrado e o profano, capítulo 1.

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Santa Fé Católica”102. Nesse sentido, a Companhia de Jesus tinha como função

cristianizar a população do Novo Mundo para que esses se tornassem súditos do

Reino de Portugal.

A ruptura protestante com a Igreja e a disseminação de novos movimentos

religiosos como o luteranismo e o calvinismo, intensificaram a atmosfera de intenso

combate às heresias na Península Ibérica. É significativo o fato da Companhia de

Jesus ter iniciado sua atividade missionária em Portugal no ano de 1540, apenas

quatro anos após a instalação do Santo Ofício em Portugal. Nesse sentido, a América

habitada pelos índios pareceu constituir-se de significado providencial, devendo ser

entendida como uma “compensação oferecida por Deus à Igreja pela fratura da

Cristandade provocada pelo “maldito Lutero” 103.

Cá: “essa terra he nossa empresa e o mais gentio do mundo”. Uma terra que

desconhece o Reino de Deus por ser habitada por gentios. A terra e os gentios

formam um paralelo que justifica o campo de ação de Nóbrega e seus companheiros:

“nossa empresa”. A empresa é um empreendimento que visa realizar um objetivo

pragmático: transformar o mundo pelos sinais de Cristo. A miséria a que Nóbrega se

refere quando fala de “lá” é a miséria da conversão, “quando muito ganhão-se cem

almas”. “Cá”, ao contrário, “é grande manchea”, caracterizando a “mão cheia” de

almas a serem convertidas pelo novo Apóstolo que, ao garantir a salvação do gentio

assegura-se de sua própria.

É necessário ressaltar a importância do mar no imaginário do cristianismo

ibérico. A atitude empreendedora ibérica de enfrentar o grande mar tenebroso é ponto

fundamental para se compreender o sentido missionário de Nóbrega. O mar foi

durante muito tempo símbolo do caos por onde chegavam os bárbaros infiéis que

invadiram a península ibérica ao longo da Idade Média. Em 1075, com a reforma

Gregoriana, o apelo papal por uma Cruzada contra os infiéis acendeu nos povos

ibéricos o princípio da Reconquista como Guerra Santa. Com a expulsão dos mouros

da Península Ibérica, o mar caótico e tenebroso, porta de entrada dos infiéis e

bárbaros, foi se cristianizando paulatinamente.

102 SOUZA, T. Regimento Tomé de Souza,. www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_regimentotome.htm 103 BARBOSA FILHO, R. , Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282.

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A chamada cristianização do mar deu-se sobretudo a partir de relatos de

viagens imaginárias, representações cartográficas que começaram a povoar o oceano

Atlântico de aventuras divinas e locais sagrados. Esses relatos atribuíram a santos

cristãos, à semelhança de heróis da antiguidade do porte de Ulisses, feitos heróicos

nos altos mares, enfrentando tempestades e naufrágios104. O que se chama

cristianização do mar é, na verdade, esse movimento de adaptação de lendas, mitos e

crenças de antigas tradições ao universo atlântico105.

Depois que partimos desse Reino, que foi o primeiro dia de fevereiro, trouxe N. S.

toda esta armada em paz e em salvo, com ventos sempre prósperos, até chegar a esta

Baía de Todos os Santos, em cinqüenta e seis dias, sem acontecer contraste nenhum,

e com outros muitos favores e mimos, que bem demonstravam ser usa tal obra 106.

Espaço cristianizado, o oceano Atlântico parece ter perdido suas dimensões

monstruosas. A distância entre lá e cá é quase anulada. A travessia de Nóbrega dá a

impressão de ter sido providencial, guiada por santos: além de não oferecer “contraste

nenhum”, é presenteada com muitos “favores e mimos”. O corpo/navio do

missionário, em sua posição intermediária de agente integrador, procura transformar a

diversidade profana em igualdade sagrada107. O mar cristianizado é a porta que se

abre para a continuidade entre “lá” e “cá”: agora é necessário cristianizar, inscrever

com os sinais de Cristo, a terra e o corpo do gentio.

104 É nessa perspectiva que viagens fantásticas para além do mundo conhecido, como a Visão de Tundalo, a Navegação de São Brandão, o próprio Purgatório de São Patrício, o Livro de Alexandre conheceram notável difusão na área ibérica durante todo o século XV e, em parte, no século XVI. Lendas como essas, provindas de tradições distintas como as gregas, célticas e judaicas foram-se consolidando no horizonte desconhecido do oceano Atlântico, tornando essa imensa massa aquática paulatinamente familiar e cristianizada. Cf. SOUZA, L.M., O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 24. 105“No fundo, todos esses cultos que permitiam ultrapassar o medo e o receio de um mar agora constantemente lembrado como morada de santos e espaço de manifestação de lugares teológicos, como o Purgatório ou o Paraíso, tornaram a vida e a prática marítimas perfeitamente integradas no quotidiano da sociedade cristã.” KRUS, L., O imaginário português e os medos do mar, p. 102. 106 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Coimbra, Salvador [Baía] 10 de Agosto de 1549, p. 46. 107 Cf. BAETA NEVES, L.F., O combate dos soldados de Cristo, p. 35.

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Santos e relíquias: os sentidos do corpo. O movimento de expansão marítima inaugurado por Portugal se insere em

uma dimensão ao mesmo tempo secular e religiosa. A chamada cristianização do mar

foi-se consolidando paralelamente a um saber específico de domínio das mais

modernas técnicas de navegação. D. Henrique, irmão do Rei, reuniu em torno de si

uma legião de personagens ligados aos saberes humanistas e aos interesses da

burguesia ascendente108. O contexto quinhentista português das grandes navegações

pelos oceanos Atlântico e Índico aliou a dimensão humanista da sabedoria do mar109,

fundamental para o sucesso das longas travessias marítimas, ao espírito messiânico de

expansão da fé cristã. Nóbrega se insere nessa dinâmica de expansão marítima da

Coroa portuguesa, em que estão aliados os conhecimentos científicos fundamentados

na experiência do homem no mundo e a dimensão transcendental vinculada à

economia da salvação.

Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, relata nos Exercícios

Espirituais uma experiência singular que procura aliar a vontade humana de ação no

mundo com a vontade de Deus. Simbiose que se fundamenta na relação homem/corpo

e Deus/alma. Como o próprio título da sua escrita sugere, os Exercícios Espirituais

são exercícios e, portanto, dizem respeito ao corpo físico, ou melhor, à “aplicação dos

sentidos do corpo” em conjunção com os “sentidos da imaginação” para a busca da

vontade divina110. O corpo da pessoa participa ativamente da vontade divina: a

“aplicação dos sentidos” supõe uma atitude que, segundo François Marty, “não marca

o espírito porque diz antes respeito ao corpo. A aplicação dos sentidos é então a

108 Esses personagens seriam “geógrafos, técnicos em navegação e construção naval, cosmógrafos, matemáticos, médicos judeus e mercadores italianos, estes últimos extremamente interessados nas novas rotas de comércio abertas pelos portugueses.” BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 140. 109 Esse termo foi intensamente analisado por Luis Felipe Barreto. “O conjunto teórico de ciência, filosofia e técnica renascentista que chamamos sabedoria do mar constitui o espaço de pensamento objectivo português mais rico e universal(...) A sabedoria do mar é, no quadro da ciência, da filosofia e da técnica, um dos grandes e dos poucos momentos em que algo da cultura portuguesa está regulado pelo ritmo de andamento mais dinâmico da restante cultura européia vanguardista”. BARRETO, L.F., Os descobrimentos e a ordem do saber - uma análise sócio-cultural, pp. 56 e 57. 110 Cf. MARTY, F., Sentir e saborear – os sentidos nos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de Loyola. “O lugar dos sentidos nos exercícios”, pp. 28 a 40.

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atitude que se ajusta segundo os tipos de relação próprios a cada um dos cinco

sentidos”111.

O primeiro ponto é ver as pessoas, com o olhar da imaginação, meditando e

contemplando em particular as circunstâncias em que estão, para tirar algum proveito

do que vê.

O segundo ponto é ouvir o que falam, ou poderiam falar, refletindo sobre si mesmo

para tirar algum proveito.

O terceiro ponto é sentir e saborear com o olfato e o paladar a infinita suavidade e

doçura da divindade, da alma e de suas virtudes, e de tudo o mais, conforme for a

pessoa que se contempla. Refletir em si mesmo para tirar proveito.

O quarto ponto é sentir com o tato, assim como abraçar e beijar os lugares onde tais

pessoas pisam e tocam, deste modo sempre procurando tirar proveito112.

Os cinco sentidos atuam em conjunto na procura da vontade divina. Os dois

últimos pontos – que conjugam tato, olfato e paladar – causam maior estranhamento,

pois seriam mal vistos por toda uma tradição cristã que os compreendia como

“sentidos inferiores”, em oposição aos sentidos superiores (visão e audição), que

estariam mais próximos da idéia113. A simbiose do espiritual com o carnal,

manifestado pelos sentidos dito “inferiores”, é decisiva, pois conjuga uma “pessoa

tomada em sua humanidade corporal” com a vontade divina114, ou seja, uma pessoa

capaz de fazer escolhas a partir da aplicação de seus sentidos físicos.

É importante assinalar que os Exercícios são práticas corporais fundamentadas

na ação salvífica de Cristo na história, têm como fim aproximar-se do Mistério da

Salvação115 pela imitação da passagem de Cristo na terra. Reviver a paixão de Cristo

é incorporar-se ao divino. Cristo, a encarnação de Deus que trouxe a possibilidade de

redenção. A tradução corporal da imitação de Cristo não é simples mimetismo.

Segundo Barthes, é o “corpo continuamente mobilizado na imagem pelo próprio jogo

111 Idem, p. 30. 112 LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, pp. 57-58. 113 MARTY, F., Sentir e saborear – os sentidos nos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de Loyola, p.31. 114 Idem, p.39. 115 Cf. LOYOLA, I., Exercício Espirituais. Nota 16, p. 12.

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da imitação que estabelece uma analogia literal entre a corporeidade do exercitante e

a do Cristo, de quem se trata de encontrar a existência, quase fisiológica, por uma

anamnese pessoal”116.

A imitação de Cristo, pela aplicação dos sentidos do corpo, é uma atitude que

busca ter o corpo voltado para o Senhor. “Sentir com o tato, abraçar e beijar os

lugares onde tais pessoas pisam e tocam”. Inácio de Loyola procura, pelos sentidos do

corpo, chegar à Graça divina através de seus vestígios. A força carnal do abraçar e

beijar se insere na vontade de se aproximar dos vestígios corpóreos de Cristo.

Vestígios que se eternizam pelos santos. Intermediários entre Deus e os homens, os

santos perpetuam a Graça do Corpo místico de Deus. O corpo santo é receptáculo do

sagrado, um corpo-relíquia, objeto de devoção e de renovação espiritual 117.

Dizem eles que Santo Tomé, a quem chamam Zomé, passou por aquí. Isto lhes ficou

por dito de seus antepassados. E que as suas pisadas estão sinaladas junto de um rio,

as quais eu fui ver por mais certeza da verdade, e vi com os próprios olhos quatro

pisadas mui sinaladas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio, quando

enche. Dizem também que quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos Índios, que o

queriam frechar, e chegando ali se lhe abrira o rio, e passara por meio dele, sem se

molhar, à outra parte. E dali fora para a Índia. (...) Dizem também que lhes prometeu

que havia de tornar outra vez a vê-los. Ele os veja do céu, e seja intercessor por eles a

Deus, para que venham a seu conhecimento, e recebam a santa fé, como

esperamos118.

Os sinais mais evidentes da Graça de Cristo em terras brasileiras são as

pegadas de São Tomé. Apóstolo da época de Cristo, diz-se que esteve em terras

brasileiras antes de ir para as Índias. Os vestígios funcionam como relíquias, sinais

concretos da Graça divina. O culto das relíquias funda-se na crença de que o caráter

sagrado do corpo santificado pode ser transferido para o devoto119. Nesse sentido, as

pegadas de São Tomé sobre a rocha constituem a Graça do santo e, indiretamente, do 116 BARTHES, R., Sade, Fourier, Loyola, p. 61. 117 GELLIS, J., Le corps, l´Église et le sacré, p.78. 118 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Informação das terras do Brasil [aos padres e irmãos de Coimbra] – Baía, agosto de 1549, pp. 66-67. 119 MARTY, F. , Sentir e saborear, p. 81.

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próprio Jesus Cristo. “Vi com os próprios olhos quatro pisadas mui sinaladas”. A

presença física dos sentidos corporais do missionário que atua na superfície profana

em busca dos sinais da Graça de Cristo. Os pés de São Tomé na rocha são sinais que

se abrem para a experiência dos sentidos. Além da visão assinalada pelo próprio

Nóbrega, está intrínseco o tato. “O tato é aquele do rochedo, ao qual Inácio, peregrino

imprudente, retornava para se assegurar da orientação dos vestígios dos pés do

Senhor sobre o rochedo da Ascenção”120. A imagem do rochedo da Ascenção, que no

Antigo Testamento é símbolo da solidez da Aliança e fidelidade de Jeová, prefigura a

imagem de Cristo como “rochedo espiritual de onde verte a bebida de vida”121. O

rochedo de São Tomé simboliza, portanto, por um lado, a marca identitária, a

permanência, a coesão do Corpo de Cristo espalhado pelo mundo.

Mais interessante, entretanto, é perceber a conjugação desses dois elementos:

a rocha e o pé do santo. Se o primeiro simboliza a coesão, a permanência, a fixidez; o

segundo é metonímia do oposto: o pé como movimento, como a parte do corpo que

melhor resume a condição do peregrino – mover-se pelo mundo. É necessário

considerar a importância dos Exercícios Espirituais como busca de integração do

exercitante com o Senhor em sua humanidade (Cristo), como falou às testemunhas

que o escutavam, viam, tocavam e pisavam o mesmo solo que ele122. Nesse sentido, a

oração “começa pelos pés”: o peregrino que caminha em direção a Jerusalém para

reviver no corpo o caminho que Jesus percorreu.

A pegada de São Tomé, por guardar a Graça de Deus, assinala a fundação de

um lugar santo, de um passado originário que faz perpetuar a memória corpórea da

Graça. As pegadas podem curar pelo toque: santuário que o peregrino revelou, à

procura dos sinais de Deus. Sinais que consolam o missionário em busca de

santidade. Que São Tomé “seja intercessor por eles a Deus”, pede Nóbrega. São

Tomé atua em Nóbrega como memória viva123: ativa o momento de repetição e de

reunião no Corpo de Jesus Cristo. Nesse sentido, o passado serve como apoio para o

120 CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., Dicionário dos símbolos, p. 783. 121MARTY, F. , Sentir e saborear, p. 61. 122 Idem, Ibidem. 123 Idem, p. 63.

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futuro: Nóbrega é o novo São Tomé. Atualiza a Graça de Deus, possibilitando a

intercessão entre Cristo e os pagãos para fundar a cidade de Deus no Novo Mundo.

Peregrino que “ora pelos pés”, Nóbrega se insere, portanto, em uma sociedade

pragmática, que procura agir de acordo com a vontade divina. Os sinais de São Tomé

são relíquias que aproximam os dois universos: corpo e espírito, homem e Deus,

pagão e cristão. Depois da santificação do mar, a santificação da terra. Intermediário

entre o sagrado e o profano, Nóbrega vê na presença dos santos os sinais de sua

salvação e o consolo espiritual para seguir o combate de Deus contra o diabo/pagão.

Os sinais de São Tomé assinalam, por fim, a proximidade entre as esferas do

espiritual e do carnal, do sagrado e do profano. Proximidade que se manifesta pela

proteção dos santos que apareciam nas guerras, como São Sebastião em 1560, que

ajudou a armada de Mem de Sá a expulsar os franceses da Baía de Guanabara. É

importante lembrar o famoso “milagre de Ourique”, em 1139, quando cristãos

portugueses, liderados por Affonso Henriques, venceram um enorme exército de

mouros, apesar da inferioridade numérica, para recuperar território cristão invadido

pelos islâmicos. Essa vitória teria sido explicada pelo aparecimento de Cristo ao

futuro rei de Portugal, “sinalizando a intervenção sagrada no destino de glória

reservado aos portugueses”124.

Tal proximidade se manifesta fundamentalmente pelo envolvimento dos

sentidos corporais nas solenidades religiosas, é o que pode ser visto na primeira

festividade de Corpus Christi em terras da América portuguesa, realizada por

Nóbrega no ano de 1549.

Fizemos precissão com grande musica, a que respondião as trombetas. Ficarão os

Indios spantados de tal maneira, que depois pedião ao P. Navarro que lhes cantasse

asi como na precissão fazia. Outra precissão se fez dia de Corpus Christi muy

solemne, em que jugou toda a artelharia que estava na cerca, as ruas muito

enrramadas, ouve danças e invenções à maneira de Portugal125.

124 HERMANN, J., 1580-1600 – o sonho da salvação, p. 18. 125 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao P. Simão Rodrigues, Salvador [Baía] , 9 de agosto de 1549, p. 41.

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O caráter espetaculoso da procissão de Corpus Christi é evidente: a música, a

dança e a preparação da cidade tornam a festividade da celebração do corpo de Deus

uma ação sinestésica que procura inscrever o ameríndio ao poder da Igreja e da

Coroa. ‘Spantado’, o Tupinambá se deixa levar por essa festividade que circula ao

redor da cidade colonial. Nessas procissões, o envolvimento dos sentidos corporais

marca a proximidade entre os domínios do espiritual e do corporal.

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4 Nudez: os dois corpos do Tupinambá 4.1 “Papel branco” ou “boca infernal”? Nóbrega e a conversão

Cena inaugural da conversão: os “maus cristãos” e a alegoria do papel branco

Todos esses que tratam comnosco, dizem que querem ser como nós, senão que nom

tem com que se cubrão como nós, e este soa incoveniente tem. Se ouvem tanger à

missa, já acodem, e quanto no vem fazer, tudo fazem: assentão-se de giolhos, batem

nos peitos, alevantão as mãos ao ceo; e já hum dos principaes delles aprende a ler e

toma lição a cada dia com grande cuidado, e em dous dias soube ho ABC todo, e ho

insinamos a benzer, tomando tudo com grandes desejos. Diz que quer ser christão e

nom comer carne humana, nem ter mais de huma molher e outras cousas126.

A primeira descrição mais aprofundada sobre os índios, feita por Nóbrega no

Novo Mundo, encontra-se na carta escrita em abril de 1549, poucas semanas após sua

chegada. A descrição denota a forte presença do corpo tupinambá no olhar do autor,

como se vê nos primeiros sinais de conversão explicitados pelo gestual destes que

parecem ter “grandes desejos” em acudir à nova fé (ajoelham-se, batem nos peitos,

levantam as mãos aos céus). Esses sinais de fé, pela mimese gestual, misturam-se à

descrição de um corpo que, por sua nudez, causa estranhamento ao olhar do jesuíta.

Apesar do desejo manifestado em se converter, a ausência de vestes marca a

diferença entre o Tupinambá e o jesuíta – “dizem que querem ser como nós senão que 126 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Primeira carta de Nóbrega escrita no Brasil, poucos dias depois de chegar a 29 de março de 1549. Possível data: 10 de abril de 1549, p. 20.

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nom tem com que se cubrão”. Parece caracterizar-se uma ambivalência na descrição

do corpo ameríndio: “inconveniente”, por sua nudez, mas que fascina pelo “grande

desejo” de fé que apresenta.

Como conciliar a visão da nudez proibida, que denota o pecado da carne, com

os gestos de devoção dos Tupinambá? O nu é dessemelhante, pois foge da ordem

estabelecida pela moral cristã. Entretanto, sua dessemelhança “inconveniente” é

equivalente à semelhança consoladora dos sinais de devoção que apresenta. Esse par

de opostos sugere a presença do missionário, intermediário entre o dessemelhante e o

semelhante. Tem-se aqui uma cena inaugural da conversão de Nóbrega. Cena em que

o corpo tupinambá, entre a nudez pecadora e os gestos de devoção, está no centro da

descrição. Nessa gangorra de corpos que se balançam entre dois opostos – pecados do

corpo (Lúcifer) e gestos de devoção (Jesus Cristo) – o missionário é o agente

intermediário que deverá aproximá-los, anulando o demoníaco pela presença do

divino.

No corpo constituem-se simultaneamente a danação e a salvação. O corpo que

se benze, se ajoelha e levanta as mãos aos céus, é o mesmo que contém os sinais mais

representativos do pecado humano: nudez, poligamia e antropofagia. Como sugere

Baeta Neves, esses três comportamentos que demonstram a “animalidade” tupinambá

estariam todos associados ao corpo. A poligamia “é o desconhecimento de qualquer

interdição quanto ao “uso” de outro corpo. O canibalismo é o desconhecimento de

qualquer interdição quanto à ingestão de outro corpo. A nudez é o desconhecimento

de qualquer interdição quanto à exibição do corpo”127.

Se por um lado o corpo do Tupinambá se apresenta pela ausência da Lei de

Deus – o desconhecimento da proibição do pecado original, que o aproximaria da

“animalidade” – por outro, através dos gestos de devoção explicitados na mímese

gestual, ele demonstra sua aptidão para estar incluído na Lei natural da Graça.

Inserido na ideologia da Segunda Escolástica, que segue a obrigação evangélica de

pregar a todas as Criaturas, o jesuíta considera que o Tupinambá está incluído na Lei

127 BAETA NEVES, L.F., O combate dos soldados de Cristo, p. 56.

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natural, ou seja, apto a participar do grêmio da Igreja e alcançar a bem-

aventurança128.

As duas situações aparentemente contraditórias, o querer “ser como nós” e os

“maus costumes” (nudez, antropofagia e poligamia), não caracterizam uma

discordância interna e sim duas propostas que buscam o mesmo fim: a conversão do

gentio. Ao invés de uma contradição, essa oposição caracteriza uma ambigüidade que

justifica a ação missionária: a conversão implica a transformação desse corpo fonte

de “maus costumes” em corpo carregado da Graça de Deus.

Os sinais que denotam os pecados do corpo são apresentados pela negativa, ou

seja, pela “vontade” do Tupinambá em se distanciar deles: “Diz que quer ser christão

e nom comer carne humana, nem ter mais de huma molher e outras cousas”. Nesse

momento, Nóbrega estabelece as normas que diferenciam o cristão do gentio, mas ao

mesmo tempo aproxima, religa, o dessemelhante e o semelhante: ele dá voz ao

“principal” tupinambá para que esse enuncie as palavras do próprio jesuíta – a

negação do que vai contra os preceitos da Lei católica. Nóbrega projeta sua fala ao

“principal”, que se torna então um porta-voz das palavras da salvação do próprio

jesuíta.

Ajoelhar-se, bater nos peitos, levantar as mãos aos céus: as palavras/gestos do

pregador já fazem efeito, já vestem esse corpo nu com os sinais de devoção. O chefe

desses índios, o “principal”, já é inclusive capaz de repetir o ABC: é vestido com a

gramática, a ordenação da linguagem que lhe possibilitará receber a Graça do

verdadeiro Deus.

(...) e certamente não creio eu que em todo o mundo há terra tão disposta para tanto

fruto como esta. Onde vemos perecer as almas por falta, sem lhes poder valer; pelo

menos acendemos-lhes as vontades para serem cristãos (...) não sei como os que têm

amor a Deus e desejam a sua glória podem sofrer não se embarcar logo e vir cavar na

vinha do Senhor (...) Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há

128 PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos ibéricos, p. 39.

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mais que escrever à vontade; mas é muito necessária a virtude e zelo de que estas

criaturas conheçam ao seu Criador e Jesus Cristo seu Redentor. 129

A escrita de Nóbrega, como será visto com mais vagar no próximo capítulo,

parece relacionar-se diretamente ao corpo “papel branco” do ameríndio. De fato, sua

escrita está dotada de um sentido missionário, voltada, portanto para as expectativas

de uma história futura, em que o gentio será transformado em próximo pela anulação

de seus “maus costumes”. A alegoria do “papel branco” condiz com a concepção de

uma “terra tão disposta para tanto fruto”, em que basta espalhar as sementes-palavras

sobre a terra fértil para que se colham os frutos esperados, ou seja, as almas

convertidas. Basta pregar para que a Palavra de Deus germine na “vinha do senhor”,

ou se imprima sobre o corpo ameríndio. A nudez pecaminosa, própria de Cam, filho

que amaldiçoou o pai Noé e foi condenado a viver nu longe de Deus, é quase anulada,

tornando-se um resquício da cegueira em que viviam esses povos. Prevalece a

imagem do índio dócil, que reflete a facilidade da conversão. De fato, na experiência

inicial de sua missão no Novo Mundo, Nóbrega usa com freqüência a imagem do

“papel branco” para se referir aos indígenas.

Para os jesuítas, imersos no universo teológico da Segunda Escolástica, o ato

de pregar já bastava para que o gentio se convertesse130. A reiteração da Palavra

divina, ao penetrar o ouvido do gentio, modificaria sua condição, tornando-o

conhecedor da Graça. Pregar seria vestir a nudez e esse ato de vestir deve ser

entendido em sentido mais amplo, como intervenção sobre o corpo tupinambá,

transformando sua condição: esconde o que não se pode mostrar, extirpa o que não se

pode fazer com o corpo. Vestir com a Palavra significa vestir com gestos, vestir com

roupas, vestir com a escrita – em suma, sacralizar o corpo profano com os sinais de

Deus.

O primeiro fragmento das cartas de Nóbrega permite perceber um olhar

definidor de sentido, um olhar que está direcionado por projetos: vê o que se deseja

ver, o que se deseja construir. É o direcionamento da missão que pretende a

129 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Coimbra. Salvador [Baía], 10 de agosto de 1549, p. 54. 130 PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 92.

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transformação da alteridade em mesmo. Já na primeira frase o termo “como nós”

aparece duas vezes. Por quê? Porque se não for “como nós”, se não for semelhante às

práticas e representações cristãs (católicas) nada é verdadeiro. Vestir o Tupinambá é a

ação que garante ao missionário a sua própria veste da Glória, como aquela que o

profeta Isaías dá Graças ao seu Deus por ter recebido: “minha alma exulta por causa

do meu Deus, pois ele me vestiu do traje da salvação”131.

Constrói-se, portanto, uma cena inicial. O olhar do jesuíta procura dar sentido

ao que vê e para isso, arruma, enquadra segundo sua perspectiva. E o que é essa

perspectiva? É o desejo missionário que previamente qualifica, ou melhor,

desqualifica toda alteridade para lhe conferir autoridade na transformação. É um olhar

que busca sinais do que se deseja ver, projetando no corpo tupinambá sentidos que

são os seus. É preciso lembrar que Nóbrega sequer havia completado duas semanas

de vida no Novo Mundo, estando presente em sua escrita, portanto, um modo de ver

inicial sobre a alteridade nativa. Sua escrita revela mais projetos do que responde a

uma experiência prática.

Assim, o corpo ameríndio é posto em destaque através desse campo de visão:

um corpo que parece reter tudo o que o missionário prega, como um papel branco

retém a tinta da escrita. A nudez “inconveniente”, sinal da dessemelhança (sinônimo

de Lúcifer132), se destitui aparentemente dos sinais “demoníacos” e se torna alegoria

do paganismo, o “papel branco”, metáfora que legitima a transformação do gentio em

mesmo. É necessário destacar, entretanto, que a alegoria do “papel branco”,

enaltecedora da docilidade indígena, não se dá sem a relação com um terceiro termo:

o cristão da colônia.

Esta me parece agora a mayor empresa de todas, segundo vejo a gente docel, somente

temo ho mao exemplo que o nosso christianismo lhes dá, porque há homens que há

131 A BÍBLIA, Isaías (61, 10), p. 501. 132 Retomando As palavras e as coisas de Foucault, Baêta Neves sustenta que a regra do conhecimento do século XVI é a semelhança. É através dela que as coisas, pessoas e lugares podem ser (re)conhecidos em Deus. Nesse contexto, o dessemelhante é Lúcifer. Cf. BAETA NEVES, L.F., O combate dos soldados de Cristo.

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bij e x annos que se nom confessão, e parece-me que poem a felecidade em ter

muytas molheres133.

Vistos como “gente docel” que tem grandes desejos em se converter, os

Tupinambá são descritos em oposição ao “mao exemplo” dos cristãos. De fato, no

período incial de sua experiência no Novo Mundo, essa oposição é recorrente. Em

carta de janeiro de 1550, ele já estava convicto de que “quanto mais longe estivermos

dos velhos cristãos, que aqui há, tanto se fará mais fruto”134.

A relação triangular – jesuíta, “mau cristão” e Tupinambá – deve ser

entendida a partir do contexto ocidental de combate às heresias, acirrado pelas

rupturas protestantes no início do século XVI. É importante compreender o sentido

missionário de Nóbrega em função desse contexto em que a dimensão cruzadística da

Reconquista ibérica se conjuga à perseguição dos hereges, estimulada pela Contra-

reforma. Aliados ao Papado, os jesuítas participaram ativamente da reação ao

Protestantismo e da reforma da Igreja, amplamente debatidas pelo Concilio de Trento

(1545-1563). O tom anti-monástico da Companhia de Jesus, cujos integrantes se

lançaram pelo mundo com o sentido de transformá-lo, casou-se aos anseios

comerciais manifestados pela expansão marítima dos reinos ibéricos. Os missionários

se alastraram pelos quatro continentes tendo em vista o espírito missionário de

propagação da unidade do Corpo místico da Igreja e o ideal de renovação da fé

católica por meio das obras de caridade. Em reação aos protestantes, para quem a

salvação estava unicamente na fé, os jesuítas afirmavam a necessidade da caridade,

manifestada pelas boas obras, como requisito para se alcançar a salvação135.

Embora o Protestantismo não tenha afetado diretamente o processo

missionário de Nóbrega no Novo Mundo – pelo menos até o ano de 1559, quando o

jesuíta começa a se referir à presença dos protestantes da França Antártica136 – é

133 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de 1549, p. 24. 134 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 6 de janeiro de 1550, p. 77. 135 Cf. EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 32. 136 Em carta de 1559, Nóbrega escreve: “E porque não aja peccado que nesta terra não aja, também topei com opiniões luteranas e com quem as deffendesse, porque, já que não tínhamos que fazer com o gentio em lhe tirar suas erroneas por argumentos, tivessemos hereges com que disputar e defender a fé

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importante ter em vista que a expansão da ordem jesuítica se inscreve no âmbito de

fragmentação do cristianismo e de combate às heresias. A luta contra o “mau

exemplo” dos colonos reflete o espírito de perseguição às heresias manifestado

durante o dissenso religioso.

É nesse sentido que se deve compreender, em parte, a exaltação da

“docilidade” dos Tupinambá. Vale retomar o famoso trecho em que Nóbrega

compara a experiência missionária entre lá e cá: “tudo lá he miséria quanto se faz:

quando muito ganhão-se cem almas, posto que corrão todo o Reyno, cá he grande

manchea”137. A visão esperançosa em relação à conversão dos pagãos, traduzida pela

metáfora da “mão cheia”, contrasta com a “miséria’ que há em converter os hereges

do Velho Mundo, afundados em apetites corporais.

Identifica-se aqui uma divisão característica da doutrina tomista sobre os dois

tipos humanos de pecadores: de um lado os hereges, que escolhem negar a religião de

Cristo; de outro os pagãos, que simplesmente ignoram a fé138. Os Tupinambá são

inicialmente considerados pagãos, como sugere a alegoria do papel branco, que

refletiria sua proximidade com a Lei natural: “em muitas cousas fazem avantagem

aos christãos, porque melhor moralmente vivem e guardão melhor a lei de

natureza”139. O simbolismo da nudez tupinambá desenvolve-se, portanto na direção

da pureza moral, própria de quem ignora os ensinamentos de Cristo e que está aberto

para receber a nova fé. Por outro lado, o colono, apesar de vestido, estaria muito mais

afeiçoado aos pecados do corpo – principalmente à lascívia, que desarma o espírito

em benefício dos apetites sensuais, como se vê pela vontade que têm em “ter muitas

mulheres” – do que o Tupinambá, que anda nu e expõe suas “vergonhas”.

A impressão inicial de Nóbrega sobre o aparente sucesso evangelizador deve-

se, portanto, à idéia de que os Tupinambá, contrariamente aos maus cristãos, seriam

povos pagãos a quem bastaria pregar para que se convertessem. Além disso, o

interesse que os ameríndios demonstravam em repetir os gestos corporais do catholica.” In: NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal, p. 327. 137 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 9 de Agosto de 1549, p. 34. 138 EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 66. 139 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 9 de Agosto de 1549, p. 32.

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pregador, acentuava a idéia de que se poderia escrever à vontade sobre eles, pois

estariam como “papel branco” para receber a fé em Cristo.

Conversão por amor: os gestos corporais e o “abraçar-se aos seus costumes” Sustenta-se aqui a hipótese de que as práticas envolvendo a linguagem

corporal foram fundamentais, em um primeiro momento, para que Nóbrega

conseguisse atrair os Tupinambá à fé cristã140. Ao contrário do calvinista Léry, viu-se

que o jesuíta, imerso na tradição ibérica e no universo da Contra-reforma, acentuava a

relação de continuidade entre o corpo e o sagrado. Isso explica a forte presença de

imagens, objetos de culto e rituais marcados pela exageração gestual. Enquanto o

calvinista condenava a amplificação dos gestos e a materialização da Graça de Deus,

o jesuíta fundamentava sua ação evangelizadora nessas práticas. A disciplina (auto-

flagelo) é um exemplo significativo.

Eu prego domingos e festas duas vezes a toda a gente da Villa, que hé muyta, e às

sextas-feiras tem pratica com disciplina com que se muyto aproveitão todos141.

As disciplinas são a tradução corporal da imitação de Cristo e funcionam

como sinais de devoção que se inscrevem sobre o corpo do fiél. O aparente sucesso

dessas práticas pode ser compreendido pela semelhança com alguns rituais

tupinambá, marcados pela penetração gráfica sobre o corpo, como as perfurações de

140 Embora o foco dessa dissertação seja a análise da importância das práticas envolvendo o corpo na ação evangelizadora de Nóbrega, não se deve deixar de mencionar a importância dos intérpretes, principalmente dos meninos pregadores, no processo inicial de conversão. Cf. VILLAS BÔAS, L., Os meninos pregadores e as missões jesuíticas no Brasil (1549-1555). 141 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco, 13 de setembro de 1551, p. 95.

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lábios e orelhas142, ou as tatuagens adquiridas pelos guerreiros quando capturavam

um inimigo. Outra cena demonstra a intensidade com que as disciplinas eram

praticadas pelos Tupinambá, causando “muyta devação a todos”.

(...) e meteo nos outros tanto fervor e devação asi verem-no como se açoutava

cruamente, como a pratica que fez, que moveo a muytos que se sintião culpados em

suas consciências, a virem confesar seu peccado secreto e a disciplinarem-sse

tambem com elle em publico, que foy auto de muyta devação a todos, e alguns

brancos, que ahí estavão, ficarão pasmados de verem o que virão143.

As práticas corporais envolvendo a cura pelo toque também mostraram-se

significativas no processo de conversão:

Quando estão alguns doentes nos mandam chamar para que lhes impunhamos a mão

sobre eles, e por este modo muitos recuperam a saúde por graça de Deus, o que

aumenta muito neles a fé em Cristo144.

Finalmente, um último exemplo que ilustra a importância dos gestos no processo de

conversão é a linguagem corporal utilizada por Nóbrega para pregar. Nota-se, no

trecho abaixo, a dimensão estratégica do jesuíta, que procura se “abraçar” aos

costumes nativos para atraí-los à fé cristã. Nesse caso, interessa-nos destacar a

adaptação de Nóbrega aos gestos do Karaí, o profeta Tupinambá que batia no peito

durante suas pregações.

Se nos abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são contra nossa

fee catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como hé cantar e tanger seus

estromentos de musica que elles usam em suas festas quando matão contrarios e

quando andão bebados, e isto pera os atrahir a deixarem os outros custumes essentiais

142 SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras, p. 11. 143 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal, Baía, 5 de julho de 1559, p. 298. 144 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 6 de janeiro de 1550, p.73.

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e, permitindo-lhes e aprovando-lhes estes, trabalhar por lhe tirar os outros; e assim o

pregar-lhes a seu modo em certo toom andando passeando e batendo nos peitos como

elles fazem quando querem persuadir alguma cousa e dizê-la com muita efficacia; e

assim trosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque a

semelhança hé causa de amor145.

Esse método de conversão, fundamentado na adaptabilidade aos costumes

nativos, foi fundamental no processo inicial de evangelização. Eisenberg destaca a

utilização dos “ritos pré-lingüisticos” – ou seja, das práticas envolvendo rituais de

cura e de pregação – para que tal adaptabilidade ocorresse146. A estratégia de

“abraçar-se aos seus costumes” tem como fim a “semelhança”, ou seja, a união em

torno dos sinais que marcam a presença de Jesus Cristo. Nesse sentido, nota-se que a

presença desses rituais envolvendo o corpo e a voz – como a cura pelo toque, as

disciplinas, a música cantada no “mesmo tom” e “bater nos peitos como elles fazem”

– foram fundamentais para se sistematizar a unidade em torno dos símbolos que

manifestam a presença do Salvador. Luciana Villas Bôas, ao analisar a figura dos

meninos pregadores utilizados como intérpretes nos sermões jesuíticos, sugere que a

“indianização” da liturgia cristã foi um método fundamentado na “semelhança” para

incitar a conversão por amor147.

“A semelhança he causa de amor”: imerso na concepção tomista de que aos

povos pagãos bastaria pregar para que recebem a fé em Cristo, o jesuíta procurou, ao

longo dos primeiros anos do processo missionário, fazer valer o método de conversão

pela via amorosa148.

A importância das práticas litúrgicas envolvendo a corporalidade no processo

de conversão deve ser entendida por meio da posição central que ocupa o corpo na

estrutura social dos Tupinambá.

145 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, fins de agosto de 1552, p.145. 146 “O sucesso dos jesuítas, quando ocorria, não dependia somente do desenvolvimento de uma tecnologia lingüística para a conversão dos nativos, mas também da descoberta e controle da força de ritos pré-lingüísticos como a cura e os rituais religiosos”. EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 86. 147 VILLAS BÔAS, L., Os meninos pregadores e as missões jesuíticas no Brasil (1549-1555), p. 19. 148 Cf. PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, pp. 47 a 52.

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Estão muito apegados com as coisas sensuais. Muitas vezes me perguntam se Deus

tem cabeça, e corpo, e mulher, e se come, e de que se veste, e outras coisas

semelhantes. 149

Nota-se, nesse trecho, que a necessidade dos ameríndios em compreender o

Deus cristão passa primordialmente por questões referentes à corporalidade: ele tem

cabeça, corpo, o que come? De fato, como nos sugerem os antropólogos Seeger, Da

Matta e Viveiros de Castro, o corpo “afirmado ou negado, pintado ou perfurado,

resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as

sociedades indígenas têm da natureza do ser humano”150.

O corpo se destaca como o locus privilegiado da ação missionária justamente

por ocupar posição central na estrutura social dos Tupinambá. Se por um lado, nele se

inscrevem os “maus costumes” – nudez, poligamia e antropofagia –, por outro, é

através da adaptação da liturgia cristã a certos rituais ameríndios envolvendo a

corporalidade, que esses “maus costumes” serão extirpados. Assim, de acordo com

sua experiência com os Tupinambá, Nóbrega foi flexibilizando certos dogmas da

Igreja que, como salientou, “não são contra nossa fee catholica, nem são ritos

dedicados a ídolos”, tendo em vista o desejo de transformar o ameríndio em cristão. É

importante retomar o que foi dito anteriormente sobre a dimensão pragmática do

jesuíta para melhor se compreender o ato de “abraçar-se aos seus costumes”.

A observação do ameríndio sempre atendeu à finalidade prática de convertê-

lo. Em carta escrita em 1541 aos primeiros jesuítas que partiram para a Inglaterra,

Inácio de Loyola expôs o método de conversão, em que o missionário deveria

“moldar-se” ao outro para entrar em sua consciência e, do interior, “tirar-lhe” os seus

maus costumes para encaminhá-lo à salvação em Cristo. Como diz Inácio: “o inimigo

entra pela porta do outro e sai pela sua”151. É justamente o que faz Nóbrega ao se

referir ao seu processo missionário, como nos diz no trecho citado acima: “isto pera

149 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Informação das Terras do Brasil, Aos Padres e Irmãos de Coimbra, Baía, agosto de 1549, p.66. 150 SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras, p. 4. 151 Ao analisar o olhar do missionário, a autora destaca sua dimensão pragmática, citando o trecho da referida carta de Inácio de Loyola. CASTELNAU-L’ESTOILE, C., Le voyageur et le missionaire, analyse de deux regards sur les Indiens du Brésil. p. 41.

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os atrahir a deixarem os outros custumes essentiais e, permitindo-lhes e aprovando-

lhes estes, trabalhar por lhe tirar os outros”.

Esse método foi duramente condenado pelo Bispo Sardinha, que chegara a

Salvador no ano de 1551. Ele as considerou “cousa nova e que na Ygreja de Deus se

nom acustuma”152. Em relação à nudez, por exemplo, Nóbrega aceitava que os

Tupinambá estivessem nus durante a missa, o que desagradou ao Bispo.

Como nos averemos acerqua dos gentios que vem nus a pedirem ho bautismo e não

tem camisas nem ropas pera se vestirem: se somente por rezão de andarem nus tendo

o mais aparelhado lhe negaremos o bautismo e a entrada na Igreja à missa e doctrina,

porque parece que andar nu hé contra lei de natura e quem a não guarda pecca

mortalmente, e o tal não hé capaz de receber sacramento; e por outra parte eu não sei

quando tanto gentio se poderá vestir, pois tantos mil annos andou sempre nu, nam

negando ser boom persuadir-lhes e pregar-lhes que se vistão e metê-los nisso quanto

pode ser153.

O trecho acima evidencia o pragmatismo jesuítico. Ao missionário não há

outra opção a não ser a conversão do pagão, da qual depende sua própria salvação.

Viu-se que Nóbrega tornou a nudez ameríndia em “papel branco”, metáfora que

alimenta o sentido missionário. A nudez como símbolo do pecado da carne anulou-se

diante da expectativa futura do jesuíta em ver o gentio tornar-se próximo. “Parece que

andar nu hé contra a lei da natura”, diz Nóbrega. O verbo “parecer” evidencia a

relativização do pecado da nudez, que não impede que o ameríndio seja convertido

nos “bons costumes” de freqüentar as missas e participar da comunidade da Igreja.

Mais importante do que apenas vesti-lo, é a garantia de que “tenham o mais

aparelhado”. Contrariamente aos cristãos da terra – que apesar de andarem vestidos,

mostravam-se maiores pecadores por ter “muytas mulheres” e não quererem assistir a

missa nem se confessar – o Tupinambá mostrava-se desejoso em “receber o

sacramento”.

152 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, fins de julho de 1552, p.131. 153 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, fins de agosto de 1552, pp.145,146.

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Conversão pela sujeição: o “bestial” e a guerra justa

Entretanto, no decorrer da experiência missionária, Nóbrega se depara com

muitas dificuldades que os primeiros olhares não previam. Em carta de 1551, apesar

de ainda prevalecer a imagem do indígena como “papel branco” – ou seja, como

representação do pagão que ignora a fé e que por isso deve ser convertido por meio

da pregação amorosa – percebe-se o surgimento de uma nova problemática no

processo missionário: a “inconstância” desse povo.

Ho converter todo este gentio hé mui facil cousa, mas ho sustentá-lo em boons

costumes nam pode ser senam com muitos obreiros, porque em cousa nenhuma crem,

e estão papel branco para nelles escrever hà vontade, se com exemplo e continua

conversação os sustentarem154.

Apesar da adaptação de Nóbrega aos costumes indígenas ter parecido exitosa,

em um primeiro momento, a mímese gestual dos ameríndios não os fazia apartar-se

de seus “maus costumes”. A dificuldade maior, segundo Nóbrega, seria justamente

“sustentá-los em bons costumes”.

E vale pouco ir-lhes pregar e voltar para casa. Porque ainda que dêem algum crédito,

não é tanto que baste a os desarraigar dos seus velhos costumes; e crêem-nos como

crêem aos seus feiticeiros, e que às vezes lhes mentem e às vezes acertam em dizer a

verdade. E por isso, não sendo para viver entre eles, não se pode fazer fundamento de

muito fruto155.

Em 1553, Nóbrega chega a São Vicente. O jesuíta havia deixado a provínica

da Bahia, desiludido não só com a “inconstância” dos ameríndios, mas também com

as condenações do Bispo em relação ao seu método evangelizador. Nota-se o desejo

do jesuíta de “viver entre eles” já que o método de “lhes pregar e voltar para casa”

154 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, A D. João III, Olinda, 14 de setembro de 1551, p.100. 155 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, São Vicente, 10 de março de 1553, p.157.

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mostrou-se insuficiente para os “desarraigar dos seus velhos costumes”. Nóbrega

decide mudar-se com três tribos para o sertão de São Vicente, na vila de Piratininga,

futura cidade de São Paulo. A experiência de viver entre os índios de forma contínua

determinou um controle moral mais rigoroso sobre os seus “maus costumes”.

O sucesso de Piratininga estimulou o então desiludido Nóbrega a repensar o

processo de conversão do “gentio”. Ele sistematizou uma justificação teológica e

política para seu novo método no Diálogo sobre a conversão do gentio, no qual fica

evidente a inversão da representação do Tupinambá, que deixa de ser o “papel

branco”, onde se podia escrever à vontade por meio da pregação amorosa, para

tornar-se “bestial”. Há uma seqüência descritiva marcada pela animalização do

ameríndio.

vemos que são cãis em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira

de se tratarem (...) nem sei se hé bem chamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos,

tomados nos ninhos, se crião e amanção e ensinão, e estes, mais esquecidos da

criação que os brutos animais, e mais ingratos que os filhos das biboras que comem

sua mãis, nenhum respecto tem ao amor e criação que nelles se faz156.

Os Tupinambá seriam “mais esquecidos de criação que os brutos animais”,

como corvos e víboras. Reduzidos ao auge da ausência de “criação”, pois comeriam

as próprias mães, os ameríndios tornaram-se o símbolo máximo da selvageria. A

explicação bíblica da origem bestial estaria, assim como em Léry, na figura de Cam.

(...) lhes veio por maldição de seus avoz, porque estes creemos serem descendentes

de Chaam filho de Noé, que descobrio as vergonhas de seu pai bebado, e em

maldição, e por isso, fiquarão nus e tem outras mais miserias157.

A nudez agora é associada à maldição, ao crime. Contrariamente à imagem

anterior do papel branco, que associava o gentio à inocência do paganismo, a nudez

se tornou o símbolo do pecado e da bestialidade. 156 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, Baía 1556-1557, pp. 221-222. 157 Idem, p. 241.

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O Diálogo sobre a conversão do gentio põe em cena dois personagens que

retratam os principais agentes intermediários nos contatos entre jesuítas e ameríndios:

um intérprete e um ferreiro. Inspirado no modelo platônico de demonstrar o ajuste de

posições distintas para a criação de uma “cidade ideal”158, o diálogo se dá entre

personagens dotados de um valor alegórico. O intérprete simboliza o modelo da

pregação, fundamentado na conversão por amor. O ferreiro, por outro lado, remete à

imagem do martelo e da forja, pelos quais, com a ação enérgica da martelada sobre o

ferro aquecido, se produz a forma fixa e desejada do metal. É possível prever o

vencedor desse diálogo. O ferreiro atende à necessidade de resolver o problema da

“inconstância” dos Tupinambá. Sua ação supõe não só a eficácia constante da

martelada, mas também o aquecimento da forja, que remete à imagem do fogo

apostólico do Espírito Santo, vivido pelo amor da ação caridosa. Não mais a

superfície lisa e receptiva do papel branco e sim a dureza áspera e bruta da pedra: o

corpo ameríndio necessita agora de um outro agente para convertê-lo.

Gonçalo Alvarez: Por demais he trabalhar com estes; são tão bestiais, que não lhes

entra no coração cousa de Deus; estão tão incarniçados em matar e comer, que

nenhuma outra bem-aventurança sabem desejar; pregar a estes, he pregar em desertos

ha pedra.

Matheus Nugueira: Se tiveram rei, poderão-se converter, ou se adoraram alguma

cousa; mas, como nam sabem que cousa he crer nem adorar, não podem entender ha

pregação do Evangelho, pois ella se funda em fazer crer e adorar a hum soo Deus, e a

esse só servir; e como este gentio nam adora nada, nem cree nada, todo o que lhe

dizeis se fiqua nada159.

Segundo Matheus Nugueira, o ferreiro, a explicação para a condição brutal do

Tupinambá estaria na sua criação, marcada pela ausência de soberano. Por não ter rei

a quem se sujeite, o ameríndio seria incapaz de ter fé. Como analisa Carneiro da

Cunha, segue-se uma seqüência lógica para esse raciocínio: “não tinham fé porque

não tinham lei, não tinham lei porque não tinham rei. A verdadeira crença supõe a 158 PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 98. 159 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, Baía 1556-1557, p. 219.

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submissão regular à regra, e esta supõe o exercício da coerção por um soberano”160. O

Diálogo sobre a Conversão do Gentio procurou justificar teologicamente a presença

da autoridade secular, ou seja, da ação coerciva dos colonos, caso os nativos se

recusassem em obedecer à Lei cristã. Em suma, o Diálogo justifica a necessidade de

mover guerra justa contra os índios que não aceitassem sujeitar-se às normas da

Igreja.

É importante considerar o fato de que, em meados da década de cinqüenta,

quando o Diálogo foi escrito, os ameríndios já se mostravam bastante resistentes à

colonização do Governo-Geral, fundamentada na monocultura escravista. Várias

revoltas eclodiram na Bahia e em Pernambuco. Em 1553, permitiu-se a escravização

dos índios e a tomada de suas terras, segundo as cláusulas estipuladas pelo regimento

de Tomé de Souza: é o início da guerra justa161.

O conceito de guerra justa foi muito debatido ao longo do século XVI,

principalmente no que se refere à sua aplicação aos povos que não teriam

conhecimento prévio da fé e que não poderiam ser tratados como infiéis, o que

parecia ser o caso do “gentio” do Brasil. Entretanto, se o “gentio” insistisse em

recusar a conversão ao cristianismo, seria reconhecida uma causa legítima para a

realização da guerra justa162.

A “inconstância” do Tupinambá e sua resistência à pregação certamente

estimularam a forma diversa de Nóbrega representá-lo. A condição “bestial” justifica

a presença do ferreiro, ou seja, a necessidade de se ter a força de uma autoridade

secular capaz de mover guerra justa contra o ameríndio caso esse não queira sujeitar-

se à Lei cristã.

E se disserem que os cristãos os salteavam e tratavam mal, alguns o fizeram assim e

outros pagariam o dano que estes fizeram; porém há outros a quem os cristãos nunca

fizeram mal, e os gentios os tomaram e comeram e fizeram despovoar muitos lugares

160 VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 38. 161 SLEMIAN, A. et al. Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831), p. 50. 162 “As causas reconhecidas como legítimas para uma guerra justa eram a recusa à conversão ou o impedimento da propagação da Fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados portugueses (especialmente a violência contra pregadores, ligada à primeira causa) e a quebra de pactos celebrados”. PERRONE-MOISÉS, B., Verdadeiros contrários – guerras contra gentio no Brasil colonial, p. 26.

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e fazendas grossas. E são tão cruéis e bestiais, que assim matam aos que nunca lhes

fizeram mal, clérigos, frades, mulheres de tal parecer, que os brutos animais se

contentariam delas e lhes não fariam mal. Mas são estes tão carniceiros de corpos

humanos, que sem excepção de pessoas, a todos matam e comem, e nenhum

benefício os inclina nem abstém de seus maus costumes, antes parece e se vê por

experiência, que se ensoberbecem e fazem piores, com afagos e bom tratamento163.

Se em um primeiro momento os colonos dificultavam a conversão do “gentio”

devido aos seus “maus exemplos”, posteriormente, eles passam a atuar ao lado do

missionário, como mobilizadores da guerra justa, “persuadindo” pelo medo, os

ameríndios, agora “bestiais”, a se sujeitarem aos dogmas do Cristianismo. A

experiência levou Nóbrega a inverter a representação do ameríndio: antes dócil, ele

agora é “carniceiro de corpo humano” – o que justifica o uso da violência física como

medida exemplar para vertê-los nos “bons costumes”, pois “com afagos e bom

tratamento” eles só se “fazem piores”.

4.2 “Filho de Cam” ou “nobre selvagem”? O calvinista e a nudez do Tupinambá

O duplo selvagem Vinte anos após sua experiência nos trópicos, Léry produz uma memória

idílica do Novo Mundo e de seus habitantes. A exaltação da pureza tupinambá se

constrói a partir de um corte significativo no tempo e no espaço: o intervalo de vinte

anos e a distância oceânica fundamentam uma memória a posteriori, que se define a

partir do contexto de crise religiosa no qual o pastor estava inserido. A Histoire d’un

163 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres, Baía, 8 de maio de 1558, p. 279.

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voyage fait en la terre du Brésil é, portanto, uma memória que sofre o “handicap do a

posteriori”164. Nesse sentido, a exaltação do Novo Mundo se constrói como inversão

de um Velho Mundo em crise: a pureza do Tupinambá funciona como condenação

moral do catolicismo.

Como sugere Hartog, a inversão é “uma maneira de transcrever a alteridade,

tornando-a fácil de apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa,

embora invertida)”165. Viu-se que, na narrativa de Léry, a linha equatorial funciona

como o corte que marca a inversão entre o Velho e o Novo Mundo. Das tempestades

à bonança, da poluição à pureza, do Apocalipse ao Éden – o Novo Mundo e seus

habitantes são identificados enquanto o extremo oposto do Velho.

No entanto, essa representação idílica do Tupinambá não é absoluta. Após

entoar o Salmo 104 para exaltar o Criador de todo esse espetáculo da natureza

tropical, Léry faz a seguinte constatação:

Felizes seriam os povos dessa terra se conhecessem o Criador de todas essas coisas.

Como, porém isso não acontece, vou tratar das matérias que nos provarão quão longe

estão eles ainda disso166.

Ao longo de sete capítulos, Léry descreve, de forma um tanto idealizada, a

fauna e a flora do Brasil. O Tupinambá, que “haure na fonte da Juventude”, está

inserido nessa geografia mítica, participando do espetáculo da natureza. Após

vivenciar a plenitude da Revelação divina e exaltar a existência do Criador, Léry

opera um deslocamento em seu texto. Num corte abrupto, inverte-se a condição do

selvagem que, ao invés de ser visto em sua pureza natural, passa a ser descrito a partir

de sua “distância” em relação ao Criador.

A citação acima é o desfecho desse conjunto de capítulos que trataram do

mundo natural, pelo qual o Criador se revelou ao pastor. A exclamação do Salmo 104

164 Jean-Jacques Becker, ao estudar os problemas suscitados pela história oral, procura compreender a memória a partir de “lembranças transformadas em função dos acontecimentos posteriores, lembranças sobrepostas, lembranças transformadas simplesmente para justificar posições e atitudes posteriores.” BECKER, J.J., O handicap a posteriori, p. 28. 165 HARTOG, F. O espelho de Heródoto, ensaio sobre a representação do outro, p. 231. 166 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 181.

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atesta que esse espetáculo só poderia ser visto por quem conhecesse as palavras do

Salvador, conforme imortalizadas na Escritura Sagrada.

É nesse sentido que se deve compreender a condenação do Tupinambá por

Léry. Fiel à Bíblia como instrumento imprescindível para se alcançar a salvação, o

calvinista é categórico em relação à eleição dos selvagens: por não conhecerem os

sinais da escrita, esses povos estariam condenados a não conhecer o “Criador de todas

essas coisas”.

Há, portanto, uma disjunção em sua narrativa que marca a inversão na

representação do selvagem. Após receber a Revelação divina em sua caminhada

solitária pelos jardins do Novo Mundo, o calvinista se volta para o Tupinambá e

conclui: distante da Bíblia por ignorar por completo a escrita, seria um povo “maldito

e desamparado de Deus”.

No que concerne à beatitude e felicidade eterna, na qual acreditamos e esperamos em

Cristo, não obstante os lampejos e sentimentos que demonstram ter, são os selvagens

um povo maldito e desamparado de Deus. Apesar disso, no que se refere à vida

terrena, enquanto a maioria dos nossos, muito ocupados com os bens desse mundo,

só fazem definhar-se, eles ao contrário, desapegados das coisas mundanas, vivem

alegremente e sem preocupações. Parece-me mais verossímil que descendam de Cam

(...) tanto é que vendo-os assim vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus,

minha fé (a qual, Graças a Deus, sustenta-se alhures) não foi abalada. (...) Há grande

diferença entre as pessoas iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os

indivíduos abandonados à cegueira dos seus sentidos. Eu estou muito mais

confirmado na garantia e na verdade de Deus167.

Apesar de cercados pelo Criador, os Tupinambá se encontrariam

“abandonados à cegueira de seus sentidos”, ou seja, presos aos significantes. Com

isso, eles seriam incapazes de ler o significado que se esconde entre as árvores e os

pássaros do Novo Mundo, que é a presença espiritual do Salvador. Quando vistos a

partir de suas crenças e costumes, os ameríndios seriam provavelmente descendentes

de Cam, o filho maldito de Noé. Condenado a andar nu e distante de Deus, Cam teria

167 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p. 163. (tradução minha)

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se instalado nas terras do Novo Mundo, onde se espalharam seus descendentes: a

“raça corrompida de Adão”168.

A incapacidade de ler os significados do Criador fez com que esses povos

fossem “vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus”. Esse vazio da nudez

não se reduz apenas à ausência de roupas, simboliza também a ausência da escrita ou,

em termos gerais, a ausência de significado. Presos aos significantes, os povos

amaldiçoados por Noé atestam, de forma inversa, a Graça concedida por Deus aos

povos “iluminados pelo Espírito Santo”, ou seja, aos povos que conhecem a escrita. A

segurança da fé calvinista sustenta-se nesse instrumento que torna inabalável a

certeza da Graça de Deus. A partir da descrição desse selvagem, cuja nudez é

associada à ausência da escrita, o calvinista se vê “confirmado na garantia e na

verdade de Deus”.

Há, portanto, um duplo movimento de inversão. Se, por um lado, a exaltação

do Tupinambá funciona como condenação do católico, por outro, a condenação do

Tupinambá parece confirmar a eleição do calvinista. Viu-se que a imagem da pureza

do Tupinambá se construiu como modelo de crítica intra-cultural: ela se apresentava

como o inverso da poluição católica. A condenação dos Tupinambá ao esquecimento

de Deus, fundamentada na ausência da escrita entre eles, funciona também como a

garantia de um dos “dons singulares”169 que o calvinista recebeu de Deus. Fiel à

palavra divina que se mantém viva na Bíblia, Léry parece realizar, através da

descrição desses povos sem escrita, a “confirmação a contrario de sua própria

redenção”170.

Nota-se, portanto, a representação ambígua do Tupinambá, que se alterna

entre dois pólos extremos e complementares: ora o “filho de Cam”, condenado a

andar nu e sem escrita, ou seja, distante das palavras de Deus; ora aquele que se

aproxima da pureza natural, pois não se preocupa com as “coisas mundanas” e vive

“alegremente e sem preocupações”, ao contrário dos católicos, que, “muito ocupados

com os bens desse mundo, só fazem definhar-se”.

168 Idem, Ibidem. (tradução minha). 169 LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p. 152 (tradução minha). 170 LESTRINGANT, F. , L’expérience huguenote au nouveau monde (XVIè siècle), p. 85.

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A ambigüidade na representação do Tupinambá existe por conta dessa

necessidade do protestante de afirmar a eleição de sua comunidade diante de um

mundo em crise religiosa. Léry se utiliza do Tupinambá como um espelho de sua

redenção, um espelho que se volta contra o católico. É o que sugere Lestringant, ao

analisar a construção do selvagem em Léry.

(...) o Selvagem só aparece enquanto objeto inscrito no interior de uma composição

de conjunto. Espelho do ocidental depravado e idólatra – o católico romano –, ele

representa esse pólo, ao mesmo tempo repulsivo e fascinante, da humanidade

pecadora. Dessa forma, a diferença expressa pelo Americano se reduz, para o “leitor

cristão” reformado, à simetria de uma contra-prova171.

Exaltado ou condenado, não importa, o Tupinambá é sempre o contraponto de

uma concepção única: a edificação da fé protestante, a partir de uma relação

triangular entre o calvinista, o Tupinambá e o católico. Aparentemente, constitui-se

nessa representação do outro, aquilo que Hartog denominou de “regra do terceiro

excluído”172. Apesar de a descrição do outro funcionar a partir de três termos – o

protestante, o Tupinambá e o católico –, a narrativa termina por constituir-se numa

relação binária, em que o terceiro termo é excluído. É o que acontece com a exaltação

ou detração do selvagem, que funciona como contraprova de um contexto definido

pelas guerras de religião. Configura-se uma dupla representação do selvagem: Léry

condena, de um lado, a luxúria católica (o inverso da simplicidade Tupinambá/

protestante) e de outro exalta o “privilégio” da escrita, que o aproxima da Graça

divina (o inverso da oralidade Tupinambá).

Essa dupla inversão a partir da representação do selvagem tem como corolário

a confirmação da vocação religiosa do sapateiro que se tornará pastor protestante. É

importante notar, no entanto, que essa representação ambivalente do ameríndio, pela

qual Léry constrói o mito de sua eleição pessoal, parece construir-se mediante a

polarização entre a escrita do calvinista e a nudez do corpo tupinambá.

171 LESTRINGANT, F. , Calvinistes et cannibales – les écrits protestants sur le Brésil français (1555-1560), p. 85 (tradução minha). 172 HARTOG, F., O espelho de Heródoto, ensaio sobre a representação do outro, p. 271.

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Papel branco e jenipapo

Tanto os homens como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre

materno mas para parecer mais garridos tinham o corpo todo pintado e manchado de

preto173.

A citação acima é a descrição do primeiro encontro do narrador com os

selvagens. A ambigüidade que se coloca nessa primeira visão do corpo ameríndio diz

respeito à polarização entre um corpo que está aparentemente “em seu natural” e

outro já coberto de significados. Pellegrin, ao analisar as descrições da nudez

ameríndia feita pelos primeiros cronistas que estiveram no Novo Mundo, afirma que a

conjunção “mas” aparece com freqüência, anulando a representação idílica anunciada

anteriormente174.

Por um lado Léry, parece ignorar os múltiplos sinais expostos no corpo

ameríndio, reduzindo-o ao estado natural de seu nascimento, ou seja, tornando-o uma

espécie de papel branco. Mas, por outro, há sinais bem marcados pela tinta preta,

sinais que, curiosamente, se assemelham às “calças de um padre”, como se vê na

citação abaixo175.

Além disso, os nossos brasileiros pintam muitas vezes o corpo com desenhos de

diversas cores e escurecem tanto as coxas e pernas com o suco do jenipapo que ao vê-

los de longe pode-se imaginar estarem vestidos com calças de padre. Essa tintura

preta do fruto do jenipapo imprime-se de tal maneira na carne que, embora os

silvícolas se metam na água e se lavem amiudadamente, dura de dez a doze dias176.

Duas perguntas se colocam: que nudez é essa que se apresenta em um mesmo

corpo de forma tão distinta? Ou, ainda, que “tintura preta” é essa que “imprime-se de

tal maneira na carne” do Tupinambá?

173 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 60 (grifo meu). 174 PELLEGRIN, N., Vêtements de peau(x) et de plumes: la nudité des indiens, p. 511. 175 Essa não é a única vez que Léry compara a aparência dos ameríndios à dos padres, como se vê em outra descrição, na qual o cabelo dos Tupinambá são “à maneira de coroa de frade”. LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 60. 176 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 114.

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O problema posto por Léry em relação à nudez dos Tupinambá parece

relacionar-se diretamente à existência da escrita. Esvaziada de significados pelo

narrador, é essa nudez que, em nome da moral calvinista, condena o catolicismo. É

altamente significativo o fato de Léry comparar o jenipapo desenhado sobre a pele

ameríndia às calças de um padre. A tintura preta parece muito mais próxima da

escrita de um pastor calvinista que denuncia a vaidade católica do que de um pré-

antropólogo que descreve as marcas do jenipapo sobre a pele ameríndia. Nesse

momento, a nudez do Tupinambá parece tornar-se a alegoria do papel branco em que

são impressos os sinais da escrita do próprio pastor.

Há um jogo discursivo criado pelo narrador a partir dessa polaridade entre sua

escrita protestante e o corpo ameríndio. A semiologia calvinista, que distingue o

significado e o significante no símbolo, se faz presente na descrição da nudez

ameríndia. Entre a carne bruta, onde afloram os pecados do corpo, e a pele lisa, na

qual se desenham os sinais de tinta preta, há a escrita de um calvinista que busca

edificar, a partir do outro, os sinais de sua própria eleição. O tratamento retórico do

signo faz com que o calvinista ora reduza o corpo tupinambá ao extremo significante

da carne (nudez brutal), ora o estenda até o extremo significado de seu discurso,

esvaziando completamente a materialidade desse corpo177.

Esse tratamento retórico do signo pode ser visto com mais clareza a partir da

descrição que se faz das mulheres Tupinambá. A nudez feminina é, por um lado,

esvaziada de significados: as mulheres “arrancam totalmente os pelos, inclusive

pestanas e sobrancelhas”, e, além disso, “não queriam nada sobre o corpo”178.

Despossuídas de qualquer signo, reduzidas ao “grau zero da nudez”179, elas se tornam

a página em branco da narrativa exemplar do calvinista. Mediante essa operação de

despossessão do outro, define-se o significado moral.

Antes porém de encerrar este capítulo, quero responder aos que dizem que a

convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à

lascívia e à luxúria. Mas direi que, em que pese às opiniões em contrário, acerca de

177 LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 107. 178 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 118. 179 PELLEGRIN, N., Vêtements de peau(x) et de plumes: la nudité des indiens, p. 515.

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concupiscência provocada pela presença de mulheres nuas, a nudez grosseira das

mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. Os atavios,

arrebiques, postiços, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas, sobre-saias e

outras bagatelas com que as mulheres de cá se enfeitam e de que jamais se fartam,

são causas de males incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias,

as quais, entretanto, nada devem às outras quanto à formosura.(...) o que disse á

apenas para mostrar que não merecemos louvor por condená-los austeramente, só

porque sem pudor andam desnudos, pois os excedemos no vício oposto, no da

superfluidade de vestuário. Praza a Deus que cada um de nós se vista modestamente,

mais por decência e honestidade do que por vanglória e mundanismo180.

Em oposição à nudez pura do Tupinambá está a condenação da “superfluidade

do vestuário” católico. Confirma-se novamente a inversão: a nudez Tupinambá passa

a significar o ideal de simplicidade calvinista e funciona como condenação dos

“excessos” católicos. Na verdade, esse corpo esvaziado ao “grau zero da nudez”, se

tornou coberto pela tinta preta que não é mais do jenipapo – e sim da própria escrita

do pastor calvinista. A nudez se torna a alegoria da página em branco onde a moral

calvinista será edificada: “que cada um se vista modestamente”.

Por outro lado, ao invés de ser associada à pureza original, a nudez reflete a

condição pecadora desses povos, que não demonstram nenhum sinal de vergonha ou

timidez diante dela.

Não é de meu intento, entretanto, aprovar a nudez, contrariamente ao que diz a Santa

Escritura a respeito de Adão e Eva que, após o pecado, reconhecendo estarem nus se

envergonharam; sou contra os heréticos que a querem introduzir entre nós contra a

Lei natural, embora deva confessar que, neste ponto, não a observam os selvagens

americanos181.

Nesse momento, a ausência de vestes associa-se ao pecado original exposto na

narrativa bíblica do Gênese, quando Adão e Eva se vestiram em resposta ao pudor

diante da desobediência ao mandato divino. A vestimenta é, pelo olhar cristão, o sinal

180 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 121. 181 LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p. 94. (tradução minha).

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da vergonha diante do pecado original. No entanto, os ameríndios parecem não

observar a “Lei natural”, pois andam sem pudores e com suas partes íntimas à mostra.

Se, anteriormente, a nudez Tupinambá não incitava à “lascívia e luxúria”, nesse

momento, ela é a demonstração clara da condição pecadora desses povos.

Coisa não menos estranha e difícil de crer para os que não os viram, é que andam

todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao saírem do ventre materno. Não só

não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão o menor sinal de pudor ou

vergonha. (...) E para nada omitir, se possível, nesta matéria, direi que existem nesse

país certas plantas cujas folhas da largura de quase dois dedos (...) as quais os velhos

usam envolver o membro viril atando-as com fios de algodão (...) Embora pareça à

primeira vista que façam por lhes restar ainda algum resquício de pudor natural,

suponho que seja apenas para ocultar alguma enfermidade que na velhice lhes ataca

tal órgão182.

A nudez é novamente reduzida ao seu significante: andam todos “nus como ao

saírem do ventre”. No entanto, tal redução, contrariamente à alegoria do papel

branco, diz respeito à condenação dos pecados da carne. Nem mesmo a folha que

usam os velhos para cobrir suas partes íntimas se aproxima dos sinais da presença

divina, pois é reduzida a uma necessidade orgânica de “ocultar alguma enfermidade”.

Não mais vista pelo viés da simplicidade inocente que condena o excesso de artifício

dos católicos, a nudez é referida a partir dos dogmas das Sagradas Escrituras: os

Tupinambá são destituídos de qualquer “resquício de pudor natural”.

Os apetites do corpo desses povos reduzidos à “cegueira de seus sentidos”

ganham destaque na representação das mulheres, que “tanto se deleitavam com a

nudez” e que, “embora as cubríssemos à força, despiam-se às escondidas ao cair da

noite e passeavam nuas pela ilha, por mero prazer”183. O prazer carnal se torna

explícito. Como lembra Certeau, essas selvagens repetem o fantasma ocidental da

vagina dentata, onde habita a voracidade feminina184. Esse corpo, capaz de engolir

vivo a carne alheia por meio de sua voracidade animalesca, deve ser continuamente 182 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 113. 183 Idem, p. 120. 184 CERTEAU, M., A escrita da história, p. 232.

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anulado pela escrita do genebrino, que procura a todo instante acabar com o substrato

carnal do signo.

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5 A escrita e a salvação

5.1 Nóbrega e a escrita das cartas.

Escrita e ação: vestir o papel branco.

Desde o início da dispersão missionária, Inácio de Loyola percebeu que a

ordem e a unidade da Companhia de Jesus dependiam da troca sistemática de

correspondências185. Ele estabeleceu, nas Constituições, a obrigatoriedade de se

escreverem cartas regularmente, criando um sistema de comunicação interna e de

troca de informações administrativas pelas quais se definiriam as estratégias de ação

dos missionários.

Nesse sentido, é importante destacar que a prática da escrita entre os jesuítas

atende a uma práxis precisa, que é a conversão. Segundo Londoño o registro escrito

foi entendido pelos primeiros jesuítas como expressão de uma “práxis colocada ao

serviço da procura da vontade divina”186. A escrita funciona, portanto, como uma

atitude sempre voltada para uma perspectiva profética de união de todos os povos no

Corpo místico da Igreja, procurando atualizar a exemplaridade dos relatos bíblicos187.

É preciso destacar a dimensão ativa das cartas, em que se opera “a imediatez

da presença da fala do destinador na escrita”188, como sugere Hansen. Nesse sentido,

propõe-se analisar a presença das cartas em sua dimensão prática, voltada para a

atuação missionária no interior da Companhia de Jesus.

185 CASTELNAU L´ESTOILE, C., Les ouvriers d’une vigne stérile: Les jésuites et la conversion des Indiens au Brésil 1580-1620, p.64. 186 LONDOÑO, F., Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI, p. 5. 187 HANSEN, J.A.,O nu e a luz: cartas jesuíticas no Brasil, p. 96. 188 Idem, ibidem.

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É importante destacar a provável influência dos Exercícios Espirituais de

Inácio de Loyola na prática da escrita das cartas. Os Exercícios são um conjunto de

textos que orientam os jesuítas na procura da vontade divina.189 Movimento que

envolve práticas corporais e espirituais, fundamentadas na escritura190, para tirar de si

todas as “afeições desordenadas” e, assim, encontrar a vontade divina.

Assim como passear, caminhar e correr são Exercícios corporais, chamam-se

Exercícios espirituais diversos modos da pessoa se preparar e dispor para tirar de si

todas as afeições desordenadas. E depois de tirá-las, buscar encontrar a vontade

divina na disposição de sua vida para sua salvação191.

O fim único é a salvação em Deus: “O ser humano é criado para louvar e

reverenciar a Deus Nosso Senhor e assim salvar-se”192. As “afeições desordenadas”

são quaisquer aspirações, conscientes ou inconscientes, que levam a uma aversão a

Deus, ou seja, que desviam do fim almejado. Roland Barthes percebe nos Exercícios

um conjunto de atos que se move segundo a “lei da exclusão” 193. Procura-se eliminar

continuamente as “afeições desordenadas”, ou seja, tudo aquilo que leva não a Deus

e, sim, ao diabo. Eliminá-las, primeiramente, pelo exame do pecado a partir de um

sistema de anotações que contabiliza obsessivamente as diversas “afeições

desordenadas”. A primeira semana dos Exercícios se dedica predominantemente à

experiência do pecado. Ela é marcada pelo exame particular e cotidiano, em que se

procura corrigir os pecados que acompanham o exercitante. Esses devem ser anotados

continuamente para que o exercitante perceba, ao comparar o dia atual com o

anterior, seu progresso espiritual.

Percorrer o tempo que passou desde o momento em que se levantou até o tempo do

presente exame, hora por hora ou período por período; marcar na primeira linha,

tantos pontos quantas vezes caiu no tal pecado ou defeito; (...) comparar o segundo

189 LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, p. 9. 190 BARTHES, R., Sade, Fourier, Loyola, p. 42. 191 LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, p. 10 (grifo meu). 192 Idem, p. 23. 193 BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, p. 51.

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dia com o primeiro, isto é, os dois exames do dia presente com os do dia anterior.

Observar se houve melhora de um dia para o outro194.

Uma anotação compulsória dos pecados para que estes sejam examinados e,

conseqüentemente, extirpados. As cartas parecem seguir um modelo parecido com o

dos Exercícios, no sentido de que é por meio de sua escrita que o missionário procura,

pela sistematização dos pecados ameríndios, examiná-los em seu conjunto para

depois traçar o mapa da conversão. Pecados que para Nóbrega, como vimos, parecem

estar fundamentalmente presentes no corpo do gentio, onde predomina a presença

demoníaca dos “apetites sensuais”.

Mas é muito de espantar ter dado tão boa terra tanto tempo a gente tão inculta (...)

Regem-se por inclinação, a qual semper prona est ad malum, e apetite sensual, gente

absque consilio et sin prudentia195.

Como na primeira semana dos Exercícios, o jesuíta procura marcar

primeiramente os diversos pecados (representados aqui pelos “maus costumes”

indígenas) em uma seqüência de descrições e enumerações, das quais as principais

dizem respeito aos pecados do corpo: poligamia e canibalismo.

Esta é a coisa mais abominável que entre esta gente há. Se matam algum na guerra

trazem-no em pedaços e põem-no ao fumo e depois o comem com a mesma

solenidade e festa, e tudo isto pelo ódio entranhável que têm uns aos outros. E nestas

duas coisas, scilicet, em ter muitas mulheres e matar os seus contrários, consiste toda

a sua honra e esta é a sua felicidade e desejo, o qual tudo herdaram do primeiro e

segundo homem e aprenderam daquele qui ab initio mundi homicida est [ foi

homicida desde o princípio]196.

A poligamia e o canibalismo, que Nóbrega descreve como sendo as maiores

felicidades desse povo, atestam sua condição maldita: tudo herdou e aprendeu 194 LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, pp. 26 e 27. 195 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, Baía, 10 de agosto de 1549, p. 48. 196 Idem, Ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, Baía, 10 de agosto de 1549, p. 48-49.

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daquele que “foi homicida desde o princípio”. Pela escrita, os pecados são

sistematizados e examinados mediante um distanciamento que permite ao

escritor/missionário discernir acerca de sua ação no mundo.

O corpo tupinambá deve ser, para Nóbrega, um campo de atuação onde os

maus costumes deverão ser transmutados pela ação da escrita. Se, por um lado,

existem os maus costumes indígenas, por outro, existem o amor e a caridade

missionária. Para o jesuíta, escrever é atestar a realização do progresso missionário:

do corpo tupinambá enquanto fonte de maus costumes, ao corpo como papel

impresso pelas palavras da salvação.

Escrever é fixar e examinar os sinais demoníacos que engendram os maus

costumes indígenas de modo que, por cima desses, sejam erigidos os verdadeiros

sinais que levam a Cristo salvador. A escrita, que define os limites entre o “bom” e o

“mau”, sistematiza as informações acerca do “outro”, determinando o inimigo,

estabelecendo o que é próximo e o que é distante do horizonte de salvação. Em

agosto de 1549, Nóbrega escreve aos seus irmãos em Coimbra a famosa Informação

das partes do Brasil.

A informação que destas partes do Brasil vos posso dar, Padres e Irmãos caríssimos,

é que tem esta terra mil léguas de costa toda povoada de gente, que anda nua, assim

mulheres como homens, tirando algumas partes mui longe donde estou, onde as

mulheres andam vestidas ao traje de ciganas, com panos de algodão (...) Este é um

gentio melhor que há nesta costa (...) Há outra casta de gentios, que se chamam

Gaimurés, e é gente que habita pelos matos. Nenhuma comunicação têm com os

cristãos, pelo qual se espantam quando nos vêem, e dizem que somos seus irmãos,

porque trazemos barba como eles (a qual não trazem todos os outros, antes se rapam

até as pestanas) e fazem buracos nos beiços e ventas dos narizes, e põem uns ossos

neles, que parecem demónios. E assim alguns, principalmente os feiticeiros, trazem o

rosto cheio deles. Estes gentios são como gigantes197.

197 Idem, Informação das Terras do Brasil, Aos Padres e Irmãos de Coimbra,Baía, agosto de 1549, pp. 61-62.

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Percebe-se que a descrição do gentio segue uma tipologia que ordena as

diferentes “castas” mediante um ponto comum: a nudez. Cria-se uma escala gradativa

da nudez: de um lado, os carijós, que vestem algodão, vistos como um “gentio melhor

que há nesta costa”; de outro, os Gaiumurés, dotados de sinais monstruosos

(“gigantes”), em que a nudez, ressaltada por adereços perfurantes, faz com que se

pareçam “demônios”. Ao mesmo tempo em que nomeia o outro em suas

especificidades, ele afirma o lugar de um próprio que tem um sentido: vestir o outro.

Vestir como intervenção ampla sobre o corpo alheio, no sentido de modificar sua

condição, retirando o conjunto de pecados que o compõe para erigir os sinais do que é

próprio.

Eunícia Fernandes recorre à idéia de estratégia, desenvolvida por Michel de

Certeau, para analisar a epistolografia jesuítica, percebendo a escrita das cartas como

estratégia que demarca um lugar social, um próprio que procura “transformar os

impasses cotidianos em soluções”198. Esse próprio recolhe as amostras do que se vê

(sistema de informações) circunscrevendo os limites, classificando e dividindo o

outro de acordo com a intensidade de seus pecados. Portanto, a escrita é a

sistematização de informações para a fixação do próprio e para a nomeação do

diverso – que deve ser abolido, da mesma forma que os pecados contabilizados nos

Exercícios Espirituais. Mapear o campo inimigo, como em um combate.

Contabilizar, medir o território (“mil léguas de costa”), identificar o que não pode

permanecer: os pecados manifestados no corpo – poligamia, nudez, canibalismo –,

sinais demoníacos que perseguem a imaginação jesuítica.

O registro escrito, coloca-se a serviço de uma práxis: encontrar a vontade

divina para agir da melhor forma no sentido de extirpar as “afeições desordenadas”.

Escrever cartas deve ser entendido, no caso dos jesuítas espalhados pelo mundo,

como ação pragmática que participa do ato de converter. É pela escrita que se procura

“captar o signo da divindade”199 e extirpar do corpo ameríndio a presença do

“inimigo da humana geração”.

198 FERNANDES, E., Fernão Cardim: epistolografia jesuítica e a construção do outro, p.8. 199 BARTHES, R., Sade, Fourrier, Loyola, p. 46.

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(...) espantam-se eles muito de sabermos ler e escrever, do que têm grande inveja e

desejo de aprender, e desejam ser cristãos como nós, e só o impede o trabalho de os

apartar de seus maus costumes, no que agora é todo o nosso estudo200;

O espanto demonstrado diante da escrita parece sustentar, aos olhos de

Nóbrega, a vontade que os ameríndios têm de serem cristãos. Ao perceber o

Tupinambá enquanto corpo ávido em receber as palavras do Salvador, Nóbrega

legitima a famosa metáfora do índio como papel branco, aberto à impressão dos

sinais cristãos: “cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais

que escrever à vontade”. O papel branco (o Tupinambá como objeto da escrita) e

aquele que nele escreve (o missionário como sujeito de ação da escrita), se conjugam

em uma só finalidade: “apartá-los [os índios] de seus maus costumes”, aos quais

Nóbrega diz dedicar nesse momento “todo o nosso estudo”. Esse triângulo – papel

branco, escrita e maus costumes – marca a polarização que se cria entre a escrita

jesuítica e o corpo ameríndio. A escrita é o instrumento que, na busca da vontade

divina, elimina as grossas camadas de “maus costumes” (pecados) presentes no corpo

ameríndio para que esse se torne apto a participar do corpo místico da Igreja.

Como um escultor diante da pedra que, ao buscar a forma perfeita de um

elefante, procura tirar da pedra tudo que não é elefante, Nóbrega quer tirar do

Tupinambá tudo que não é cristão, polindo assim a criatura, no sentido de retirar as

camadas que o impedem de manifestar sua lei natural, e assim receber a Graça

divina. Dar forma é retirar os maus costumes: nomeando, limitando seus gestos,

imprimindo a linguagem de Deus. A forma que sairá esculpida, ou melhor, escrita no

corpo indígena, será a narrativa que unirá o gentio e o jesuíta no espaço da salvação.

Não ter os sinais da escrita, não conhecer Deus. O papel branco é como um

espelho que reconstitui, pela ação do missionário que deve dar luz a este espelho, a

unidade da linguagem divina. O papel branco é a tábua de operação onde serão

eliminadas as afeições desordenadas – o caos americano com sua fauna e flora

desconhecidas, os costumes diversos dos Tupinambá. Os “maus costumes”

ameríndios devem ser abolidos para que se fundamente a semelhança em Deus.

200 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, Baía, 10 de agosto de 1549, p. 48.

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Assim como pregar, assim como ensinar nos colégios o ABC, escrever é re-unir todos

na linguagem divina que foi separada.

Segundo Foucault, o pensamento do século XVI move-se na ordem da

semelhança, ou seja, as relações se estabelecem pela regra da similitude. No caso de

Nóbrega, há uma narrativa primitiva que contém todas as coisas e todos os nomes.

Essa narrativa é a vida de Jesus Cristo. A Companhia de Jesus, como seu nome bem

diz, existe em/para Jesus e se insere nas coisas do mundo tendo em vista a

exemplaridade de Seu sacrifício. O fim último da existência da Companhia é a

Salvação, que deve fundamentar-se na união de todos em Sua pessoa. Como um livro

contém as palavras de seu autor, as coisas e os seres do mundo contêm as palavras de

Deus. O que constitui o signo em seu valor singular é a semelhança. Portanto, as

palavras divinas proferidas pelo missionário peregrino devem encontrar seu eco no

corpo do gentio, tão cheio de signos e objetos heteróclitos (tatuagens dos inimigos

deglutidos, ossos perfurando a pele, etc.) que potencializam sua nudez pecadora. As

coisas devem encontrar seus equivalentes nas palavras.

O missionário procura, portanto, restituir a grande “planície uniforme das

palavras e das coisas” 201 diante da diversidade dos costumes ameríndios. As escolas

de ler e escrever, as pregações e a escrita funcionam como meios de se restituir a

unidade entre a palavra sagrada e o corpo gentio. Nesse mundo regulado pelo

princípio das similitudes, Foucault percebe que a “relação com os textos é de mesma

natureza que a relação com as coisas; aqui e lá são signos que arrolamos”202.

Por meio da escrita aproxima-se o corpo tupinambá (pecador e dessemelhante)

das palavras da semelhança presentes na Bíblia sagrada. Ao criar a metáfora do

indígena como papel branco, Nóbrega explicita o jogo de similitudes que se

estabelece entre o corpo tupinambá e a escrita jesuítica. Jogo em que “a arte jesuítica

de escrever cartas e a prática da conversão revelam-se símiles entre si”203.

No entanto, como visto, com o decorrer da experiência missionária, o ato de

restituir a linguagem original de Deus através da escrita, tornou-se inviável, visto a

“inconstância” dos Tupinambá face a pregação amorosa. Ao manterem seus “maus

201 FOUCAULT, M., Les mots et les choses, p.55. (tradução minha) 202 Idem, p. 48. 203 PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, op. Cit, p. 46.

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costumes”, os corpos que eram “papel branco” se metamorfosearam, aos poucos, em

corpos “bestiais”, e a pena da escrita transformou-se no instrumento de aplicação do

castigo exemplar: o pelourinho.

As cartas edificantes e a união em Cristo

Com as novas e cartas que recebemos nos alegramos muyto no Senhor. Queira elle

sempre augmentar o fervor com que se obra, pois hé por seu amor. Grande cousa hé a

India e o fruito della, e eu em muyto tenho também o que se cá fará, se vós vierdes,

Charissimos. Lá converter-se-ão muytos reynos e quá salvar-se-ão muytas almas, e

das mais perdidas que Deus tem em todas as gerações204.

Ao analisar a presença da escrita em Nóbrega, é interessante perceber também

a recepção das cartas pelo jesuíta. Nóbrega relata, em alguns momentos, o forte

impacto emocional causado pela chegada das cartas do além-mar. A alegria descrita

acima é percebida em outros trechos:

Estando para cerrar esta llegó un barco de San Vicente que truxo cartas de los padres

y Hermanos, con que mucho nos alegramos y despertó my frieza205.

Este ano de 53, véspera de Páscoa, chegou um navio a este S. Vicente, em que

vinham algumas cartas(...). Entre elas vinha uma de V.R., com a qual fui mui

consolado206.

Esses fortes sentimentos (alegria que desperta a frieza, consolo) não devem

ser entendidos na ordem do psicológico e, sim, do espiritual. O consolo, nos

Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, é “quando se produz alguma moção

interior, pela qual a pessoa se inflama no amor de seu Criador e Senhor”207. A alegria

204 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos Padres e Irmão de Coimbra, Pernambuco, 13 de setembro de 1551, p.96 (grifo meu). 205 Idem, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de julho de 1552, p. 127. 206 Idem, Ao P. Luís Gonçalves da Câmara, São Vicente, 15 de junho de 1553, p. 165. 207 LOYOLA, I. , Exercícios Espirituais, p. 120.

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de Nóbrega é manifestação da Graça divina, pois se dá em Deus: “Com as cartas que

recebemos nos alegramos muyto no Senhor. Queira elle sempre augmentar o fervor

com que se obra, pois hé por seu amor.” Tem-se a impressão, nesse trecho, que as

palavras inscritas nas cartas provêm diretamente de Deus. Cartas que consolam, pois

por meio delas se materializam as palavras divinas, que despertam o amor em Deus,

constituindo uma verdadeira combustão de fervor místico que anima o jesuíta em sua

missão apostólica. Nóbrega interliga os povos, diminuindo a distância temporal –

entendida como tempo teleológico da salvação – que separa o gentio dos cristãos.

Como as pegadas de São Tomé, as cartas materializam a Graça divina e consolam o

missionário. Encurtam-se as distâncias entre Índia e Brasil: os dois extremos do

mundo (oriente e ocidente) unem-se na centralidade do amor divino. Trazidas pelas

naus, as cartas atravessam as imensas fronteiras aquáticas e, como cartas-bomba, ao

serem abertas, explodem o fervor amoroso em Jesus Cristo. Índia e Brasil unidos pelo

amor de Deus. Amor que deve ser levado, como missão apostólica, aos gentios nos

extremos do mundo para que estes encontrem a salvação.

As palavras sagradas de Deus estão materialmente contidas nas cartas: o papel

e a tinta são carregados de Graça. É importante compreender as cartas em sua

dimensão material, ou seja, enquanto corporificação da Graça divina. Para os jesuítas,

os sentidos do corpo atuam em simbiose com o espiritual208. As cartas, percebidas

como depositárias das palavras sagradas, aproximam-se, em certo grau, das relíquias,

objetos de devoção e renovação espiritual. É nesse sentido que devem ser entendidas

as cartas de tocar, presentes nas mais diversas camadas sociais ibéricas durante o

século XVI209. Essas cartas tinham função de amuleto, ou seja, acreditava-se que a

Graça divina era transferida ao fiel pelo toque. Perceber a palavra em sua

materialidade, o papel manuscrito enquanto corpo significante, que não precisa

necessariamente ser lido ou percebido em seu significado para transmitir a Graça. As

208 Cf. capítulo desta dissertação ‘Santos e relíquias: os sentidos do corpo’. 209 Cf. BOUZA-ALVAREZ, F., Corre manuscrito: uma história cultural del Siglo de Oro.

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cartas de tocar estiveram presentes no Brasil colonial até pelo menos o século

XVIII210.

As cartas que chegavam eram geralmente lidas em voz alta para todos os

irmãos. Essas sessões costumavam ir madrugada adentro, caracterizando uma ocasião

especial de grande comoção211. A recepção das cartas pelos jesuítas deve ser

entendida como um ritual de renovação espiritual, de reaproximação com o sagrado.

A prática das cartas de tocar, aliada à dimensão de participação corporal dos leitores

(que lêem em voz alta as cartas), são indícios de que a recepção das cartas se dava

como experiência mística, vista a função de atualizar “a missão apostólica e a palavra

de Deus”212. Atualização em que o corpo participa ativamente da palavra escrita. A

leitura em voz alta sugere a presença vocal e gestual do leitor e, portanto, a intensa

participação dos sentidos corporais no texto escrito. Procura-se, com isso, ressaltar

que a recepção das cartas pelos jesuítas transcende a simples leitura conteudista,

silenciosa e individual. Ela está inserida numa dinâmica corporal e coletiva, em que o

corpo participa ativamente do texto enquanto materialidade. Percepção sensorial do

texto213.

A relação ritualística que se estabelece entre as cartas e os jesuítas – relação

que supõe uma troca direta e intensa entre o corpo do leitor e a página escrita –

reforça a dimensão mística e devocional da correspondência jesuítica. Dimensão que,

ao atualizar as palavras sagradas de Deus, solidifica o sentimento de união desses

operários do Senhor espalhados pelos extremos do mundo. A argamassa que os

mantêm em união com o Corpo de Cristo é o amor divino vivenciado materialmente

não só na recepção das cartas, mas também no ato da escrita destas. A escrita

edificante, que atualiza as palavras da salvação, tornando todos membros uns dos

outros em um só corpo: Jesus Cristo.

210 Nesse caso, as cartas não eram aplicadas no sentido transcendente da Graça divina, como é o caso dos jesuítas, e sim da feitiçaria amorosa. Cf. SOUZA, L.M. O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 228 a 230. 211 EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 49. 212 PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 28. 213 Em seu livro, Paul Zumthor situa a importância fundamental da voz nos textos medievais, caracterizando o aspecto corporal desses textos, que existiam enquanto objetos de percepção sensorial. ZUMTHOR, P., La lettre et la voix, p. 21.

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A unidade é o princípio e o fim da atividade missionária jesuítica. A

percepção teleológica cristã de que a humanidade é uma unidade que foi

desconectada e que deve ser religada antes do fim dos tempos, domina o sentido

missionário jesuítico. A reunião de todos em Cristo é perseguida continuamente.

Nesse sentido, a escrita das cartas edificantes tornou-se o principal instrumento de

união pois nelas refletia-se o amor de Deus, constitui-se a união dos irmãos e se

reforça a identidade do grupo214. Os jesuítas buscavam na escrita das cartas a

materialização da palavra de Deus, capaz de reunir todos os jesuítas no estado de

Graça atemporal da salvação215.

Porque me quero consolar screvendo-vos, charissimos Irmãos, screvo esta e não por

ter novas que vos escrever, porque vossos Irmãos que cá estão tem esse cuidado. De

cá vos estou contemplando e pollos cubiculos visitando e com ho coração amando, e

somente em os ceos vos desejo ver e lá vos aguardar216.

O espírito de unidade jesuítico se traduz fundamentalmente como “êxtase da

participação na plenitude de uma vida espiritual”217. A escrita atravessa longas

distâncias no espaço. De seu cubículo fechado, isolado entre natureza e povo

estranhos, Nóbrega consola-se através da escrita, vislumbrando a união com seus

irmãos no Céu – espaço da salvação. A escrita das cartas é fundamental para acender

a paixão do jesuíta, isolado em um espaço ausente dos sinais divinos.

Obrigou-me ho amor que em o Senhor Nosso vos tenho a escrever estas regras a

todos, já que com cada hum particularmente não posso comprir: porque como a todos

eu tenho escriptos em meu coração com o sangue do Novo Testamento, que ho

cordeiro, pouquos dias há crucificado, derramou por toda Sidade de Jerusalém com

grande e igual amor por todo o mundo, assi tão bem me pareceu bem, com todos

214 CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p. 66. 215 FERNANDES, E., A epistolografia jesuítica e a construção do outro, p.10. 216 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco, 13 de setembro de 1551, p. 91. 217 PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 28.

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juntamente me alegrar escrevendo a todos, pois ho amor hé todo hum e a todos

igual218.

“O amor que em o Senhor vos tenho”, a reunião de todos em Cristo realizada

pela escrita. Como se as letras fossem linhas movidas pelo amor de Deus que

costurassem todos em um só. Nóbrega reúne todos em seu coração, órgão que

simboliza o amor, pela presença unânime da letra: seja pelo Novo Testamento, seja

pela sua própria escrita. O sangue de Cristo sacrificado, contido no Novo Testamento,

é atualizado pela escrita de Nóbrega. Agente intermediário entre dois mundos

(católico e não-católico), o coração de Nóbrega deve erigir o amor de Cristo entre os

pagãos.

O sentido de unidade, aqui entendido como um reforço identitário pela

comunhão do amor divino219, é fundamental para o sucesso na conversão do gentio.

Segundo Pécora, mais que um conteúdo, a carta comunica instantaneamente “um

fogo de caridade e amor, que move o leitor e, por meio dele, é capaz de converter o

indígena”220. Como diz o próprio Nóbrega:

se não houver grande fogo de charidade, como será possível encenderem-se os

corações do gentio? 221.

218 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos moradores de Pernambuco, Baía, 5 de junho de 1552, p. 105. 219 CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p. 66. 220 PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, op. cit. p. 38. 221 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos moradores de Pernambuco, Baía, 5 de junho de 1552, p. 109.

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5.2 Léry: a escrita e a eleição O calvinista e os “falsos profetas”

Quanto à escrita, seja santa ou profana, não apenas a desconheciam, mas também, o

que é pior, não possuíam quaisquer caracteres para significar qualquer coisa. No

começo, quando estive em seu país para aprender sua língua, escrevia algumas

sentenças, lendo-as em seguida diante deles, que julgavam ser feitiçaria e diziam uns

aos outros: “Não é maravilhoso que quem ontem não sabia uma palavra de nosso

idioma, em virtude desse papel que possui, e que o faz falar assim, seja agora

entendido por nós?” (...) Por isso digo que quem quiser ampliar esta matéria, encontra

uma boa razão tanto para louvar e exaltar a arte da escrita, quanto para mostrar

quanto as nações que habitam essas três partes do mundo, Europa, Asia e Africa, têm

do que louvar Deus pela superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo dita

América, pois enquanto esses só podem se comunicar verbalmente, nós ao contrário

temos essa vantagem que, sem sair do lugar, por intermédio da escrita e das cartas

que enviamos, podemos declarar nossos segredos a quem quisermos, mesmo estando

eles afastados até o fim do mundo. Assim, além das ciências que aprendemos nos

livros, das quais os selvagens também são completamente destituídos, ainda essa

invenção da escrita que nós temos, da qual eles são inteiramente privados, deve ser

colocada no rol dos dons singulares que os homens da parte de cá receberam de

Deus222.

A citação de Léry expõe claramente uma divisão entre os povos a partir da

presença da escrita. Os Tupinambá são destituídos de todos os “privilégios” que a

escrita traz: a “ciência”, a comunicação que se estende pelo espaço e, principalmente,

a memória original das verdades divinas. Sem “quaisquer caracteres para significar

qualquer coisa”, esses povos estariam limitados aos significantes, ou seja, presos aos

sentidos do corpo. Com isso, seriam incapazes de compreender o significado de

Deus, expresso pela linguagem escrita da Bíblia. 222 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, pp. 151-152. (tradução minha)

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A condenação da nudez ameríndia estaria associada ao desconhecimento da

escrita entre esses povos. Aqueles que só “podem se comunicar verbalmente” são

destituídos de significados. Não se esperaria algo diferente de um calvinista imerso

no contexto das guerras de religião. Fiel ao princípio da sola scriptura, para ele a

Bíblia é o único meio legítimo de intermediação entre Deus e os homens, ou seja, o

principal instrumento da salvação. Presos aos significantes, como seriam os

Tupinambá capazes de acessar o significado da Criação, ou seja, a presença espirtual

de um Deus que não se reduz aos significantes do corpo?

Esse “papel” que conta “segredos” a Léry é para os Tupinambá algo

“maravilhoso”. Na verdade, o espanto do ameríndio, sujeito às inconstâncias dos

sentidos corporais, confirmaria a “superioridade” dos povos com escrita. Como diz o

autor em relação aos ameríndios, estando “privados de qualquer tipo de escrita, torna-

se difícil para eles reter as coisas em sua pureza”223. A impossibilidade de guardar em

sua memória as verdades divinas, fez com que o Tupinambá fosse definitivamente

culpado ante o Juízo Final, estando por isso cercado pela iminência do Apocalipse.

Quanto à afirmação dos nossos americanos de que por não terem seus antepassados

acreditado na palavra de quem lhes procurou mostrar o bom caminho, outro

missionário veio depois e os amaldiçoou, dando-lhes a espada pela qual eles se

matam todavia, é o que se lê no Apocalipse224.

Com a Bíblia em uma mão e a sua Histoire em outra, Léry atesta um dos

“dons singulares” que recebeu de Deus. Imerso no dogma calvinista da dupla

predestinação, o autor é categórico: apenas aqueles que conhecem e valorizam a

escrita têm a possibilidade de salvar-se, os outros estão condenados ao esquecimento

de Deus. Assegurado pela memória que esse instrumento “maravilhoso” proporciona,

o calvinista testemunha sua fé por um retorno às origens das palavras divinas,

guardadas em sua pureza no texto sagrado da Bíblia. O Tupinambá funciona como

223 Idem, p. 161 (tradução minha). 224 Idem, ibidem.

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um énonciataire225: por seu intermédio, edifica-se o poder transcendental que a

escrita representa para o calvinista.

Composta sob a dicção direta do Espírito Santo, a Bíblia seria, para Calvino, a

“lei da verdade”226. A condenação do Tupinambá, por conta de sua distância em

relação à escrita, funciona também como uma certificação da vocação religiosa do

autor. Enquanto o anjo do Apocalipse, com sua espada reluzente, cerca esses

“malditos filhos de Cam”, Léry se vê mais garantido nas palavras transmitidas

diretamente pelo Salvador através das Sagradas Escrituras.

Por outro lado, é interessante notar que ao longo do capítulo XVI, que trata

exclusivamente da descrição “daquilo que se pode chamar de religião entre os

selvagens americanos”, o católico se aproxima do ameríndio. Por mais de uma vez,

ao descrever os profetas tupinambá, Léry não hesita em compará-los aos padres

católicos.

Só poderia dar uma idéia exata desses caraíbas comparando-os aos tocadores de sino,

esses falsos devotos que, abusando do mundo de cá, enganam a nossa pobre gente

andando de lugar em lugar com relicários de Santo Antônio e São Bernardo ou outros

objetos de idolatria227.

Se, anteriormente, o Tupinambá, por sua pureza, representava o inverso da poluição

católica, nesse momento, ao descrever a religião dos Tupinambá, esses se aproximam

do católico. Ambos estariam presos aos sentidos do corpo, ao contrário do calvinista,

fiel à comunicação direta e imediata com Deus através da Bíblia. É o que parece

sugerir Léry quando compara as práticas dos profetas tupinambá à “idolatria” dos

padres católicos, que dão mais crédito a imagens de santos e relíquias do que à

própria Bíblia.

225 Ao analisar a construção do canibal nos Ensaios de Montaigne, Olivier Pot sublinha a posição de énonciataire que ocupa o Tupinambá em sua obra. Segundo Pot, o énonciataire seria “um enunciador ocupando o lugar enunciativo de outro enunciador.” No caso da Histoire d’un voyage, é possível considerar que o Tupinambá funciona como énonciataire de Léry. POT, O., L’inquiétante étrangeté – Montaigne: la pierre, le cannibale, la mélancolie, p. 149. 226 PAUL, T., A history of christian thought, p. 274. 227 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 157 (tradução minha).

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É possível notar, novamente, que a descrição do ameríndio está inserida numa

relação de três termos. Por intermédio do Tupinambá, julga-se o católico, que se

distancia da Bíblia ao admitir a mediação de um corpo material (sacerdotes, santos e

relíquias) entre Deus e os homens. Ao descrever uma oferenda que os Tupinambá

deixavam próxima à maraca – instrumento mágico-religioso que permite a

comunicação do profeta ameríndio com os espíritos – Léry não hesitou em compará-

la ao culto das relíquias e aos “abusos” materialistas do sacerdócio católico.

(...) se ao passarmos por suas casas e choças largas e víssemos algumas carnes

apetitosas apresentadas aos seus Maracas, e a comêssemos (como o fizemos com

freqüência), nossos americanos, estimando que isso nos causaria malefícios, não se

sentiam menos ofendidos do que os supersticiosos sucessores de Baal, ao ver

tomarem oferendas consagradas aos seus ídolos, com as quais entretanto, em desonra

a Deus, eles se alimentam fartamente com suas putas e bastardos228.

O Tupinambá, no que se refere à religião, é diretamente relacionado ao

católico: ambos estariam presos aos apetites sensoriais do corpo. A problemática

referente à relação entre o corpo e a salvação, central nas discussões entre católicos e

calvinistas, encontra-se presente na descrição dos “falsos profetas” ameríndios que,

como os padres católicos, se valeriam de um falso poder divino para iludir os fiéis,

obrigando-os a doar alimentos às “relíquias”. Segundo Léry, os profetas tupinambá e

os padres católicos seriam sucessores de Baal, o deus cananeu que no Antigo

Testamento designa o culto idólatra229. Com esses alimentos depositados em seu

“relicário”, o Karaí, como os padres católicos que vendiam indulgências e relíquias,

estaria se aproveitando de seu falso poder para se alimentar fartamente “com suas

putas e bastardos”.

É possível considerar que a descrição da religião tupinambá, além de ser

comparada à idolatria católica, se insere nesse movimento de polarização entre a

escrita e o corpo. Ambos, católicos e Tupinambá, se encontrariam distantes da

salvação pelo fato de estarem demasiadamente presos aos sentidos corporais, em

228 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 158 (tradução minha). 229 Cf. LESTRINGANT, F.. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brasil, p. 409, nota 1.

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oposição ao calvinista, que afirma sua fé a partir das Sagradas Escrituras. De fato, a

escrita é para o calvinista o presságio da vida eterna, reservada apenas aos povos

eleitos. Os Tupinambá não a conhecem e os católicos a menosprezam. O calvinista,

por sua vez, faz dela a garantia de sua eleição.

Obra impressa: a narrativa exemplar da salvação

Como aqueles que nunca estiveram no mar, principalmente em tais emergências,

apenas viram metade do mundo, é necessário repetir aqui as palavras do Salmista

ditas pelos marinheiros que, flutuando, subindo e descendo em tão terrível elemento e

subsistindo em meio à morte, viam-se de fato as maravilhas da Eternidade. No

entanto, não me pergunte se os marinheiros papistas, vendo-se reduzidos a tal

extremidade, não faziam mil promessas, se chegassem em terra firme, de ofercer a

São Nicolau uma imagem de cera do tamanho de um homem; o que seria aclamar por

Baal, que nada ouve. Nós, entretanto, julgávamos melhor recorrer àquele cujo auxílio

tantas vezes nos fora outorgado e que podia sustentar-nos durante a fome, mandar no

mar e aplacar a tempestade. Era a ele e não a outros que nos dirigíamos230.

Esse trecho se refere à travessia marítima da volta. É possível apontar

novamente para a polarização que se estabelece entre a escrita e o corpo tendo em

vista a divergência religiosa entre o calvinista e os católicos. Os “papistas” mostram-

se regidos pelos sentidos corporais, pois reduzem a Graça divina às imagens de cera e

ao culto aos santos, sendo comparados novamente aos idólatras do Antigo

Testamento, adoradores de Baal. O calvinista, por sua vez, confia seu destino só a Ele

e “não a outros”: ao repetir o Salmo 107, ele reafirma a autoridade da Bíblia como

depositária da Palavra viva de Deus. As “maravilhas da Eternidade” são confirmadas

ao calvinista pela presença do Evangelho.

Viu-se que o Salmo 107 também foi entoado na travessia marítima da ida,

atestando as “maravilhas de Deus” diante dos diversos perigos que se apresentaram

ao viajante. Fundamentada na separação brutal de sua comunidade em relação às

230 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 214 (tradução minha).

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perseguições católicas, a viagem de Léry se apresenta enquanto projeção do passado

bíblico. As provações do corpo, vivenciadas ao longo da travessia e dos cercos

religiosos, parecem atualizar o exílio bíblico. Dignas de um martírio, essas provações

apontam para a confirmação da eleição de sua comunidade, abençoada pelas

maravilhas de Deus durante os horrores da travessia. O paralelismo entre o “martírio”

dos protestantes, perseguidos pelos católicos, e o exílio do povo de Israel, é constante

entre os escritores protestantes desse período231.

É através desse espaço sitiado – seja o navio, a França Antártica ou a vila de

Sancerre – que o calvinista parece testemunhar a Graça de Deus em favor dos povos

eleitos. A ilha de França Antártica tornou-se palco do martírio dos três colegas de

Léry que participaram da missão calvinista ao Novo Mundo.

Villegagnon, por causa do Evangelho, afogou três no forte de Coligny (...) Ao saber

que, enquanto resistíamos aos perigos das ondas e tempestades do mar, esses servos

fiéis de Jesus Cristo sofriam, pelas mãos de Villegagnon, os tormentos e a morte

cruel, e me lembrando de que fui o único a sair da barca, na qual já estava preparado

para regressar com eles, rendi Graças a Deus pelo meu salvamento individual,

sentindo-me também mais do que nunca no dever de fazer com que a confissão de fé

desses três bons personagens fosse registrada no catálogo desses que em nosso tempo

sofreram constantemente a morte para testemunhar o Evangelho, entregando-a nesse

mesmo ano de 1558 ao impressor Jean Crespin, o qual, juntamente com a narração da

dificuldade que tiveram em retornar à terra dos selvagens depois que nos deixaram, a

inseriu no livro dos Mártires (...)232.

O que seria desses corpos afogados pela “crueldade” do católico Villegagnon,

sem a presença da escrita? Essa funciona como testemunho da fé que eterniza a Graça

divina reservada aos povos eleitos. A semiologia calvinista retirou do corpo físico o

poder de intermediação da Palavra de Deus, reduzindo aos sinais da escrita o poder de

manter viva essa Palavra. Como sugere Lestringant, “o destino da escrita substitui o

da carne perecível”233. Afogados “por causa do Evangelho”, esses corpos

231 NAKAM, G., Au lendemain de la Saint-Barthelemy, p. 99. 232 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 221 (tradução minha). 233 LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 126.

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martirizados são recompensados pelo livro impresso, que torna pública a “confissão

de fé desses três bons personagens”. É pelas mãos do impressor Jean Crespin, cuja

confissão da fé lhe foi passada pelo testemunho de Léry, que a ausência desses corpos

perecíveis se transformará em presença da “Eternidade”.

É importante ressaltar que a publicação da Histoire foi fortemente motivada

pela necessidade de contestar os testemunhos do católico Thevet, que em seus livros,

responsabilizou a missão protestante pelo fracasso da França Antártica. Portanto, a

obra de Léry se situa no contexto político das guerras de religião e atende à

necessidade de se solidificar os vínculos de solidariedade social da comunidade

calvinista234. Como ressaltou no prefácio de sua Histoire: “a fim de desmentir as

imposturas de Thevet, fui de certa forma constrangido a dar à luz o relato de nossa

viagem”235.

Mas a escrita edificante de Léry não substitui apenas os corpos martirizados

dos três genebrinos: funciona também como testemunho de sua própria vocação

religiosa. A cena do barco, referida no trecho acima, é a passagem simbólica que se

reverte no “mito de sua eleição pessoal”236. Dentro da barca e prestes a retornar para a

França Antártica junto com os genebrinos mortos por Villegagnon, o autor desiste do

retorno e escapa da morte. Esse episódio da sobrevivência, assim como outros que se

repetirão ao longo da travessia marítima, fazem do autor um provável predestinado à

Graça divina. De fato, como diz Léry: “rendi Graças a Deus pelo meu salvamento

individual”.

Ao corpo perecível, tão indefeso diante do abismo oceânico, substitui-se o

livro impresso que dá luz à provável “Eternidade” do autor. Esse caráter redentor do

livro impresso pode ser percebido através de sua trajetória peculiar. Após descrever

os perscursos tortuosos de seus manuscritos compostos “com a tinta do pau-brasil”,

que foram separadas algumas vezes do autor, Léry finalmente os reencontra, quase

milagrosamente.

234 LESTRINGANT, F. , Calvinistes et cannibales, p. 78. 235 LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 22 (tradução minha). 236 LESTRINGANT, F. , Calvinistes et cannibales, p. 80.

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Ao relatar porém a um nobre senhor a respeito da primeira perda que aconteceu em

Lyon, e o nome da pessoa a quem eu entregara o manuscrito, de tal modo se

interessou ele por encontrá-lo que finalmente o achou no ano passado (1576) e me

devolveu. Eis porque o que escrevi sobre a América, tendo-me sempre fugido das

mãos, não pôde vir à luz237.

Gomez-Géraud, ao analisar o prefácio de Léry, destaca a construção de uma

“fábula” do livro, que passa da condição de manuscrito diversas vezes perdido entre

as sombras do esquecimento, à de livro impresso que pôde “vir à luz”238.

Há um paralelo entre a trajetória pessoal de Léry e a do seu manuscrito pois

ambos, autor e “pré-livro”, seguem uma seqüência de exílios e riscos de morte: nessa

sucessão de escapadas do autor que busca refúgio face a perseguição religiosa, o

manuscrito se perde dele diversas vezes e é reencontrado de forma milagrosa pelas

mãos de sujeitos desconhecidos. Esses manuscritos errantes - que conseguem

sobreviver aos diversos exílios, naufrágios e perseguições, e que “encontram a Luz”

depois de se tornarem o livro belamente editado, impresso e revelado à multidão - não

seriam uma metonímia do próprio Léry, que passa da condição de sapateiro que

acompanha a missão calvinista na França Antártica à de pastor, escolhido

divinamente para a vocação de pregador da nova fé protestante?

O movimento do manuscrito errante não marcaria o afastamento gradual que

se dá entre o livro e o corpo do autor? Segundo Hans Gumbrecht o advento da

imprensa operou uma separação significativa entre o corpo e a consciência da

comunicação: “Definitivamente o corpo humano não era mais o veículo de

constituição do sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo de sentido, o

livro, pela introdução de uma máquina, a prensa de impressão”239. Na data de 1578,

quando é finalmente impresso e publicado, o livro de Léry marca uma separação

ainda mais expressiva em relação ao corpo, sua narrativa é “definitivamente

237 LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 22. 238 GOMEZ-GERAUD, M.C., Jean de Léry. : des parcours aventureux des manuscrits aux destinées du livre, p.69. 239 GUMBRECHT, H., Modernização dos sentidos, p. 75.

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abandonada à multidão dos leitores em potencial, e se afasta, de uma maneira

irreversível, do autor que lhe imputou vida”240.

Tendo em vista a semiologia disjuntiva calvinista, que faz da Palavra divina a

ausência do corpo físico, o livro impresso simboliza a “iluminação” da narrativa

exemplar de Léry: distanciada do corpo do autor, ela funciona como uma “dispersão

simbólica”241 da Palavra de Deus. Atualizada pelo livro impresso de Léry, essa

Palavra atesta para a posteridade o martírio desse novo “povo de Israel” em busca da

Terra prometida.

240 GOMEZ-GERAUD, M.C., Jean de Léry: des parcours aventureux des manuscrits aux destinées du livre, p.73 (tradução minha). 241 GOMEZ-GERAUD, M.C., Jean de Lery: des parcours aventureux des manuscrits aux destinées du livre, p.72.

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6 Considerações finais: “índio bestial” ou “bom selvagem”?

Em síntese, esta dissertação analisou as diferentes formas pelas quais Nóbrega

e Léry situaram o Tupinambá em seus respectivos universos da salvação. A hipótese

central do trabalho pressupõe que a salvação, tanto do jesuíta quanto do calvinista,

constituiu-se a partir do Tupinambá, e que se estabeleceu uma polarização entre a

escrita dos autores e o corpo ameríndio.

Embora a hipótese acima descrita revele algum grau de convergência

estrutural entre as narrativas de Nóbrega e Léry, a representação do Tupinambá, no

universo desses autores, aponta diferenciações claras, que podem ser compreendidas,

em parte, a partir do contexto das Reformas religiosas.

Esse período de relativização das verdades doutrinárias da Igreja, e de

afirmação identitária de distintas comunidades religiosas, fundamentou-se, sobretudo,

nas discussões teológicas sobre a relação entre o corpo e a salvação. O culto das

relíquias, a discussão sobre a presença real do corpo de Cristo na hóstia, a

condenação da santidade – todos esses pontos, levantados pelos protestantes, trataram

da questão de como a fé e o sagrado deveriam relacionar-se com a dimensão corporal

da humanidade.

O calvinista, fundamentado na doutrina da predestinação, procura esvaziar o

monopólio da Igreja como legítima intermediária entre Deus e os homens. Segundo

Certeau, o desmoronamento das crenças de uma sociedade que deixa de ser

religiosamente homogênea faz com que as práticas litúrgicas ganhem relevância,

tornando-se um elemento de diferenciação religiosa242. Basta lembrar que o embate

de Léry com o comandante da França Antártica teve como questão fundamental a

transubstanciação do corpo de Cristo, o que confirma a posição central dessas

polêmicas teológicas ao longo do período inicial das Reformas religiosas.

O jesuíta, por sua vez, procura acentuar a relação de continuidade entre o

corpo e a salvação. Imerso no contexto das expansões ibéricas – em que a dimensão

cruzadística da Reconquista se conjuga ao movimento da Contra-reforma – ele age 242 CERTEAU, M., A Escrita da História, p. 36.

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impulsionado pela afirmação do poder sagrado de certos corpos: imagens de santos,

cruz, objetos litúrgicos, relíquias. A aparição dos santos nas batalhas, dando um

significado providencial às guerras ibéricas, assim como a presença do santuário de

São Tomé no Novo Mundo, são alguns exemplos da narrativa de Nóbrega que

certificam a relação de continuidade que se estabelece entre a Graça e os sentidos do

corpo.

A hipótese desta dissertação, já indicada, estrutura-se na idéia de que o

discurso da salvação, tanto de Nóbrega quanto de Léry, fundamentou-se a partir de

uma polarização entre a escrita dos autores e o corpo ameríndio. Dois princípios

fundamentais estão presentes.

O primeiro refere-se à suposição de que o corpo ameríndio foi apreendido

conceitualmente a partir desse contexto de fragmentação religiosa, em que as

discussões sobre o corpo e a salvação ocupavam posição central. Diante de um

mundo marcado pela discórdia religiosa e pelas perseguições às heresias, o corpo

dessa nova humanidade, revelado em sua nudez, foi assimilado de diferentes formas.

Seria o corpo nu um “papel branco”, símbolo da pureza e inocência, que marcaria o

reencontro com uma verdade original, já dissipada do conturbado horizonte europeu?

Ou seria esse corpo o sinal da condição “bestial” e pecadora desses prováveis

descendentes de Cam, o filho maldito de Noé? Tanto Nóbrega quanto Léry se

utilizaram dessas duas imagens, o “papel branco” e o “filho de Cam”, para

representar o ameríndio.

O segundo princípio deriva da idéia de que a redenção dos autores reside

essencialmente na escrita, enquanto que a salvação do Tupinambá habita seu próprio

corpo. Entretanto, ao mesmo tempo, sustenta-se que os princípios norteadores da

escrita católica se aproximam muito mais dos valores ligados ao corpo do que aqueles

que marcam as bases da escrita em Léry.

Para Nóbrega, a escrita coloca-se a serviço de uma práxis: encontrar a vontade

divina para agir da melhor forma no sentido de extirpar as “afeições desordenadas”

que habitam o corpo ameríndio. Inspirada na prática de procura da vontade divina dos

Exercícios Espirituais, o ato de escrever cartas deve ser entendido, no caso dos

jesuítas espalhados pelo mundo, como ação pragmática que participa da conversão.

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Nesse sentido, é importante destacar duas vertentes. A primeira, a imediatez da

presença da fala do destinador no registro escrito; a segunda, a dimensão ritualística e

coletiva da recepção das cartas jesuíticas, que evidenciaria, por sua vez, a presença

ativa do corpo como veículo de sentido do texto escrito.

A narrativa do calvinista, por sua vez, parece fundar-se na nostalgia de uma

ausência que se fixou não só pelo corte coercivo entre o Novo e o Velho Mundo, mas

também pela radical transcendência de Deus, que não poderia mais ser apreendido

pela intermediação de um corpo material. O distanciamento radical de Deus do

horizonte corporal dos homens fundamentou-se na concepção de que a Bíblia era a

única legítima intermediária entre o divino e o humano. Tal distanciamento do

sagrado em relação à dimensão corporal do ser humano pode ser evidenciado também

pelo fato do livro de Léry, contrariamente à escrita das cartas de Nóbrega, ter-se

constituído enquanto obra impressa (e não manuscrita), o que acentuaria um

isolamento do corpo enquanto veículo de sentido da escrita.

Nóbrega e Léry, por intermédio da escrita, apreenderam de diferentes

maneiras o Tupinambá em seus respectivos universos da salvação. Apesar do foco da

dissertação não ter sido a análise dos Tupinambá, e sim a forma pela qual o jesuíta e o

calvinista o representaram, é importante destacar que foi por intermédio do ameríndio

que as narrativas exemplares da salvação desses autores se consolidaram. Nesse

sentido, procurou-se ressaltar que a dinâmica dos contatos culturais entre os

religiosos e o Tupinambá transformou decisivamente a forma pela qual os primeiros

passaram a representar o segundo e, com este, se relacionar.

6.1 O corpo domado: Nóbrega e o Plano Civilizador (1558)

Viu-se que o método de conversão de Nóbrega – antes fundamentado na

pregação amorosa, que enxergava o ameríndio como um “papel branco” aberto à fé

em Cristo – transformou-se decisivamente a partir de meados de 1550. Após justificar

teologicamente a primazia do “ferreiro” sobre o “língua” em seu Diálogo sobre a

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Conversão do Gentio, Nóbrega escreveu em 1558 um texto que ficou conhecido

como o Plano Civilizador ou Plano das Aldeias, onde expôs os novos métodos de

evangelização, fundamentados em um maior controle moral sobre o ameríndio

através da nova “lei”.

A lei, que lhes hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem

licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito

algodão, ao menos despois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça

entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra

parte, se não for para antre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com

estes Padres da companhia para os doutrinarem. 243

Nota-se que as proibições se aplicam prioritariamente aos costumes do corpo:

poligamia, antropofagia, nudez. Como sugere Viveiros de Castro, “as sociologias

ameríndias formulam-se diretamente nos termos de uma dinâmica dos corpos e dos

fluxos materiais”244. Nesse sentido – mesmo que o jesuíta não tivesse um

conhecimento antropológico sistematizado sobre a função social do corpo para os

Tupinambá –, era inevitável que a Lei do missionário se aplicasse fundamentalmente

a um controle mais rigoroso sobre esse corpo. Não mais um papel branco, o

ameríndio passa a ser visto agora como a “boca infernal”245 que não cessa de comer

os cristãos. Reduzidos aos apetites infernais do ventre, eles deixam de ser vistos

como “pagãos” e se tornam “hereges”, que devem ser capturados em guerra justa ou

amarrados ao pelourinho caso não se sujeitem à fé.

O Plano Civilizador, proposto por Nóbrega, instalou no espaço público central

da Aldeia um pelourinho, que sujeitou os índios a um severo e brutal controle sobre

243 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel Torres, Lisboa, Baía 8 de Maio de 1558, p. 282. 244 VIVEIROS DE CASTRO, E., A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, p. 16. 245 “Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa os quais todos são comidos dos Índios e são mais os que morrem que os que vem cada ano, e haveria estalagens de cristãos por toda a costa, assim para os caminhantes da terra coo para os do mar.” NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel Torres, Lisboa, Baía 8 de Maio de 1558, p. 282.

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seus corpos, através de punições exemplares – açoites, enforcamentos e decapitações

– como se vê no trecho abaixo.

Este foy preso e, por ser a primeira justiça e por amor de seu irmão, ho meirinho, foy

açoutado e lhe cortarão certos dedos das mãos de maneira que podesse ainda com os

outros trabalhar. Disto ganharão tanto medo, que nenhum fez mais delicto que

merecesse mais, que estar alguns dias na cadea246.

Reiterar as palavras sagradas do Salvador já não sustenta os anseios jesuíticos

de conversão, é preciso aplicar uma pena exemplar sobre o corpo ameríndio para que

esse se desgarre definitivamente de seus “maus costumes”. O corpo do Tupinambá,

como visto, deve ser integrado ao corpo místico da Igreja pela conversão. Da escrita

amorosa do pregador peregrino, pela qual os caracteres sagrados de Deus se

imprimiriam sobre o corpo ameríndio como em uma página branca; à escrita da

sujeição, em que o chicote irá inscrever com a tinta de sangue, os ensinamentos

divinos sobre um corpo agora de “fera brava”, amarrado ao pelourinho. A escrita de

Nóbrega, atrelada à práxis da conversão, funciona como instrumento de incorporação

desse ameríndio ao corpo da Igreja. Essa escrita, a partir da reforma de 1558,

transmutou-se no chicote do castigo exemplar, que sujeitará os índios à fé em Cristo.

6.2 O corpo estetizado: Léry e a nudez perdida

Enquanto Nóbrega sistematizava seu novo método de incorporação do

ameríndio ao corpo místico da Igreja, Léry era acolhido pelos Tupinambá da Baía de

Guanabara, entre os quais viveu seu refúgio religioso depois de ter sido expulso da

ilha de França Antártica, por conta da disputa teológica com Villegagnon. Ao invés

246 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal – Baía 5 de julho de 1559. p. 297.

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de sujeitado e incorporado ao poder da Igreja, para Léry, o corpo tupinambá se

constituiu enquanto testemunho da memória de uma pureza perdida.

Não se deve pensar, contudo, que a exaltação de Léry atende a uma visão

relativista de um antropólogo avant la lettre. A bondade do ameríndio só existe

enquanto memória de uma pré-história da humanidade. A construção da figura do

“Bom selvagem” estaria diretamente associada ao “pessimismo escatológico do

autor”247. A narrativa de Léry fundamenta-se, portanto, como testemunho de um

tempo mítico que, devido à colonização católica no Novo Mundo, estaria em vias de

se perder definitivamente do horizonte dos homens. Ao mesmo tempo em que é visto

como o ideal de uma Verdade originária, o ameríndio é condenado à danação eterna.

O calvinista rigoroso, imerso no princípio da predestinação, não hesita em privar o

ameríndio da salvação, pois esse desconhece os sinais da escrita.

Diferentemente de Nóbrega, que teve uma experiência contínua com os

ameríndios, Léry viveu pouco menos de um ano entre eles. Sua narrativa foi um

testemunho do exílio protestante e do martírio de seu grupo religioso em terras

americanas. Ao invés da continuidade, ela marca o corte da comunidade calvinista,

em busca de um refúgio para se purificar da predominante poluição católica. A

salvação de sua comunidade não estaria ligada à conversão do próximo, e sim ao que

Lestringant chamou de “Apocalipse da reabsorção”, isto é, ao princípio de que a

eleição de alguns implica na condenação de muitos248.

Nenhum vestígio restou desse corpo ameríndio, a não ser o testemunho escrito

do calvinista. Isso pode ser evidenciado em sua travessia marítima de regresso à

Europa. A fome extrema fez com que o aventureiro incorporasse ao seu ventre os

mais heteróclitos objetos que pudessem evidenciar uma continuidade entre o Novo e

o Velho Mundo – desde as peles dos animais americanos até os pedaços de madeira

do pau-brasil. No entanto, o que deu mais dó ao calvinista foi ter que devorar um

papagaio que ele guardava com muito carinho para oferecer ao Almirante Coligny.

Último corpo devorado, nada restou dessa ave, nem mesmo o seu bico.

247 LESTRINGANT, F. , Le huguenot et le sauvage, p. 119. 248 LESTRINGANT, F. , Millénarisme et âge d’or, p. 193.

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(...) guardara eu até então, uma dessas aves, grande como um pato, bom falador e de

linda plumagem, porque desejava com ela presentear ao senhor almirante, mas tal foi

a necessidade que não pude conservá-la mais tempo (...) Jogadas fora as penas,

serviram o corpo, as tripas, os pés, as unhas e até o bico adunco de alimento, durante

três ou quatro dias para mim e alguns amigos. Não escondo entretanto o pesar que

tive de tê-lo morto, ao ver terra cinco dias após (...)249.

Ao devorar esse animal “bom falador”, Léry “massacrou a palavra

selvagem”250, liquidando definitivamente a possibilidade de sobrevivência de

qualquer vestígio do corpo ameríndio em terras européias. O modelo de pureza

original, evidenciado na descrição do Tupinambá, apesar de atender a um princípio de

inversão que condena o católico, existe também como memória de uma ausência

incapaz de ser reduzida ao significado da escrita e que, por isso, só pode ser revivida

pelas recordações sensoriais do autor. Incorporada ao ventre do calvinista, a palavra

tupinambá figura-se pela recordação da ausência de uma voz e de um corpo doravante

inapreensíveis. O exemplo mais marcante dessa experiência sensorial que se faz

presente na narrativa diz respeito à descrição do ritual xamanístico dos Tupinambá.

Maravilhado com a harmonia da música e da dança, Lery parece não poder

representar em sua escrita, senão pela marca da ausência, esse momento que se

apresentava aos seus sentidos. Em sua narrativa, a ausência do corpo tupinambá seria

a memória sensorial de quem ainda sente “palpitar o coração”, vinte anos depois, ao

lembrar a cena do ritual liderado pelos profetas tupinambá.

(...) e ainda hoje quando recordo essa cena sinto palpitar o coração e parece-me a

estar ouvindo251.

Segundo Lestringant, esse momento de encantamento marca a corporalidade

de seu texto e, pela hipotipose, os limites do calvinismo do autor252. Apesar de ter

condenado e isolado o Tupinambá à danação eterna, há um resquício dessa

249 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil,p. 265. 250 GOMEZ-GÉRAU, M.C., Jean de Léry : des parcours aventureux aux destinées du livre, p.74. 251 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 214. 252 LESTRINGANT, F., Jean de Léry ou l’invention du sauvage, p. 98.

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corporalidade ameríndia que se deixa entrever em sua escrita. Inapreensível pela

memória impressa do calvinista, esse corpo que encanta faz-se presente no centro

vital da testemunha: o coração que “palpita”.

Enquanto o corpo tupinambá torna-se, para Nóbrega, a realidade concreta da

carne que deverá sujeitar-se ao pelourinho, para o calvinista, tal corpo se torna a

ausência definitiva de uma pureza original que só existe enquanto recordação

nostálgica que atinge os sentidos do autor.

Seja no sítio de suplício do açoite, ou no sonho primitivista do puritano

ascético, o corpo tupinambá foi igualmente sacrificado em nome da civilização

ocidental. Sobre sua carne desenharam-se os traços da escrita civilizadora, que o

lançou, ora na pré-história da humanidade, ora na nova história do sistema colonial

escravista. Onde se esconde a nudez do corpo tupinambá nos dias atuais? Em algum

ideal de pureza e renovação? Em algum sistema de açoite digital?

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