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Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
Processo de turisficação no quilombo: O caso do Campinho da Independência
Thaís Rosa Pinheiro (UNIRIO/Rio de Janeiro)
Resumo
A comunidade do quilombo do Campinho da Independência está localizada em Paraty a
20 km do centro histórico. Esta comunidade foi a primeira titulada no Estado do Rio de
Janeiro. Desde a titulação de suas terras, o quilombo foi alvo de diversas iniciativas de
agentes externos que fomentaram o turismo como uma proposta de desenvolvimento
sustentável. Para tanto, foram necessárias ações de reconstrução do patrimônio
simbólico, relacionadas sobretudo ao resgate de tradições culturais afro brasileiras. Os
modos se ser, fazer e viver foram reconstruídos por pessoas de fora que participam
ativamente na reconstrução de espaços e práticas culturais intervindo na infraestrutura
material e simbólica das comunidades. Esta comunidade quilombola pode ser
considerada um caso de neocomunidade tradicionais denominado por Lifschitz (2010)
uma vez que trata-se de uma dinâmica de revalorização do território e de reconstrução
de práticas tradicionais. A reconstrução do patrimônio simbólico influenciou na
identidade quilombola trazendo visibilidade social e renda para uma parcela da
comunidade que se ocupa diretamente do turismo. O modo de vida quilombola torna-se
um atrativo turístico, interferindo na dinâmica da comunidade. O objetivo desse artigo é
investigar o Quilombo do Campinho da Independência como um estudo de caso sobre
os limites de turisficação. Como objetivo específico analisar como as pessoas da
comunidade vivem o desenvolvimento da atividade turística e como impacta sua vida,
hábitos e costumes tradicionais. Como metodologia será feita uma seleção de literatura
voltada para a abordagem dos temas correlatos ao artigo e a realização de uma pesquisa
de campo, onde serão realizadas entrevistas abertas e observação participante com
moradores da comunidade. Os resultados e a conclusão serão apresentados ao final da
pesquisa.
Palavras- chave: patrimônio, neocomunidades, turisficação.
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
Introdução
As comunidades quilombolas no Brasil passam a serem reconhecidas pelo
Estado Brasileiro a partir da Constituição de 1988 que é um marco jurídico ao direito ao
território. O artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias- ADCT reconhece aos
remanescentes de quilombos a propriedade definitiva das terras por eles
tradicionalmente ocupadas. Essa mesma Constituição além de assegurar o direito a
terra, também assegurou no artigo 215 os direitos culturais e a garantia de proteção das
manifestações das culturas populares, indígenas e afro brasileiras. Já no artigo 216,
ampliou o conceito de patrimônio cultural, reconhecendo a cultura do “povo”, como
patrimônio do país.
Após anos de esquecimento, as comunidades quilombolas passaram a ganhar
força política a partir do governo Lula que avança sobre os procedimentos em ações
públicas concretas de auto reconhecimento contribuindo para a titularidade das terras de
remanescentes de quilombos.
Durante o governo Lula foi lançado o programa Brasil Quilombola que definiu
políticas públicas específicas para as áreas de educação, saúde, habitação e
infraestrutura para as comunidades, como a Política Nacional de Desenvolvimento dos
Povos e Comunidades Tradicionais. Esta política reintroduziu o tema da etnia e
comunidade, colocando novas questões para o plano político e cultural.
Dentre elas, contribuíram para que muitas comunidades quilombolas fossem
absorvidas pelo desenvolvimento do turismo em suas localidades como forma de
geração de renda local. Para isso foram necessários reconstrução aos bens culturais que
se tornariam produtos turísticos atendendo interesses econômicos e visibilidade social a
essas comunidades que antes eram excluídas da sociedade. Portanto, o turismo surge
como fator central nas novas dinâmicas identitárias e patrimoniais.
Como estudo de caso analisaremos a comunidade do Quilombo do Campinho da
Independência, que foi a primeira comunidade quilombola titulada no Estado do Rio de
Janeiro. Após sua titulação passou a receber diversas ações de intervenção de políticas
públicas que foram desenvolvidas por agentes externos como pesquisadores, ONGS,
agentes do movimento negro, agentes de turismo, etc, para a reconstrução de
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
manifestações culturais afro brasileiras e da identidade quilombola. Essas reconstruções
que acontecem nas comunidades quilombolas são denominadas por Lifstichz (2011),
como neocomunidades, que estão vinculadas a revalorização do território e a
reconstrução de práticas e saberes tradicionais e tem uma relação de troca com os
agentes externos.
O processo de turisficação no quilombo acontece através da atuação de agentes
externos vinculadas a políticas públicas do governo. O Estado Brasileiro atua como
gestor da realidade, atuando na reconstrução da memória, identidade e a cultura afro
brasileira nessas comunidades. Segundo Ortiz (1998), a memória nacional é uma
construção ideológica, pois transcende os indivíduos e busca unir os diferentes grupos
em torno de uma universalidade.
O Turismo em comunidades quilombolas está muito associado à questão da
identidade cultural, pois estas comunidades foram renegadas e suas tradições não eram
reconhecidas. A partir dessas práticas, iniciaram um caminho inverso, ou seja, tornaram
aspectos das tradições e saberes do universo afro brasileiro evidentes para um público
que vem visitar a comunidade.
Essa é uma pesquisa exploratória que visa analisar o processo de turisficação do
Campinho da Independência a partir da transformação no modo de vida quilombola em
atrativo turístico e as reconstruções das manifestações culturais afro brasileiras a partir
de agentes externos.
O Quilombo do Campinho da Independência
A comunidade do Campinho da Independência localiza-se em Paraty, um dos
principais destinos turísticos entre Rio de Janeiro e São Paulo.
Como surgiu essa comunidade? Segundo a história contada por uma moradora
local, Daniele1, nesse local existia a Fazenda Independência e com o fim da escravidão,
as terras foram “doadas” pelo senhor, num acordo de “boca” as três escravas: Antonica,
1 Entrevista realizada dia 27 de junho de 2013.
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03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
Marcelina e Luiza que trabalhavam na Casa Grande. Seus descendentes se fixaram no
local que passou a ser chamado de sertão da Independência. A comunidade mantinha a
agricultura de subsistência onde plantavam mandioca, feijão e banana e pescavam no
Rio Carapitanga. Trocavam seus excedentes no centro de Paraty num percurso que
levava mais de quatro horas a pé, onde trocavam seus alimentos por sal, querosene e por
outros mantimentos. Viveram isolados até a abertura da rodovia Rio- Santos, BR 101,
em meados da década de 70, o que trouxe uma desenfreada especulação imobiliária em
Paraty e conflitos pela posse de suas terras.
Grileiros começaram a aparecer na área tentando expulsá-los de suas terras,
invadindo a comunidade, deixando os moradores com medo e não permitindo que os
mesmos construíssem casas. Portanto, diante de ameaça externa, inicia-se um
movimento pela luta pela terra. Segundo relato de Daniele2, uma pessoa da comunidade,
Tio Valentim se tornou uma liderança na comunidade e também fora dela. Se envolveu
com o sindicato dos trabalhadores rurais de Paraty na década de 70 e tornou-se
coordenador geral da Pastoral da Terra, onde teve ajuda de Padre Pedro. Entraram na
justiça com ações individuais de usucapião, argumentando que habitavam naquele local
desde o século XIX, porém os processos judiciais ficaram paralisados durante anos.
Neste processo de luta contaram com a antropóloga Neusa Gusmão3 que se
tornou um marco na articulação política da comunidade em torno da posse da terra.
Segundo relato de Daniele, “Padre Pedro indicou a comunidade para ela fazer esse
estudo e Tio Valentim, recebeu ela”. Segundo Gusmão (1994), a comunidade do
Campinho, envolvida em lutas desde o final dos anos 70, promoveu a politização do
meio rural. Ao longo da pesquisa em campo, Gusmão soube através de um dos
moradores mais velhos que essa terra teria sido recebida como doação a três escravas
após a abolição. Surgiu a partir daí a identificação da comunidade como quilombo e a
possibilidade para a posse da terra, através do artigo 68, da Constituição de 1988. Neusa
Gusmão apresentou o caminho através do qual poderiam ser reconhecidos os direitos
2 Entrevista realizada dia 27 de junho de 2013.
3 Neusa Gusmão, antropóloga, fez pesquisas na comunidade no final da década de 70 e posteriormente no
final de década de 80. Sua pesquisa inicial tinha como objetivo analisar o processo de deterioração
crescente de condições de trabalho e vida, devido a especulação imobiliária a que passavam a estar
sujeitas as suas terras para o desenvolvimento do empreendedorismo turístico no final dos anos 70. E
posteriormente os processos contínuos de expropriação das terras do Campinho, através do envolvimento
em movimentos sociais rurais e da formação de uma etnicidade específica.
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coletivos e contribuiu para fazer o laudo antropológico do quilombo, que era necessário
para o processo de titulação. A identidade quilombola surge como uma identidade
política a partir da necessidade de titular suas terras.
Cabe ressaltar a formação da Associação dos Moradores do Campinho da
Independência (AMOC) como uma organização de entidade jurídica como um requisito
para a titulação da terra. Esta foi fundada por líderes locais em 1994, com objetivo de
tratar essa questão, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra, associado ao Sindicato
de Trabalhadores Rurais de Paraty.
O governo do estado do Rio de Janeiro voltou sua atenção para a questão da
titulação das comunidades quilombolas a partir do mapeamento das comunidades
requisitado junto as prefeituras pelo Ministério Público Federal. No final de 1997, o
Campinho estava na lista das comunidades quilombolas que a Fundação Cultural
Palmares prometia reconhecer como remanescentes de quilombo em todo o país. Após
mais de duas décadas de luta pela terra, a titulação acontece no dia 21 de março de
1999. O Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) e a
Fundação Cultural Palmares entregaram o título definitivo à Comunidade Remanescente
de Quilombo do Campinho da Independência. Esta se torna a primeira comunidade
quilombola do Estado do Rio de Janeiro a ter suas terras tituladas, baseada no artigo 68
da Constituição Federal.
Surgimento de uma neocomunidade quilombola e o turismo
A partir da titulação das terras na comunidade do Campinho da Independência,
começaram a ocorrer diversas mudanças. Muitas ações de reconstrução da cultura e da
identidade quilombola começaram a ser desenvolvidas a partir da atuação de agentes
externos de diversas instancias como: pesquisadores, atuantes do movimento negro,
ONGS, etc.
A formação da identidade quilombola veio junto a diversos ciclos de mudança
que aconteceram na organização social da comunidade. A Associação dos Moradores do
Campinho (AMOC) passou por uma reestruturação em 1999, quando os jovens
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03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
assumiram a direção e pretendiam lutar por um modelo de vida mais sustentável
buscando alternativas de geração de renda que podiam ser desenvolvidas em sua própria
comunidade.
Começaram a perceber o potencial turístico que a comunidade tinha e queriam
que fosse desenvolvido o turismo no local. Isto só se torna possível através de parcerias
com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR),
junto a Petrobrás, além de outros parceiros envolvidos como o Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS) e Fundação Universitária de Brasília (FUBRA). Foi
desenvolvido o Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Quilombo do Campinho da
Independência que começou a ser executado em 2005 pela Associação de Moradores do
Campinho (AMOC). Este projeto objetivava gerar renda por meio do turismo étnico4, o
que poderia impulsionar outras atividades como o artesanato, agricultura familiar,
valorização cultural, defesa do meio ambiente e gestão social. Essa foi uma iniciativa do
Governo Federal de apoiar ações comunitárias em nove5 comunidades quilombolas com
recursos da Petrobrás além do Campinho da Independência. Segundo a SEPPIR (2008),
o projeto de turismo étnico consolidou se na comunidade envolvendo várias famílias
quilombolas e diversas manifestações culturais que estavam esquecidas foram
retomadas e são hoje valorizadas e mantidas, como o jongo, a roda de samba e a
capoeira, que passaram a compor o roteiro étnico ecológico.
Denominada por Lifschitz (2011) as neocomunidades são consideradas como
reconstruções de territórios e saberes, caracterizadas pelo uso de técnicas e saberes
modernos na reconstrução de territórios e saberes do passado. Para o autor a ideia de
neocomunidades se aproxima da inovação de tradições em diversos aspectos.
“Primeiramente, porque trata da ativação de tradições do passado em
contextos modernos, perspectiva que abriu um interessante campo de
pesquisa sobre os paradoxos envolvidos na relação
modernidade/tradição. Em segundo lugar, chamou a atenção para a
criação de tradições como estratégia política de legitimação e controle
(2011, p.96)”.
4 Segundo o Ministério do Turismo (BRASIL, 2006, p. 13), “o turismo étnico é a vivência de experiências
autênticas e o contato direto com os modos de vida e a identidade dos grupos étnicos”. 55
Quilombo de Sumidouro e de Tapuio (PI), Quilombo da Machadinha(RJ), Quilombo Ivaporonduva(SP), Quilombo do Castainho(SE), Quilombo Rio de Contas (BA), Quilombo de Oriximiná(PA), Quilombo do Mocambo( SE), Quilombo de Itamataivia (MA) e Quilombo do Campinho da Independência (RJ).
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
Essas reconstruções vêm acontecendo em comunidades remanescentes de
quilombos, onde a partir da atuação de agentes externos, ONGS, Prefeituras locais,
agentes do turismo, entre outros, reconstroem expressões culturais como gastronomia,
rituais e danças.
O desenvolvimento do turismo no Campinho, surge através dessas ações de
reconstrução de saberes, no sentido de práticas que se haviam retomadas e reativadas.
Segundo Lifschitz (2011, 186), as neocomunidades se encontram em uma situação
singular a respeito desses procedimentos metodológicos, porque se caracterizam pelo
fato de que os de “fora”, participam ativamente na reconstrução de espaços e práticas
culturais intervindo na infraestrutura material e simbólica das comunidades.
Nota-se o Estado Brasileiro como propositor de uma reconstrução do patrimônio
imaterial em comunidades quilombolas que é utilizado como fins identitários e também
como recurso turístico, tornando-se uma estratégia de desenvolvimento. O turismo
torna-se um meio para ações de reconstrução do patrimônio simbólico, relacionadas
sobretudo ao resgate de tradições culturais e incide sobre a formação de identidades.
No nordeste brasileiro, Segundo Oliveira (1998), as comunidades indígenas
reconstruíram suas memórias. Esse processo que deu origem a novas etnias, e fez com
que fosse resgatada a identidade que havia sido dissipada pela sua aculturação.
Até os anos 70 os povos indígenas do nordeste eram considerados aculturados,
as principais fontes disponíveis eram os relatos históricos dos séculos XVIII e XIX. A
partir desta percepção os índios nordestinos passam a ser considerados “misturados” em
oposição às tribos consideradas “puras”. Paradoxalmente, segundo o autor, a quantidade
de etnias identificadas no Nordeste tem crescido exponencialmente nas ultimas décadas,
das 10 etnias classificadas nos anos 50, passaram para 40 grupos nos anos 2000.
O autor explica: “um processo de territorialização que consiste “na construção
de uma identidade étnica individualizada” o que implica em uma “viagem da volta”
como reconstrução simbólica da comunidade a partir de interesses e mecanismos de
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representação contemporâneos.”. Propiciou “o surgimento recente de povos que são
pensados, e se pensam, como originários”.
Os índigenas do Nordeste perderam sua identidade e foi recuperada com o
surgimento de novas etnias, o que implica as reconstruções de práticas e saberes. O
mesmo acontece com o surgimento de neocomunidades em comunidades quilombolas.
Portanto as neocomunidades são exemplos de reconstrução cultural que vem se
espalhando em comunidades em todo o país, envolvendo por um lado comunidades com
tradições, saberes e práticas esquecidas e por outro, instituições, ONGS e órgãos
públicos que objetivam recriar essas tradições operando em suas formas organizativas e
materiais para incentivar o turismo cultural ou desenvolver projetos culturais (Lifschitz,
2008).
O processo de turisficação no Campinho
A “turisficação” do território é o processo de transformação de um local em
território turístico. Esse processo traz consequências que vão desde a inserção de novos
objetos, refuncionalização de antigos e alteração da dinâmica local.
A Associação de moradores do Campinho (AMOC), estabeleceu parcerias com
agentes externos que influenciou na transformação da comunidade quilombola.
Algumas parcerias estavam voltadas para desenvolver ações de melhorias na
comunidade, como a de infra estrutura, que foi feita com a Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA), onde foram construídos sistemas de saneamento e captação de água,
atendendo a todas as casas do Campinho, além da parceria com a Prefeitura de Paraty
contribuindo para a construção da quadra de esportes e iluminação.
Outras Parcerias estavam voltadas para ações de desenvolvimento. Em 2002,
foram realizadas duas oficinas de Planejamento do Desenvolvimento do Local
sustentável, pela associação, nas quais foram apontadas as demandas e potencialidades
do Campinho. As principais necessidades identificadas foram o resgate das
manifestações culturais e uma educação integrada, e como potencialidades, o
fortalecimento do artesanato já existente, o desenvolvimento de práticas de agricultura e
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o do turismo dentro da comunidade, levando em consideração aspectos ambientais e
culturais.
O projeto inicial de turismo na comunidade que foi citado anteriormente se torna
possível através de parcerias com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR), junto a Petrobrás, além de outros parceiros envolvidos
como o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e Fundação Universitária de
Brasília (FUBRA). O Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Quilombo do
Campinho da Independência começou a ser executado em 2005 pela Associação de
Moradores do Campinho (AMOC). Este projeto objetivava gerar renda por meio do
turismo étnico6, o que poderia impulsionar outras atividades como o artesanato,
agricultura familiar, valorização cultural, defesa do meio ambiente e gestão social.
Foram necessárias reconstruções de manifestações culturais que estavam
esquecidas foram retomadas e são hoje valorizadas e mantidas, como o jongo, a roda de
samba e a capoeira.
Como foram feitas essas ações de reconstrução as tradições culturais afro
brasileiras determinadas pelo Estado como pertencentes de comunidades quilombolas?
Essas reconstruções se desenvolveram a partir de parcerias com a Associação de
Moradores do Campinho (AMOC) e agentes externos como pesquisadores, ONGS,
Prefeituras, dentre outros, através de políticas públicas para o desenvolvimento do
turismo no local.
Uma dessas ações foi instalação do Ponto de Cultura, que é uma política pública
do governo com objetivo de suprir as necessidades de toda a diversidade cultural no
país. O Ponto de Cultura Manoel Martins, foi uma iniciativa da pedagoga e artista
plástica Patrícia Solari, moradora do bairro vizinho do quilombo Pedra Azul. Esta ao
saber do edital público do Ponto de Cultura, idealizou um projeto que foi apresentando
ao quilombo. Dentre as oficinas propostas foram desenvolvidas: Oficinas de cestaria,
cerâmica, agricultura com os griôs, capoeira, percussão, construção de tambores e
Jongo.
6 Segundo o Ministério do Turismo (BRASIL, 2006, p. 13), “o turismo étnico é a vivência de experiências
autênticas e o contato direto com os modos de vida e a identidade dos grupos étnicos”.
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Dentre essas oficinas que foram importantes para a reconstrução da identidade
quilombola, temos como exemplo o artesanato que já fazia parte da tradição das
mulheres que utilizavam palhas, cipós e bambus para confeccionar seus trabalhos.
Antigamente vinha um atravessador para comprar o artesanato no Campinho e vendia
no centro de Paraty. Eles compravam o artesanato por um valor baixo e vendiam pelo
dobro do preço. A partir daí as mulheres iniciaram a expor seus trabalhos atrás da igreja,
depois a comunidade começou a pensar em ter sua própria loja de artesanato
comunitária. Porém durante o Ponto de cultura foram oferecidas oficinas de cestaria e
cerâmica, que poderiam impulsionar novas atividades, fazendo surgir novas artesãs na
comunidade. Atualmente existem vinte e cinco artesãs na comunidade que expõem seus
trabalhos na loja comunitária, porém existem artesãs que são autônomas e vendem suas
peças no centro histórico de Paraty.
Uma outra importante reconstrução cultural foi o Jongo7 que se desenvolveu a
partir de uma oficina ministrada dentro do projeto do Ponto de Cultura8.
O Jongo do Sudeste foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico
Artístico Nacional (IPHAN) como Patrimônio Cultural Imaterial em 2005. Segundo
Nepomuceno, Marques, Campos, et al, (2008, p.12), “o Jongo desapareceu em muitas
comunidades quilombolas do sudeste do Brasil, devido a discriminação que a sociedade
expressava em relação as práticas culturais afro-brasileiras”. Porém através da atuação
de agentes externos, manifestações culturais afro brasileiras vem sendo resgatadas como
forma de reconstruir a identidade quilombola.
No Campinho essa ação de “resgate” cultural foi feita por Délcio Bernardo, que
é militante do movimento negro e de família jongueira de Angra dos Reis. Sua atuação
foi importante, pois foi chamado pela Associação de Moradores do Campinho para
realizar a oficina na comunidade que durou dois anos e foi realizada junto a Luciana da
Silva, jongueira da comunidade quilombola do Bracuhy em Angra dos Reis. Durantes
7
8 O Ponto de Cultura foi uma política pública do Ministério da Cultura. O Ponto de Cultura
Manuel Martins, foi desenvolvido no Quilombo do Campinho da Independência, nos anos de 2004 e
2005, sendo da cidade de Paraty.
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03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
essas oficinas também foram organizados debates e discussões segundo relato de
Délcio9 “foram debatidas questões como desigualdade social e racismo, buscando a
construção da imagem positiva do negro dissociada do estigma de inferioridade, além
de discussões políticas onde aconteciam conversas sobre África e preconceito que eram
importantes debates para a construção da identidade quilombola.”. Percebe-se a
importância do movimento negro nas comunidades quilombolas, pois os agentes do
movimento visualizam nessas comunidades uma importante base política, auxiliando o
trabalho de “resgate” as manifestações culturais afro brasileiras.
Cabe assinalar que a comunidade do Campinho formou após a oficina de Jongo,
um grupo de jovens jongueiros que se apresentam em eventos dentro de fora de Paraty,
no Encontro da Cultura Negra e também passou a fazer parte do roteiro turístico no
local.
O roteiro de visitação turística no Campinho utiliza de aspectos como a história,
memória, modo de vida tradicional e ecológico. Esse roteiro se inicia com a contação de
história com os Griôs (pessoas mais velhas, detentores dos saberes e da história), onde
estes apresentam aos visitantes a história da sua origem, a luta pela terra e as memórias
de como viviam no passado. Posteriormente é feita uma visita a comunidade com um
guia local, onde são apresentadas as plantas medicinais usadas por eles, os núcleos
familiares, a casa de farinha e a agrofloresta. A visita termina no centro da comunidade,
onde é apresentada a escola, o centro de saúde, a igreja católica, a casa de artesanato e a
Associação dos moradores (AMOC).
O processo de turisficação do Campinho se deu a partir da atuação de agentes
externos, impactando e mudando a dinâmica de algumas pessoas da comunidade que
passaram a trabalhar com o turismo. Segundo entrevista com Tina10
, moradora local,
esta passou a viver do turismo e fala sobre a mudança em seu modo de vida.
““O turismo mudou nossas vidas porque conheço pessoas diferentes
de vários lugares do mundo, meu marido pode ficar mais tranquilo,
não precisa se matar para trabalhar, e o que temos podemos
9 Entrevista realizada dia 5 de agosto de 2013.
10 Entrevista realizada dia 27 de abril
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
sobreviver. Quando começa a temporada, ele fica aqui para me ajudar.
Melhorou bastante”. Começamos a alugar um quartinho. Um rapaz
uruguaio pediu para ficar aqui três dias acampado, pois achava que
Trindade era muito agitado e acabou ficando três meses e ele que deu
a ideia do camping. Começamos a capinar, pois tínhamos plantação de
batata, aipim, milho. Não vinha ninguém aqui. Pedimos para botar no
site do campinho e ficamos isolados. A Dani que arrumou as primeiras
pessoas para ficar aqui e de boca em boca as pessoas começaram a
aparecer. Geralmente hospedam se aqui grupos de estudantes que
fazem atividades na comunidade, e pessoas que vem passar o final de
semana. Temos mais ou menos quatro anos e começou a movimentar
mesmo de dois anos pra cá. Começamos a empregar o dinheiro aqui
mesmo. Construímos novos quartos, melhoramos o camping e
estamos melhorando aqui para ter uma boa estrutura para as pessoas
poderem voltar novamente”.
Percebemos que aconteceram processos orgânicos para o turismo com pessoas
da comunidade abertas para experimentar essa atividade em seu local.
Por mais que tenham existido políticas públicas para o desenvolvimento do
turismo na comunidade, os próprios moradores percebendo seu valor cultural passam a
querer fazer parte dele. Esse fato é relatado na entrevista com Daniele11
, uma das
pessoas da comunidade que organizam o turismo no local.“Depois de ser titulado,
passado um tempo, uns dois anos, nós nos deparávamos com grupos de guias com uma
van falando uma história que eles criaram. Nós falamos peraí, nós temos potencial
turístico, a gente que tem que trabalhar, aqui não pode ser explorado por ninguém de
fora. Chamamos uma família de amigos para vir aqui, caminhar e fizemos um rango.
Eles disseram que tinha que melhorar muito. Depois o pessoal da Rural12
vinha ficar na
comunidade, fazíamos o rango na escola.” .
Após a titulação de suas terras, as comunidades quilombolas antes não
reconhecidas pela sociedade passam a ser valorizadas pelo governo brasileiro e o modo
de vida quilombola se torna um atrativo turístico, reforçando positivamente elementos
perdidos da cultura.
11
Entrevista realizada dia 27 de junho de 2013. 12
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
Conclusão
No Quilombo do Campinho, o processo de turisficação foi impulsionado por
políticas públicas e atuação de agentes externos, não nascendo como um desejo da
comunidade, mas encontrou-se com a necessidade latente de buscar alternativas de
desenvolvimento.
Foram necessárias reconstruções culturais, pois muitos descendentes de
quilombolas sofrem de resquícios do cativeiro colonial, o que os distanciou de seus
saberes e fazeres culturais, sua memória e identidade.
Algumas dessas reconstruções culturais tornaram se patrimônio cultural
imaterial como no caso do Jongo, o que contribuiu para gerar visibilidade a cultura afro
brasileira.
O patrimônio tende a ser apropriado pelas políticas públicas de governo que
deve ser usado para dinamizar economias locais fragilizadas. Uma das razões para o
crescimento da patrimonialização é a emergência de novas identidades culturais e
reconfiguração de outras. Para Hall (2006, p.7), “as velhas identidades, responsáveis
pela estabilidade do mundo social, estão entrando em declínio e sendo substituídas pelas
novas identidades que são caracterizadas pela fragmentação do individuo moderno, que
tem gerado grande mudança estrutural nas sociedades”.
A identidade quilombola possibilita a formação de uma neocomunidade, pois
está vinculada a reconstrução de saberes, no sentido de práticas que se haviam
retomadas e reativadas. Sendo assim as manifestações culturais afro brasileiras
passaram a ser valorizadas a partir de políticas de patrimonialização que contribuíram
para o desenvolvimento do turismo em comunidades quilombolas.
Referências
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Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
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