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  • 33 Encontro Anual da Anpocs

    GT 01: A cidade nas cincias sociais: teoria, pesquisa e contexto

    Favelas, Periferias: uma reflexo sobre conceitos e dicotomias

    Thas Troncon Rosa

    setembro 2009

  • Favelas, Periferias: uma reflexo sobre conceitos e dicotomias1 Thas Troncon Rosa

    A partir dos anos 1960, com o crescimento vertiginoso da populao urbana no Brasil, a questo do espao de moradia dos pobres na cidade ganha maior visibilidade, especialmente atravs da multiplicao de favelas em algumas de suas principais capitais. Tomando tal questo como mote, todo um campo de estudos sobre o urbano se consolidar no pas, pautado, em um primeiro momento, pelo grande interesse despertado pelo tema da favela carioca e, posteriormente, pela anlise das periferias que se espraiavam nas regies metropolitanas, notadamente em So Paulo.2

    Tal evoluo temtica teria acompanhado as mudanas ocorridas nos cenrios poltico e urbano brasileiros, sob influncia, entretanto, de marcos tericos especficos presentes no pensamento sociolgico latino-americano nas dcadas de 1960 e 1970. Assim, as primeiras abordagens de cunho acadmico das favelas cariocas se fizeram no contexto do debate sobre a articulao entre a teoria da marginalidade social e a idia de uma cultura da pobreza, a partir da qual esses espaos foram interpretados como a mais tpica manifestao da no-integrao de amplos segmentos da sociedade urbana.3 J os primeiros estudos acadmicos sobre as periferias paulistanas representariam uma superao desse referencial, sob influncia da teoria da acumulao capitalista4, promovendo reflexes sobre a relao entre Estado, habitao e condies de reproduo da fora de trabalho e encarando as periferias como espaos urbanos que, ocupados por trabalhadores pobres, seriam socialmente homogneos, esquecidos pelas polticas estatais e localizados tipicamente nas extremidades da rea metropolitana. 5

    1 Este texto apresenta, resumidamente, algumas reflexes e argumentos de minha dissertao de mestrado em Histria Urbana

    (Rosa, 2008). 2 Valladares (1983); Torres et al (2003).

    3 Cf. Vekemans, Roger; Venegas, Ramon. Marginalidad, incorporacin e integracion. Santiago: DESAL, 1966 apud Valladares

    (2005:128). Para um estudo sobre a contribuio e a crtica da teoria da marginalidade social, ver Perlman (1977). A concepo de uma cultura da pobreza foi proposta em: LEWIS, Oscar. Five Families. Mexican case studies in the culture of poverty. New York: The New American Library; Toronto: Mentor Book, 1959. Nessa pesquisa, o autor desenvolve a idia de que habitantes de bairros pobres do Mxico, de origem rural, teriam adotado um estilo de vida especfico, com valores e comportamentos absolutamente diferentes e desconectados da cultura dominante (Valladares, 2005:128).

    4 Tal ruptura ter como referncia paradigmtica o trabalho de Oliveira (1972), que ecoar por toda a dcada de 1970,

    influenciando significativamente os estudos subseqentes sobre as periferias urbanas. Poucos anos depois, a publicao de um conjunto de trabalhos de pesquisa sobre as condies de vida na cidade de So Paulo (Kowarick & Brant, 1975) far circularem de forma mais ampla as proposies que articulavam acumulao e pobreza, introduzindo no debate as noes de periferia e de urbanizao perifrica. Caberia aqui, ainda, destacar alguns trabalhos pioneiros, como: Sampaio & Lemos (1978); Bonduki & Rolnik (1979); Maricato (1979); Valladares (1980), entre outros.

    5 Torres et al (2003:98). Para alguns breves balanos dessas interpretaes, ver Valladares (1983; 2005); Coraggio (1989);

    Kowarick (2000); Marques e Bichir (2001); Frgoli (2005). Diversos outros autores faro meno a esse momento do pensamento sociolgico sobre as cidades no Brasil, frisando sua interlocuo direta com o marxismo-estruturalista francs e, em especial, com as abordagens de Castells (1983) e Lojkine (1981).

  • Alm de consolidarem a favela e a periferia como objetos e campos de estudos urbanos, esses trabalhos pioneiros acabariam por promover sua conceituao, transformando-as em categorias de anlise a partir das reflexes sobre a pobreza urbana e dos debates sobre moradia popular e a produo do espao urbano no Brasil. Ambos os conceitos trariam, em sua origem, uma abordagem dualista da cidade, manifesta inicialmente nas oposies cidade/favela e centro/periferia - dualidades estas perpassadas, em grande medida, pela questo das ilegalidades e irregularidades urbanas que acompanhariam a insero das camadas pobres da populao no espao urbano.6

    Desde ento, diversos e importantes - trabalhos foram produzidos ao longo das dcadas de 1960, 70 e 80 e, ao mesmo tempo em que desvendaram os processos sociais, culturais e de produo material e simblica de tais fenmenos urbanos, construram e formularam conceitos e categorias que, ao longo do tempo, foram sendo incorporados pela linguagem cotidiana e, de certa forma, naturalizados na esfera acadmica. 7

    Nesse sentido, este texto prope, em sua primeira seo, perscrutar a articulao desses estudos com a construo temtica das assim chamadas cidade ilegal, cidade informal ou cidade clandestina, de forma a introduzir alguns questionamentos sobre tais categorias, muito utilizadas ainda hoje nos estudos sobre a produo e a apropriao do espao urbano nas referidas metrpoles: no estariam elas reproduzindo, no plano da anlise do urbano, oposies clssicas e idealizaes recorrentes em diversos estudos sobre os pobres, a pobreza urbana ou a cultura popular? Ao delimitar teoricamente fronteiras demasiado rgidas entre duas formas de produo da cidade uma formal, legalizada e exposta sociedade e outra informal, ilegal e, no mais das vezes, perifrica tais abordagens no deixariam escapar a complexidade de relaes que caracterizam na prtica tais fronteiras?

    A partir desses questionamentos, busca-se, na segunda seo deste texto, dialogar com alguns trabalhos que, mais recentemente, tm procurado articular diferentes teorias, mtodos e fontes de pesquisa para enfrentar as diversas questes relativas aos fenmenos urbanos das favelas e periferias no Brasil, especialmente a partir das transformaes ocorridas nos ltimos vinte anos pelo menos. A tentativa de compreender as permanncias e rupturas frente a tais fenmenos, tanto do ponto de vista das dinmicas em curso nesses espaos quanto do ponto de vista conceitual, o mote de vrios desses

    6 Valladares (2005); Zaluar & Alvito (2003); Torres et al (2003); Silva (2006).

    7 Espao & Debates (2001:5).

  • estudos, que vm sendo produzidos desde o fim dos anos 1990 e ao longo dos anos 2000. Este , tambm, o mote da pesquisa de mestrado que movimenta este texto. Tendo

    em vista que grande parte desses estudos (seguindo os caminhos daqueles pioneiros) tm se focado quase que exclusivamente nas grandes metrpoles - Rio de Janeiro e So Paulo prioritariamente e que, portanto, aspectos tanto da uniformidade quanto da heterogeneidade desses fenmenos poderiam passar despercebidos, a pesquisa procurou compreender em que medida tais perspectivas tericas e suas construes conceituais poderiam oferecer subsdios para a interpretao das favelas e periferias urbanas no Brasil enquanto fenmenos simultaneamente uniformes e diversos8, sem desconsiderar algumas especificidades relativas aos vrios contextos urbanos.

    Assim, a partir da abordagem histrica e em profundidade de um estudo de caso no-metropolitano, a pesquisa em foco pretendeu levantar algumas questes acerca da produo e apropriao do espao em favelas e periferias urbanas. Tal estudo de caso trouxe tona algumas dificuldades relativas ao enquadramento conceitual dos espaos de moradia dos pobres na cidade e permitiu entrever que, no bojo dessas dificuldades, estaria a escassez de pesquisas que se proponham a apreender a historicidade dessas formas sociais urbanas9, que so produzidas e apropriadas cotidiana e processualmente.

    Buscando lanar luz justamente a esse processo histrico, que se molda a partir de uma multiplicidade de relaes estabelecidas entre diversos atores sociais, sob condies e contextos variados, a pesquisa sugere a existncia de permeabilidades e cruzamentos entre os supostos plos configurados pelos pares conceituais cidade e favela, centro e periferia, cidade formal e informal, cidade legal e ilegal, que muitas vezes as definies e estratificaes categricas parecem obscurecer.

    Dito isto, este texto pretende, ainda - na medida em que seus limites o permitirem -, articular as reflexes apresentadas em suas duas primeiras sees tanto a alguns dos enfrentamentos metodolgicos que nortearam a referida pesquisa, quanto a alguns dos principais argumentos e consideraes decorrentes do estudo de caso realizado: alm de buscar torn-las mais palpveis, espera-se, quem sabe, introduzir alguns matizes no frtil debate sobre os conceitos de favela e periferia, bem como as dicotomias que eles encerram.

    8 Durham (1986).

    9 Valladares (2005:145).

  • Sobre a dicotomizao da cidade: cidade ilegal, cidade informal?

    Acompanhando os caminhos que promoveram a construo conceitual das favelas e periferias no mbito dos estudos urbanos10, possvel apreender que j na origem de ambos os conceitos estariam presentes interpretaes dicotmicas da cidade, das quais esses fenmenos urbanos seriam o avesso: territrios parte, sem lei, sem Estado, sem urbanidade. Produzidos em sentido contrrio aos discursos e prticas normatizadores da sociedade urbansticos, jurdicos, polticos, entre outros esses espaos seriam o extremo oposto da ordem e da formalidade da cidade.

    Consolidadas nos debates acadmico e poltico e legitimadas socialmente como os espaos da pobreza nas cidades, as favelas e periferias seriam mesmo indissociveis da concepo dual e hegemnica - da realidade urbana, que no correr das ltimas dcadas se expressaria atravs de diferentes polaridades, tais como formal-informal, integrado-excludo, favela-bairro, centro-periferia, sempre tendo a questo da ilegalidade como um dos critrios diferenciadores desses supostos plos.11

    De fato, ao longo de todo o processo de urbanizao brasileiro, a relao entre ilegalidade e pobreza tornou-se praticamente inexorvel: a insero das camadas pobres da populao no espao urbano tem sido problematizada, em grande medida, pela questo da ilegalidade urbana, ou da chamada cidade ilegal 12. No apenas no Rio de Janeiro - a partir da enorme difuso das favelas pelo espao urbano -, mas tambm na cidade de So Paulo, as origens da constituio de uma outra cidade para alm da cidade legal remontariam s primeiras dcadas do sculo XX13, ainda que a questo tenha ganhado maior visibilidade apenas no momento em que a progressiva expanso das periferias atingiria dimenses extremas, entre as dcadas de 1960 e 70.

    Antiga como fato e como representao social14, portanto, a tematizao da

    10 No primeiro captulo de minha dissertao de mestrado (Rosa, 2008) percorri, de forma panormica, alguns dos caminhos

    tomados pelos estudos de favelas e periferias urbanas no Brasil desde sua descoberta social e acadmica: a inteno foi recuperar alguns dos principais debates sobre tais fenmenos, no mbito dos estudos urbanos, desde sua construo enquanto problemas sociais, categorias, campos ou objetos de estudos, frisando as continuidades e descontinuidades nos debates ao longo dos perodos enfocados. As questes aqui apresentadas somente se fazem possveis em razo dessa reviso crtica realizada anteriormente, a qual no caberia retomar em detalhes neste texto, dados os limites do mesmo.

    11 Lago (2003:2).

    12 Ainda que as diversas formas de ilegalidade e irregularidade urbanas no se restrinjam a uma camada social especfica, os

    espaos de moradia dos pobres na cidade as tornam particularmente visveis, por associarem-nas, muitas vezes, a situaes crticas que envolvem riscos, em reas imprprias para a ocupao, como margens de crregos, terrenos ngremes etc. (Panizzi, 1989; Silva, 2006). Alm disso, a ilegalidade das camadas mdias e altas no tem sido problematizada pelas foras progressistas que, desde a Constituinte, vm atuando no campo das polticas urbanas (Lago, 2003:2).

    13 Rolnik (1997:30) apresenta como, desde as primeiras dcadas do sculo XX, a cidade j estaria delimitada entre uma rea onde

    prevaleceria a aplicao rigorosa da legislao urbana a cidade legal e uma outra - extralegal onde tudo que no se adaptasse frmula poderia ocorrer.

    14 Ainda segundo Rolnik (1997), j em 1931, o prefeito Luis de Anhaia Mello apresentaria, em Congresso de Habitao, no Instituto

  • cidade ilegal ganharia concretude a partir dos estudos acadmicos que desde a dcada de 1970 vm refletindo sobre a questo urbana no Brasil, como se ver mais adiante.15

    Caberia antes destacar, aqui, o mote que me faz considerar importante revisitar criticamente os conceitos de cidade ilegal e cidade informal moldados desde ento: o retorno contundente ao debate pblico, a partir dcada de 1990, das concepes dualistas da cidade, em funo, principalmente, do renovado interesse no apenas acadmico pelo problema da favela. A centralidade adquirida por temas como o trfico de drogas e a violncia urbana conferiria legitimidade social a tais concepes, que acabariam, de certa forma, por territorializar nas favelas a excluso social, a violncia e a ilegalidade urbana, minimizando-se, nas cenas acadmica e poltica, outros espaos representativos desse universo, como as periferias metropolitanas e os loteamentos que as conformam, os quais, nos anos 70 e 80, apareciam como a expresso maior dos problemas urbanos.16

    Partindo da chave de leitura da excluso, diversos estudos produzidos nesse contexto atestariam o agravamento dos contrastes socioespaciais entre os espaos de moradia dos pobres na cidade (associados quase genericamente s favelas) e a cidade em si, tornando-se freqentes nos debates pblicos no apenas cariocas -, desde ento, as metforas de cidade partida, apartheid socioespacial, bem como a associao desses espaos a guetos, enclaves, bolses de pobreza etc.17

    Nessa perspectiva, acentuaram-se aquelas interpretaes das favelas e periferias a partir do que elas no tm. Ausncia de leis, ausncia do Estado, ausncia de direitos, ausncia de cidadania, ausncia de ordem, ausncia de planejamento em ltima instncia, ausncia de cidade propriamente dita. Atravs da qualificao pela negao que um dos modelos tericos bastante recorrentes nos estudos sobre os pobres, os trabalhadores, as classes populares18 as favelas e periferias so compreendidas

    de Engenharia, a existncia de uma cidade clandestina que superaria a cidade oficial em proporo. 15

    Rolnik (1997); Lago (2003); Silva (2006). 16

    Lago (2003:2); Valladares (2005); Zaluar & Alvito (2003). A despeito da diversidade temtica e de abordagem introduzida ao longo das dcadas de 1960 e 70 nos estudos acadmicos sobre a favela, o fim da dcada de 1970 e os anos 80 vero decair o interesse destes pelo tema: naquele momento, as atenes das pesquisas voltavam-se ao intensivo crescimento das periferias urbanas, em curso desde pelo menos a dcada de 1950 nas mais diversas metrpoles e, mais especificamente, em So Paulo. De fato, um vasto e importante conjunto de pesquisas foi produzido durante as dcadas de 1970 e 1980, tendo como foco privilegiado as periferias urbanas. Entretanto, seguiu-se a ele o paulatino desaparecimento das periferias urbanas como tema de interesse dos pesquisadores: j no fim dos anos 1980 e durante toda dcada de 1990, enquanto se assistia progressiva consolidao desses espaos urbanos, a problemtica da periferia seria relegada a um plano secundrio nos debates acadmicos (Espao & Debates, 2001:5). Nessa mesma poca se renovaria o interesse pelo tema das favelas, tanto no Rio de Janeiro - a partir do estmulo das polticas pblicas e em especial do Programa Favela-Bairro e da importncia assumida nos debates pblicos sobre a criminalidade (Valladares, 2005:141, 142) - como tambm em So Paulo, em funo de sua significativa proliferao, principalmente nas periferias da cidade (Saraiva & Marques, 2004). Mais recentemente, diversos estudos tm voltado suas atenes novamente para as periferias paulistanas, conforme apresentarei na prxima seo deste texto.

    17 Ribeiro & Lago (2001); Valladares (2005).

    18 Sarti (1994); Zaluar (1985); Caldeira (1984); Paoli & Sader (1986); Paoli, Sader & Telles (1983).

  • sempre em oposio quilo que lhes seria negado (e queles que os negariam, ou, ainda, a quem eles negariam, dependendo do referencial adotado): repem-se, nas dicotomizaes cidade/periferia, asfalto/favela, as oposies clssicas ou falsas oposies - que permeiam o pensamento social sobre os pobres, a pobreza urbana ou a cultura popular.19

    Ainda que a polarizao de tais conceitos, para efeito de anlise, possa ter sua funo, a fim de compreender as distintas situaes por contraste e comparao, ela acaba por se reproduzir em discursos miditicos e informa o senso comum, alimentando a (re)produo de esteretipos e a interpretao homogeneizante de fenmenos to complexos e diversos quanto as favelas e periferias urbanas.

    o que podemos compreender, por exemplo, ao analisar o processo que consolidou as idias de cidade informal e cidade ilegal, disseminando uma viso dicotmica da cidade, uma dcada antes de vermos reeditadas as metforas dualistas sobre as favelas no Rio de Janeiro. Ainda que a questo da ilegalidade urbana estivesse presente de longa data na cidade de So Paulo, essa conceituao emergir de forma ampliada no debate pblico, principalmente a partir dos referidos estudos macroestruturais sobre as periferias paulistanas, que tm lugar nas dcadas de 1970 e 1980. Esses estudos, ao procurar compreender o modelo de urbanizao pautado pela periferizao e pela segregao espacial, trouxeram luz alguns de seus mecanismos, enfatizando as condies salariais da classe trabalhadora, a expulso direta dos ncleos por ao de programas de remoo de favelas e renovao urbana, a expulso indireta em decorrncia da legislao e taxao urbanas e, ainda, a especulao imobiliria.20

    Tais mecanismos teriam, portanto, promovido a expulso, dos centros das cidades, das populaes pobres, que encontrariam nas periferias espaos mais condizentes com sua situao econmica e social. Na grande maioria das vezes, esses espaos, ainda inabitados, seriam loteados e/ou ocupados de forma ilegal, sendo justamente a completa ausncia de infra-estrutura e regularizao ou seja, sua informalidade - que permitiria o barateamento e o conseqente acesso dessas parcelas

    19 Canclini (2000); Coraggio (1989). Arriscaria dizer que tais interpretaes, ao pensarem uma cidade dividida, poderiam ser

    encaradas como uma transposio, para o campo do espao, daquelas diversas anlises que se estruturam sobre uma viso dicotmica da sociedade, dividida em ns/eles, trabalhadores/burguesia, cultura popular/cultura hegemnica, arcaico/moderno, sociedade/Estado etc. Zaluar & Alvito (2003) afirmam que as origens desse pensamento dualista sobre a cidade remontariam s representaes, produzidas no sculo XIX, referentes existncia de dois Brasis, um urbano e moderno e outro tradicional, rural, atrasado: segundo os autores, essa reflexo sobre a dualidade brasileira encontrou na oposio favela X asfalto uma de suas encarnaes (p.13).

    20 Valladares (1983:48).

  • da populao a esses solos urbanos perifricos.21 Nesse contexto, as cidades passariam a ser compostas de uma verso formal, legislada, conhecida e exposta, e de outra informal, ilegal, invisvel. A produo e a apropriao do espao nesta cidade informal a periferia estaria pautada, principalmente, pelo binmio loteamentos clandestinosautoconstruo, atravs dos quais, com a conivncia do Estado22, a prpria populao arcaria com todos os custos de sua insero e permanncia no espao urbano, devendo construir sua prpria cidade atravs de mltiplos conflitos e margem da legislao em vigor, ou seja, na ilegalidade.23

    A partir da compreenso, atravs dos estudos acadmicos mencionados, desse sistema informal institudo como regra e possibilidade quase que exclusiva de insero e permanncia das populaes pobres na cidade, ser no contexto das disputas pela redemocratizao que esta tematizao da cidade legal versus a cidade clandestina deixar o crculo restrito das anlises acadmicas para ser incorporada ao discurso das mais variadas entidades e movimentos da sociedade civil.24 A contraposio cidade formal/cidade informal ir se propagar principalmente junto aos movimentos por reforma urbana e direito cidade: nesse momento, tal dicotomizao tinha um propsito poltico claro, visando a dar visibilidade aos processos de segregao que constituam a produo das cidades brasileiras.25

    Simultaneamente identificao e publicizao das formas ilegais e desiguais atravs das quais se dava a crescente urbanizao do pas, instaura-se um processo de questionamento do direito positivo do Estado e de disputa pela construo de novos direitos, configurando-se tambm a promessa de uma nova legalidade urbana em gestao, que poderia romper com a ilegalidade ou clandestinidade da cidade

    21 [...] a periferia oferece como fator de atrao a informalidade presente nas relaes sociais entre loteadores, corretores e

    compradores, permitindo classe trabalhadora fazer e desfazer contratos informais e solucionar problemas por relaes face a face (Valladares, 1983:48).

    22 Sobre a posio estabelecida pelo Estado com relao a tais processos de produo informais e ilegais do espao urbano,

    veja-se o que diz Panizzi (1989:89): [...] as infraes s diversas normas so toleradas e, s vezes, incentivadas pelo Estado. Essas prticas sociais ilegais permitem o acesso aos servios urbanos pela populao de baixo poder aquisitivo assim como a urbanizao de bairros ilegais sem investimento pblico. Essas tolerncias possibilitam a venda e a rentabilidade econmica de terrenos cuja regulamentao urbanstica no permite a urbanizao. Sobretudo elas propiciam aos homens polticos apoiarem-se nas reivindicaes populares por infra-estrutura, por servios urbanos e pela legalizao da posse da terra, e, assim, legitimarem sua representao poltica nessas reas. Eles estabelecem, assim, um controle sobre os terrenos ocupados ilegalmente e instauram relaes de clientelismo. Para abordagens mais especficas acerca do contexto paulistano: Grostein (1989); Rolnik (1997), entre outros.

    23 Panizzi (1989:84 grifos meus). Ainda que a maioria dos estudos aqui referenciados tenha se concentrado sobre a produo do

    espao urbano paulistano a partir de um modelo de periferizao, estudos simultneos ou subseqentes apontaram o mesmo processo em diversos outros estados, bem como sua reproduo tambm em cidades de mdio porte. Cf. Panizzi (1989), Durham (1986), entre outros.

    24 Silva (1990:33).

    25 Cf. Caldeira (1984:7 grifos meus): Em outras palavras, foi em um processo poltico que uma fatia do espao urbano,

    qualificada pelo que ela no tinha, passou a ser conhecida como periferia.

  • paralela.26 Apostava-se, nesse momento (fins da dcada de 1980), em uma guinada em termos tanto da legalidade quanto do planejamento urbanos,27 os quais deveriam passar a ser compreendidos como pactos de negociao entre os diversos agentes que produzem e se apropriam do espao urbano e que partiriam justamente da heterogeneidade da cidade real, e no de um modelo abstrato e ideal.28

    Entretanto, como a histria nos mostra, apesar das inegveis conquistas desse perodo, as cidades brasileiras (salvo raras excees) permaneceram produzindo-se, ainda, a partir das aes homogeneizadoras que permearam as prticas de planejamento e que encaram as diferenas pelo vnculo da sua subalternidade29, justamente maneira do que se apostava romper h quase duas dcadas. A discusso trazida tona, na poca, sobre a existncia de duas cidades, uma formal e outra informal, uma legal e outra clandestina, ao longo dos anos foi sendo paulatinamente reapropriada pela mdia, pelo discurso competente30 de polticos e profissionais, por organizaes no-governamentais, por agncias multilaterais e de financiamento internacional. s avessas, tal discusso dotou-se de uma nova legitimidade social, recolocando a questo sob outros pontos de vista, um tanto mais perversos: sejam os da criminalizao e marginalizao generalizada (associados ilegalidade), sejam os da desordem e da necessidade de requalificao (associados informalidade), ou ainda os da filantropizao da pobreza (associados excluso), para citar apenas alguns31.

    Se, em um primeiro momento, a tematizao da cidade informal pretendia contrapor-se a um urbanismo e a uma legalidade urbana elitistas e excludentes, mais recentemente, em um contexto de deslocamentos de sentido decorrentes das mudanas do capitalismo contemporneo32, ela realimenta essas mesmas prticas de interveno e regulao da cidade33. Sem mais poder ignorar as favelas e periferias dada a admisso

    26 Silva (1990: 33).

    27 Tal aposta tinha como referncia o processo de elaborao da Lei Orgnica e do Plano Diretor que se instaurava na cidade de So

    Paulo, sob a gesto da prefeita Luiza Erundina, eleita pelo Partido dos Trabalhadores em 1989. (Silva, 1990) 28

    Silva (1990:35); Rolnik (1997:209). 29

    Silva (1990:35 grifos meus). 30

    Chau (1980). 31

    Telles (2006:62) sintetiza de maneira objetiva esse contexto de esvaziamento de noes que at bem pouco tempo atrs constituam o plano de referncia sob o qual as reflexes sobre as cidades e o pas eram produzidas: Antes, as questes urbanas eram definidas sob a perspectiva (e promessa) do progresso, da mudana social e do desenvolvimento (anos 60/70) e, depois, da construo democrtica e dos direitos sociais como cifra de uma modernidade pretendida como projeto (anos 80). Agora, os horizontes esto mais encolhidos, o debate em grande parte conjugado no presente imediato das urgncias do momento, e o problema da pobreza urbana tende a deslizar e, no limite, a se confundir com os problemas da gesto urbana.

    32 Telles (2006

    33 Pulhez (2007), em estudo crtico sobre a prtica arquitetnica e a urbanizao de favelas, demonstra, atravs de reviso histrica e

    estudos de casos contemporneos, a perversa reapropriao, por agncias internacionais de desenvolvimento e, em consequncia, pelo aparato estatal brasileiro, do iderio de participao popular historicamente construdo por diversos atores sociais em defesa da universalizao dos direitos e da democratizao do Estado, da sociedade e da cidade. Esse processo teria levado

  • da inexorabilidade da pobreza tais prticas, sob o discurso da insero formalidade e legalidade, ora pautam-se pelos j conhecidos mecanismos de consolidao de tais espaos atravs de uma somatria de aes pontuais, espordicas e clientelistas (que, em sua grande maioria, limitam-se a solucionar apenas parte dos problemas, concentrando-se nas questes infra-estruturais emergenciais e visando a manter o controle sobre os moradores), ora apostam na requalificao atravs da urbanizao e da regularizao de tais territrios. Com o pretexto de recuper-los urbanisticamente, estes ltimos assumem, muitas vezes, um carter autoritrio, desprovendo tais espaos de seus significados e identidades, impondo novas lgicas de ocupao, agregando maior valor quelas parcelas de solo urbano que se tornam, assim, passveis de extrao de valor pelo capital imobilirio34, e promovendo, muitas vezes, uma remoo branca35.

    Sob a perspectiva analtica que disseminou essa abordagem dicotmica visando a questionar as formas desiguais por meio das quais a cidade se produzia (e se reproduzia), mais do que nunca esta estaria, atualmente, dividida entre formal e informal, legal e clandestina, imersa nas mais profundas dimenses da tragdia urbana36, uma vez que as parcelas da populao vivendo nessas cidades informais so cada vez maiores, a 'ilegalidade urbana' atinge patamares sem precedentes e, refora-se, cada vez mais, a hierarquizao socioespacial das cidades, marcadas pela combinao entre o desemprego estrutural, a crise de organizao dos movimentos sociais e o abandono do Estado.37

    Dada a evidncia inconteste do aprofundamento das desigualdades socioespaciais, essa abordagem tem prevalecido desde seu incisivo retorno naqueles debates produzidos a partir da dcada de 1990 sobre as favelas cariocas, mencionados anteriormente,

    institucionalizao e consagrao da denominada urbanizao de baixos padres, ao longo dos anos 1990, como soluo eficiente para o enfrentamento das desigualdades urbanas, em um contexto que reduz o papel das polticas estatais gesto da vulnerabilidade social e, articulando discursos to distintos quanto o da necessidade de ajustes estruturais da economia e o do respeito autodeterminao comunitria, legitima a ausncia de responsabilidade do Estado frente s demandas habitacionais e urbanas das camadas pobres da populao.

    34 Nesse contexto de deslocamentos de sentido a que venho me referindo, a defesa da regularizao fundiria, antes bandeira dos

    movimentos pelo direito cidade, tambm perversamente reapropriada: defendendo que a informalidade urbana uma espcie de capital morto e que os poderes pblicos devem integr-los economia de mercado, autores como o economista peruano Hernando De Soto propem a regularizao fundiria em larga escala como forma de, atravs da integrao da moradia ilegal na cidade formal, incluir os socialmente excludos na economia urbana (Lago, 2003). O autor peruano defenderia que os pobres na verdade so ricos, mas incapazes de ter acesso prpria riqueza (propriedade imobiliria construda no setor informal) e de transform-la em capital lquido porque no tm contratos formais e nem ttulos de propriedade. A concesso de ttulos, afirma ele, criaria instantaneamente um enorme patrimnio com pouco ou nenhum custo para o governo, movimentando a economia popular nas favelas e periferias (Davis, 2006:88). Criticando duramente a abordagem de De Soto, Davis (2006:89) associa tais idias ideologia neoliberal e antiestatal predominante, afirmando serem tambm atraentes para os governos, porque lhes promete algo estabilidade, votos e impostos em troca de praticamente nada.

    35 A chamada remoo branca se caracteriza como uma expulso indireta decorrente da valorizao de parcelas do solo urbano e

    conseqente aumento dos custos de vida da populao residente. 36

    Maricato (2002). 37

    Frugoli (2005:144).

  • passando por todo um conjunto de trabalhos estruturados em explicaes gerais sobre a cidade e sua crise, a partir de chaves de leitura como excluso social ou segregao urbana e de tipificaes da pobreza e seus territrios na cidade.38 Alm disso, as representaes do senso comum permanecem profundamente atravessadas por esses modelos dicotmicos de compreenso da sociedade e da cidade, mas no somente: a referncia a essa cidade dicotomizada recorrente em parte significativa das polticas sociais e das intervenes urbanas levadas a cabo nos ltimos tempos, para as quais as favelas e periferias alcunhadas aglomerados subnormais39 permanecem sendo homogneas, perigosas, desordenadas, ilegais e marcadas pela ausnciae pela carncia.

    Entretanto, as mudanas em curso na economia e na sociedade, desde pelo menos o final dos anos 1980 e intensificadas a partir da segunda metade dos anos 1990, vm desestruturando o diagrama de relaes entre trabalho, cidade e Estado a partir das quais se formularam as reflexes sobre a questo urbana no Brasil, embaralhando os pares conceituais que antes pautavam tal debate: no de hoje que se evidencia uma ampliada e crescente zona de indiferenciao entre o lcito e o ilcito, o direito e o no-direito, entre pblico e privado, a norma e a exceo.40

    As referncias gerais sobre emprego e desemprego, transformaes sociodemogrficas e formas de segregao urbana esclarecem pouco sobre configuraes societrias que embaralham as antigas clivagens sociais e espaciais prprias da cidade fordista, com suas polaridades bem referenciadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia, entre mercado formal e mercado informal. (Telles, 2006:49)

    Isso posto, no seria, portanto, o caso de questionarmos, a partir do exerccio crtico aqui esboado acerca da dicotomizao da cidade promovida ao longo de dcadas de estudos urbanos, se tal abordagem, ao delimitar teoricamente fronteiras demasiado rgidas entre duas formas de produo e apropriao da cidade, no deixaria escapar as relaes extremamente dinmicas e mveis que caracterizam na prtica tais fronteiras, em especial no contexto mais recente de produo das cidades, recaindo, muitas vezes, em interpretaes e intervenes - homogeneizantes sobre as favelas e

    38 Telles (2006); Valladares (2005).

    39 A definio categorial Setores Especiais de Aglomerado Subnormal foi estabelecida pelo IBGE e passou a ser adotada por

    certos programas modelares de interveno junto aos territrios da pobreza nas cidades, como o Habitar Brasil Bid, para determinar quais espaos urbanos se encaixariam nas exigncias dos mesmos para concesso de financiamento, ou seja, aqueles que se encontram abaixo dos limites definidos por tais organismos como normalidade. Cf. Ministrio das Cidades (2001 grifos meus): Assentamento Subnormal AS: assentamento habitacional irregular - favela, mocambo, palafita e assemelhados - localizado em terreno de propriedade alheia, pblica ou particular, ocupado de forma desordenada e densa, carente de servios pblicos essenciais, inclusive em rea de risco ou legalmente protegida. Ver tambm Rolnik (1997).

    40 Telles (2006:53).

  • periferias?

    Ao problematizar tais espaos como sendo o avesso da cidade, essas interpretaes acabam por identificar "a cidade" a uma cidade produzida teoricamente, olhando para as cidades reais atravs apenas das lentes que as distanciam cada vez mais dessa cidade conceitual, repondo, muitas vezes, aquele impasse e o conseqente imobilismo - analtico que aponta somente para as dimenses de crise, de tragdia, de ausncia, de desmonte.

    Afinal, que cidade essa que no estaria presente nas favelas e periferias? No seria a mesma cidade que as produz e que tambm produzida por elas? E o que dizer da enorme parcela da sociedade que vive nesses espaos, das prticas, relaes, disputas que os produzem e lhes do sentido cotidianamente? No seriam estes outros aspectos a serem considerados como forma sim - de produo da cidade?

    Diversos autores tm chamado a ateno para o fato de que as anlises pautadas por concepes duais da sociedade e da cidade no tm dado conta de apreender as realidades urbanas em mutao ou, em outras palavras, de compreend-las como processos histricos levados a cabo por um intrincado e multifacetado jogo de atores, uma vez que, a despeito da inegvel existncia das desigualdades e diferenas e de seu significativo aumento nos ltimos anos, j h algum tempo elas vm se condensando em espaos mltiplos, redesenhados a partir de prticas, circuitos e relaes que no cabem nas dualidades supostas nos estudos anteriores41.

    Buscando compreender as permanncias e rupturas frente aos fenmenos das favelas e periferias, tanto do ponto de vista das dinmicas em curso nesses espaos quanto do ponto de vista conceitual, novos estudos vm sendo produzidos desde o fim dos anos 1990 e ao longo dos anos 2000, tateando outras possibilidades de compreenso e interpretao dos mesmos. sobre a senda investigativa aberta por tais trabalhos que se refletir a seguir.

    Favelas, periferias: novas abordagens e perspectivas

    As ltimas dcadas assistiram a uma ampliao crescente dos estudos sobre a produo das cidades brasileiras e seu processo de urbanizao segregatrio, com as deficincias, os colapsos estruturais e os problemas socioambientais dele decorrentes.

    41 Telles (2006:61). Veja-se, por exemplo: Marques & Bichir (2001; 2001a); Torres & Marques (2001); Lago (2003); Valladares

    (2005).

  • Grande parte desses estudos concentraram-se nas grandes metrpoles e, desde a dcada de 1990, vrios deles tm focalizado as distines ou aproximaes entre essas cidades e suas correspondentes internacionais, as chamadas cidades globais ou mundiais, fazendo ecoar o debate internacional sobre os impactos sociais e espaciais das mudanas econmicas nas cidades.

    Tomando, em grande medida, os espaos das favelas e periferias como lcus privilegiado da tragdia urbana, produzem-se abordagens que, pautadas por anlises gerais, levam a concluses j bastante (re)conhecidas, como a ausncia do Estado, a ausncia de cidadania e participao, a carncia generalizada, a segregao socioespacial, a violncia, por vezes (re)construindo esteretipos e tipificaes e (re)alimentando a construo da imagem de cidades caticas, desordenadas e sem salvao.

    Mais recentemente, em especial a partir dos anos 2000, uma gama diversificada de trabalhos passou a introduzir questionamentos a essas explicaes gerais sobre a crise urbana, bem como s definies categoriais de pobreza, excluso ou segregao. Nesse contexto, esforos de reinterpretao das favelas e periferias vm sendo empreendidos, mobilizando e articulando referncias, disciplinas, fontes, mtodos os mais variados. Se, por um lado, reatam-se criticamente fios das abordagens produzidas ao longo das dcadas de 1970 e 1980, por outro, busca-se construir novos parmetros do debate sobre esses fenmenos urbanos.

    H, por exemplo, um conjunto de pesquisas recentes sobre as caractersticas da pobreza urbana, sua cartografia no espao das cidades e as diversas variveis que compem a desigualdade social e a excluso territorial42. Atravs de novos procedimentos de medida e construo de indicadores sociais, do recurso a tcnicas de geoprocessamento de variveis socioeconmicas, da anlise comparativa por cruzamento de dados estatsticos, esses trabalhos vm compondo um universo de evidncias empricas que alimentam o debate recente sobre os chamados novos padres de segregao socioespacial.

    Alguns desses estudos, focados na Regio Metropolitana de So Paulo, contrapem-se idia de esgotamento do padro perifrico43 de expanso da cidade,

    42 So trabalhos que, ainda concentrados nas metrpoles como So Paulo e Rio de Janeiro, de forma geral vm introduzindo uma

    srie de novas questes fundamentais para os estudos sobre as favelas e periferias urbanas no pas. Vejam-se, por exemplo: Preteceille & Valladares (1999; 2000); Torres & Marques (2001); Marques & Bichir (2001; 2001a); Taschner (2002); Torres et al (2003); Saraiva & Marques (2004).

    43 Alguns autores, como Rolnik (1997), consideram que teria havido um esgotamento do padro perifrico de expanso da cidade de

    So Paulo a partir do final da dcada de 1970, quando a crise econmica, marcada pelo desemprego e pelas altas taxas de

  • constatando a permanncia da ocupao de reas periurbanas por populaes de baixa renda como o principal elemento estruturador do crescimento da metrpole44.

    Entretanto, se os dados reafirmam um crescimento perifrico continuado, por outro lado, colocam em questo a oposio dual centro-periferia, que demarcaria um forte contraste entre ambos os plos, a partir de critrios como concentrao de riqueza, infra-estrutura e servios, em progresso decrescente do centro para a periferia45: a despeito da inevitvel constatao das desigualdades que a atravessam, a cidade e suas periferias no seriam to homogneas assim, afirmam tais estudos. So questes importantes trazidas por esse debate recente, que introduzem novidades significativas em relao aos antigos trabalhos sobre as periferias.

    A noo de uma periferia uniforme, ocupada por um grupo socialmente homogneo os pobres , marcada pela ausncia de equipamentos e servios urbanos, vem sendo sistematicamente contraposta. A comear pela concepo de periferia como territrio sem Estado46, propalada, ainda hoje, por grande parte da literatura: algumas dessas pesquisas47 tm demonstrado que, nas duas ltimas dcadas, houve um investimento pblico significativo nas reas perifricas da cidade, especialmente em termos de infra-estrutura, servios e equipamentos urbanos, o que teria sido acompanhado pela melhoria dos indicadores sociais dessas reas.48

    Tais informaes contribuiriam tambm para a desmistificao de outra idia corrente: a homogeneizao da periferia como territrio da pobreza. A identificao de uma crescente heterogeneidade social nessas regies decorrente de diversos fatores: ainda que tenha havido uma melhora nas condies de vida de parte de seus moradores a partir do aumento dos investimentos pblicos nas ltimas dcadas, possvel constatar tambm que, em algumas reas perifricas, ainda persistem significativos diferenciais de

    inflao, combina-se diminuio da oferta de lotes populares, que vinham se tornando mais caros devido s novas legislaes reguladoras e menos numerosos pelo prprio esgotamento de terras disponveis (Silva, 2006:19). O acesso das camadas populares moradia, por dcadas garantido atravs da combinao lotes perifricos-autoconstruo, sofreria um duro golpe, que teria como conseqncia a considervel expanso das favelas e ocupaes organizadas de terra.

    44 o caso dos estudos produzidos pelo Centro de Estudos da Metrpole, coordenados por Eduardo Marques e Haroldo Torres,

    entre outros, e desenvolvidos em conjunto com uma srie de novos pesquisadores que vm sendo formados sob o referencial terico e metodolgico que ali vem se consolidando. Tais estudos apresentam um contraponto afirmao de que o padro perifrico teria se esgotado, uma vez que as favelas e ocupaes de terra se concentrariam, se analisadas em escala metropolitana, em grande medida nas periferias. Nesse sentido, a reflexo sobre as favelas em So Paulo seria, ainda, tributria das reflexes acerca do modelo perifrico, que se perpetuaria, ainda que com caractersticas transformadas (Saraiva & Marques, 2004).

    45 Torres et al (2003).

    46 Silva (2006:22).

    47 Sobre o caso paulistano, vejam-se, por exemplo: Marques & Bichir (2001; 2001a); Torres & Marques (2001). Para resultados

    semelhantes acerca do Rio de Janeiro: Marques (1998; 2000). 48

    Marques & Bichir (2001).

  • condies de vida e atendimento por servios49, revelando situaes distintas de pobreza urbana nas periferias. Alm disso, a diversificao de grupos sociais presentes nessas reas aponta, tambm, para uma distribuio espacial muito mais complexa de pobres e ricos na cidade, nas ltimas dcadas: os trabalhos destacam, nesse sentido, tanto a implantao de condomnios de alta renda nas periferias, como a difuso da pobreza urbana por diversos espaos da cidade, para alm da sua concentrao nas periferias urbanas50.

    Telles (2006) sintetiza com preciso o volume impressionante de informaes produzidas por esses estudos, bem como a escala das transformaes urbanas que eles apresentam:

    Descobre-se que a cidade muito mais heterognea do que se supunha, que seus espaos so atravessados por enormes diferenciaes internas, que pobreza e riqueza se distribuem de formas descontnuas, que os novos empreendimentos imobilirios e equipamentos de consumo alteram as escalas de proximidade e distncia entre pobres e ricos, que os investimentos pblicos realizados nos ltimos anos desenham um espao que j no corresponde ao continuum centro-periferia enfatizado pelos estudos urbanos dos anos 80 e que, enfim, somando tudo, se as desigualdades e diferenas existem e aumentaram nos ltimos anos, elas se cristalizam em um espao fragmentado que no cabe nas dualidades supostas nos estudos anteriores. (Telles, 2006:60,61)

    Um debate semelhante vem sendo feito no Rio de Janeiro acerca das favelas, introduzido, dentre outras, por pesquisas realizadas por Lcia Valladares nos ltimos anos. Em trabalhos51 que tm sido base, inclusive, para outros mais recentes sobre as favelas em So Paulo52, as anlises estatsticas so o instrumento acionado para questionar a tipificao das favelas promovida por grande parte dos estudos53: a favela

    49 Torres & Marques (2001). Introduzindo elementos para o debate sobre essas novas formas de segregao urbana, a partir da

    compreenso de que, a despeito dos investimentos pblicos realizados nas ltimas dcadas nas periferias, ainda persistiriam, em algumas regies, condies sociais extremas, os autores afirmam que a compreenso do fenmeno da segregao espacial na cidade estaria, portanto, menos dependente da presena ou ausncia de equipamentos e servios, e mais associada qualidade, freqncia e aos padres de atendimento diferenciais entre as diversas regies. Atestando que as periferias metropolitanas hoje seriam ainda mais heterogneas do que se considera comumente, incluindo espaos j bem servidos e inseridos na malha urbana e outros cuja populao est submetida cotidianamente a condies ainda mais adversas do que as vivenciadas nas dcadas de 1970 e 1980, os autores levantam a hiptese da existncia de uma espcie de hiperperiferia espalhada entre as periferias crescentemente integradas em termos urbanos.

    50 Caldeira (2000) reflete sobre um novo padro de relaes entre riqueza e pobreza na cidade, a partir da implantao, nas

    periferias urbanas espaos tradicionalmente ocupados pelos pobres -, de condomnios residenciais destinados populao de alta renda. Tratar-se-ia de uma nova modalidade de segregao urbana, na qual pobres e ricos estariam mais prximos espacialmente, mas ainda mais distanciados socialmente, o que se refletiria no isolamento fortificado de tais condomnios em meio a reas ainda precarizadas das periferias. Por outro lado, embora ainda se concentre predominantemente nas periferias, estaria em curso uma espcie de distribuio geogrfica da pobreza por toda a cidade, pulverizando-se em pequenas favelas, ocupaes de interstcios urbanos e no ressurgimento de cortios [Kowarick, 2002; Torres et al, 2003].

    51 Preteceille & Valladares (1999; 2000).

    52 Alguns trabalhos, nessa mesma linha, vm sendo produzidos a respeito das favelas paulistanas tambm pelo Centro de Estudos da

    Metrpole, de forma complementar quelas abordagens anteriormente apresenadas sobre as periferias. Considerando as favelas paulistanas, quando analisadas em escala mais ampla, como um fenmeno muito mais intensamente associado periferia do que usualmente destacado pela literatura, esses trabalhos apresentam concluses bastante prximas s dos estudos cariocas, apontando para a heterogeneidade social e espacial das favelas. Para alguns desses estudos veja-se, por exemplo, Saraiva & Marques (2004).

    53 Cf. Preteceille & Valladares (2000: 481): Nossa inteno, ao realizar esse trabalho, foi testar estatisticamente as diferenas

    presentes ou no no universo das favelas, quando comparadas ao restante do conjunto social. Os autores questionam

  • seria um espao especfico e homogneo de concentrao da pobreza na cidade que, marcado pela irregularidade na ocupao do solo e precariedade em termos de servios pblicos e equipamentos urbanos, estaria engrossando a cidade ilegal.54

    As anlises apontam para a diversidade de situaes identificadas nas favelas, tanto no aspecto da presena de infra-estrutura, servios e equipamentos pblicos atestando que elas no estariam pautadas exclusivamente pela ausncia ou precariedade, havendo situaes variadas entre as mesmas, com porcentagem significativa de favelas cujas condies se igualariam s da chamada cidade formal -, como tambm do ponto de vista da condio legal da ocupao identificando variaes significativas em termos de propriedade da construo e/ou do terreno, no sendo irrelevantes os dados relativos a favelas que apresentam perfil idntico ao de uma urbanizao regular -, ou ainda no que diz respeito s condies socioeconmicas por mais que se verifique que a grande maioria das favelas se encontram abaixo da mdia, h variaes entre elas, revelando a presena de desigualdades dentro da pobreza, ou seja, a existncia de um processo de diferenciao social interna. Por outro lado, aquelas condies freqentemente associadas s favelas - e que as identificariam como os espaos da excluso social na cidade - foram encontradas em porcentagem considervel tambm fora das mesmas, relativizando a idia de que seriam especificidades desses espaos55.

    Em trabalho mais recente, entretanto, a prpria autora alertaria para o fato de que, frente persistncia dos dogmas que encobrem a realidade mltipla das favelas - como tambm da pobreza urbana e da prpria cidade , no bastaria simplesmente fazer a contraprova com base nas evidncias empricas de pesquisas recentes56: para alm da produo de novos dados e informaes, faz-se fundamental problematiz-los mais de perto, repensando os parmetros crticos e descritivos dos estudos urbanos.57

    Nesse ponto, a proposio da pesquisadora converge com uma outra gama de estudos recentes que tomam favelas, periferias, ocupaes urbanas como objetos e campos de reinterpretao da questo urbana brasileira, a partir de percursos exploratrios e pesquisas de campo que buscam compreender os espaos urbanos luz das tramas sociais que os configuram.

    veementemente a abordagem do universo das favelas como uma unidade a favela. 54

    Preteceille & Valladares (2000:460); Valladares (2005). 55

    Preteceille & Valladares (2000:481-483). Caberia ressaltar o quo significativa a aproximao entre as informaes apresentadas pelos estudos sobre as periferias e favelas paulistanas e cariocas, no sentido de apontar novos caminhos para os debates sobre a produo das cidades e a pobreza urbana.

    56 Telles (2006b:143)

    57 Valladares (2005); Telles (2006).

  • Ainda que os dados produzidos pelas pesquisas anteriormente apresentadas venham permitindo uma anlise cada vez mais fina e detalhada do espao urbano, oferecendo uma multiplicidade de informaes sobre suas transformaes nas ltimas dcadas, h outros aspectos dessas transformaes que precisariam ser desvendados: pouco se sabe do modo como os processos em curso redefinem e interagem com a dinmica societria, a ordem das relaes sociais e suas hierarquias, as prticas sociais e os usos da cidade, as novas clivagens e diferenciaes que definem bloqueios ou acessos diferenciados aos seus servios e espaos, bem como de que forma se redesenham, a partir de todos esses processos, o mundo social e seus circuitos, os campos de prticas, as relaes de fora e o prprio espao da cidade.58 Partindo das constataes e novidades introduzidas pelas evidncias empricas mobilizadas por aquelas pesquisas, a gama de trabalhos em questo procura matizar tais diagnsticos, verificando de que modo todas aquelas transformaes esto sendo operadas na prtica: a partir de que jogos de atores, de quais relaes e atravs de que mediaes elas se configuram?

    Nessa perspectiva, h um nmero significativo de trabalhos importantes sendo produzidos em conjunto e enfocando essencialmente periferias e favelas paulistanas59, alm de diversas outras pesquisas que, sem conexo direta entre si, vm pautando-se por abordagens semelhantes, tratando, alm desses espaos, tambm das favelas cariocas60. So estudos recentes, muitos ainda em andamento, no sendo possvel, portanto, apreender desde j se um novo plano de referncias poderia estar se compondo a partir dessas reflexes. Entretanto, algumas caractersticas em comum podem ser identificadas, e so de grande valia para este estudo.

    Na tentativa de renovar e articular parmetros crticos e parmetros descritivos para pensar o urbano61, nota-se, entre os trabalhos, a prevalncia absoluta da pesquisa de campo: tornou-se imperativo retomar o debate sobre o mtodo, atravessar as

    58 Telles (2006:49).

    59 Refiro-me aqui, principalmente, ao trabalho conjunto de pesquisa coordenado por Vera da Silva Telles e Robert Cabannes e

    desenvolvido com a participao de um verdadeiro coletivo de pesquisa. O livro organizado por Telles & Cabannes (2006) alm de oferecer um rico panorama das pesquisas desenvolvidas, pode ser considerado uma referncia fundamental sobre as novas abordagens aqui mencionadas. Alm do livro, vejam-se tambm: Silva (2006); Hirata (2005); Ferreira (2005); alm de outras pesquisas ainda em andamento ou recentemente concludas, como as de Jos Csar Magalhes Jr, Tiaraju Dandrea e Carlos Freire, apresentadas no Seminrio Experincias de pesquisa: relaes sociais e espaos urbanos, realizado na EESC-USP, em 2006, do qual tambm participei.

    60 Vejam-se, por exemplo: Feltran (2005; 2008); Freire (2005); Piccolo (2006); Rizek (2006); Cavalcanti (2007); Pandolfi &

    Grynzpan (2003), Alvito (2001); Zaluar & Alvito (2003); Rosa (2006); Pulhez & Rosa (2007); Pulhez (2007). H, obviamente, uma srie de outros trabalhos sendo produzidos sob perspectivas semelhantes; menciono aqui apenas alguns dos quais me foi possvel tomar conhecimento durante a realizao da pesquisa de mestrado qual vincula-se este texto.

    61 Duplo desafio: a construo de parmetros crticos (e a reativao da tradio crtica das cincias sociais) implica, ao mesmo

    tempo, a construo de parmetros descritivos para colocar em perspectiva realidades urbanas em mutao (Telles, 2006:48).

  • fronteiras disciplinares e encontrar formas mais precisas de descrever tais realidades urbanas e suas composies sociais62. A prtica restrita da interdisciplinaridade63 algo em comum a destacar nesses trabalhos, em que perspectivas antropolgicas e aproximaes a mtodos etnogrficos so experimentadas, de variadas maneiras, em suas interfaces com a sociologia, a cincia poltica, a psicologia social, a arquitetura e o

    urbanismo. A ateno a categorias e representaes nativas; a apreenso, atravs de trajetrias individuais e familiares, de prticas, processos e expedientes mobilizados na produo do espao urbano; a perspectiva relacional adotada para compreender tais fenmenos a partir dos cruzamentos, das mediaes, dos agenciamentos, das relaes que os produzem: eis alguns dos recursos mobilizados na tentativa de promover uma reviso analtica e conceitual do universo em questo que, obviamente, tarefa de grande envergadura e exige um esforo conjunto de pesquisa, que parece estar em curso.

    Um questionamento de fundo atravessa boa parte dos trabalhos mencionados nesta seo, os quais, sob distintas abordagens tericas e metodolgicas, tm nas favelas e periferias seu foco de ateno: seria possvel superar as dualidades atravs das quais essas realidades foram lidas durante dcadas? At onde seria possvel desconstru-las? Em que medida seria possvel us-las como polaridades provisrias?

    H, de fato, uma espcie de crise de conceituao, como se o uso indiscriminado de certos conceitos e categorias tivesse promovido seu esvaziamento: j lugar comum dizer que nossas teorias e categorias de anlise no do conta das novas realidades.64 Hiperperiferia, periferia consolidada, periferia no-consolidada, periferia metropolitana, favela consolidada, favela urbanizada, favela de periferia, comunidade: h todo um novo lxico sendo gestado65, ainda disforme, decorrente da necessidade de nomear novos fenmenos urbanos resultantes de uma cada vez mais crescente diferenciao dos espaos da pobreza nas cidades. Na medida em que os estudos tm procurado demonstrar, descrever e compreender as insuspeitadas transformaes pelas quais esses espaos e as prticas, os processos e os expedientes mobilizados em sua produo - vm passando nas ltimas dcadas, os conceitos e

    62 Cf. formulao de Gabriel Feltran, em verso preliminar de sua tese de doutorado em Cincia Poltica (Feltran, 2008).

    63 Entendida como dilogos, interseces, trocas controladas entre campos disciplinares. Cf. Lepetit (2001).

    64 Telles (2006:54).

    65 Alguns estudos bastante interessantes foram produzidos sobre os processos histricos de constituio dos vocabulrios para

    nomear as experincias, as prticas ou os espaos urbanos, como: Pereira (2001); Bresciani (2001).

  • categorias antes acionados como cidade informal, cidade ilegal, ou mesmo favela e periferia parecem j no dar conta da diversidade de realidades66 que continuam a nomear de forma genrica, impondo, no mnimo, a reflexo sobre seus usos, para que no se perca sua capacidade interpretativa.

    Sem a pretenso de responder ou oferecer explicaes, estas foram tambm, em grande medida, algumas das questes que estiveram no horizonte da pesquisa de mestrado qual se vincula este trabalho. Ao propor investigar uma questo j to debatida como a produo do espao urbano a partir das favelas e periferias, tal pesquisa tomou como pressuposto entend-la de forma indissocivel da apropriao que se faz desses espaos. A produo e a apropriao do espao nas favelas e periferias urbanas foram, portanto, encaradas como processos histricos construdos por atores sociais reais, numa multiplicidade de relaes, sob condies e contextos diversos e atravs de prticas cotidianas permeadas de constrangimentos, conflitos, disputas, negociaes e invenes.

    Essa perspectiva trouxe tona a necessidade de se repensarem as formas de compreender tais espacialidades, bem como as tramas sociais que as produzem: significou encarar a cidade, e suas favelas e periferias, no apenas como conceitos, mas como campo de prticas67, entendidas segundo a interpretao de Certeau (1994), para quem as prticas cotidianas so constitudas tanto atravs do dilogo permanente entre passado e presente, como da justaposio das dimenses qualitativamente heterogneas de espao e tempo68.

    Nesse sentido, tal pesquisa procurou demonstrar que uma abordagem processual e histrica da produo de favelas e periferias urbanas - encaradas como fenmenos em formao, como tramas em constante transformao - poderia revelar algumas das continuidades e rupturas que ao longo dos ltimos trinta anos se estabeleceram frente s dinmicas socioespaciais que as produzem e s designaes e conceitos que as nomeiam e significam.

    As trilhas tericas percorridas algumas das quais apresentadas nas duas

    66 Veja-se, por exemplo, o caso das periferias: so j significativos os trabalhos que enfocam a multiplicidade de formas urbanas em

    que se desdobraram as periferias nas ltimas dcadas - loteamentos, ocupaes, favelas, conjuntos habitacionais, mutires etc bem como seus distintos graus de precarizao e/ou consolidao.

    67 Cf. RONCAYOLO, Marcel. La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1978 apud Telles (2005). Dialogando com este mesmo

    autor, tambm Lepetit (2001) ir propr, em vrios de seus textos, que se encare a cidade como uma categoria da prtica social.

    68 Segundo Certeu (1994), as prticas cotidianas seriam um misto de ritos e bricolagens, manipulaes de espaos, operaes de

    redes, expectativas, negociaes e improvisaes determinadas pela circunstncia, pela ocasio e pela urgncia conjuntural.

  • primeiras sees deste texto - foram imprescindveis nesse sentido, uma vez que tornaram possvel compreender alguns dos processos de construo no somente dos fenmenos urbanos das favelas e periferias em si, mas tambm das representaes sobre eles, bem como sua transformao em objetos de estudo, em conceitos e designaes genricas favela, periferia, cidade informal, cidade ilegal, entre outras.

    A percepo de que os prprios conceitos de favela e periferia trariam, desde sua origem, uma abordagem dicotmica da cidade, somada compreenso dos modos pelos quais disputas polticas teriam trazido a pblico os debates sobre tal abordagem, assim como dos deslocamentos perversos que se fariam de seus sentidos mais recentemente, ofereceram subsdios fundamentais para os enfrentamentos a que se props a pesquisa em questo. Uma apresentao parcial destes enfrentamentos, bem como das consideraes deles decorrentes, o que se prope nas prximas sees deste texto.

    Fugindo das designaes genricas: um estudo de caso no-metropolitano

    Se os fenmenos de favelizao e de periferizao urbana no Brasil podem ser considerados gerais (por sua repetio, sua regularidade), tambm indiscutvel que cada caso singular e cada conjunto de prticas e relaes sociais que o produzem so nicos e introduzem complexidades interpretao dos fenmenos generalizados. A pesquisa em que se apia este trabalho partiu, pois, do princpio de que, atravs da abordagem de situaes localizadas, poderia ser possvel questionar algumas generalizaes sobre a chamada produo do espao urbano luz da perspectiva de que suas diversas dimenses so social e historicamente produzidas. No entanto, a perspectiva local e situada no deveria implicar uma autonomizao ou tipificao do objeto estudado: buscou-se, ao contrrio, apreender o processo de produo do espao em estudo por meio das relaes, dos jogos de mediaes que simultaneamente atualizam e transcendem o seu carter local.

    Foi com esse objetivo que a pesquisa se debruou sobre a trajetria69 do espao urbano conhecido como Gonzaga, localizado em So Carlos, cidade de porte mdio do interior do estado de So Paulo, perscrutando os tortuosos caminhos da produo deste espao que se origina como uma pequena ocupao irregular de terra, em meio a

    69 A idia de trajetria aqui acionada, conforme proposto por Certeau (1994), como um movimento temporal no espao, por

    expressar com preciso a forma como se pretendeu apreender, neste estudo, o processo histrico de produo e apropriao do espao do Gonzaga.

  • loteamentos de periferia, na dcada de 1970; adensa-se progressivamente e passa a ser representado socialmente como uma favela (Favela do Gonzaga), configurando-se como o principal problema social e urbano da cidade, na dcada de 1980; aps uma srie de intervenes pblicas (ora pontuais, ora remocionistas, ora urbanizadoras) transforma-se oficialmente em um bairro de periferia (Jardim Gonzaga) na dcada de 1990 - o que no o impediria de dar lugar a novos ncleos favelizados e tornar-se regionalmente representado como um dos redutos do trfico de drogas e da violncia na cidade; e, nos anos 2000, torna-se alvo, mais uma vez, de uma ampla e modelar interveno urbanizadora.

    A escolha desse espao como campo privilegiado do estudo partiu, desde o incio, da premissa relativa escala de observao a ser adotada, que pretendia priorizar a abordagem em profundidade de um processo situado70. Tal escolha se fez, por um lado, devido possibilidade de compreender a produo do espao nas favelas e periferias para alm dos circuitos metropolitanos, visando a distanciar-me das designaes genricas sobre as mesmas, quase sempre pautadas por modelos elaborados a partir das metrpoles paulistana e carioca; por outro, em funo justamente das particularidades que constituem o processo histrico de produo do espao em questo e que, olhadas mais de perto, pareciam embaralhar conceitos e classificaes - como favela, periferia, bairro de trabalhadores, gueto, favela urbanizada, periferia consolidada etc. - e redefinir limites e fronteiras entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, o centro e a periferia ou a favela e a cidade, conjugando mediaes apenas perceptveis no nvel dos diversos trnsitos locais.

    Assim, alm dos recortes temtico e espacial que delimitaram o objeto71 - o processo de produo do espao do Gonzaga , houve tambm, necessariamente, um recorte temporal, tendo em vista tratar-se de um processo ainda em andamento, continuamente em ato: adotaram-se, respectivamente, como marcos temporais inicial e final - ainda que no rigidamente datados - o momento evocado pelos moradores como de fundao da Favela (ocorrida por volta de 1976) e os desdobramentos imediatos urbanizao que oficializaria sua transformao em bairro Jardim Gonzaga (ocorrida entre 1989 e 1990).

    70 Telles (2005) utiliza a expresso processos situados para definir processos que operam em situaes especficas de tempo e

    espao. 71

    A pesquisa, em grande medida, resultou de procedimentos de construo experimental de seu prprio objeto, cujos recortes e contornos especficos foram se delineando ao longo de seu prprio curso: entendo, com Lepetit (2001), que nenhum objeto de pesquisa se destaca por sua evidncia: o olhar do pesquisador e sua abordagem que lhe delimitam os contornos (p.39).

  • O estudo de caso evidenciou uma ordem cronolgica na qual se conformaram as diversas etapas do processo de produo e apropriao do espao do Gonzaga, em funo da percepo das estritas conexes delas com a cronologia das gestes municipais em curso durante o perodo analisado. Nesse sentido, procurou-se desvendar, atravs das histrias reconstrudas pela pesquisa, a complexidade de relaes estabelecidas, prioritariamente, entre moradores e poderes pblicos, buscando compreender os modos como tais relaes foram, ao longo do tempo, constituindo espacialidades.

    A pesquisa teve preocupao descritiva, privilegiando uma abordagem em profundidade72 que possibilitasse apreender mais de perto73 como se produz historicamente um espao como o Gonzaga: os vrios atores envolvidos em tal produo, suas prticas e os recursos por eles mobilizados, as relaes estabelecidas entre os mesmos, as diversas conjunturas - especficas ou ampliadas - que iro afet-la direta ou indiretamente, as tramas e transformaes socioespaciais que a compem.

    Nesse sentido, o estudo de caso se fez a partir da associao entre pesquisa documental74 e pesquisa de campo75: utilizaram-se como fontes privilegiadas de pesquisa, de um lado, sries de documentos oficiais fundamentalmente atas e processos da

    72 Ao propor uma abordagem histrica da questo da produo do espao urbano em favelas e periferias, me era inimaginvel o

    quo difcil seria encontrar interlocutores na prpria disciplina: foi surpreendente perceber que tal questo venha sendo ainda to pouco enfrentada pela histria. Nesse sentido, fez-se fundamental a aproximao a algumas perspectivas tericas e metodolgicas prprias da antropologia urbana. Cabe aqui lembrar que, desde a dcada de 1970 pelo menos, iniciou-se uma frtil aproximao entre histria e antropologia, que teria sido responsvel pela renovao das interrogaes e objetos dos historiadores. A experincia do trabalho de campo dos antroplogos seria o paradigma a trazer novas referncias para os historiadores nas maneiras de lidar com suas fontes tradicionais, introduzindo a perspectiva de olhar mais de perto para a realidade estudada, de considerar as prticas dos atores sociais e a linguagem dos contemporneos (Cerutti, 1998) tambm na histria. Para uma abordagem das relaes entre histria e antropologia, ver Schwarcz (1994 e 2005). Sobre esse tema, vejam-se ainda: Revel (1998); Burke (1992; 2005); entre outros.

    73 Caberia apontar aqui a proposio de Magnani (2002) acerca do que denomina olhar de perto e de dentro: uma perspectiva

    etnogrfica que permitiria captar determinados aspectos da dinmica urbana que passariam despercebidos, se enquadrados exclusivamente pelo enfoque das vises macro e dos grandes nmeros. Esse enfoque de perto e de dentro acionado pelo autor como forma de considerar os arranjos dos prprios atores sociais, seus trnsitos, deslocamentos, apropriaes, encontros e trocas no espao urbano, entendido no como mero cenrio, mas como parte constitutiva fundamental das prticas sociais e, conseqentemente, do recorte de anlise: para o autor, a incorporao desses atores e de suas prticas permitiria introduzir outros pontos de vista sobre a dinmica da cidade. Cf. Magnani (2002:15, 16, 18, 25). Caberia destacar, tambm, as advertncias j realizadas por diversos autores quanto s limitaes da adoo exclusiva desse enfoque: o prprio Magnani (2002) aponta para a necessidade de complement-lo atravs do que denomina um olhar distanciado, de forma a ampliar o horizonte da anlise. Tambm no mbito da antropologia, Durham (1986a:33) ir defender a necessidade de dissolver essa viso colada realidade imediata e experincia vivida das populaes com as quais trabalhamos, no nos contentando com a descrio da forma pela qual os fenmenos se apresentam, mas investigando o modo pelo qual so produzidos (p.33 grifos meus).

    74 A pesquisa documental realizada centrou-se nos registros oficiais efetuados nas atas e processos da Cmara Municipal de So

    Carlos, referentes ao perodo compreendido entre 1975 e 1995. Alm disso, outros documentos complementares foram utilizados, como: fotografias; jornais impressos locais; trabalhos acadmicos sobre So Carlos e o Jardim Gonzaga; legislaes municipais; mapas, relatrios e material de divulgao de algumas das intervenes promovidas pelo poder pblico; sites e manuais dos organismos financiadores dessas intervenes.

    75 Recurso pouco usual na histria, resultado da j mencionada aproximao antropologia urbana, a pesquisa de campo realizada

    no teve a pretenso de produzir uma etnografia, mas procurou orientar-se por alguns dos seus princpios, como recorrer quele olhar de perto e de dentro j mencionado para, atravs de sua articulao com a pesquisa documental realizada, revelar diferentes facetas do processo histrico de produo do espao do Gonzaga, trazendo tona suas complexidades. Considerando que a pesquisa de campo pode se construir de diversas maneiras, foi adotada uma estratgia metodolgica principal frente ao campo emprico: a realizao de entrevistas qualitativas semi-estruturadas (registradas em udio e integralmente transcritas). O recurso s memrias narradas dos atores foi mobilizado como forma de apreender o fazer inerente produo e apropriao do espao em foco. Como recurso complementar s entrevistas, foi realizada a observao direta e participante (com registros em dirio de campo e fotografias), alm da coleta de diversos depoimentos informais durante a pesquisa de campo.

  • Cmara Municipal de So Carlos e, de outro, depoimentos orais de moradores e tcnicos envolvidos no processo de produo e apropriao do espao do Gonzaga.

    O cruzamento de fontes76 foi quase uma imposio decorrente da construo experimental do objeto da pesquisa, anteriormente mencionada, justamente no sentido de compreender o processo em anlise a partir da diversidade de atores e prticas sociais que o produzem, bem como da complexidade de relaes estabelecidas entre eles, visando a escapar quela tipificao ou autonomizao do objeto, tambm j comentada. De fato, ao articular fontes de pesquisa to distintas como registros oficiais e depoimentos orais (bem como os mtodos a elas associados), o estudo em questo procurou interpret-las sempre pela perspectiva de seu cruzamento, do dilogo ou do contraponto entre o que cada uma delas permite entrever ou silencia. Tal perspectiva adquiriu importncia fundamental para as reflexes desenvolvidas em minha dissertao de mestrado, parcialmente apresentadas neste texto: se h, certamente, histrias possveis de serem narradas a partir exclusivamente daquilo que os documentos oficiais escolheram registrar ou, ainda, apenas do ponto de vista das memrias tambm seletivas - daqueles que efetivamente praticaram o processo analisado, as histrias reconstrudas pela pesquisa so fruto dos cruzamentos entre elas, por permitirem trazer luz matizes complementares e mais complexos das relaes, contradies, dilogos, conflitos e disputas que lhes so inerentes, procurando ir alm das dicotomias e generalizaes que, no mais das vezes, acabam por encobri-los.

    Tais opes metodolgicas permitiram constatar que uma gama complexa de relaes seria continuamente estabelecida entre cada um dos supostos plos que compem as abordagens dicotmicas sobre favelas e periferias - sejam eles cidade/favela, centro/periferia, cidade formal/cidade informal, cidade legal/cidade ilegal e que tais plos se materializariam, no espao urbano estudado, atravs de intervenes urbanas promovidas pelo poder pblico, por um lado, e de usos e apropriaes populares e cotidianos, por outro. Nesse sentido, tornou-se evidente para a pesquisa que tais relaes (e as prticas inerentes a elas) poderiam ser um campo frtil para o estudo das favelas e periferias e, conseqentemente, da cidade - enquanto produtos sociais histricos, levados a cabo por um ambivalente e multifacetado jogo de atores.

    76 Cf. Lepetit (2001), que atesta a fecundidade do cruzamento das fontes como instrumento que possibilita a articulao entre

    diferentes nveis de anlise.

  • Foco em um processo situado: o Gonzaga como laboratrio urbano

    Em busca de apreender o processo analisado a partir dos jogos de relaes e conexes que simultaneamente atualizam e transcendem o seu carter local, conforme apontado anteriormente, o caso estudado se mostrou bastante profcuo: algumas das reflexes aqui apresentadas somente se fizeram possveis por direcionarem o olhar para uma cidade da escala de So Carlos, com suas conjunturas especficas e com articulaes socioculturais, polticas e espaciais prprias de sua dimenso urbana. Foi bastante significativo perceber como, numa cidade dessa escala, o surgimento de uma favela em meio a loteamentos perifricos teve implicaes que repercutiram e continuam

    repercutindo - nas suas mais variadas esferas, envolvendo diversos atores e acabando por conjugar, direta ou indiretamente, grande parte das questes urbanas locais nas ltimas dcadas.

    De fato, no h como passar despercebido o papel emblemtico que a Favela do Gonzaga assume numa cidade como So Carlos, e o aspecto simblico que adquirem, nesse sentido, as diversas intervenes promovidas pelo poder pblico naquele espao. As histrias reconstrudas pela pesquisa foram, aos poucos, revelando como um espao, considerado durante dcadas - e, de certa forma, ainda hoje a nica favela da cidade, foi transformado em um verdadeiro laboratrio das polticas urbanas municipais (ou da ausncia delas) ao longo de quase trinta anos, ou, mais precisamente, de sete gestes municipais: desde o incentivo inicial ocupao por representantes do poder pblico (que concediam autorizaes para que os primeiros moradores construssem seus barracos no local); passando por intervenes pontuais e clientelistas que levaram ao rpido e precarizado desenvolvimento da Favela (como a instalao de duas torneiras pblicas e, posteriormente, de alguns postes de energia eltrica nos limites entre a favela e a cidade); seguidas de posturas de erradicao e desfavelamento que culminaram na constituio da PROHAB Progresso e Habitao So Carlos (empresa mista cuja funo seria executar a poltica habitacional do municpio, com atuao prioritria na erradicao de favelas), na remoo parcial da favela e na realizao do primeiro mutiro habitacional da cidade; chegando concretizao do que seria alardeado como uma urbanizao indita na regio e promessa de regularizao fundiria (que at hoje no se efetivou, em grande medida em funo de dificuldades resultantes das prprias intervenes do poder pblico); reeditando, mais recentemente,

  • as tendncias remocionistas e as intervenes pontuais; e culminando, finalmente, em uma nova urbanizao integrada, nos moldes do Programa Habitar Brasil Bid.

    Nesse sentido, as histrias sobre a produo daquele espao acabam por contar muito, tambm, ainda que indiretamente, sobre as posturas e polticas estatais empreendidas no pas frente aos espaos de moradia dos pobres nas cidades mais precisamente s favelas e periferias77. Contudo, se, por um lado, fica patente o quanto essas histrias conectam a Favela do Gonzaga com os diversos perodos e formas de enfrentamento da questo em mbito nacional, trazendo tona alguns dos jogos de conexes que transbordam sua esfera local, no h como negar, por outro, que esses jogos tero contornos delimitados em funo de seu contexto situado na cidade de So Carlos, cujas conjunturas e tramas sociais especficas se desenvolvem em uma escala que faz toda a diferena nos rumos da produo e apropriao daquele espao e da cidade como um todo78.

    Chama a ateno o fato de que, a despeito daquela seqncia considervel de aes do poder pblico, continuamente se reponham e se atualizem os parmetros de insegurana e incerteza que permeiam as trajetrias dos moradores na produo daquele espao, em um movimento quase espiralado: trata-se de um problema que nunca se resolve, sempre renovando a necessidade de novas intervenes e reeditando estigmas h muito construdos. Isso se articula, em grande medida, ao fato de que todas as intervenes pblicas ali promovidas se fizeram acompanhar, de formas e por caminhos variados, de incontestes ambigidades entre legalidade e ilegalidade, formalidade e informalidade, atestando o quanto a cidade e sua nica favela, na prtica, produzem-se simultnea e profundamente entrelaadas, ainda que sob condies bastante distintas79. Ao olharmos para a produo daquele espao em perspectiva histrica, aparece claramente uma conjugao particular entre precariedades urbanas, intervenes pblicas e uma malha de ilegalidades80 que embaralham, na prtica, algumas daquelas dicotomias

    77 No meu objetivo, aqui, apresentar um panorama do contexto nacional de enfrentamento da questo: algumas das conexes

    consideradas relevantes, bem como uma gama de trabalhos que se debruaram especificamente sobre o tema foram apresentadas em minha dissertao de mestrado (Rosa, 2008).

    78 Conforme apresentado em detalhes em Rosa (2008).

    79 Um exemplo claro disso a primeira interveno do poder pblico na Favela, que, apesar de extremamente pontual, referncia

    marcante, entre os moradores, do processo de consolidao daquele espao na cidade: a demarcao material - atravs da instalao de uma torneira - de uma fronteira fsica e simblica entre favela e cidade, se, por um lado, atestava o isolamento e a diferena daquela em relao a esta, por outro produzia sua interpenetrao e reafirmava a permanncia da Favela na prpria cidade.

    80 Telles (2006a:105). O pice dessa conjugao, no caso do Gonzaga, seria a tentativa de instalao de um marco legal naquele

    espao, atravs do processo de urbanizao e regularizao, cujas intrincadas relaes com os rearranjos, negociaes e resistncias dos moradores acabaram gerando a reposio de ainda maiores irregularidades na construo daquele espao, bem como de novos limites e dificuldades para sua incorporao formalidade e legalidade urbanas.

  • que compem, conceitualmente, rgidas fronteiras entre duas formas de produo da cidade.

    Retomando brevemente algumas das ambguas mediaes pblicas adotadas pelas distintas gestes municipais frente produo daquele espao nas ltimas dcadas (mesmo quando se faziam parecer ausentes) como aquelas presentes j nas prprias origens da ocupao; nos processos de instalao de infra-estrutura pontual e precarizada; na realizao parcial de um mutiro habitacional no regularizado; ou na tentativa de transformao da Favela, atravs da urbanizao, em um loteamento popular - veremos, de fato, o Estado aparecer no apenas como gestor, mas tambm como produtor de parcela significativa das mltiplas camadas de irregularidades e informalidades que constituem aquele espao urbano.

    Assim, no caso estudado, embora devesse soar absurdo tendo em vista as condies precrias em que se produz o espao do Gonzaga ainda hoje, parece evidente que no se trata efetivamente de um territrio sem Estado: inegvel, em perspectiva histrica, a presena do Estado ao longo de todo o seu processo de produo81, mesmo que as formas de ao por ele adotadas evoquem contradies e perversidades as mais diversas.

    Entretanto, ao longo da pesquisa, no se pretendeu interpretar tal presena de forma absoluta; ao contrrio, interessaram-me os jogos de mediaes estabelecidos, ao longo de todo o processo de produo e apropriao do espao do Gonzaga, justamente a partir das relaes entre prticas dos poderes pblicos e dos moradores, entre intervenes pblicas e apropriaes populares, buscando entender como esses jogos operam, como se articulam e, acima de tudo, como se espacializam.

    Jogos de mediaes: relaes entre atores na produo do espao urbano

    Ao encarar um fenmeno urbano como o Gonzaga a partir da considerao de sua historicidade, tornou-se evidente, para a pesquisa, que aquele espao somente se moldou, sua produo somente se fez possvel, atravs de mediaes diversas estabelecidas entre interesses, posturas e prticas de diversos atores. As histrias reconstrudas pela pesquisa revelaram a complexidade de relaes estabelecidas, por exemplo, entre os prprios moradores, entre algumas esferas do poder pblico e entre os

    81 Para abordagens prximas a esta vejam-se, dentre outros: Telles & Cabanes (2006) e Silva (2006).

  • moradores e o poder pblico municipal, as quais so constituintes do processo de produo do espao do Gonzaga.

    Interessa especialmente, aqui, retomar de forma breve algumas dessas relaes, mais propriamente aquelas estabelecidas entre as intervenes promovidas pelo poder pblico e as prticas e apropriaes dos moradores, considerando que nem bem o Estado se fez totalmente ausente ou absoluto, nem bem a produo e a apropriao daquele espao se fizeram de forma exclusivamente autnoma ou passiva pelos moradores.

    Se a pesquisa trouxe tona o quanto o processo histrico de produo do espao do Gonzaga se articula - direta ou indiretamente - com uma cronologia de trs dcadas de gestes municipais (com todas as suas mediaes e conexes polticas que extrapolam os limites da localidade), por outro lado, fez aparecerem com muita fora as variadas maneiras atravs das quais essa articulao repercutiu nas prticas espaciais82 dos moradores no dia-a-dia na Favela. Tornou-se possvel compreender, nesse sentido, que tal processo se estruturaria em movimentos impulsionados em grande medida pelas relaes entre as intervenes pblicas e as apropriaes por parte dos moradores.

    No h, necessariamente, uma direo de mo nica nos trnsitos constantes entre as prticas que conjugam tais relaes: em alguns movimentos, por exemplo, dinmicas e arranjos socioespaciais pr-existentes podem ser deslocados ou sobrepostos por intervenes urbanas de carter autoritrio; em outros, a imposio de novos contornos e normas ao espao por tais intervenes podem sucumbir a rearranjos diversos e imprevistos, resultantes das apropriaes cotidianas do mesmo.

    V-se, como exemplo disso, uma interveno que poderia parecer banal como a instalao de uma torneira pblica na Favela desencadear transformaes profundas nas dinmicas socioespaciais locais e, por isso mesmo, decisivas nos rumos seguintes da produo do espao da Favela do Gonzaga. Se, por um lado, os jogos entre interveno pblica e apropriao popular, neste caso, amplificaram diferenciaes internas e conflitos entre os moradores; direcionaram usos e apropriaes um tanto perversos do espao; fortaleceram o carter ambguo sob o qual se moldou a espacialidade do bairro (mesclando o pblico e o privado, o formal e o informal, o regular e o irregular) e estimularam o adensamento e a precarizao da ocupao, por outro, desencadearam a criao de novas formas de gerir e rearranjar coletivamente aquele espao pelo

    82 Certeau (1994).

  • estabelecimento de uma ordem prpria, forjada frente s necessidades cotidianas dos moradores.

    Em sentido inverso, quando uma ao claramente autoritria - como a remoo parcial da Favela e a realizao do mutiro habitacional - imps-se sobre o processo de produo e apropriao do espao, que se encontrava cada vez mais consolidado, as relaes a estabelecidas tiveram conseqncias imprevistas pelo poder pblico, chegando inclusive a minar os objetivos de sua ao. A partir de tal interveno, que se pretendia saneadora, outras configuraes se estruturariam, novos processos de diferenciao interna seriam acionados, as dinmicas socioespaciais da Favela continuariam ativas, repondo-se e espalhando-se talvez ainda mais, e, principalmente, os moradores comeariam a se organizar de uma forma politicamente mais significativa em torno do direito urbanizao, reorientando de forma decisiva os rumos que se pretendiam impor quele espao.

    No creio ser necessrio nem tampouco possvel - retomar, aqui, cada um dos inmeros movimentos, identificados pela pesquisa, em que tais relaes e suas conseqncias se fizeram evidentes. Importa, porm, destacar a inevitvel percepo de que toda a espacialidade do Gonzaga tem sido moldada por essas tramas variadas de relaes que se estabelecem no sem tenses entre as prticas socioespaciais dinmicas dos moradores e as diversas intervenes do poder pblico naquele espao, em movimentos que podem ser de constrangimento, de sobreposio, de deslocamento, de imposio, de ajuste, de distino, de negociao, de inveno.

    A cada histria reconstruda pela pesquisa, tais relaes e seus movimentos se desvelavam, introduzindo nuances e complexidades no caso estudado. Lev-las a srio, a partir da compreenso dos modos pelos quais elas foram sendo espacializadas ao longo do tempo, significou investigar como se elaboram as relaes complexas entre formas impostas, mais ou menos constrangedoras e imperativas, e identidades afirmadas, mais ou menos desenvolvidas e reprimidas83.

    Homogeneizao imposta, heterogeneidades persistentes: apropriaes, deslocamentos e disputas

    Buscando compreender o espao urbano em foco a partir dos cruzamentos, das

    83 Chartier (1995:181 grifos meus).

  • mediaes, dos agenciamentos atravs dos quais ele se constitui historicamente, a investigao realizada parece sugerir que o processo de produo e apropriao de um espao como o Gonzaga se faz continuamente permeado de mltiplas tenses e conflitos, distanciando-se das imagens de passividade e apatia que muitas vezes so lidas nesses contextos. Para alm das excluses e das clivagens, existem negociaes, intercmbios e, fundamentalmente, disputas que devem ser consideradas84 por apontarem para os sentidos polticos da experincia urbana85 que tambm ali se constroem.

    Sem pretender escamotear, sob uma abordagem centrada nas relaes estabelecidas entre prticas do poder pblico e dos moradores, as dominaes materiais e simblicas que permeiam a produo dos espaos urbanos, mas buscando interrogar aquelas anlises que encaram tais dominaes apenas sob uma perspectiva dicotomizada, a percepo do Gonzaga como um espao em disputa assumiu importncia fundamental para o estudo empreendido.

    Parece-me pertinente supor, nesse sentido, que a fora com que determinados modelos, ordens, normativas aqui representados pelas intervenes pblicas promovidas no Gonzaga - impem sentido, tentando reproduzir-se de forma imperiosa e homogeneizadora, no anula, necessariamente, o espao prprio de sua recepo, quase sempre incalculvel e imprevisvel:

    preciso, ao contrrio, postular que existe um espao entre a norma e o vivido, entre a injuno e a prtica, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espao onde podem insinuar-se reformulaes e deturpaes. (Chartier, 1995:181)

    Apropriao, deslocamento e disputa: foi a partir dessas chaves de leitura que busquei apreender os significados daqueles jogos de mediao espacializados ao longo do tempo no Gonzaga. So pistas interpretativas que me foram sugeridas86 por alguns estudos acerca das prticas populares em contextos urbanos, como os desenvolvidos por Arantes (1988), Certeau (1994) e Chartier (1995). Negando abordagens estticas e homogeneizantes sobre tais prticas, esses estudos as apresentam como sendo objeto de lutas sociais onde esto em jogo sua classificao, sua hierarquizao, sua consagrao (ou, ao contrrio, sua desqualificao)87 e propem, para alm do enfoque exclusivo sobre as disciplinas, normas e modelos impostos por uma ordem, voltar a ateno aos usos e apropriaes que deles so feitos.

    84 Chartier (1995).

    85 Arantes (2000).

    86 Cf. alguns trabalhos anteriores por mim desenvolvidos: Rosa (2006; 2006a).

    87 Chartier (1995:185 grifo meu).

  • A distino entre estratgias e tticas, proposta por Certeau (1994)88, parece sintetizar bem tais reflexes, que apontam para a tenso que seria inerente s prticas populares e cotidianas89. Enquanto a estratgia constituiria uma estabilidade espacial sobre as circunstncias temporais, afirmando-se como poder espacializado, as tticas seriam movimentos heterogneos e imprevisveis, em espaos que no lhes so prprios90. Ao afirmar que a ttica tem por forma a prpria deciso, ato e maneira de aproveitar a ocasio, o autor nos prepara para a proposio que ir nortear toda a sua anlise acerca das prticas cotidianas: a de que elas seriam, em grande parte, do tipo ttica, por estruturarem-se sobre outras lgicas que no necessariamente aquelas impostas pela ordem dominante e por introduzirem constantemente deslocamentos na mesma.

    Essa interpretao das prticas cotidianas como tticas, movimentos heterogneos e imprevisveis capazes de subverter usos esperados do espao, deslocando, pela apropriao, significados impostos estrategicamente em nome de uma ordem, parece ser bastante pertinente tendo em vista o caso do Gonzaga, aqui exposto. Nesse sentido, as disputas pelo espao, apresentadas ao longo de minha dissertao de mestrado, podem ser encaradas como produtos de contnuas negociaes de fronteiras fsicas e simblicas, sejam aquelas estabelecidas entre grupos distintos de moradores, ou entre suas prticas cotidianas e as intervenes pblicas, sejam, ainda, entre a prpria Favel