TFG Benjamim. "Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro"

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Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho final de graduação | junho 2014

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Universidade de São PauloFaculdade de Arquitetura e Urbanismo

Trabalho final de graduação | junho 2014

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Arquitetura religiosa em Mariana:reflexões para um restauro.

Benjamim Motta SavianiBeatriz Mugayar Kühl (orientação)Vol. 1

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Àqueles que me ensinaram a cultivar os Clássicos,sempre em compromisso com uma sociedade mais justa:Meus pais, Maria Aparecida e Dermeval;meus tios, Nereide e Frederico.

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[...]. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? - Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos.

Antônio Vieira. Sermão da Sexagésima, 1655

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captatio benevolentiæ

exordium

narratio

narratio

narratio

refutatio

divisio

confirmatio

peroratio

conclusio

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Índice

Agradecimentos

1 | Premissas

2 | O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo

3 | A capitania, a cidade e a capela

4 | História recente: incêndio e intervenções

5 | Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários

6 | Por uma arqueologia das formas de representação

7 | Flos Carmeli

8 | Da reflexão ao projeto

9 | Conclusão

Bibliografia

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Agradecimentos

Muitas são as pessoas a quem devo, de alguma forma, o de-senvolvimento deste trabalho, e vários são os motivos pelos quais as relaciono a ele.

É preciso mencionar o pessoal do Escritório Técnico do IPHAN, em Mariana: Isabel Nicolielo, chefe do escritório técnico; Cássio Vinícius Sales, responsável pelo arquivo, to-dos muito atenciosos, interessados e eficientes em sempre me ajudar com todas as informações e dados de que precisava.

Os funcionários do Santuário de N. Senhora do Carmo de Mariana, e ao Pe. José Carlos, que desde o início se mostraram interessados e respeitosos ao meu trabalho, permitindo-me fazer muitas das fotos que mais à frente ilustrarão estas pá-ginas; permitindo meu amplo e livre acesso a todos os locais possíveis do edifício; concedendo-me minutos a mais dentro do edifício para terminar os trabalhos, mesmo depois de en-cerrado o seu expediente.

O pessoal do Arquivo Eclesiástico da Diocese de Mariana, que gentilmente me enviou dados importantíssimos via cor-reio.

Os amigos historiadores, sempre muito solícitos: Natalia Ca-sagrande Salvador, que sempre me ajudou com fontes docu-mentais e bibliografia; Leandro Gonçalves de Resende, indi-cando com propriedade inúmeras referências documentais e os lugares-comuns da iconografia religiosa, facilitando seu acesso e leitura.

[captatio benevolentiæ]

Vista urbana de Ouro

Preto. (Foto do autor)

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Os amigos que sempre contribuíram de variadas formas para meu trabalho, seja com ajudas técnicas com os softwares que sempre nos pegam desprevenido, e seja pelos diálogos, troca de ideias sempre edificantes: Alex Sartori, Estevão Sabatier, Thaís Maio, Carolina La Terza, Joana Silveira Melo; André Costa, Ivan Zurawski, Gabriel Sabino, Guilherme Arce, Lu-cas Bracher todos verdadeiros irmãos. A Rayssa Oliveira, que habilmente gravou em metal as flores que estampam este tra-balho, concebido desde as ideias escritas e desenhadas, até o suporte físico.

Os professores que atenciosamente sempre me atenderam com dúvidas e preciosas conversas, ainda que de maneira mais informal: Rodrigo de Almeida Bastos, Altino Barbosa Caldei-ra, Andrea Buchidid Loewen, Mário Henrique S. d’Agostinho; também o mestre violinista e rabequeiro, Luis Henrique Fia-minghi, de cujas conversas foram algum ponto de partida para toda esta sanha por reconstituir os vestígios de culturas do passado; o colega de trabalho e amigo Luiz Fernando de Al-meida.

A quem sempre me ofereceu excelentes aulas e oportunidades de pesquisa e formação: Luciano Migliaccio, orientador de um trabalho de iniciação científica que muito em ensinou; Beatriz M. Kühl, orientadora deste trabalho, e certamente uma das pessoas que permitem continuar rendendo uma reputação de excelência em pesquisa e crítica arquitetônica a esta Escola.

Uno speciale ringraziamento ai docenti della Facoltà di Architettura dell’Università degli Studi di Firenze, professori e maestri per eccellenza, che gentilmente mi hanno accolto al loro corso: Fauzia Farneti (storia), Silvio Van Riel (consolidamento strutturale) e Stefano Bertocci (rilievo architettonico). Senza loro non potrei avvicinarmi adeguatamente alle metodologie di analisi tecnica e storica essenziali al corretto restauro degli edifici.

Ringrazio anche a Monica Tomea e alla Fondazione del Monte di Bo-logna e Ravenna (Oratorio di S. Filippo Neri - Bologna) e a Gabriella Sorelli (Museo Marino Marini - Firenze) per permettere riprese fotogra-fiche nell’interiore dei suoi edifici storici, punti di riferimento essenziali per il progetto da me svilupato in questo lavoro.

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Agradecimentos 13

Finalmente, agradecer a meus familiares e mencionar meus pais e meus tios, a quem dedico este trabalho, pois são pro-fessores de profissão, e sempre foram professores em minha vida. A meus tios devo o incessante questionamento de tantas contradições contemporâneas, bem como o entendimento co-letivo e político de um indivíduo perante a sociedade. A meus pais devo não somente minha existência, mas o situar-me nes-te mundo. A eles, a gratidão por, desde pequeno, sempre me mostrarem tantas e variadas coisas que a cultura humana já produziu: Devido à sua formação em história e filosofia, em casa sempre se citou Marx, mas também Kant, Descartes e Platão com profunda naturalidade e sem qualquer pretenção professoral; graças a isso hoje sei que criar os filhos com base em uma sincera dialética é o maior ato de amor que alguém pode ter para com os seus, e mesmo para com a própria Hu-manidade.

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Os anos que constituíram minha formação acadêmica, e mes-mo alguns anos anteriores a ela, já que estudei música a par-tir dos conceitos de Performance Historicamente Orientada para os repertórios musicais que abarcam os séculos XVI a XVIII, vêm constantemente descortinando para mim as doutrinas e práticas artísticas de uma sociedade pré-iluminis-ta. Estudar as sociedades que se desenvolveram sobremaneira após a Contrarreforma Católica e tiveram fim com o advento das Sociedades Românticas e Industriais Burguesas implica em um estudo de suas manifestações artísticas já que, além de estas formas de expressão constituírem-se sempre como atestados psicológicos e interdisciplinares do pensamento de uma sociedade, no caso em questão é também patente o uso das Artes com finalidades políticas.

Ao mesmo tempo em que se estuda este período histórico descobre-se o enorme anacronismo dos conceitos aplicados para analisá-lo, nas historiografias correntes. Além disso, no que constitui a materialidade de suas inúmeras manifesta-ções, isto é, seu legado físico hoje considerado monumento material (por exemplo, arquitetônico), seja decorrente deste anacronismo ou seja meramente por falta de metodologia, é verificada uma tutela inadequada destes bens, fato que im-plica em gritantes problemas de conservação, especialmente no Brasil, onde metodologias do Restauro são, ainda, pouco consolidadas, e onde uma forte indústria da construção civil vai de encontro com culturas tradicionais de construção e conservação.

Diante disto, proponho neste trabalho uma revisão histo-riográfica e metodológica para a análise de meu objeto de es-

1Premissas[exordium]

Mariana, atual Praça

Minas Gerais.

(Desenho do autor)

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tudo, baseado em duas frentes de trabalho, levando em con-ta, certamente, as possibilidades e o escopo de um trabalho desta natureza. A primeira das frentes de trabalho leva em conta a revisão historiográfica acerca do contexto social que fomentava as manifestações artísticas, que é pré-Iluminista, enquanto a segunda frente de trabalho dedica-se às questões relativas a uma adequada tutela dos remanescentes materiais deste período, a partir de uma proposta metodológica de ação conservativa.

Tendo em conta este propósito revisionista, decidi estudar Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, em Mariana, que considero problematização exemplar para re-lacionar ambas as frentes de trabalho: As Minas Gerais do século XVIII são a materialização (antes de tudo) política do que se considera o princípio do Brasil como nação, ideia esta cunhada desde o Segundo Reinado brasileiro e retomada inúmeras vezes nas subsequentes Repúblicas, construindo, exaltando e mitificando personagens e processos políticos e artísticos como a Inconfidência, o Tiradentes e o Aleijadin-ho. A celebração desta sociedade fomenta, por sua vez, o es-tudo das manifestações artísticas, em especial a arquitetura, colocando-as no cerne de um projeto cultural nacional, so-bretudo desde os anos 1930, consolidado e “materializado” na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Ao longo do século XX, muito se estu-dou a Minas Gerais do Setecentos, curiosamente pelo pensa-mento de arquitetos nacionais e historiadores estrangeiros, mas muito sob o crivo de anacronismos e superficialidades conceituais, consolidando o mito do “Barroco Mineiro”, além de princípios conservativos que até há poucos anos pouco se atualizaram em relação às práticas do antigo SPHAN. No que concerne ao Restauro em si, observa-se de um lado, o abandono da conservação feita pela simples manutenção permanente, muitas vezes, por dificuldades financeiras, mas também por certa perda desta cultura conservativa secular; de outro, as reconstruções “originais”, algo que pretendo demonstrar ser virtualmente impossível, insistem programati-camente em nossa ideologia conservativa. Descuidadas rein-tegrações, intervenções literalmente incorretas e canteiros de restauro inadequados levam eventualmente ao desastre (situa-

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Premissas | 1 17

ções que culminam no episódio do incêndio do edifício em questão, em 1999, durante o fim de um trabalho de restauro).

Mas não só: a falta de manutenção em um tipo de arquite-tura que funciona baseada na manutenção constante, traz para obras “restauradas” há menos de 15 anos severas patologias arquitetônicas, que variam desde fungos e vegetação infestan-te, até problemas de estabilidade das superfícies muradas ou estanqueidade das coberturas (veja-se o caso da capela de São Francisco de Assis em Mariana, hoje fechada ao público por problemas decorrentes de sua falta de manutenção, desde o último restauro, feito em fins dos anos 90).

Ainda assim, por que Mariana? Por que a arquitetura colonial?

Creio, neste âmbito, ser a situação dos monumentos coloni-ais mineiros, em particular estes marianenses, uma boa fonte de estudos de caso dos mais variados gêneros, que atestam o desenrolar da consciência patrimonial brasileira, e do que se entende por necessidade de restaurar seus testemunhos.

Mariana o atesta de formal plural, pois desde cedo teve ob-ras aclamadas como monumentos nacionais e, portanto, alvo ações de salvaguarda institucional e física das mais variadas possíveis, especialmente em um local que viu seu papel políti-co regional variar muito até hoje: de arraial a cidade, e depois capital da Capitania de Minas Gerais, sede do bispado e de um importante Seminário Episcopal, gozou durante o Setecentos de variadíssimas e refinadíssimas manifestações culturais, das quais o maior legado seja, talvez, a salvaguarda de um órgão feito por um dos mais célebres construtores de então. Outrora capital de Minas Gerais, uma das primeiras cidades de traçado urbanístico planejado ortogonalmente, Mariana é hoje uma pequena cidade de interior, cujos monumentos dão suporte a uma gente humilde que vive economicamente de turismo, mas também de atividades rurais e mineradoras, conferindo-lhe diversidade e simplicidade singulares, quase pitorescas.

Este contexto, desde o princípio de minha formação superior, me chamou a atenção devido à sua força e particularidade, levando-me ao progressivo interesse em seu estudo.

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Novamente, como símbolo, vem à mente o órgão de sua Sé, a querer quebrar o mito do autóctone, de uma suposta “nova sociedade”, que já é brasileira e culturalmente inventiva, antes da nossa independência. Aquele instrumento fora construído por Arp Schnitger, organeiro de prestígio na Alemanha, no-meadamente apreciado por Bach devido à qualidade de seus instrumentos. Foi concluído em princípios do séc. XVIII e, a pedido do rei Dom José I, presenteado à Sé de Mariana, em 1753. Já é raro o fato de um órgão alemão ser enviado a Portugal (o reino havia encomendado dois a Schnitger; o outro continua em Portugal), já que este país cultivava outra tradição organeira, de sistema construtivo e registração ao costume ibérico. Desde sempre um instrumento de reconhe-cida qualidade, trata-se do único feito por aquela oficina que se encontra fora do continente europeu, fato que, na verdade, atesta de maneira irônica e poética, a importância desta região sul-americana como parte cultural e ativamente integrante do reino de Portugal, dentro do Pacto Econômico Colonial esta-belecido, de maneira especialíssima.

E foi durante uma tarde jogando sinuca em um típico boteco marianense que eu e um grande amigo, ele músico, nos demos

Órgão da Sé de

Mariana.

(Fonte: http://www.

overmundo.com.br/

agenda/comemora-

cao-dos-25-anos-de-

restauro-do-orgao-arp-

schnitger)

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conta disso tudo: “você já parou pra pensar que enquanto estamos aqui jogando sinuca junto com esta gente que pas-sou o dia trabalhando com a terra, logo ali há uns 200 me-tros de nós, está um dos órgãos históricos mais importantes da Europa hoje em dia?”, disse ele. E, de fato, lá está aquele monumento, ao alcance de todos, e inacreditavelmente vivo, pois o instrumento está em pleno funcionamento e qualquer manianense sabe de sua existência.

Além deste curioso legado, outras circunstâncias desperta-ram-me a atenção há já algum tempo, destacando-se a trágica história recente de seu templo de Nossa Senhora do Carmo.

Edificado como Capela de sua Ordem Terceira na segunda metade do Setecentos, e passado a propriedade da Arquidi-ocese de Mariana quando da extinção daquela Ordem, no sé-culo XX, este templo atesta inúmeros problemas de gestão pública do Patrimônio Histórico Artístico, como a falta de segurança no canteiro de restauro: o inapropriado uso do querosene para a descupinização de seu forro, somado ao uso de lâmpadas incandescentes, culminou em 1999 em um in-cêndio que destruiu os elementos lígneos, e algumas cantarias

Típico bar em Mari-

ana, de caráter mais

popular e em pleno

centro urbano.

(Foto do autor)

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de sua nave, coro e nártex; a intervenção posterior, concluída em 2001, foi conduzida por quadros que atuam juntamente ao IPHAN, e leva em conta alguns princípios coerentes ao restauro crítico brandiano, como a recusa ao falso histórico e a retomada de ideias volumétricas. Ainda assim, a falta de detalhamento de projeto e a qualidade final dos artefatos, pode-se dizer, não atendem a sutis demandas estéticas que não podem ser esquecidas em um edifício de valor histórico, mas também artístico e ativamente religioso, o que suscita um rico debate técnico e teórico no campo das reconstruções, em restauro.

Por fim, é preciso lembrar que o restauro arquitetônico, tema ao qual já tenho me dedicado ao longo de minha graduação, configura-se em uma das mais completas modalidades de pro-jeto, pois materializa, de maneira obrigatoriamente interdis-ciplinar, reflexões acuradíssimas sobre os diversos produtos, materiais e imateriais, de nossa sociedade. Mais que “espe-cialização” projetual, os princípios metodológicos do restauro podem ser os mais sutis e refinados possíveis, que forçam o projetista a escolhas sempre de grande maturidade, como o a consideração do entorno existente, o projeto coadjuvante, ou mesmo o não-projeto/não-intervenção.

Em uma perspectiva ampla, o escopo deste trabalho não é um projeto. É um discurso de respeito e consideração aos dife-rentes produtos intelectuais de nossa cultura.

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2O levantamentoarquitetônico comoinstrumento cognitivo[narratio]

Levantamento da Ca-

pela da Ordem Terceira

de N. S. do Carmo de

Mariana. Frontispício.

(Desenho do autor)

A primeira atividade concernente ao Restauro Arquitetônico é o levantamento.

Quero frisar que não se trata de uma atividade “preliminar” ao restauro, e sim, de atividade de restauro em si, pois visa a uma compreensão conceitual de parâmetros “diretos” do ob-jeto de estudo, além de envolver projeto específico para seu fim. Para seu sucesso, dependemos de uma rigorosa metodo-logia, capaz de regular os erros advindos de um trabalho de campo, através de condições de contorno/revisão da tomada de medidas, mas não só: para o êxito de um trabalho de levan-tamento cabe entender, antes de tudo, a que serve isto. En-tender que o desenho é instrumento cognitivo e código rep-resentativo arquitetônico, e que o levantamento se manifesta como análise de um artefato construído, por via de medições, mas não apenas.

Partindo-se, inclusive, do pressuposto que a atividade de medição nunca é integral, admitimos que não se poderá ja-mais produzir material de análise de um artefato construído sem entender o que é uma atividade de medição e a que ob-jetivos diretos se presta, já que a relação entre objeto real e representação gráfica possui rigor variável, de acordo com a finalidade das análises a serem feitas. É necessário, pois, en-tender o que é uma atividade de medição, entender o que é a catalogação de elaborados físicos, bem como entender o que é um levantamento (no caso) arquitetônico e, por fim, identi-

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ficar o que estas atividades compartilham entre si.

Trata-se de teorizar para que se possa regular uma atividade aparentemente prática. Surge, então um conceito por trás da prática do levantamento arquitetônico, que vem constante-mente sendo atualizado dentro de culturas construtivas/con-servativas, em particular a italiana, que tem ampla experiência acumulada neste campo. Ao consultar manuais e tratados so-bre o tema, de uso corrente nas escolas italianas de restauro arquitetônico a partir dos anos 90, podemos nos deparar com manuais e tratados exemplares nesta prática. Tomo como ex-emplo o Manuale di rilevamento architettonico e urbano 1, que dedica parte de seu texto a definir e discriminar as diferentes e pos-síveis atividades de levantamento arquitetônico, assim começa seu capítulo quinto:

Conhecimento da obra a ser levantada 2

Fazer o levantamento de uma obra arquitetônica significa pen-etrar na sua complexa realidade, analisando todos os seus as-pectos: trata-se, portanto, de por em prática um complexo pro-cedimento, que leve ao conhecimento “profundo” da mesma, através de uma pontual e fundamentada análise. Um conheci-mento preliminar da obra deve proceder conjuntamente com a individualização de seus caráteres peculiares e com a finalidade do levantamento; de certa maneira se pode dizer que ocorre saber primeiro o que se deve desenhar e ter em conta que não é a elevação, a planta e a secção, como imagens, às quais se deseja alcançar em primeira instância, mas a representação do espaço físico, da qualidade arquitetônica e as transformações estrutur-ais que ocorreram na obra em si.

A operação de levantamento se constitui em elemento impor-tante, mas não único, em um processo que tende a chegar a um conhecimento completo da obra arquitetônica, compreensão que se desenvolve em várias fases, as quais podem sintetica-mente serem assim resumidas: a) conhecimento da obra a ser levantada e escolha das técnicas de levantamento; b) levanta-mento [medição]; c) representação gráfica; d) leitura da obra através de medições, análise do artefato, documentação históri-ca, fontes de arquivo, bibliográficas, etc.

1 | DOCCI, Mario, MAESTRI, Diego. Ma-nuale di rilevamento archi-tettonico e urbano. Bari: Editori Laterza, 2010.

2 | O termo italiano é rilievo. Difícil traduzi--lo sempre de forma imediata pois a palavra, que literalmente para o português traduz-se por relevo, contém múltiplas acepções, como levanta-mento, catalogação, medição, desenho de observação, etc. É importante lembrar que rilievo designa o pro-duto do rilevamento, e não a atividade de rilevamento em si, o que põe sua sig-nificação, neste momen-to, mais próxima a uma atividade concernente a análise de uma grandeza física, que literalmente a “relevos físicos”, se en-tendida em português. Tal circunstância se constitui em dado cultu-ral sutil e muito interes-sante: Rilevamento possui significado específico, mas rilievo não, embora ambas estejam ligadas ao mesmo contexto. A palavra rilievo é sempre mais incidente, e possui significação múltipla/ampla na língua italiana, mas sempre que ocorre em textos sobre res-tauro, não incorre em ambiguidades de signi-ficado, justamente por o “levantamento” ser uma

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Dá-se que o levantamento arquitetônico é uma operação des-tinada à compreensão da obra em sua globalidade e em seus detalhes; fazer levantamento, portanto, significa antes de tudo compreender a obra em questão e apreender todos os seus valores, desde aqueles dimensionais àqueles construtivos, daqueles formais àqueles culturais.3

Disse acima que a compreensão é “conceitual”, pois envolve uma metodologia para medir e representar o objeto construí-do, que se manifesta materialmente por parâmetros “diretos” de cognição, como largura, altura e profundidade; ângulos, composição física dos materiais, etc. No entanto, a apreensão destes parâmetros e a sua representação gráfica constituem-se como interpretações da realidade física, que envolvem também um preparo cultural. São interpretações passíveis de diversi-dade de soluções gráficas, tanto na apreensão da geometria, quanto na classificação do estado de conservação de um elab-orado físico, ainda que tenha por linguagem os códigos de representação comumente aceitos nas linguagens técnicas de desenho.

Um bom trabalho de levantamento arquitetônico, portanto, irá ponderar sobre metodologias de tomada de medidas e o rigor de representação das mesmas, de acordo com cada ob-jeto de estudo específico. Há casos em que se demanda o uso de técnicas de levantamento com alto nível tecnológico, como o laser scanner 3D, que propiciam a representação, inclusive tri-dimensional, de espaços complexos, com alto grau de detalha-mento e dimensões, de maneira específica 4; há casos em que, no entanto, este recurso não se fará necessário, nem mesmo mais eficiente que os tradicionais métodos de medição, auxili-ados por instrumentos de levantamento topográfico (destina-dos a medir ângulos conjuntamente a distâncias), e a instru-mentos ainda mais simples de medição direta, fundamentados no uso regrado da escala métrica, regulada por dados escala-res com parâmetros de referência horizontais (níveis d’água) e verticais (fios de prumo), cabendo sempre ao técnico a es-colha do método mais apropriado e que esteja melhor ao seu alcance.

atividade que, ainda que precisa metodologica-mente, se desenvolve por diversas maneiras. Portanto, é possível sempre entendermos a acepção da palavra ri-lievo pelo contexto em que está inserida; mas, diria, é também possível por esta pertencer a um conceito de práticas bas-tante amplas. Tal acon-diciona a tradução para o português em palavras que variam, e muitas vezes não apreendem unicamente o significa-do do tipo específico de rilievo ao qual um tex-to original italiano está se referindo, como é o caso das traduções que faço neste capítulo. A esse respeito, consultar os verbetes “rilevamen-to” e “rilievo”, em bons dicionários de italiano, como: ZINGARELLI, N. Lo Zingarelli: vocabo-lario della lingua italia-na. Zanichelli, 2005. Pp. 1536-1537.3 | Idem, p. 67 (tradu-ção minha).

4 | Recentemente tam-bém se tem constatado que, devido ao funcio-namento do instrumen-to ser fundamentado na emissão e reflexão entre um feixe de luz e o ob-jeto escaneado, pode-se também obter dados interessantes relativos aos materiais analisa-

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Croqui (projeto)

preparatório para o

levantamento do Ora-

torio dei Filippini em

Roma, elaborado por E.

Chiavoni.

(Fonte: DOCCI, M.,

MAESTRI, D. Op. Cit,

p. 71)

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Desenho de observação

preliminar ao levanta-

mento de um púlpito

(lado do evangelho)

do Carmo de Mariana.

(Desenho do autor)

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Por isso se afirma, inclusive, que o levantamento arquitetôni-co demanda um projeto em si, onde o técnico planeja uma efi-ciente tomada de medidas, bem como a forma pela qual estas medidas serão traduzidas à linguagem arquitetônica universal, isto é, o desenho. Seja utilizando-se de métodos tecnológicos, levantamento instrumental, fotogramétrico, ou de medições diretas, o que fundamenta o Levantamento é a garantia de metodologia para a tomada de medidas, capaz de reduzir os erros aos quais um trabalho de campo está sujeito. Neste âmbito, não se pode classificar os trabalhos de levantamento arquitetônico como meros “trabalhos técnicos”, pois são fru-tos de análises que também requerem o reconhecimento do objeto de estudo como elaborado cultural (objeto artístico, arquitetônico, etc.).

Não obstante, é necessário lembrar que um trabalho de de-senho à mão livre, feito de maneira criteriosa e proporcionada, também opera no campo do levantamento preliminar, pois é nele que o técnico demonstra “ler” os diferentes elementos do objeto construído: parâmetros gerais de composição, mas também proporções e imperfeições na estrutura dos muros, vegetações infestantes, danos materiais, etc.

Os levantamentos da Capela da Ordem TerCeira de NOssa seNhOra dO mONTe CarmelO

Ao comentar sobre metodologias de levantamento ar-quitetônico, admitindo a sua importância como fundamen-tal para qualquer intervenção em um contexto construído, venho a explicitar como tenho trabalhado a documentação disponível sobre meu objeto de estudo. Antes de mais nada, é necessário frisar que um trabalho de restauro integral e efe-tivo deve, por obrigação, fazer, revisar e refazer, sempre que necessário, o levantamento arquitetônico completo de um ed-ifício, a fim de garantir uma representação gráfica capaz de catalogar com eficiência e propriedade o espaço edificado e as particularidades que o acometem.

Para meu Trabalho Final de Graduação, deparo-me com a ne-cessidade de, não dispondo de uma equipe nem estrutura para fazer os levantamentos desde o início, lançar mão de condições

dos; isso também leva a análises relativas a seu estado de conservação com respeito à sujidade, por exemplo, já que a reflexão do feixe de luz é influenciada micros-copicamente pelo índice de reflexão do objeto no qual incide. A esse respeito, ver: SANTO-PUOLI, Nicola. Colo-rimetria e diagnóstico: a superfície qualitativa do escâner a laser 3D, Pós. Revista do programa de pós--graduação em arquitetura e urbanismo da FAUUSP, 2011, n. 29, pp. 211-215.

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de contorno para este problema, a fim de produzir bases su-ficientemente confiáveis para minhas subsequentes análises. É fundamental aclarar, então, que não faço um trabalho de levantamento completo, mas de revisão dos levantamentos existentes, o que incorre em correções e ajustes que, quando necessário, permitem a maior aproximação destes elaborados gráficos com a realidade física de meu objeto de estudo.

Com relação ao Carmo de Mariana, uma pesquisa em suas bases cadastrais localizou dois trabalhos: O levantamento ar-quitetônico feito em 1988, a pedido do prof. Altino Barbosa Caldeira, então chefe do Escritório Técnico do IPHAN em Mariana, e o projeto de intervenção feito em 2000 pelo prof. Rodrigo Meniconi, que se utiliza claramente do levantamento feito em 1988, com respeito à espacialidade arquitetônica.

Estranhamente, o trabalho do prof. Caldeira não se encon-tra mais nos arquivos mineiros do IPHAN (nem na Superin-tendência em Belo Horizonte e nem no Escritório Técnico de Mariana). Imagino que possa ter desaparecido durante os projetos de 2000 (feitos após o incêndio de 1999), mas o fato é que até agora não se pôde determinar o paradeiro destes trabalhos, nem a real causa de sua desaparição. Encontrei duas pranchas do levantamento feito em 1988 no arquivo do IE-PHA5, em Belo Horizonte, que dão margem à hipótese de o trabalho do prof. Caldeira ter sido usado de base gráfica para o trabalho do prof. Meniconi, já que é idêntico o grafismo dos elementos, inclusive daqueles evidentemente desenhados à mão, além de ambos os trabalhos serem estruturados com um número total de pranchas muito similar: quatorze em 1988 e quinze em 2000.

Devido a esta condição, utilizo como base para meus estu-dos as pranchas remanescentes do levantamento produzido em 1988 e que se encontram no IEPHA, juntamente com os outros elaborados gráficos contidos no projeto de 2000, admitindo uma relação de correspondência direta entre es-tes desenhos, para poder reconstituir, através de computação gráfica, uma base de trabalho confiável sobre a Capela. Em minha reconstituição, faço o redesenho da planta baixa do Edifício através das cotas levantadas em 1988, contidas na

5 | Instituto Estadual do Patrimônio Histó-rico e Artístico (Minas Gerais)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro30

“Igreja de Nossa Senhora

do Carmo/Mariana”.

Planta baixa.Levanta-

mento realizado por A.

Caldeira em 1988.

As cotas contidas nesta

prancha serviram de

referência para a re-

constituição digital da

planta, em AutoCAD.

(Fonte: Arquivo Público

do IEPHA.)

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 31

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro32

Exemplo e demonstração: Etapas da restituição

gráfica da Sacristia do Carmo, por meio das

triangulações feitas na medição da planta:

1 - 5 | Todas as variações possíveis das medidas

tomadas (perímetros e 2 diagonais), tendo

como eixo comum o vértice em vermelho.

6 | Sobreposição das variações, a partir do eixo

comum.

7 | Detalhe: O triângulo em vermelho mostra a

o erro entre as medidas tomadas, inerente ao

trabalho de medição direta.

8 | Para compensar geometricamente estas

distorções, o vértice corrigido que será dese-

nhado, por fim, localizar-se-á no baricentro do

triângulo vermelho.

9 - 11 | Resumo: Sobreposição geométrica dos

vértices; poligonal básica, corrigida; desenho fi-

nal da planta. Note-se que a medição por duas

diagonais permite o controle dos erros, pois a

distorção é visível graficamente, e varia entre

limites aceitáveis (geralmente, até 3cm para o

triângulo que liga os vértices).

1

2

3

4

5

6

7

8

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 33

9

10

11

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro34

prancha 2/15, refazendo as triangulações de acordo com as medidas anotadas, e distribuindo as distorções geométricas segundo critérios admitidos em trabalhos de levantamento. Os demais elaborados gráficos são feitos a partir desta planta, coincidindo-os geometricamente e considerando as demais cotas assinaladas nas pranchas que os dão origem, além de outras medições feitas por mim. A partir desta “estrutura” inicial, começo os subsequentes refinamentos do grafismo fi-nal, conferindo cotas planimétricas e altimétricas, e sobretudo redesenhando a ornamentação em cantaria, através de medi-das tomadas por mim in situ e do auxílio de fotos e a leitura de tratados arquitetônicos.

O redesenho com base nas medidas tomadas em 1988 é, por-tanto, a primeira condição de contorno à tomada de medidas que, sozinho, não posso fazer; o uso de fotos é a segunda condição de contorno, no caso, para o desenho dos orna-mentos contidos em lugares altos, onde não tenho acesso di-reto. Além disso, decidi reforçar este trabalho, no que tange ao desenho das modenaturas, por uma terceira condição de contorno, que é a recíproca conferência entre as modenatu-ras existentes e a tratadística arquitetônica. Através da leitura de diversas edições de tratados arquitetônicos, pude entender com maior clareza a geometria que constitui muitos destes ornamentos no edifício, podendo chegar a um desenho mais aproximado da realidade.

Além destas fontes, procuro rastrear a totalidade dos trabal-hos de 1988 a partir de algumas publicações daquele levan-tamento pré-sinistro, feitas em periódicos de arquitetura 6. A publicação dos levantamentos do prof. Caldeira (na verdade supervisionados por ele, mas produzidos pelos arquitetos Ce-leste Maria Rodrigues e Miguel Ángel Ferman), mostra o le-vantamento pormenorizado de outros elementos integrados à arquitetura, como balaustradas, e também o pórtico em este-atite, além de vergas das janelas e o tapavento consumido pelo fogo de 1999, mas não pude encontrar as pranchas de todos os pormenores. Por o trabalho de 1988 ter sido feito à mão, é compreensível que o detalhamento destes elementos viesse figurado apenas em separado dos cortes e elevações gerais, estas últimas em menor escala. A totalidade destes levanta-

6 | CALDEIRA, Alti-no B. Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Mariana. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, n. 2 , p. 11-33, ago. 1994.

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 35

mentos, bem como o que eventualmente se perdeu/está por ser reencontrado, não pôde ser precisada nem mesmo pelo próprio prof. Caldeira, como me revelou em conversa tele-fônica concedida em setembro de 2013.

Além das condições de contorno adotadas para viabilizar o desenho, procuro colocar em discussão a estrutura final de um trabalho de levantamento, uma vez que não se verifica no Brasil uma normativa específica para este fim 7, o que impossi-bilita a unificação das formas de representação deste processo analítico, dificultando a verificação do rigor técnico e qualidade final deste tipo de trabalho. Tal é um tema que merece uma discussão específica e empenhada, já que a falta de exigência formal sobre quais são os componentes de um levantamento cadastral arquitetônico, dificulta tanto a compreensão do que é esta prática, por parte de nossos profissionais, bem como a fiscalização de projetos de restauro, por parte dos órgãos patrimoniais. O resultado disso é, muitas vezes, uma docu-mentação lacônica e pouco detalhada, quando não, feita de maneira errada e imprestável a uma análise do estado de con-servação do objeto construído. Estruturarei meu levantamen-to cadastral a partir de orientações de manuais e tratados, e em consonância com normativas institucionalizadas em países com maior tradição neste campo, com especial atenção à nor-mativa UNI-NORMAL italiana, elaborada pelo Ente Nazio-nale di Unificazione (UNI) sob supervisão do Ministero per i beni culturali, e que dá origem aos Eurocódigos, correntes em toda a União Europeia atualmente. Estas diretrizes estruturam um trabalho de levantamento arquitetônico em quatro frentes, a definirem-se da seguinte forma:

Levantamento métrico (rilievo architettonico): Levantamento da estrutura arquitetônica/escultórica aparente do edifício, incluídas as cotas na medida com os valores que foram to-mados, sem os valores das correções geométricas posteriores. Presta-se ao conhecimento de todos os elementos compositi-vos, arquitetônicos e artísticos do edifício, em sua relação pro-porcional, e a documentar as medidas (gerais) tomadas; uma espécie de “leitura” inicial, que também contém uma demon-stração ao leitor, de como o técnico leu o edifício, em especial por meio das cotas levantadas.

7 | Verifica-se, no en-tanto, um esforço con-centrado no IPHAN, muito através do pro-grama Monumenta, em produzir documentação de apoio, em seus manu-ais e cadernos técnicos, cuja observação pas-sa a ser requerida com respeito a obras tutela-das pelo Instituto. Esse processo, no entanto, esbarra em três empeci-lhos: Trata-se de docu-mentação do IPHAN, e nem sempre encontra respaldo em outras ins-tâncias administrativas brasileiras (Estado e Município); trata-se de formato “manual”, me-nos rígido que o forma-to “norma”, o que deixa de definir formalmente parâmetros importantes de uma documentação analítica; por fim, es-barra na formação de profissionais nacionais ligados ao restauro que já é deficitária, e pouco prepara seus quadros a práticas de análise de um objeto físico, de maneira integrada e co-erente.

Ver pranchas 1.01 a 1.13

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro36

Levantamento estrutural (rilievo struttturale): Levantamento da estrutura arquitetônica/escultórica compositiva do edifício, para além do que se vê (composição dos muros, estruturas do telhado, etc). Presta-se ao conhecimento das técnicas con-strutivas de um edifício, elementos de acabamento e detalhes construtivos tal como foram executados, oferecendo elemen-tos subsidiários para verificações de estrutura e estabilidade da construção, e admite a especulação de dimensionamentos e composições de estruturas.

Levantamento dos materiais (rilievo materico): Levantamento dos materiais que compõem o edifício estudado, assinalando um a um. Presta-se ao conhecimento dos materiais de aca-bamento que compõem a finalização do edifício.

Mapeamento de danos (rilievo delle patologie edilizie): Levanta-mento das patologias que acometem a fábrica, interna e ex-ternamente (de acordo com sua necessidade). Presta-se ao conhecimento pormenorizado e individualizado do estado de conservação dos materiais que o compõem, ou mesmo dos intrínsecos problemas construtivos de um edifício, que levarão a intervenções pontuais a fim de garantir uma salub-ridade global (Exemplo: fungos e musgos podem denotar in-filtrações em coberturas e paredes; trincas e fissuras, a movi-mentações da estrutura, de maior ou menor risco consoante ao aspecto destas alterações; etc.).

Todos estes componentes do Levantamento Cadastral se pres-tam a uma compreensão global do edifício, desde seu estado de conservação, que norteará de maneira bastante objetiva as sucessivas intervenções estruturais, até a compreensão de sua gênese artística, como se verá na apresentação do levantamen-to de Cantarias, feito para este Trabalho Final de Graduação. Enunciei estes trabalhos juntamente a seus títulos correspon-dentes em italiano, para evidenciar que meu processo analítico se faz de maneira análoga aos trabalhos já desenvolvidos com grande maturidade naquela cultura conservacionista. Dessa forma, havendo algum leitor deste trabalho o interesse em aprofundar-se melhor em exemplos mais concretos e com-plexos, poderá situar-se de maneira mais eficaz na consulta de trabalhos italianos, podendo comparar a minha proposta

Ver pranchas 2.01 a 2.13

Ver pranchas 3.01 a 3.08

Ver pranchas 4.01 a 4.05

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 37

metodológica com outras, encontrando congruências e di-vergências entre elas.

Ajustes e correções: uma nova proposta de levantamen-to para a ornamentação em cantaria na Capela da Ordem TerCeira de NOssa seNhOra dO mONTe CarmelO

À medida que meus trabalhos de restituição gráfica sobre a matéria de meu objeto de estudo avançavam, deparei-me com uma delicada questão, que requereu um acurado exame metodológico, já que o desenho da estrutura arquitetônica (muros, alturas principais, estruturas, etc.) de que dispunha, estava documentado com boa segurança, mas o correto de-senho da ornamentação, não.

Isso decorre, no caso, do fato de os trabalhos de levantamen-to, feitos em 1988, terem sido executados à mão, o que difi-cultava o controle de um correto e proporcionado desenho de todos os elementos figurados em uma prancha. Isso significa, inclusive, que uma correta leitura deste tipo de trabalho não se faz imediatamente pela geometria efetivamente desenhada, mas pelas cotas e medidas que descrevem a geometria medida. Além disso, detalhes construtivos e ornamentos viriam fig-urados em separado, ampliados e, como não dispunha dos trabalhos integrais de levantamento, não tive acesso a estes por-menores.

Dessa forma, me coube indagar sobre uma questão funda-mental: Fazer levantamento não significa desenhar efeti-vamente tudo o que compõe um elaborado físico, pois esta tarefa é impossível. Caberá, portanto, ao técnico, escolher os elementos cuja figuração é importante.

Diversas leituras feitas, com especial atenção à historiografia recente que se tem dedicado ao tema da arquitetura colonial mineira 8, têm demonstrado a importância da ornamentação na gênese de nossos edifícios coloniais.

A princípio, de fato, tal não parece surpreendente: estas o-bras são produtos da mesma cultura construtiva europeia cuja gramática, retórica e eloquente, manifesta-se desde sempre

8 | A esse respeito ver o excelente trabalho do professor Rodrigo Bas-tos, que propõe novas leituras para a arquitetu-ra setecentista religiosa de Ouro Preto: BAS-TOS, Rodrigo de Almei-da. A maravilhosa fábrica de virtudes: O decoro na Arquitetura Religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. 360p.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro38

por meio da ornamentação.

Com a profusão de tratados de arquitetura desde o séc. XV, os preceitos originários clássicos e, particularmente, os vi-tru-vianos, começam a ser compendiados em textos que têm por objetivo emular os lugares comuns da arquitetura greco-ro-mana e, para tanto, constituem uma verdadeira gramática para a ornamentação (as ordens arquitetônicas), por meio de um léxico específico (as modenaturas). É importante ter em mente que ornamento não é adorno, e implica em um discurso retóri-co específico; sua leitura desempenha papel fundamental na compreensão cultural deste tipo de edifício, como pretendo demonstrar no correr deste trabalho. Disso decorre, portanto, a decisão de fazer um levantamento mais acurado deste as-pecto concernente ao Carmo de Mariana.

Esbarrava, no entanto, em um problema, que é o de não ter acesso físico a todos os ornamentos, posto que muitos loca-lizavam-se entre 12 e 15 metros de altura. Além disso, com respeito à ornamentação mais “orgânica” e escultórica, feita em rocalhas e elementos antropomórficos e fitomórficos, é difícil chegar a uma representação fidedigna por meio da representação bidimensional, e técnicas diretas de medição, a priori.

Tive de recorrer novamente a princípios metodológicos sobre como se produz, efetivamente, um trabalho de medição, para definir como deveria proceder:

Através do instrumento de medição, tido em modo convencio-nal, é possível transformar os objetos em números, operação que é produto do intelecto humano, posta em prática para me-lhor compreender e representar a natureza. A medição presta-se a quantificar a natureza do objeto examinado, isolando-a de outras: se trata, em outras palavras, de reconhecer no objeto uma qualidade e de identificar uma entidade através de uma quantificação numérica.

A operação de medição pode, portanto, subdividir-se em duas fases: a) individuação e discretização de uma qualidade do com-plexo de outras presentes no objeto; b) tradução em número da

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 39

intensidade da qualidade isolada [...].

Resulta, portanto, profundamente errada a opinião comum que identifica a operação de medição com um simples ato técnico, tendente a traduzir as quantidades em números. Na verdade, ao originar esta operação existe uma escolha crítica efetuada sobre o objeto, para restituir sua discretização, que estabelece aquilo que deve ser medido. Um profissional que se propõe a medir uma obra arquitetônica não pode evidentemente levantar os infinitos pontos que a compõem, mas deve operar escolhas e discretizar o contínuo da matéria, reduzindo-a a um número limitado de pontos. Estes últimos deverão ter, além disso, um valor estratégico: ocorre, em outras palavras, que sejam signifi-cativos, com a finalidade de evidenciar os valores que a obra contém. Resulta que a operação de medir é ao mesmo tempo análise e seleção de certas qualidades: para tal é necessário que o operador esteja preparado culturalmente e tecnicamente a efetuar estas escolhas. Deverá, de fato, separar o supérfluo do essencial, de modo que os pontos selecionados, uma vez levan-tados e traduzidos em representação gráfica, constituam um modelo que represente as reais qualidades do objeto levantado.

Bastará confrontar certos desenhos de arquitetura com o mo-delo real para dar-se conta de como alguns destes, malgrado a exatidão das medidas, não reproduzem o caráter e o espírito do edifício real. A posterior confirmação, pode-se dizer que um complexo entablamento barroco, constituído de muitas silhu-etas, pode, a uma certa escala de redução, ser sintetizado com três ou quatro linhas: o problema é compreender quais, dentre as linhas que o constituem, possam ser eliminadas e quais de-vem ser mantidas 9.

Esta introdução ao capítulo “Elementos de metrologia”, de nosso conhecido Manual italiano, é bastante elucidativa. Encaro, a partir dela, com respeito as escolhas de grafismo feitas pelos trabalhos de 1988, e recobro forças, bem como ar-cabouço metodológico, para ir além daquele trabalho. É, tam-bém, necessário observar, que a “omissão” proposital de al-guns elementos compositivos se dá mais no universo da escala em que é feito um desenho, quando feito à mão. É justamente aí que teve início o meu problema, pois eu tinha como fonte

9 | DOCCI, Mario, MAESTRI, Diego. Op. Cit., P. 25.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro40

Frontispício do Carmo

(Mariana), com atenção

ao seu pórtico principal.

(Foto do autor)

Desenho de observação,

preparatório ao levan-

tamento do Pórtico,

elaborado pelo autor.

ao lado: Levantamento

do Pórtico, com sua

restituição gráfica final.

(Elaboração do autor)

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 41

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro42

Levantamento de uma

residência em Ficarra

(ME - Itália), através de

medição direta. Note-se

as cotas altimétricas

medidas a partir de um

nível “zero” horizontal

pré-estabelecido.

Elaboração: Benjamim

Saviani, Fabrizia Gian-

noti, Francesca Guazzi,

Giulia Guerrazzi. (Ar-

quivo pessoal do autor)

Levantamento instru-

mental da igreja de Sta.

Maria in Via (Roma ).

Elaboração: A. Rossi, S.

Rossi, A. Ruggieri.

(Fonte: DOCCI, M.,

MAESTRI, D. Op. Cit,

p. 268)

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 43

Levantamento indireto mediante escaneamento 3D a laser, da igreja de

Sant’Andrea (Mântua ) elaborado pela equipe do Centro Studi Leon Bat-

tista Alberti di Mantova.

(Fonte: ______. Leon Battista Alberti e L’architettura. Mântua: Silvana

Editoriale, 2007. P. 201.)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro44

pranchas advindas de um trabalho de desenho à mão, em es-cala 1:50, cujos detalhes viriam figurados somente em outras pranchas, em 1:10, 1:20, etc. (mas destas eu não dispunha); no entanto, ao trabalhar no AutoCAD se desenha em escala 1:1 e não se pode omitir nenhum elemento compositivo evidente, se por questões de escala.

Segundo o dito Manual, três são os métodos de tomada de medidas 10: a) levantamento direto – medições com métodos tradicionais; b) levantamento instrumental – medições com o auxílio de equipamentos topográficos; c) levantamento in-direto – técnicas computacionais como fotogrametria e es-caneamento laser 3D. Deve o técnico, portanto, valer-se de um projeto que contemple a combinação de técnicas mais ad-equada para cada trabalho.

Neste caso, executei o levantamento direto dos embasamentos aos quais tinha acesso, ou seja, da Portada e do Arco Cruzeiro, catalogando e medindo as modenaturas que os compõem; para a ornamentação do alto (capitéis, entablamentos, vergas de janelas e cimalhas), utilizei-me de levantamento instrumen-tal (medidas gerais feitas com uma trena laser), e fotograme-tria ou mesmo fotos tiradas de ângulos com pouca distorção. Estes dados são desenhados digitalmente e, posteriormente, submetidos ao confronto com alguns tratados de arquitetura e construção, a fim de identificar semelhanças gramaticais e de geometria que podem, em casos muito específicos, em-basar alguns ajustes proporcionais mínimos.

É importante ressaltar que estes ajustes são “mínimos e específicos”, pois seria absurdo considerar que uma estampa em um tratado é, de fato, o que foi construído no Carmo. O uso das estampas se dirige a compreender a geometria simples que compõe as modenaturas, se feitas por uma fração de circunferência, quais os raios das circunferências, etc. A diferença entre uma e outra é verificável a olho, inclusive en-tre variações da mesma (a exemplo da escócia vignolesca, em comparação com outras escócias).

Este é o único caso em que admito a leitura de tratados para solucionar dúvidas efetivas de geometria, admitindo a inser-

10 | Idem, P. 68.

Ver prancha 1.13

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O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo | 2 45

ção da arquitetura estudada neste universo cultural. Além dis-so, este método vem entendido como um processo especula-tivo que sempre tem lugar (mas específico) em um trabalho de levantamento: sendo este um trabalho de documentação, deve vir discriminado nas corretas pranchas tudo aquilo que foi medido, e tudo aquilo que está sendo especulado pelo técnico.

A este ponto, é necessário aclarar que os métodos ideais para um acurado levantamento de um edifício com tal profusão or-namental, seriam o levantamento direto de todos os elemen-tos ornamentais, ou um escaneamento laser 3D, que oferece ao operador uma nuvem de pontos tridimensional, com alto grau de precisão e detalhes. No entanto, como dito anteriormente, não tenho à disposição todos os métodos de levantamento pos-síveis, e devo lançar mão de condições de contorno que ga-rantam, regulados por uma metodologia segura, um trabalho adequado ao meu escopo e à correta e fiel representação desta “essência cultural e física” do edifício estudado; isto sem con-tar que o levantamento direto é sempre um método confiável e que serve como “regulador” dos demais. Suas limitações, no entanto, residem no fato de a medição ser relativa sempre às duas dimensões que que geralmente compõem uma secção levantada (planta ou corte), e a um número comumente mais limitado de pontos levantados.

Este levantamento compõe as primeiras quarenta pranchas contidas em anexo a este caderno, onde se poderá ver efetiva-mente as questões que aqui coloco. Ver pranchas 1.01 a 4.05

Comparar as pranchas

da série 1 com a série 2,

sobretudo, prancha 2.13

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3A capitania, a cidade e a capela[narratio]

Carmo de Mariana.

Fotografia de Eric Hess,

s/d.

(Fonte: Arquivo Central

do IPHAN)

Origem das povoações e edifícios religiosos na região das minas

Antes de falar do edifício estudado, em si, é apropriado fazer uma breve recapitulação sobre as origens do povoamento da região onde se localiza, provendo ao leitor subsídios para maior compreensão de nosso objeto de estudo, como produto artístico e religioso, simultaneamente. Isto porque os projetos coloniais para a região mudam de maneira substancial com o início de seu povoamento, configurando situações peculiares do ponto de vista institucional, e até cultural, que influenciam na configuração de seus edifícios, sobretudo os edifícios reli-giosos. Entender minimamente como funcionava a sociedade colonial na região das Minas de Ouro é, portanto, o passo inicial para entender nosso objeto de estudo.

O povoamento na região das minas de ouro brasileiras du-rante o período colonial provocou consideráveis mudanças na administração e nos projetos portugueses para a colônia ame-ricana. Da diversificação das principais atividades econômi-cas aos deslocamentos populacionais, a descoberta de fabu-losas quantidades de ouro a ser extraído, que compunham uma proposta real de enriquecimento e ascensão social dos colonos, provocou uma reorganização da estrutura política dando maior ênfase à atual região sudeste e povoando, com certa carga de pioneirismo, novos territórios interioranos na América Portuguesa. Tal povoamento se deu de maneira peculiar e veloz, porque em função de uma febre minerado-ra, o que permitiu a formação de povoações com estrutura

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro48

fundiária diversa daquela de monocultura colonial, em que os modos de vida essencialmente urbanos têm importante papel social, inclusive no fomento de elaborados gêneros artísticos e arquitetônicos.

A região aurífera do atual Estado de Minas Gerais começa a ser povoada ainda em fins do século XVII, a partir de incursões feitas pelos paulistas (ou “vicentinos”, porque advindos da Capitania de São Vicente). Rapidamente teve intensificada a povoação na região, também por muitos luso-nordestinos, que àquela altura deixavam as regiões litorâneas em função da decadência das monoculturas açucareiras, uma vez correntes os relatos da presença do ouro naquelas localidades.

As povoações lá edificadas concentram uma estrutura fundiária peculiar, por assentar-se em um terreno quase sempre mon-tanhoso e difícil, e concentrar núcleos urbanos pulverizados mas relativamente próximos uns aos outros, auxiliados pelas circunstâncias geofísicas que “amarravam” as povoações em torno das minas. Verifica-se, portanto, a evolução dos aglo-merados urbanos em torno de arraiais que reuniam os diver-sos moradores em festividades (religiosas) e eventos coletivos

1; não há, inicialmente, uma prerrogativa institucionalizada de “fundar cidades”, entendendo-se como um estabelecimento do Poder Metropolitano na região. Muito pelo contrário. O que move estes primeiros impulsos é a atividade mineradora, de iniciativa “aventureira”, ainda pouco controlada pelo Es-tado português, além de pouco estruturada: de início, lá pouco se plantava, e muito do comércio de carnes era controlado por espécies de “cartéis” de açougueiros, além de outros insumos serem comumente importados chegando a preços muito ele-vados. Esses problemas decorrem de uma ocupação sem a in-tenção, em um primeiro momento, de se fazer perene no local (diferentemente de uma colonização agrária, por exemplo), levando mesmo a fomes e êxodos, como em Ouro Preto, nos idos do Setecentos. Por outro lado, sendo a principal atividade econômica a mineração e não a agricultura, por exemplo, a povoação da região não se fez com a prerrogativa de grandes distâncias físicas entre famílias e outros núcleos. Trata-se de um povoamento feito a partir do princípio do grupamento urbano, e não do latifúndio, e daí a organização da vida social

1 | A esse respeito, ver a periodização propos-ta por Sylvio de Vas-concellos: VASCON-CELLOS, S. Arquitetura Religiosa. In: ______. Arquitetura dois estudos. 2 ed. Goiânia, MEC/SESU/PIMEG-ARQ/UCG, 1983. P. 45 – 61.

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A capitania, a cidade e a capela | 3 49

com maior importância dos arraiais.

O rápido e intenso crescimento demográfico, aliado à dificul-dade de administrar a região, ainda pertencente a uma grande capitania sediada no Rio de Janeiro, em breve levou seus ha-bitantes a conflitos armados, no caso, estimulados pela escas-sez e preço dos insumos, como também em função da exi-gência de primazia na exploração do ouro, por parte de seus primeiros descobridores paulistas. Essa condição é reforçada pela concorrência de reinóis e luso-brasileiros das costas nor-deste da colônia, intensificada pela insípida presença da Coroa, culminando em conflitos dentre os quais se situa a Guerra dos Emboabas (1707-1709). Este episódio levou a governo por-tuguês à reorganização administrativa de algumas Capitanias brasileiras. Logo após o fim do conflito, em 1709, a Capitania de São Vicente é dividida em Capitania de São Paulo e Minas de Ouro e em Capitania do Rio de Janeiro, o que ligava ambas as regiões à Coroa de maneira mais direta; também para esse fim se iniciam outras medidas administrativas na região das Minas, como a outorga do título de Vila a alguns arraiais e a proibição de religiosos de Ordens Primeiras e Segundas (co-mentaremos este fato mais adiante).

Não diferentemente, Mariana nasce como arraial a partir das incursões de bandeirantes naquela região em busca de pontos de mineração aurífera, às margens do Ribeirão do Carmo, ain-da no fim do século XVII. Aliás, um de seus atuais distritos, Santa Rita Durão, é um dos primeiros locais que começam a explorar o ouro no século XVIII, além de ser um dos mais abundantes neste metal.

A criação da nova Capitania, governada por Antônio de Al-buquerque Coelho de Carvalho, marca o início de uma série de medidas concretas do Estado português para promover e controlar o povoamento da região. Uma das primeiras me-didas foi a concessão do título de Vila a algumas povoações, o que pressupunha a instauração de representações oficiais como Casa de Câmara e Cadeia. Neste contexto compreende-se a eleição de vereadores, deliberações sobre a criação e regu-lamentação de arruamentos urbanos, obras públicas, a ereção de templos 2, etc.

2 | Tais responsabili-dades do Estado por-tuguês com o patrimô-nio religioso residem na relação estabelecida por meio do Padroado real com as instituições religiosas em territó-rios portugueses. Estas questões são cuidado-samente examinadas no trabalho de Caio César Boschi, e serão opor-tunamente comentadas no correr de meu traba-lho. Ver: BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder (Irmandades leigas e po-lítica Colonizadora em minas Gerais). São Pau-lo: Editora Ática, 1986.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro50

Nas primeiras décadas do século XVIII vários arraiais foram proclamados vilas: Mariana (Vila do Carmo) e Ouro Preto (Vila Rica) em 1711; Vila de São João del Rei em 1713; Serro (Vila do Príncipe) e Caeté (Vila Nova da rainha do Caeté do mato Dentro) em 1714; e Pitangui (Vila Nova do Infante) em 1715. Não poderia precisar com segurança o porquê de Mari-ana ter sido a primeira daquelas povoações a tornar-se, ofi-cialmente, Vila, já que a tipologia e importância de todas era muito semelhante. Fato é que em 1711 o então governador da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, eleva o arraial, que se chamava Arraial do Ribeirão do Carmo à categoria de Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo, decisão confirmada em carta régia de 14 de abril de 1712, quando se instituiu a Vila Real de Nossa Senhora. Será elevada à categoria de ci-dade em 1745, com o nome de Cidade Mariana, em homena-gem à esposa do Rei D. João V, Da. Maria Ana de Áustria.

A outorga do título de Cidade a Mariana é singular dentre suas vizinhas, conferindo-lhe importância administrativa. A isto soma-se a instituição de uma arquidiocese desmembrada do Rio de Janeiro, a sexta no Brasil, a partir de 1748 3, vindo como uma resposta à região, por conta das restrições à pre-sença de religiosos. Tais restrições se configuraram em diver-sas Ordens Régias ao longo do século XVIII, evoluindo no sentido de especificar a expulsão dos “Clérigos desnecessári-os, e [consentindo-se] só aqueles que fossem, precisos para o Serviço das Igrejas” 4. Isto porque, de acordo com a política do Padroado Real, estabelecida entre Roma e as coroas ibéri-cas para a catequização dos territórios ultramarinos (e, mais especificamente no Setecentos, dentro da estrutura do Estado absolutista português), o Rei, como representante de Deus na Terra, tinha poderes outorgados de Roma para orientar e “legislar” sobre o clero em seus domínios, o que provocava desavenças entre ambas as partes. Este modelo administra-tivo punha em conflito o clero e o Estado, já que o primeiro segmento queixava-se, ainda que de maneira velada, de não fazer mais do que representar as Ordens Reais na colônia, o que prejudicava a atividade pastoral; o segundo, por sua vez, argumentava serem os religiosos insubordinados de diversas formas. Estes conflitos levaram a concomitantes ordens de governo à recém-criada Capitania de São Paulo e Minas no

3 | ARQUIDIOCE-SE de Mariana. His-tórico. Disponível em: <http://www.arqma-riana.com.br/?page_id=12>. Acesso em 24 de nov. 2013.

4 | COELHO, José J. T., apud BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder (Irmandades leigas e política Colonizadora em minas Gerais). São Paulo: Editora Ática, 1986. P. 82.

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sentido de não permitir os religiosos “ociosos”, isto é, aqueles que não praticavam os ofícios sacros, até porque a região das Minas estava cri-ando uma delicada estrutura fiscal, por conta dos afluxos de ouro, e o serviço religioso também funcionava como um “emprego”, em que o re-ligioso cobrava por serviços à população (missas, velóri-os, etc.) e, por vezes, burlava o fisco; isto, sem contar o fato de muitos religiosos atuarem como verdadeiros espiões a serviço de outras nações, já que eram “pessoas in-ternacionais” (um francês poderia facilmente ser enviado ao Brasil por sua Ordem Religiosa, vindo não como francês, mas como franciscano, por exemplo). Tais fatos, portanto, expli-cam a criação de uma diocese em Mariana também como um braço do Estado português nas questões religiosas e fiscais.

Ainda que as restrições se dirigissem às Ordens Primeiras e Segundas, verificam-se outros atritos também coma as Or-dens Terceiras, como relata Boschi:

Em favor dos bispos, no entanto, deve-se ressaltar que sua ju-risdição sobre as ordens religiosas sempre foi questionada por estas. Os regulares, assim como as ordens terceiras, insistiram em não se submeter às autoridades locais, dizendo-se subordi-nados diretamente aos Gerais do Carmo (em Roma) e de São Francisco (em Castela). Assim procedendo, evocavam sua tu-tela a autoridades estrangeiras, num comportamento inadmis-sível para os interesses e a autoridade do Estado absolutista português. Portanto, se a repressão foi maior e mais incisiva-mente voltada para os frades é que eles, conquanto também vivendo sob o padroado, invocavam a subordinação direta a autoridades que, se bem legítimas, não poderiam ser reconhe-cidas como substitutas das autoridades régias e eclesiásticas de Portugal. Afora isso, embora a Coroa insistisse em ratificar a

“Plãta da cidade de

Mariana” (séc XVIII),

(Fonte: BASTOS, Rodri-

go de A. “Regularidade

e ordem nas povoações

mineiras do século

XVIII”. In: Revista do

IEB. N. 44, fev. 2007. Pp.

27-54.)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro52

disposição legal que su-bordinava os regulares aos bispos di-ocesanos, estes nunca se submeteram integralmente a outras autoridades que não as de sua própria ordem 5.

Não obstante a isso, a estrutura social nas Minas organizou-se de maneira enfática em torno das Ordens Terceiras, isto é, irmandades leigas. Estas assumem papel fundamental na es-trutura social do Estado católico português, e adquirem pro-eminência ainda maior na região das minas, como instituições coletivas quase hegemônicas, capazes de prover assistência médica e solo sagrado para um enterro decente, a seus irmãos. Eram como instituições em torno das quais a sociedade se organizava e permitia que seus indivíduos se identificassem como pertencentes a um grupo, ao mesmo tempo em que distinto dos demais grupos.

A comunidade, entendida como a congregação das irman-dades, por sua vez, se faz na Igreja Matriz de cada vila. A Matriz é, de fato, uma igreja, e uma igreja de caráter comuni-tário, de cujo edifício o Estado tinha deveres de manutenção. Em sua origem, a matriz abriga, ao redor do orago da comu-nidade, os altares dedicados ao culto de outros santos que, sucessivamente, são estruturados em irmandades. As irman-dades começam a se formar tendo como espaço de culto um dos altares da matriz. Dessa forma, ao se visitar uma matriz, se poderia ter a situação de uma missa ser rezada por uma ir-mandade, em um dos altares colaterais, dedicado ao santo es-pecífico da irmandade, ao mesmo tempo em que outra missa, ou ladainha, ou outro ofício, fosse executado por outra irman-dade, em seu respectivo altar, na mesma nave. Com o tempo, e a irmandade havendo uma receita financeira mais estável, pedia-se permissão à Câmara para ocupar terras e construir a sua própria capela fora da matriz, sem, no entanto, se deixar representar pelo altar de culto originário, dentro da mesma.

Por esta razão, todos os templos edificados em uma vila ou arraial ou cidade na região das minas, à exceção da matriz, são chamados de capela, independentemente de sua escala física, pois se tratam do local de culto de uma irmandade leiga. Por-tanto, é pela mesma razão que, buscando uma aproximação mais coeva a conceitos vigentes na cultura que elaborou os

6 | A dita capela, no en-tanto, hoje não pertence mais à irmandade do Carmo de Mariana, pois esta se dissolveu duran-te meados do séc. XX. O edifício foi, então, incorporado à Diocese local que, hoje, se refere ao edifício como Santu-ário de Nossa Senhora do Carmo. Imagino que haja um número específico de relíquias católicas sob a guarda deste edifí-cio, para conferir-lhe tal designação, e reconheço a propriedade do termo com relação ao uso con-temporâneo do edifício (diferentemente de cha-ma-lo de “igreja”); insis-to, porém, em me referir a ele como capela, por fazer um estudo que, sobremaneira, analisa o edifício em sua gênese.

5 | Ibidem.

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artefatos que estamos estudando, refiro-me ao templo dedica-do à Nossa Senhora do Carmo como Capela, Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo ou Monte Carmelo, etc 6.

O culto a Nossa Senhora do Carmo e a sua Capela

O culto a Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, talvez seja o mais antigo naquela localidade que, aliás, recebe seu nome em homenagem à dita Senhora, e se localiza às margens do Ribeirão do Carmo. Segundo Salomão de Vasconcellos, uma capela dedicada a Nossa Senhora do Carmo foi a primeira das capelas erigidas naquela localidade, pelo bandeirante Salvador Fernandes Furtado, feita em barro e cobertura de palha, em local hoje desconhecido; esta capela, posteriormente, dá ori-gem a outras mais, que constituem-se como freguesias, sendo que uma delas seria eleita em 1709 para sediar a Matriz, pos-teriormente Catedral de Mariana. Note-se que o culto a N. S. do Carmo não se trata da congregação leiga especificamente; a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, por sua vez, é formada em Mariana somente em 1754, reunindo-se inicial-mente em uma capela dedicada a São Gonçalo (edifício hoje inexistente), e depois construindo uma “capela provisória” dedicada ao Menino Deus, localizada ao lado da atual e de-finitiva capela, que começa a ser erigida em 1784 7. Da capela dedicada ao Menino Deus ainda se conservam apenas algu-mas fotos, pois fora demolida no século XX, dando lugar a um jardim ao lado do atual edifício.

Para a construção da atual Capela, foi contratado o mestre de obras português Domigos Moreira de Oliveira, que da obra se encarregou até o ano de sua morte, em 1794. Sabe-se que até esta data a fachada do Carmo já havia sido concluída, inclu-sive com a colocação da portada e dos anjos esculpidos por Sebastião Gonçalves Soares. Além disso, sabe-se que o risco do retábulo da capela-mor fora fornecido pelo padre Félix Antônio Lisboa, meio irmão do Aleijadinho, em 1797, tendo sido concluído apenas em 1826. O douramento do dito retá-bulo, bem como a pintura do forro da Nave foram executados por Francisco Xavier Carneiro 8.

7 | Salomão de Vascon-cellos data o início da construção do edifício em 1784, ao passo que Myriam A. Ribeiro de Oliveira o data em 1783. Essa divergência prova-velmente se dá pelo fato de a Mesa da Ordem ter deliberado pela constru-ção do novo edifício em 1783, mas tê-la iniciado no ano seguinte. Ver: VASCONCELLOS, Sa-lomão. Marianna e seus templos. Belo Horizon-te: Graphica Queiroz Breyner Ltda. 193?. Cf. OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 145.

8 | OLIVEIRA, M. A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 145.

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A dar conta de descrever o histórico de construção do edifício de maneira sucinta, julgo apropriado transcrever um docu-mento, produzido pelo então chefe do Escritório Técnico do IPHAN em Mariana, o prof. Altino Barbosa Caldeira, para um artigo publicado nos Cadernos de Arquitetura e Urba-nismo da PUC-Minas 9, sobre o edifício que, à época, passava por obras de restauro (obras estas que, em 1999, ironicamente culminaram em um incêndio):

Cronologia da Igreja de Nossa Senhora do Carmo - Mariana

15.05.1751: Fundação da Ordem Terceira dos Carmelitas

1759: Aquisição do terreno. Ereção da Capela do Menino Deus.

1762: José Pereira Arouca (construtor da Casa de Câmara e Cadeia) iniciou as obras na Capela alterando a localização do coro.

1764 e 1765: Antônio Coelho Lamas efetuaou pinturas na Capela.

1768: Foi pintada a Capela-Mor. Manoel da Costa Athaide recebe por ser-viços não especializados.

1783: A mesa da ordem resolveu construir a igreja

1784: É contratado Domingos Moreira de oliveira que pelos próximos dez anos, executa as obras preliminares da igreja.

1793: Romão de Abreu, carpinteiro, é chamado a colaborar, prometendo dar pronta “na presente seca” da Capela-Mor para ser coberta de telhas. A José Meirelles Pinto cabe a execução da obra de talha da porta principal.

1794: Contratado Custódio de Freitas Guimarães para tomar conta da obra. Sebastião Gonçalves Soares recebe pelo feitio de dois anjos de pedra para o frontispício.

1797: O irmão di Aleijadinho, padre Félix Antônio Lisboa, executa o risco da talha do altar-mor.

1799: José Bernardes de Oliveira é chamado para dirigir as obras. Fran-cisco Machado da Luz executa obras de carpinteiro no corpo da igreja,

9 | CALDEIRA, Alti-no B. Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Mariana. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, n. 2 , p. 11-33, ago. 1994.

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arrematando em 1801 o resto das obras.

1818: Iniciam-se as obras da Capela do Noviciado. Contratado Francisco Machado da Luz, a quem abe também executar o corredor que servirá de sacristia.

1819: Manoel Dias executa obras no retábulo.

1823: Providenciados os sinos. Resolve-se nesta data desmanchar a capela velha, erigindo-se neste local novo frontispício. Francisco Xavier Carneiro executa o douramento do altar-mor. A sacristia e o corredor do lado são executados por Joaquim José de Souza.

1827: Execução dos altares laterais e pintura do teto e do corpo da igreja.

1835: Conclusão das obras.

1840: A igreja recebeu auxílio para obras de conservação.

1881: A Ordem recebeu do governo estadual recursos para limpeza ex-terna da igreja.

1916: Procedeu-se à caiação da fachada.

1930: O seu telhado foi restaurado.

1939: A Capela foi inscrita pelo instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no livro de Tombo das Belas Artes.

1953/54: Foram feitas nova revisão do telhado, substituição do assoalho e remoção da pintura a óleo do cancelo, colocação de para-raios e pintura geral interna e externa.

1987: Iniciada a recuperação completa da cobertura pelo SPHAN/Pró-memória, sendo contratada a construtora Walter Coscarelli. Foram subs-tituídos o madeiramento e entelhamento da Capela-Mor, Capela lateral e Sacristia, tendo sido realizado o levantamento cadastral completo do monumento 10.

1988: Foram adquiridos pelo Escritório Técnico da SPHAN de Mariana parte do paterial necessário à restauração da estrutura do altar-mor, da

10 | As pranchas deste trabalho datam de 1988, e é a esta data que me referirei ao falar sobre estes trabalhos, no de-correr de meu texto.

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cúpula de estuque da Capela e peças de fiação para a nova instalação elé-trica.

1992: Executado o projeto arquitetônico de restauro e conservação com-pleta da igreja, na 13ª Coordenação Regional do IBPC, pelo Arquiteto Altino Barbosa Caldeira 11.

A completar esta cronologia, cabe dizer que a Ordem Tercei-ra do Carmo em Mariana dissolveu-se ao longo do séc. XX, tendo a administração de seu Templo sido confiada à Diocese. Outros eventos que se abateram sobre nosso objeto de estudo vêm reportados a seguir, com atenção especial no espaço de um capítulo inteiro.

11 | Idem, p. 18 – 19.

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Hipótese sobre as etapas de construção do edifício, baseada na cronolo-

gia elaborada pelo prof. Caldeira, e nos inventários do IPHAN 12:

Alvenarias:

1784 - 1793: Capela-Mor.

? - c. 1801: Corpo da edificação

1823 - ? : Frontispício. Sacristia. Corredor Lateral

Elementos lígneos:

1797 - 1826: Altar-Mor

c. 1818: Balaustrada da Nave

1824 - 1827: Altares Laterais

1824 - ? : Tapa-Vento

12 | MINISTÉRIO DA CULTURA. SPHAN/P R Ó - M E M Ó R I A . INVENTÁRIO NA-CIONAL DE BENS MÓVEIS E INTE-GRADOS: Minas gerais. Módulo 2 – Região de Mariana. V. 6 – Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Rio de Janeiro, set. 1988.

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4História recente:incêndio e intervenções[narratio]

1 | ALMEIDA, Lucia-no Mendes de. Mariana revive. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, A2, 03 fev. 2001.

Carmo de Mariana. Al-

tar do Lado da Epístola,

antes do incêndio.

(Fonte: Biblioteca

da Superintendência

do IPHAN em Minas

Gerais)

Devido à intensidade dos acontecimentos mais recentes rela-tivos à Capela da ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, decidi reportar em um capítulo à parte o que apurei em extratos de periódicos, manifestos, informativos técnicos e de propa-ganda, quase todos conservados no Arquivo Eclesiástico da Diocese de Mariana.

O incêndio

Os últimos trabalhos mais incisivos no Carmo iniciaram-se em 1988 com o levantamento conduzido pelo prof. Altino Barbosa Caldeira, onde se pôde averiguar alguns problemas estruturais, o que resultou no fechamento do edifício ao pú-blico por alguns anos. Em 1995 foram obtidos recursos junto à Fundação Vale do Rio Doce, BNDES, e benefícios da Lei Rouanet 1 para a restauração, que se concentrou na consolida-ção estrutural de alguns elementos específicos. Averiguando os arquivos do Escritório Técnico do IPHAN em Mariana, e da Superintendência Regional do IPHAN em Belo Horizon-te, pude encontrar alguns destes trabalhos, cujas informações cruzei com outras encontradas em publicações feitas ao longo daqueles anos. Interveio-se, sobretudo, nas ossaturas do forro de madeira da Capela Mor, em formato de abóbada de ares-tas, duplicando-se e substituindo-se as cambotas e nervuras diagonais avariadas por cupins. Também encontrei relatórios fotográficos que mostram a consolidação do arco cruzeiro, feita com injeção de calda de cimento na chave do arco, e na alvenaria acima dele, sendo o revestimento também, aparente-mente, feito com material cimentício.

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Todo este trabalho é tido como “adequado” e “exem-plar” por alguns veículos de informação 2. Os trabalhos prosseguiam, em fase final de execução, com o templo já aberto aos fiéis; em 20 de fe-vereiro de 1999, dois operári-os subiram ao forro da Nave para aspergir querosene na superfície exterior das madei-ras, à época produto de uso corrente na descupinização de elementos lígneos. Segundo o prof. Altino 3, se aspergia o produto enquanto se ilu-minava o ambiente com uma lâmpada incandescente e, em algum momento, um jato de

querosene atingiu a lâmpada, provocando quase que instanta-neamente o incêndio. Como agravante, Mariana não possuía uma brigada do corpo de bombeiros, tendo sido necessário acioná-los de Ouro Preto, localizada a 11km de distância, mas depois de estradas estreitas e tortuosas, o que dificultou a as-sistência imediata ao sinistro. Jamais encontrei qualquer infor-mação sobre mortos ou feridos neste incidente.

Os danos

O fogo consumiu o forro e a estrutura do telhado da Nave, que àquela época ainda era toda em madeira, provocando o desabamento do conjunto sobre o espaço da Nave e Coro. Como consequência, seja do fogo ou do desabamento, per-deu-se os guarda-corpos dos púlpitos; os altares laterais jun-tamente com sua imaginária; o pavimento e guarda-corpo do Coro; o assoalho e guarda-corpos da Nave; o paravento que dividia o Nártex e a Nave; e a cimalha acima do Coro. Além disso, possivelmente pelo calor do fogo, ou pelo choque tér-mico provocado pelo uso da água para apagar o incêndio, vári-os elementos em cantaria explodiram, como as ombreiras das portas da Nave (praticamente todas), e algumas partes do arco

2 | ______. Carmo de Mariana: o renascimen-to de uma história. In: Biph – Boletim Informativo do Patrimônio Histórico. 13ª SR/IPHAN-MG. Outubro de 1999, 4 pp.

3 | CALDEIRA, Altino B. A igreja do Carmo de Mariana. Vitruvius, Arquitextos, 027.3, ano 3, ago. 2002. Dis-ponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arqui-textos/03.027/759>. Acesso em: 10 fev. 2014.

Carmo de Mariana

durante o incêndio.

(Fonte: http://www.

vitruvius.com.br/

revistas/read/arquitex-

tos/03.027/759)

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História recente: incêndio e intervenções | 4 61

cruzeiro. Os danos às cantar-ias das aberturas parecem se justificar por essas razões, já que as vergas das janelas altas, como se pode ver nas fotos imediatamente pós-sinistro, não sofreram danos. Acredito que, por localizarem-se den-tro da projeção da cimalha interna, os escombros flame-jantes não as tenham atingido diretamente. Nunca encontrei informações precisas sobre os púlpitos, mas certa dife-rença de coloração entre eles me levanta a suspeita de que um deles (lado da Epístola) tenha sido reconstruído, ou sofrido reintegrações bastante grandes; fato é que se pode ver reintegrações menores, pos-sivelmente em argamassa cimentícia, nas ombreiras dos púl-pitos. Além disso, as portas que compartimentavam a Nave também sofreram avarias de graus variáveis.

Surpreendentemente, a Capela Mor não foi atingida direta-mente pelo fogo, em parte por sua cobertura localizar-se em altura inferior à da Nave, o que manteve íntegro aquele es-paço, apesar de, como observa o prof. Altino,

o calor das chamas, no entanto, provocou o deslocamento da superfície da pintura do altar-mór, tornando-as vulneráveis [sic] e pondo em risco a segurança da estrutura em barrete de clérigo [abóbada em aresta] 4.

O processo de restauração.

Um incidente desta natureza, como era de se esperar, movi-mentou a opinião pública local e regional. Pode-se ter alguma ideia da pressão gerada sobre os responsáveis do canteiro de obras, Arquidiocese e IPHAN, através da variedade de mate-rial gráfico produzido, sobretudo procurando explicar à co-

4 | Idem, ibidem.

Danos na Nave, logo

após o incêndio.

(Fonte: http://www.

vitruvius.com.br/

revistas/read/arquitex-

tos/03.027/759)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro62

munidade como estavam sendo levadas a cabo as ob-ras pós-sinistro.

Segundo o Boletim In-formativo do Patrimônio Histórico 5, para nortear as diretrizes das novas inter-venções, foi feito o fórum “Reflexões sobre o Carmo de Mariana”, organizado pela 13ª Superintendência Regional do IPHAN (13ª SR/IPHAN), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), Centro de Con-servação e Restauração (CECOR/UFMG) e Ar-quidiocese de Mariana, convidando as seguintes

personalidades: Faiga Ostrower (artista plástica), Myriam Ri-beiro de Oliveira (historiadora), Moacyr Laterza (filósofo), Silva Telles, Odete Dourado e Rodrigo Meniconi (arquitetos), Antônio Carlos Brandão (EA/UFMG), Beatriz Coelho (CE-COR/UFMG), e representantes da comunidade.

Além disso, a Arquidiocese de Mariana organizou uma “Comissão de Acompanhamento da Intervenção na Igreja do Carmo de Mariana”, também com representantes do IPHAN, IEPHA, CECOR/UFMG e Arquidiocese, que escolheu o ar-quiteto Rodrigo Meniconi como o de melhor perfil técnico para apresentar o futuro projeto de intervenção.

O que se pode apreender, portanto, é que o Fórum promoveu a troca de ideias entre profissionais de diferentes áreas e mem-bros da comunidade, a fim de definir diretrizes de intervenção, e a Comissão de Acompanhamento, organizada pela parte comitente da obra (isto é, a Arquidiocese de Mariana), elegeu o futuro autor do projeto, procurando assegurar que seguisse

5 | ______. Biph – Bo-letim Informativo do Patri-mônio Histórico. 13ª SR/IPHAN-MG. Outubro de 1999, 4 pp.

Ações imediatas de

consolidação estru-

tural: escoramento dos

vãos. (Fonte: Arquivo

Eclesiástico da Diocese

de Mariana)

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História recente: incêndio e intervenções | 4 63

as indicações do relatório final do dito fórum.

É digno de nota que as di-retrizes divulgadas aparen-tam ser bem adequadas a reconhecidos preceitos do Restauro Arquitetônico, ratificados por documentos como a Carta de Veneza (1964):

A diretriz que norteará o trabalho, segundo precei-tos e normas consagradas de restauração, é de não se ferir a autenticidade da obra. Assim, o que se bus-cará é a reconstituição dos elementos destruídos pelo incêndio, mediante o uso de materiais contemporâneos e compatíveis. Os novos ele-mentos incorporados, tais como a cobertura e altares later-ais, serão diferenciados dos originais, de forma a possibilitar a sua clara identificação, resguardando a fidelidade aos aspectos documentais do monumento.

O que se pretende no trabalho é restaurar o conjunto, a am-biência, devolvendo a funcionalidade do monumento como local de culto religioso, sem contudo criar um “falso”, ou seja, induzir à ilusão de que todos os elementos são originais. 6

Os trabalhos, então, foram levados a cabo a partir das inter-venções de caráter eminentemente técnico:

Como ações de consolidação estrutural emergencial, logo após o incêndio, fez-se uma cobertura plástica provisória so-bre leves tesouras metálicas por cima da Nave, a fim de pro-teger seu interior, e todos os vãos foram tamponados com ti-jolos, com exceção da entrada, que foi escorada em pontaletes de madeira, a fim de diminuir os esforços sobre as vergas.

6 | Idem, p. 3.

Intervenção estrutural:

Telhado refeito em

estrutura metálica e

novas cambotas da

abóbada. (Fonte: Biblio-

teca da Superintendên-

cia do IPHAN em Minas

Gerais)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro64

Os memoriais da empresa Cerne Engenharia 7 mostram estu-dos de estabilidade das portas em arco, e do comportamento estático da fachada (já que possui dois óculos de geometria intrincada), e propõem maneiras de consolidar os danos nas alvenarias: Fissuras (injeção de cimento pozolânico); fissuras secundárias (aplicação de tela elástica); trincas (colocação de grampos); juntas de cimalhas (injeção manual de argamassa de areia e cal, 1:3).

Para os ambientes não diretamente afetados, também se de-screve ações: revisão dos telhados da Capela do Santíssimo, Corredor Lateral e Sacristia; substituição das telhas de cobe-rtura da Capela Mor, com colocação sobre o forro em placas de fibra de vidro e resina; restauração das fachadas, com-preendendo as cantarias em pedra e pintura a cal nas paredes (e cor ocre nas modenaturas em alvenaria), com aplicação de protetor (?); instalação de Sistema de Proteção de Descargas Atmosféricas (SPDA); recuperação das portas e esquadrias de madeira e gradis em ferro.

7 | Toda esta documen-tação encontra-se no Arquivo Histórico da Casa Setecentista (Ma-riana), vinculado à 13ª SR/IPHAN, em duas pastas intituladas “Igreja N. Sra. Do Carmo”.

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História recente: incêndio e intervenções | 4 65

O telhado acima da Nave (também detalhado pela Cerne En-genharia) foi refeito em tesouras de desenho semelhante às originais, porém em estrutura metálica, com contraventamen-tos de tirantes nas duas extremidades transversais do espaço, e ripado metálico diretamente sobre as tesouras; por cima, telhas capa-e-canal industrializadas. Toda a estrutura é assen-tada sobre uma espécie de “frechal” em concreto armado, an-corado acima da estrutura dos muros.

O forro, em formato de abóbada de berço, foi refeito segundo a geometria anterior, também em madeira, porém unicamente com o fundo branco, e sem repinturas das cenas outrora figu-radas, como a entrega do Manto Carmelita por N. Sra. do Car-mo a São Simão Stock, circundado por rocalhas e o conjunto emoldurado por pinturas de balaústres. Para preencher esta lacuna pictórica, foi previsto um sistema de iluminação ca-paz de projetar no forro as pinturas que antigamente existiam. Essa proposta, só encontrei mencionada por escrito; nunca encontrei nenhum detalhamento de projeto, seja do local de posicionamento e tipo de projetores, ou da anamorfose a ser

Aspectos da nova inter-

venção (da esq. para a

dir.): 1. Coro e Tapa-

vento; 2. Altares laterais

e balaustrada da Nave;

3. balaustrada do Coro;

4. danos à cantaria no

Arco Cruzeiro.

(Fotos do autor)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro66

feita para compensar as distorções ópticas provocadas pela projeção em uma superfície curva. Tenho-a como uma boa proposta, mas que requer fôlego para enfrentar estas questões de natureza óptica, que talvez não tenham sido muito levadas em conta, fazendo-me crer que a proposta fora lançada um pouco “a esmo”, não sendo levada adiante.

A cimalha acima do Coro (nunca pude precisar se era feita em pedra ou madeira policromada) ruiu com o desabamento, e fora reconstruída em blocos de concreto celular, segundo especificações de projeto de Rodrigo Meniconi; hoje, o aca-bamento final das cimalhas uniformizou quaisquer diferen-ças de cor ou textura entre estes materiais, sendo impossível diferenciá-los.

O pavimento do Coro fora reconstruído volumetricamente, isto é, com a simplificação de seu desenho e das modenaturas que compunham seu forro, deixando claro (ao menos para um olho minimamente familiarizado com o repertório) não se tratar do artefato original. Foi estruturado em dois engrada-mentos metálicos que sustentam os barrotes de um assoalho. Para o forro desta estrutura (acima do Nártex), algumas ripas de madeira compõem “pseudo-modenaturas” que não seg-uem nem o perfil nem a composição em losangos original; são meras invenções, tal como os balaústres do guarda-corpo do coro (e também os da Nave), cujo desenho e coloração do verniz não têm alguma conexão com o que existia anti-gamente (talvez, justamente, pela intenção de não “fazer fal-sos”). Estranhamente os arcos que emolduravam o Nártex, sustentando o Coro e a cimalha acima do Coro, não foram reconstruídos de nenhuma forma. Tratavam-se de elementos lígneos pintados de azul, que promoviam um suave emoldura-mento dividindo o espaço da Nave. Além disso o arco supe-rior, graciosamente trilobado, sustentava gramaticalmente a cimalha acima dele que, hoje, fica “flutuando” solta acima do Coro, o que resulta em uma composição bastante desconexa.

Logo abaixo se vê a primeira reconstrução de um artefato importante que se perdeu: o paravento (ou “tapavento”). Os critérios para tal são os mesmos usados para os outros dois artefatos importantes, os altares laterais. Em ambos os três,

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História recente: incêndio e intervenções | 4 67

se optou por uma reconstituição volumétrica que, segundo os autores do projeto, iria proporcionar uma ambiência e memória dos elementos que antigamente existiam, mas sem induzir o expectador ao “erro”, ao pretender realizar uma có-pia, ou seja, um falso histórico.

As imagens religiosas que hoje se encontram no edifício ocu-pam lugares distintos de antes do incêndio, já que algumas originais se perderam, e o conjunto foi redistribuído.

Por fim, basta dizer que algumas das portas que se localiza-vam na Nave foram reconstruídas tal como as originais, e outras, menos deterioradas pelo fogo, foram recuperadas e reinstaladas; os elementos em cantaria danificados durante o sinistro, foram quase que em sua totalidade assim mantidos, para rememorar este trauma recente.

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5Reconstrução emestilo e reconstrução crítica: comentários[refutatio]

Museu Marino Marini

(Ex-convento de San

Pancrazio, Florença).

Intervenção de Bruno

Sacchi. (Foto do autor)

Todo o processo e resultados das intervenções subsequentes ao fogo de 1999 são muito interessantes e surpreendentes.

A primeira coisa que me chama a atenção é a opção, aparente-mente imediata, por critérios de intervenção que se pautassem em princípios arqueológicos e repudiassem os falsos históri-cos. No entanto, essa decisão parece ter sido tomada a priori, talvez até sem discussões tão extensas como se devesse. O resultado disso parece ser uma polarização entre profissionais partidários da “reconstrução como era” e partidários de op-erações compreendidas dentro das doutrinas do restauro críti-co, claramente identificável em diferentes declarações. Para o caso, além da ênfase dada a “não fazer um ‘falso’ histórico” vista no Boletim Informativo do Patrimônio Histórico, temos a contrapartida da profa. Myriam Oliveira quando escreveu, mais recentemente sobre o templo, em uma das publicações da série Roteiros do Patrimônio (IPHAN):

Infelizmente, ao contrário do que seria lógico esperar, os re-tábulos da nave e demais elementos perdidos no incêndio não foram reconstituídos no modelo original, amplamente documentado em fotografias do Arquivo do Iphan e sim em formato simplificado. Esses retábulos, apesar de sua pintura branca, têm peso visual excessivo no conjunto da decoração, contrastando negativamente com a leveza da talha rococó da capela-mor.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro70

Recomenda-se, portanto, passar diretamente à capela-mor [...] 1

É interessante notar que esta polarização entre diferentes princípios de restauração também ganha ênfase depois de con-cluídos os trabalhos no Carmo, em função da pouca aceitação do público geral ao resultado final da intervenção. Meu obje-tivo é demonstrar que essa polarização. durante a elaboração dos trabalhos, não foi profícua, e que por consequência dela própria, ambos os partidos insistiram em incoerências teóri-cas e práticas, o que pode ter causado equívocos conceituais, ou simplesmente resultados aquém do esperado, neste caso2.

O Carmo começa, então, a se revelar como um estudo de caso exemplar sobre doutrinas e princípios de restauro que ainda tanto dividem o debate teórico neste campo do co-nhecimento, sobretudo pelo fato de os princípios tidos como mais “contemporâneos” terem sido efetivamente aplicados, porém sem o efeito desejado. Lembrando que tais princípios puderam sedimentar-se a partir do segundo pós-guerra euro-peu, em oposição à ideia de restauro oitocentista, e em função da ampla destruição de bens artísticos e arquitetônicos como consequência daqueles eventos traumáticos. Nesse sentido, poder-se-ia categorizar o restauro crítico como uma doutrina de “vanguarda”, mesmo que originário de meados do séc. XX, pois até hoje não se consolidou como prática corrente e aceita em muitas escolas de restauro, e seu princípio dialético (antes da efetiva “cara” das intervenções) ainda segue válido se comparado às teorias sobre reconstruções em estilo, que partem do princípio de que um elaborado artístico é fisica-mente “imitável”, abrindo margem a uma suposta “ambiên-cia” de tempos passados. Esta ideia de “ambiência”, vale lem-brar, encontra forte apelo dentre os que se poderia chamar de “passadistas”, pois veem na reconstrução de artefatos físicos um ensejo de “volta ao passado”, de maneira ideológica, o que considero um grave equívoco historiográfico, e que se apoia sob parâmetros físicos muito vagos (o ato de reconstruir, em si). Em resumo, tratam-se de anacronismos pois não se pode “voltar no tempo”, já que o tempo é um parâmetro linear (e não cíclico), como crê a Física e, sobretudo, nossa Filosofia e Historiografia contemporâneas.

1 | OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 147.

2 | É difícil precisar o grau de aceitação às intervenções feitas no Carmo. Apesar de im-precisa, é notório regis-trar a impressão que tive em inúmeras conversas com diferentes profis-sionais envolvidos com o caso e com a área do Restauro: dentre re-presentantes daquela paróquia, do IPHAN e diversos colegas arqui-tetos, historiadores e restauradores, nenhum deles até hoje se ex-pressou satisfeito com as intervenções, com relação a seu resultado final. Calculo que meu espaço amostral se limi-te a aproximadamente quinze pessoas, o que não oferece indício cla-ro de algo. No entanto, trata-se do registro de uma unanimidade, que não poderia ao menos deixar de lembrar, nesta nota de rodapé.

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 71

Passemos à análise do embasamento teórico dos discursos de-batidos em torno deste caso, contraposta a questões operacio-nais que envolveriam a sua realização.

Dentre os partidários deste conceito da reconstrução como réplica, a maioria dos que conheço são historiadores, den-tre os quais alguns alegam não haver problemas, além de ser viável a reconstrução dos altares laterais e paravento tal como os que se perderam, insistindo que o Carmo, mais que um “museu”, é um local de culto e que, portanto, a musealização e historicização de seus elementos compositivos não é o cerne do programa daquele tipo de edifício.

Portanto, não seria lícito “historicizar” uma questão religiosa e que, para o público alvo mais caro àquele edifício, isto é, o fiel e o local, se revelava muito traumática, na perda de elementos sacros e históricos que sempre fizeram parte de sua memória coletiva e seu sentimento de pertencimento ao lugar 3.

Além disso, a região possui meios pelos quais tornar esse tipo de tarefa factível, pois ainda abriga uma série de artesãos que trabalham os materiais de maneira quase idêntica aos tradicio-nais setecentistas; a orientar seu trabalho, uma série de fotos arquivadas nos órgãos patrimoniais estaria à sua disposição.

Os partidários das reconstituições filológicas partem do princípio de que uma reconstrução ou réplica induz o es-pectador ao erro, constituindo-se, portanto, naquilo que é chamado de “falso histórico”. Um artifício, uma fantasia, mais ou menos próximo da (antiga) realidade conforme o forem a quantidade de informações sobre o antigo, e a perícia dos artífices, mas que não se torna lícita. Para o caso, foi defendida a reconstrução volumétrica dos elementos lígneos, de formas simplificadas em relação aos ornamentos.

Começo a pensar no tema, pela via da réplica.

A primeira ideia que me vem à mente é a distância entre o conceito e sua concretização. Fazer uma réplica, sobretudo em escala arquitetônica, e de algo que desapareceu, é uma tarefa que considero categoricamente impossível.

3 | De fato, o Carmo é hoje um dos templos mais importantes de Mariana, inclusive por ser uma capela de Or-dem Terceira elevada à condição de Igreja, por-tanto, atualmente mais pública.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro72

Impossível porque, mesmo com artesãos trabalhando de ma-neira similar à antiga, e com as fotos que se diz ter, de imedi-ato dou-me conta de que não temos informações suficientes sequer para tentar algo que não seja demasiado especulativo.

Isto porque nunca foi feito no Carmo algum levantamento métrico dos elementos lígneos integrados à arquitetura. Ao menos dentre as informações remanescentes, não encontrei qualquer medida anotada sobre os detalhes dos altares laterais e paravento. As fotos são todas de qualidade razoável e seu ri-gor técnico destina-se ao registro inventariado, não servindo a restituições fotogramétricas que possam dar uma ideia segura do correto dimensionamento dos artefatos representados. Isto porque foram tiradas sem o auxílio de tripés ou outros instrumentos de nivelamento. Seus enquadramentos são, por-tanto, “tortos” e “soltos” no espaço, e impossibilitam a real-ização de uma fotogrametria séria (até porque não se tem ao menos as medidas gerais destes elementos, e sem isto não há fotogrametria).

Sem levantamento, sem medidas, sem dados proporcionais, sem desenhos de qualidade, e com fotos tiradas de maneira pouco profissional para um trabalho de levantamento, quais dados temos, afinal, para tentar reconstruir elementos nesta escala? A verdade é que não temos dado algum.

Muralhas de Carcas-

sone (intervenção

nas coberturas por

E. Viollet-le-Duc). O

caso demonstra que a

intervenção de restauro

também se historiciza.

(Fonte: http://upload.

wikimedia.org/wikipe-

dia/commons/a/a4/

Carcassonne_castle’s_

semi-circular_barbican.

jpg)

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 73

Frauenkirche (Dresda),

reconstruída a partir de

escombros, em 2006. O

tema suscita inúmeras

discussões, mas quero

atentar ao aspecto

“fantasioso” adquirido

em seu interior já que,

por mais tecnológicos

q sejam os subsídios às

intervenções, jamais se

consegue reproduzir a

pátina, fator de difícil

quantificação mas fácil

apreensão. Note-se

o aspecto demasiado

fantasioso, até meio

“cassino de Las Vegas”

conferido pela paleta

de cores e iluminação.

(Fonte: http://no-

madicbrands.files.word-

press.com/2012/07/075-

frauenkirche-dresden-

email.jpg)

Ainda assim, mesmo se houvessem dados o suficiente. Talvez a especificidade de nossos estudos faça esquecermo-nos das reflexões feitas por nossos colegas, que já dominam há anos alguns temas.

O que quero dizer com isso é que a historiografia da arte in-siste, e como corolário fundamental, que uma obra de arte é ir-reprodutível. Seja feita por um artista ou por um artífice, qualquer trabalho manual traz inflexões físicas únicas, somente obtidas uma vez e no momento da feitura da obra, impossíveis de ser-em reproduzidas, pois são incontáveis e não mapeáveis. Um entalhador mineiro pode saber fazer rocalhas à maneira das rocalhas setecentistas, mas jamais conseguirá fazer rocalhas idênticas às já feitas por qualquer um, seja um artífice setecenti-sta ou mesmo um colega seu de ateliê. É possível imitar o estilo de algum artista, mas não copiar uma obra que alguém já fez.

Mesmo os autores que escrevem sobre a prática do levanta-mento nos podem aportar subsídios à rechaça das assim di-tas “reconstruções em estilo”: como já citado anteriormente, o trabalho de levantamento parte do princípio de que não é possível medir nem representar todos os pontos e relevos que compõem um objeto físico, sendo o levantamento uma “tradução” daquilo que se vê em dados analíticos objetivos (em geral em desenho) que, antes de mais nada, pressupõem

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro74

um preparo cultural do executante, pois sempre lhe caberá escolher quais elementos compositivos serão representados, e com qual ênfase. O levantamento, portanto, não pode servir como “pretexto” para se pretender reconstruir um elaborado artístico, e sim como uma catalogação do mesmo que, a limite, apenas atesta o seu estado de conservação.

Isso sem contar as qualidades sinestésicas de qualquer mate-rial, tema que muito me preocupa e poucas vezes é debatido, em função da dificuldade de se parametrizar esta questão; re-conheço esta dificuldade, mas não a tenho como empecilho para o debate: Reconhecer qualidades sensoriais que vão além da visão implica em reconhecer certa temperatura que os ma-teriais nos “emanam”, ou seja, que nosso corpo percebe, seja por condições físicas, ou mesmo pela memória sensorial deles (como um piso de ardósia, que me remete à casa em que vivi na infância, bastante fresca no verão); em reconhecer o cheiro que emana de um artefato submetido a séculos de luzes de velas, poeira e umidade, que talvez não seja o cheiro que se sentisse há cem anos atrás, mas é o cheiro que se estratificou naquele objeto, através do tempo.

É uma forma mais ampla de entender aquela estratificação do tempo a que chamamos de pátina, algo essencial ao reco-nhecimento de um artefato como artefato histórico e que, para mim, se concretiza de maneira muito mais complexa do que perceptível a olho.

A verdade é que o cedro que o Aleijadinho usava talvez não se encontre mais; além disso, mesmo se estivesse disponível, aquela figura trabalhada pelo escultor, naquele cedro sete-centista, passou por décadas e mais de século dentro de uma capela, em condições de iluminação e ambiência específicas, que hoje lhe conferem características “misteriosas” de obra não-recente.

Aberti, em De re ædificatoria nos prescreve o período do ano e a lua certa, ou seja, o tempo certo para a obtenção de todos os materiais de maneira durável para a construção de um edifício, de forma que a madeira, a pedra ou o barro não fos-sem usados úmidos ou secos demais. Trata-se de uma percep-

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 75

ção de tempo em que o correr das horas não se sobrepõe ao desejo de se construir uma fábrica que se destina à eternidade, capaz de glorificar por séculos o engenho de quem a conce-beu e a nobreza de quem a pagou. Trata-se, portanto, de uma percepção de tempo inimaginável em nossa sociedade indus-trial, incapaz de obter da natureza os “mesmos” materiais que se obtinha, e mesmo de lavorá-los como se os lavorou em uma cultura que não existe mais.

Uma réplica, portanto, não leva em conta quaisquer desses dados, pois só é capaz de querer replicar qualidades visuais das mais simples. Uma réplica, portanto, sempre ignora a condição de obra de arte e objeto histórico daquilo que pretende replicar. Trata-se de um fetiche que, além de tudo, pretende contornar a mais simples razão de existência física, que é a de perecer.

Ora, um artefato físico é perene se comparado à vida dos homens, mas não é eterno; a réplica (e por isso também se chama “falso”) dos dá a impressão equivocada de que deter-minado objeto está presente, quando na verdade não está (e em alguns casos nunca esteve!), e atesta nossa incapacidade de lidar com a perda.

Entendo que a perda arquitetônica seja muito traumática para qualquer sociedade em nossa cultura ocidental, e que a própria perda interfira profundamente na maneira pela qual uma sociedade possa se agregar e se identificar coletivamente. Entendo que, estando em jogo a existência cultural de toda uma sociedade, “amenizar” o sentimento de perda física seja necessário, por meio de algum tipo de reconstrução física.

Mas a perda arquitetônica existe, e é preciso deixar de acred-itar que seja possível reconstruir um objeto desta natureza, pois – e nisto eu insisto veementemente – trata-se de algo fisicamente impossível.

Talvez o que se valha como critério seja mesmo o respeito à Memória Coletiva (na verdade, uma intervenção de Restauro resume-se a isto), e entender que tal respeito se dá por varia-das formas, e variados graus de “reconstrução”. Para o caso do Carmo, inclusive, é fundamental que se distinga obra ar-

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro76

quitetônica de objeto artístico, conceitos que se imbricam no caso de elementos lígneos integrados à arquitetura; sua distinção, no entanto, implica em procedimentos de reconstrução dis-tintos, pois refazer um muro não é o mesmo que refazer a talha ornamentada de um altar, e isso é fundamental; não ob-stante, não se trata de dizer por “capricho”, que “qualquer reconstrução em estilo é condenável” de maneira sumária, e sim, de salientar a diferença entre refazimento, manutenção extraordinária e reconstrução; bem como, salientar a diferença de extrato interessado, se aparelho murário ou objeto artísti-co; ou seja, conferir bom senso a questões já preconizadas na Carta de Veneza de 1964 (em especial art. 15º). Igualmente, a observância destas nuances pode nos dizer que serão distintas e variadas as formas de se “reconstituir” um objeto perdido caso se tenha em mente que um objeto artístico é a manifesta-ção de um conceito e que, para se reconstruir este conceito, as alternativas serão muitas e muito mais interessantes que a cari-catura traduzida em “reconstrução em estilo” (o que talvez justifique diferenciar “reconstrução” de “reconstituição” de maneira enfática).

O caso do Carmo fala, evidentemente, de reconstruções de objetos artísticos (aliás, nem objetos arquitetônicos, mas ob-jetos lígneos, da natureza de mobiliário, sendo bens móveis integrados à arquitetura).

Por fim, não se pode deixar de observar que o fato de o Car-mo ser um templo, antes de um espaço histórico, também não justifica qualquer reconstrução em estilo; aliás, o contrário. Isso porque, para os ofícios religiosos, um altar não precisa ser necessariamente um altar antigo ou específico. Basta que contenha os elementos que o caracterizam como altar (Mesa, Retábulo, Sacrário e Imagens). Os ofícios religiosos, perante a Igreja, não são atos históricos, e sim atemporais, não dando conta de relacionar “rezar” com “o altar original” (não esta-mos falando de relíquias de fé, e sim de altares, sendo que aqueles perdidos nem sacrário tinham, e sim apenas um falso-sacrário1); além disso, como em alguns casos célebres já se verificou, o fato histórico da destruição também pode aportar elementos retórico-religiosos dentro da teologia cristã. Falo, por exemplo, da catedral de Coventry, bombardeada na Se-

4 | Estes detalhes po-dem ser conferidos atualmente através das fichas catalográficas dos inventários produzidos pelo IPHAN nos anos 80. Ver: MINISTÉ-RIO DA CULTURA. S P H A N / P R Ó - M E -MÓRIA. INVENTÁ-RIO NACIONAL DE BENS MÓVEIS E INTEGRADOS: Minas gerais. Módulo 2 – Re-gião de Mariana. V. 6 – Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Rio de Janei-ro, set. 1988.

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 77

gunda Guerra. Lá decidiu-se deixar os escombros como lo-cal memorial (tendo sido agregado um altar e recolocada sua cruz original, então carbonizada), e construir-se um templo totalmente novo e contemporâneo a seu lado, por onde se entra a partir das ruínas, sendo ele mesmo uma metáfora da ressurreição. Como se vê, aquilo que preconiza as decisões de restauro não está (e não deveria mesmo estar) desvinculado das questões religiosas, em casos desta natureza.

Passo agora a pensar na via da reconstituição crítica, tal como concebida para o Carmo.

Não vejo por que fazer uma defesa ardorosa do restauro críti-co a esta altura (pois creio que qualquer carta patrimonial o faça melhor do que eu). Ao invés disso, concentro-me na ideia de restauro crítico que foi levada a cabo no caso do Carmo de Mariana, a fim de querer demonstrar que talvez tenha sido “pouco crítica” e um tanto “imediatista” com respeito a al-guns conceitos, o que ocasionou uma intervenção com resul-tados aquém do esperado.

É uma questão muito interessante, na verdade: talvez seja o único caso que conheço de intervenção de restauro que, dentro do binômio brandiano, prima por critérios históricos

Catedral de Coventry

(Intervenção de Basil

Spence). O grau de

destruição justifica o

novo edifício, que se

insere em um contexto

memorial histórico

mas também religioso,

fato que assume e

se apropria da ideia

de “perda”. (Fonte:

http://i.telegraph.

co.uk/multimedia/

archive/02232/coven-

try_cathedral_2232454b.

jpg)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro78

de maneira bem dis-criminada inclusive, mas mostra-se pouco a t e n -to à instância estética, tanto para o espaço no qual se insere, quanto nas soluções formais da intervenção.

Isso porque as interven-ções no Carmo concen-tram-se na reposição dos elementos lígneos consumidos pelo fogo em 1999 através de re-construções volumétri-cas da talha ornamen-tada. Em teoria, trata-se de um procedimento correto, pois reconstrói a ideia daquilo que havia antes apenas sugerindo

o desenho de outrora, mas deixando claro ao espectador, pela ausência de ornamentos e diferença no tipo de acabamento, que os elementos atuais não se tratam dos originais.

O resultado é algo que, neste caso específico, definitivamente não agrada o olho, pois esbarra em inúmeros equívocos con-ceituais relativos ao tipo de arquitetura/arte/conceito que se pretende reconstruir.

Uso propositalmente a expressão “agradar ao olho” pois é justamente um dos propósitos aos quais este tipo de arte se presta, sendo obtido por inúmeras sutilezas, nenhuma delas gratuita.

Não me aterei aqui à dissecação de tantos conceitos seminais às formas de representação pré-iluministas, pois creio que rendam um capítulo à parte, neste trabalho, que virá mais à frente.

Carmo de Mariana. Al-

tar do Lado da Epístola,

antes do incêndio.

(Fonte: Biblioteca

da Superintendência

do IPHAN em Minas

Gerais)

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 79

Limito-me, por hora, a comentar que, segundo a tópica albertiana, são fundamentais a grande pro-fusão ornamental, dentro de uma ideia de concinnitas, ou seja, uma definição de “beleza” manifestada em um objeto onde nenhum e-lemento deva ser acrescentado ou removido, sem que hajam perdas de sua própria beleza. Isto porque ornamento não é mero adorno, e sim eloquência retórica, que nos emana um discurso.

Além disso (e por esta razão todos os tratados de arquitetura clássica versam sobre o ornamento e seu correto desenho), cada ornato tem um desenho preciso que lhe é próprio, além de função indi-vidual, articulando-se de maneira conjunta a tantos outros em uma composição.

As intervenções de 2000 reduzem um capitel compósito apenas ao seu cesto e ábaco, eliminando as folhas de acanto e volutas; simplificam a êntase das colunas, retificando seu imoscapo e somoscapo em dois segmentos de cones; elim-inam as caneluras das colunas, e simplificam sua base ática em mero paralelepípedo. Enfim, reduzem algo extremamente delicado e refinado a um mero conjunto de sólidos.

Isto passa por cima de toda a gênese cultural deste tipo de arte, simplificando e reduzindo elementos gramaticais funda-mentais a ela. Significriaa considerar que uma coluna clássica é apenas um cilindro, e não um conjunto intrincado de formas que se articulam de maneira específica.

Mas uma coluna clássica está muito longe de ser um cilindro. Esta intervenção ignora estes fatos, adotando um partido ar-quitetônico que simplesmente não funciona: não é possível

Carmo de Mariana.

Altar do Lado do Evan-

gelho. Intervenção após

o incêndio, por Rodrigo

Meniconi.

(Foto do autor)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro80

reconstruir volumetricamente (ao menos não da forma que foi proposto) elementos baseados na eloquência e gramática de ornamentos.

Como agravante, o próprio partido arquitetônico esbarra em incoerências a seus próprios princípios internos, ao lançar-se por vezes à figuração, quando coloca a divisa5 carmelita no topo dos novos altares. Ora, se a intervenção se pauta pela supressão da ornamentação e figuração, uma divisa, por sua representação alegórica complexa é o primeiro elemento a ser suprimido do conjunto. Além disso, é patente a falta de deta-lhamento de projeto, o que sempre abre margem a problemas de última hora, e imprevisão do resultado de uma proposta.

Portanto, o que identifico aí, e tento explicar como insucesso das ditas intervenções, é o equívoco de se tentar reconstruir uma forma artística muito delicada (em uma escala difícil de se trabalhar, inclusive), ignorando princípios de sua própria gênese artística. Algo até compreensível, na verdade: Nós, que somos “modernos”, realmente pouco entendemos o que é

Oratorio de S. Filippo

Neri, em Bolonha (Pier-

luigi Cervellati e Gior-

gio Volpe). Intervenção

extremamente cui-

dadosa, que soluciona

de forma interessante

problemas semelhantes

aos enfrentados no

Carmo.

5 | Divisa é aquilo que hoje se identifica visu-almente pelo nome de “brasão”. Trata-se de um gênero de figuração retórica específico, des-tinado a construir ale-gorias, que será descrito em capítulo apropriado.

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 81

um ornamento, ou como lidar com sua composição. Mas o ornamento se destina a algo muito sutil, específico e eficaz, que é a composição da beleza, um propósito declarado neste tipo de arte, e que ainda somos capazes de fruir e identificar, de certa forma. A beleza, neste contexto, não é um juízo de valor do espectador, e sim um dado objetivo e proposital; uma ideia de beleza bem definida e eficiente dentro de seu universo.

O templo setecentista

fora bombardeado na

Segunda Guerra, tendo

sido parcialmente

destruído. As primei-

ras intervenções dos

anos 50 limitam-se a

fazer o consolidamento

estrutural em tijolos.

A última intervenção

(1999) mantém essa

extratificação e recon-

stitui volumetrias e

elementos integrados à

arquitetura por meio da

madeira. As volume-

trias são mimetizadas,

oras mais, oras menos

em relação ao original;

a diferenciação é muito

precisa, pois está “ca-

muflada” no conjunto,

mas sempre ocorre

de forma clara a uma

segunda vista, devido

ao tratamento de aca-

bamento do material.

O caso dos elementos

integrados é um pouco

mais “afortunado”

se comparado ao do

Carmo, já que a perda

ocorreu com uma das

metades simétricas

do conjunto; assim,

quando da reconsti-

tuição dos elementos

compositivos tinha-se,

ao menos de um lado,

o original como fonte

mais precisa de medi-

das e desenho.

(Fotos do autor)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro82

É isto que faz o tema das intervenções no Carmo muito complexo, pois se concentra, a meu ver, nessa questão do or-namento e da eloquência retórica. Se o restauro se baseia na recon-strução de uma ideia, estas ideias são extremamente complex-as, e requerem uma acurada análise, antes de se fazer qualquer proposta.

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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 83

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6Por uma arqueologia das formas derepresentação[divisio]

Santissima Trinità dei

Monti, em Roma.

(Foto do autor)

Estudar a Capela do Carmo, antes de tudo, implica adentrar em um complexo universo historiográfico em torno de nosso patrimônio artístico colonial, que é foco de amplos debates sobretudo com a criação do SPHAN nos anos 30.

A historiografia da arte e, especificamente, nossa historio-grafia da arte nacional ainda carregam alguns vícios de uma disciplina que se constituiu no século XIX, sob padrões e metodologias de análise neokantianos, hegelianos, ou mesmo positivistas (sobretudo no caso brasileiro), já que partem de uma noção de tempo e história baseados em um princípio de “progresso”, ou seja, sucessão evolucionista de acontecimen-tos; para o caso da História da Arte, o estudo da disciplina é subordinado ao estudo da forma, organizado quase que isola-damente em “estilos”.

Recentemente se tem reconhecido que tais padrões analíticos são, eles mesmos, frutos de um ideário que já não pertence à sociedade contemporânea, e que merecem uma revisão metodológica a fim de aportar maior compreensão a perío-dos históricos anteriores ao Oitocentos, por exemplo. Afinal, a ideia de “progresso” é oitocentista, e não existia em uma sociedade em nosso caso colonial, Contrarreformista.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro86

O que se tem levantado, portanto, é a necessidade de um dis-tanciamento crítico que trabalhe com categorias de raciocínio mais coevas aos períodos históricos estudados, já que os procedimentos unicamente oitocentistas não dão conta uni-camente de compreender outros universos culturais, onde outras concepções de mundo, teologia, política e ética, vigo-ravam.

Tal debate tem se acirrado na historiografia da arte nacional de maneira muito profícua, trazendo novas luzes para uma melhor compreensão cultural de alguns temas. É o que o professor João Adolfo Hansen chama de “arqueologia da representação” 1, quando se refere aos métodos para recons-tituir um universo cultural presente, por exemplo, no Brasil colonial, universo este já muito distante do nosso. A partir das proposições de Hansen também é ressaltada a necessi-dade de uma leitura articulada entre diferentes gêneros artísti-cos (Música, Artes Plásticas, Arquitetura, Belas Letras, etc.), através do exame conjunto de textos e imagens específicos, produzidos contemporaneamente aos períodos estudados, ainda que reconhecidos como apenas meros remanescentes de um contexto muito amplo (por isso a analogia com uma forma de “arqueologia” dos gêneros artísticos); sem dúvidas um trabalho difícil de ser feito.

Seria impossível falar de nosso objeto de estudo sem nos a-termos a este universo cultural pois, do contrário, estaríamos desprovidos de quaisquer subsídios para entendê-lo em seu âmbito cultural. Inclusive, acredito que esta seja uma questão que levou ao problema dos equívocos conceituais manifesta-dos nas últimas intervenções de restauro no Carmo, como observado anteriormente.

Desta forma, ao olhar para o Carmo, devemos nos distan-ciar criticamente de conceitos como “genialidade”, “autoria”, “progresso”, “estilo” ou “partido arquitetônico”, procurando reconstituir outros como “engenhosidade”, “decoro”, “mara-vilha” e “decência” que, por vezes, se mostram mais precisos para descrever aquele universo cultural vigente. Para tal, é ne-cessário recorrer à leitura de documentação contemporânea ao período estudado 2, bem como a fontes interdisciplinares,

1 | HANSEN, João Adolfo. Ler & ver: pres-supostos da represen-tação colonial. Desígnio: revista de história da ar-quitetura e do urbanismo. São Paulo: Annablume, 2009. P. 103.

2 | O caso do Carmo carrega o problema de a documentação relativa ao período de edificação da Capela, dentre a Or-dem Terceira dos car-melitas, não estar mais disponível, o que limita consideravelmente o número de fontes con-temporâneas diretas às quais recorrer.

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Por uma arqueologia das formas de representação | 6 87

como tratados e manuais que discorrem sobre formas de re-presentação artísticas e de conceitos morais, além da consulta a dicionários e léxicos igualmente contemporâneos, para ten-tar reconstituir estas ideias e, no caso, o significado de uma obra de arte dentro deste universo.

A seguir, procurarei aportar algumas formas de representação recorrentes e comentar sobre procedimentos de composição retórica, arquitetônica e artística hoje identificáveis. O objetivo é esclarecer o leitor sobre “mecanismos” de produção (sejam eles conceituais ou efetivos) de formas e gêneros artísticos que se solidificaram com a Contrarreforma e as sociedades de corte, a exemplo desta portuguesa (ou luso-brasileira). O objetivo é aproximar este universo cultural de um leitor pouco afeito a ele.

Convém, aliás, esclarecer que “aquela sociedade” que edi-ficou o Carmo de Mariana é uma sociedade de matriz euro-peia, católica e contrarreformista, baseada em uma visão mo-ralizante e teológica de mundo, o que implica em uma visão histórica pouco linear e, sobretudo, continuísta. Nesse contex-to, nossa Capela erigida entre fins do Setecentos e princípios do Oitocentos pode, por vezes, situar-se mais próxima à cul-tura de corte seiscentista que a preceitos da cultura iluminista; em outros casos, porém, não negando também a influência das ideias iluministas na sociedade “luso-brasileira”, admite-se que os sistemas de produção artística sobre os quais co-mentarei podem já não ser verificáveis de maneira plenamente consciente naquele contexto histórico, mas sim, como resquícios de coisas que outrora eram conceitos e agora passam a operar mais sob formas do que pelo conteúdo expresso por elas, em origem.

Trata-se então, de se constatar uma forma mentis daquela so-ciedade, que operava muito pelo costume, tendo-se sempre o cuidado e a prudência de não pretender que determinados conceitos vigorassem na sociedade colonial tardia tal como compendiados na Europa quinhentista, mas sim, que circulas-sem de alguma forma, mais ou menos consciente de acordo com o caso e seus protagonistas.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro88

Partido arquitetônico

O primeiro ponto a se co-locar é a desconstrução da ideia de “partido arquitetôni-co” entendida como ati-tude de projeto. A própria atividade de projeto pode ser questionada com relação ao que se entende hoje.

É sabido que os edifícios coloniais, inclusive os das Minas Gerais, onde o projeto político colonial foi bastante específico, eram desenhados antes de serem construídos. Porém raramente se desen-hava o edifício de maneira integral já que, em função da contabilidade dos comi-tentes, cada parte do edifício era contratada de maneira separada, ao longo do tem-po (o que podia resultar no trabalho ser sucedido por diferentes oficinas). A esta contratação dava-se o nome

de arrematação, e ao desenho arquitetônico, fosse da planta, da fachada, ou de um elemento isolado, dava-se o nome de risco.

Desta forma, não considero possível falar em “partido ar-quitetônico”, já que os edifícios raramente eram concebidos em sua integridade, mas sim, aos poucos, e em muitos casos, por pessoas distintas; prefiro identificar este processo por ter-mos mais amplos como, por exemplo, “composição”. Além disso (e isso muitos riscos, já desde Michelangelo, bem o ates-tam), é provável que estes homens houvessem organizado seu pensamento arquitetônico decompondo o espaço tridimen-sional em “pares” de dimensões, desenhando a planta separa-

Risco para retábulo, de

D. Joaquim L. C. F. de

Acunha, com anotações

do arquiteto Manuel

Caetano de Souza.

(Arquivo Nacional da

Torre do Tombo)

O movimento na

composição se dá

enquanto alçado, mas

não enquanto volume.

Note-se a separação

entre planta e alçado.

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Por uma arqueologia das formas de representação | 6 89

damente da elevação, e não da forma “corbusierana” como se entende hoje, a partir de volumes.

Isto eu afirmo não simplesmente por ver os riscos decom-postos em “planta” e “fachada”, mas sim, pelo entendimento da discussão de proporções tal como colocada. Após Vitruvio, o bom dimensionamento de um espaço passa a ser obtido por uma razão harmônica, geralmente descrita pela relação simultânea entre dois parâmetros (e não três), baseada em proporções musicais gregas como diapason, diatessaron, diapente, etc 3, correspondentes aos intervalos hoje conhecidos como oitava, quarta, quinta, etc. Com esta reflexão, não quero afirmar que não se pensasse em volumes ao compor arquitetonica-mente (do contrário, uma cúpula ou abóbada, as maquetes de Brunelleschi, ou os sistemas da perspectiva seriam inviáveis), mas que a ideia de arquitetura não se manifestasse formalmente de modo tridimensional, e sim, de maneira bidimensional, decompondo as três dimensões aos pares, buscando a boa proporção e o decoro de uma planta, e o mesmo válido para uma fachada ou corte, inclusive se articulados com o entorno.

3 | A esse respeito, ver o interessante estudo sobre proporções e ge-ometrias entre as com-posições arquitetônicas dentre os séculos XVI a XVIII: HERSEY, Ge-orge L. Architecture and Geometry in the Age of the Baroque. University of Chicago Press, 2000.

Risco do fronsispício

da Capela do Carmo de

São João d’El Rey. Atrib

a Antônio F. Lisboa.

(Acervo do Museu da

Inconfidência/IBRAM/

MinC, Ouro Preto)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro90

A ideia de proporção, aliás, pode ser útil tanto para o bom de-senho de cada par de dimensões, quanto para relacionar am-bos os pares, planta e elevação, afinal, afirmar que o raciocínio arquitetônico seja decomposto em pares de dimensões não significa, de forma alguma, sugerir que não houvesse relação ou simultaneidade na composição de planta e elevação, e mui-to menos, que o raciocínio não passasse pela compreensão tridimensional do espaço, sobretudo quando a formação ar-quitetônica está intimamente ligada ao canteiro e à construção: desde sempre o ofício da cantaria, por exemplo, se dedica a produzir artes de grande complexidade tridimensional, como bem o atesta a cultura da estereotomia, já atingindo alto grau de complexidade nos canteiros góticos, e consolidando-se em complexos tratados. Ora, se estou afirmando que o pensa-mento espacial-tridimensional sempre existe, o que muda, afi-nal, da maneira como era concebido até o Novecentos para a maneira como o concebemos hoje? Talvez o que tenha mu-dado seja justamente a definição de espaço, e as maneiras de representa-lo, ou apreendê-lo.

Há também outra questão relativa a “princípios de com-posição [ou risco]” que perpassa a atividade arquitetônica desta tradição, e pode reforçar essa reflexão que faço: existe uma declarada questão moral relativa ao decoro das plantas de edifí-cios sagrados no que se refere à sua simbologia, como obser-vado por Wittkower 4 ao reportar as discussões renascentistas sobre templos em tipologia de planta central (cruz grega ou desenho circular/elíptico) e planta alongada (cruz latina ou igreja-salão, mais à frente). Além dele, Bastos 5 observa que a simbologia das plantas de templos dá continuidade a uma tópica antiquíssima quando apropriada pela Contrarreforma, pois se concentra na associação do corpo da edificação como alegoria do corpo de Cristo. Também, é necessário aqui uma ressalva: não se trata de pretender que as discussões quinhen-tistas sobre as metáforas proporcionais de uma planta fossem cultivadas de maneira vívida por nossos construtores, e sim, de usar estes episódios para se entender a necessidade de di-mensionar um edifício a partir de um par de dimensões (no caso, planta). Seria muito arriscado “precisar” o quanto essa discussão estivesse presente na Colônia, mas é certo que o formato e proporcionalidade de uma planta fossem objeto de

4 | WITTKOWER, Rudolf (1962). Principî architettonici dell’età dell’U-manesimo. Trento: Einau-di, 2010.

5 | BASTOS, Rodrigo de Almeida. Introdução. In: A maravilhosa fábrica de virtudes: O decoro na Arquitetura Religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. Pp. 19-26.

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reflexões e juízos, ao menos em casos de templos concebidos de maneira especial, como igrejas matrizes, de caráter mais co-munitário; do contrário, não se veria uma profusão conside-rável de templos elípticos, muito bem construídos, do Rio de Janeiro à região das Minas. Bastos, a esse propósito, observa que a Matriz de N. S. do Pilar, de Ouro preto, por conta de sua iconografia e também pela configuração interna de formato elíptico, possa se constituir como alegoria contrarreformista traduzida no conceito da Caravela Eucarística 6.

Engenho e agudeza

O conceito contemporâneo de “autoria”, onde o sujeito é criador de um produto cultural, inclusive possuindo obriga-ções e direitos legais sobre este produto, de maneira que o façam ser apropriadamente reconhecido como autor, é muito recente.

Entender uma cultura que lida de maneira distinta com estes conceitos perpassa pela própria constituição social e psicológi-ca da individualidade humana, outro conceito questionável como categoria universal e atemporal, já que a constituição do “eu” possui periodização histórica.

Coloco esta questão para pontuar um pilar de nossa historio-grafia da arte nacional, que gira em torno do Mito do Herói (no caso, do Gênio), particularmente ligado à figura de An-tônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Talvez seja o maior vício desta historiografia: dentre nosso acervo, quando há dúvidas ou falta de dados documentais para a atribuição de autoria a alguma obra, frequentemente lança-se mão de métodos de identificação iconográfica baseados no “estilo pessoal” de algum suposto artista. Desconfio que, em muitos destes casos, simplesmente o que é considerado “de qualidade” é quase que sumariamente atribuído ao Aleijadi-nho, como já o pude observar em alguns textos que tratavam do tema 7. A impressão que se tem de textos tão elogiosos é que o Aleijadinho é, antes de uma figura histórica, um per-sonagem quase literário construído dentro de uma narrativa romântica que oscila entre fantasia e realidade (embora quase

6 | Idem, cap. 2.

7 | Ver: MARIANNO FILHO, José. Antônio Francisco Lisboa. Rio de Janeiro, 1945.

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sempre tomada integralmente por realidade), cunhada na cé-lebre obra de Rodrigo F. Bretas, “Traços Biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor minei-ro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho” 8. É um tanto preocupante o peso dado a esta obra, e a influência que exerce em nossa historiografia. Para o caso do Carmo, por exemplo, a talha do altar mor foi feita por seu meio-irmão, o Padre Félix Antônio Lisboa que, por não ser de fato o Gênio, é de imedia-to considerado “menos talentoso” 9 que o Aleijadinho. Curio-samente, este lugar-comum está no texto de Bretas. “Menos talentoso” por quê? E, em quais circunstâncias é admissível falar do Aleijadinho, usando-o como parâmetro qualitativo para falar do Padre Félix? Afinal, para se falar de Lúcio Costa não se usa Niemeyer como parâmetro qualitativo.

É de se perguntar se o peso dado a um artífice, sem dúvida de qualidade, mas da maneira exacerbada como o tem sido, não possa eclipsar, ao invés de trazer à tona, também outros artífices e oficinas atuantes nas Minas no mesmo período.

Fato é que a ideia de “gênio”, baseada num espírito criador que dá vazão aos rebeldes impulsos do âmago de sua perso-na, simplesmente não pode vigorar de maneira clara antes do Oitocentos. Ao invés disso, convém observar que, especial-mente no Seiscentos, registram-se tratados importantes que discorrem sobre a questão dos espíritos criadores de produtos da cultura humana, tais como Baltazar Gracián (Agudeza y arte de ingenio, 1648) ou Emanuele Tesauro (Il cannocchiale aristotélico, o sia, Idea dell’arguta et ingeniosa elocutione [...], 1654).

A leitura destes tratados nos pode prover que, em lugar do artista, “gênio” romântico, criador de obras inéditas, é preciso pensar no artífice “engenhoso”, ou seja, no espírito engen-hoso que, por meio da “agudeza” é capaz de articular ideias e lugares-comuns consagrados (ou seja, conceitos que já existem perante a humanidade), em novos produtos. Além disso, den-tro de uma visão teológica de mundo, a agudeza de engenho é iluminada por Deus no espírito do artífice.

Isso significa que o produto cultural de um artífice não é “ge-nial”, e sim “engenhoso”, sendo a relevância e novidade do

8 | Tal assunto é abor-dado pela estudiosa Guiomar de Gram-mont, ao analisar a nar-rativa de Bretas à luz de gêneros retóricos e literários românticos e pré-românticos em um brilhante estudo, mos-trando que aquilo que a historiografia toma por biografia de “registro histórico” pode bem ser uma narrativa ficcional (ainda que baseada na realidade) onde, antes de tudo, a figura histórica é transformada em per-sonagem fictício quase romântico, oscilando entre um homem coléri-co e a emulação de um deformado Quasímodo. Ver: GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

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mesmo obtida não pela criação de conceitos ex novo, mas pela forma como os conceitos já existentes são engenhosamente ar-ticulados.

Ter isso em conta muda completamente nossa percepção de “ineditismo” e, propriamente, de procedimentos de criação cultural, sobretudo artística, pois tal conceito se coloca como um “regulador” da ideia de “novidade”. A novidade, portan-to, não se dá pela introdução de algo completamente novo, mas em maior medida pela variação e combinação de ideias que já existem, coisa que não é plenamente reconhecida dentro do ideário romântico em torno do “genial”. Esta combinação, vale lembrar, possui variabilidade infinita, e graus de dificul-dade de leitura (também atributos de engenho do público) muito amplos. Resta-nos, pois, buscar as referências que serão variadas, combinadas e recombinadas em uma obra de arte, para tentar lê-la o mínimo possível.

Voltando ao argumento inicial, é possível que o Aleijadinho não entendesse a pecha de “gênio” que hoje lhe é atribuída, pois esta categoria ainda não se configurava de maneira clara em seu universo cultural (não se pode nem mesmo afirmar que um artífice se constitua, enquanto tal, como entidade psi-cológica). Nos serve, para tanto, aquela famosa anedota de algum vereador de Mariana que já elogiou o Aleijadinho com-parando-o a “um novo Praxíteles”: não se trata aí de refer-ência a uma figura genial, e sim a um personagem habilidoso e engenhoso. Pensando desta forma, a visão acerca do tema muda substancialmente.

Lugar-comum e emulação

Quero agora falar de outro fundamento desta cultura, que coloca-se como ponto de partida para qualquer discurso (ou seja, organização de ideias) proferido ao longo de toda a cul-tura europeia. É, ao mesmo tempo, causa e consequência das circunstâncias de “autoria” e “criação articulada pela agude-za”, de que acima tratei.

A dificuldade em se falar de “autoria de ideias” ou mesmo “plágio” (conceito completamente anacrônico ao período)

9 | “Recomenda-se, portanto, passar direta-mente à capela-mor para ver o retábulo do Padre Félix, cujos anjinhos têm certo ar de família com os do Aleijadinho, tomados como modelo pelo irmão menos talen-toso”. In: OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 147.

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origina-se, portanto, do fato de os conceitos colocados nos discursos não serem propriamente “novos”, e sim, articula-ções de ideias pré-existentes.

Mais que isso, é importante frisar a seguinte sutileza: as ide-ias tratadas não são somente “pré-existentes”, mas sim ide-ias “autorizadas”, uma vez que admitidas como corretas pela História. Este é o conceito de lugar-comum, tópica, ou ars in-veniendi. Seu uso, além de “autorizado” pelo costume ou pelas próprias autoridades culturais (em nosso caso, do mundo católico), será regulado pelas noções de decoro, ou seja, daquilo que é apropriado à representação 10.

A arte europeia é sempre regulada por corolários admitidos como “verdades”, que podem pertencer a diferentes assuntos, e serem comprovadas como verdades por variadas maneiras, conforme os preceitos das artes retóricas, muito fundados na retórica aristotélica. Neste universo o silogismo lógico é um pilar muito importante do discurso, fazendo comprovar a Verdade de maneira dedutiva. Como, além de aristotélico, o universo é teológico e neoescolástico, outra maneira de se assegurar as “verdades” que fundamentam o discurso é a evo-cação da autoridade, que se manifesta como “verdade” por via do costume, ou por ser a Palavra de Deus. Desta forma, aq-uilo que disseram os grandes Filósofos, especialmente Platão e Aristóteles é tomado por Verdade, da mesma forma como aquilo que está na Bíblia. Certas ideias, portanto, sejam mais ou menos difundidas, configuram-se como lugares-comuns de autoridade lógica, ou também moral, que são usados como argumentação para o discurso, reforçando a ideia que se pre-tende construir para o ouvinte.

Nossa indagação com respeito à ideia de “autoria” vem à tona quando nos deparamos com textos que fazem citação com referência de seu autor, e tantas citações que não referenciam as fontes dos lugares-comuns usados. Nosso espanto diante disso nada mais é do que falta de familiaridade do leitor con-temporâneo com os temas tratados. Acredito que a referência à autoria vem para evidenciar a autoridade do lugar-comum, e a não-referência venha para evidenciar certa erudição do

10 | Não comentarei demaneira pormeno-rizada os conceitos de decoro nas artes, devido a sua amplitude. Ao invés disso, prefiro citá-los e comentá-los à medida que forem ganhando foco em meu estudo de caso, que vem mais adiante. Por hora, reco-mendo a leitura de um completo e instrutivo trabalho sobre o tema, com especial atenção a seu capítulo primei-ro (“O decoro”). Ver: BASTOS, Rodrigo. Op. Cit.

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interlocutor que, sendo julgado como conhecedor dos lugares comuns citados, dispensa-se apresentar-lhe a “fonte”. Algo como um “assunto interno”, em que um grupo seleto de pes-soas comunica-se por metáforas que só eles são capazes de entender.

Não seria absurdo pensar desta forma já que, sabe-se, o dis-curso era construído por meio de metáforas (daí a necessi-dade da agudeza para prepará-las de maneira engenhosa), e era realizado com graus de dificuldade de entendimento de acordo com o público ao qual destinava-se, justamente para fazer uma distinção entre a audiência vulgar e a discreta, ou seja, entre o público comum, e o público polido e culto. Ter isso em conta será decisivo para debruçarmo-nos mais tarde sobre temas de conteúdo alegórico-religioso figurados no Carmo: O uso de metáforas teológicas é o fundamento das formas de representação artística que figuram a ornamentação de um templo, e oscilam entre a facilidade de entendimento, que visa a educar moralmente o público comum, ou dificuldade de interpretação, visando a destacar de maneira erudita uma Ordem Religiosa sobre as demais, por exemplo (no caso de ampla competição social entre as Ordens Terceiras que se es-tabeleceram nas Minas Gerais).

A questão das citações fica clara quando se lê Alberti em De re ædificatoria, e nota-se que quase todo fato ou conceito intro-duzido vem seguido da citação de autor. Alberti, como bem se sabe, está no centro das discussões da época sobre a erudição do arquiteto e é, de fato, reconhecido como um dos artífices renascentistas mais eruditos. Aliás, este procedimento, por si só, parece virar um lugar-comum para os tratados de arquite-tura, sendo verificado sobremaneira em outros textos, com especial atenção àquele de Mattheus do Couto, de 1631 que, além de citar de maneira precisa a autoria dos conceitos so-bre os quais discorre (Vitruvio, Serlio, Paladio, Alberti, etc.), faz uma importante homenagem à figura do próprio Alberti, em especial 11. Além disso, categorizando os procedimentos retóricos em diferentes gêneros, pode-se associar este procedi-mento a um gênero humilde, em realidade um subgênero do gênero baixo, pensado para instruir, mais do que comover ou deleitar

11 | “[...] & dos mais valentes homens, como forão Balthazar de Sciencia, Bramante, Sangalo, Urbino, Vi-nhola, Serlio, Paladio, Philisbert &outros fa-mosos q’ não só segui-rão os textos de Vitro [Vitruvio]. Mas ainda os defenderão, como foy o grande Leo Bapta Alber-to [Alberti], a quem com razão podemos chamar cabeça de todos elles [...]”. In: COUTO, Ma-teus do. “Capo. 4º. Em q’ se declara que couza he edificar, e que couza seja edifício”. In: Tracta-do de Arquitectura que leo o Mestre, e Architecto Mat-theus do Couto o velho. No anno de 1631. Microfilme de manuscrito, 1631. P. 4

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro96

Com relação à citação sem autoria enunciada, creio ser um bom parâmetro o meio musical, onde isto é muito recorrente devido ao discurso, nesse gênero artístico, não ser fundamen-talmente verbal e sim harmônico (mesmo nos casos em que a música seja acompanhada de texto).

Nestes termos, a nomeação de autoria com o uso da cita-ção é dificultada ou, pelo menos, ocorre de maneira distinta. Tomemos como exemplo o caso dos corais de Bach, que har-monizam e desenvolvem singelos corais protestantes recolhi-dos ou compostos por Lutero, e costumam fazer-se presen-tes em obras mais amplas, como cantatas, oratórios, ou nas Paixões. É exemplar o caso da cantata Chist lag in todes banden (BWV4), que é inteiramente baseada no coral homônimo composto por Lutero no século XVI.

Faço esta espécie de “digressão”, um pouco fora do universo arquitetônico ao qual meu texto deveria se ater, pois acredito ser mais didática para explicar a questão de citações aparente-mente “sem a menção de autoria”. Neste caso é evidente que os corais de Lutero, amplamente usados nos ofícios religiosos protestantes, eram conhecidos pelo público comum e, por-tanto, não haveria a necessidade de fazer identificar uma au-toria que já é diretamente identificável. Além disso, o coral protestante é, em si, uma tópica autorizada pelo próprio Lu-tero, ele mesmo músico e responsável por fundamentar de maneira especial aquelas novas liturgias que se constituíam no Quinhentos.

A questão do “plágio” é completamente inadequada para categorizar estes procedimentos; ao invés disso, é útil pensar que a imitação e a (não-)citação de autoria são uma forma de homenagem a autores e obras consagradas, o que introduz o conceito de emulação, fundamentalmente uma “imitação me-lhorada”, ou “imitação agregada de elementos” em relação aos originais. O autor que emula outro não pretende superá-lo, mas sim homenageá-lo, citando-o em sua obra; dentro de uma visão teológica de mundo, inclusive, a questão da “au-toria” pode ser relegada a um plano inferior, já que o “eu” ainda não se configura da maneira hoje reconhecidamente

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freudiana. A persona do autor é superada pela ideia de que todos estes artífices estão, na verdade, cultivando e produzindo maravilhas do engenho humano. A maravilha, por sua vez, é um conceito preciso e próprio, bastante seiscentista que traduz a iluminação divina na Terra, fazendo manifestar nos homens e na natureza a presença de Deus. Isso pode explicar, também, a dificuldade de se atribuir autoria a muitas obras artísticas, já que se entendia que eram realizadas por artífices, e não por “artistas” do modo como se entende hoje, problema recor-rente ainda em nosso contexto colonial.

A emulação, portanto, não pode ser entendida como intento de superação de um autor por outro, e sim pela via da glorifi-cação das obras de Deus na terra, iluminando os homens para aprimorarem coisas já maravilhosamente criadas por outros. Ironicamente Bach, aquele ícone da “genialidade musical” para nossa contemporaneidade, talvez não admitisse esta caracterização em sua visão de mundo teológica e particular-mente regada pela austeridade luterana.

Homologia entre discursos

Fiz, anteriormente, referência a um exemplo relativo ao âm-bito da Música para exemplificar um procedimento discur-sivo. Esta menção, além de acreditar ser mais didática do que outras, naquele caso, foi também proposital para chamar a atenção para outro aspecto fundamental das artes de matriz europeia: a homologia entre discursos 12.

Considerar este fator significa entender que esta arte é uma arte essencialmente retórica, e que os gêneros artísticos são, na verdade, diferentes gêneros de discursos (organização de ideias), emulações do gênero discursivo oral. Isto significa en-tender que um sermão falado por um orador é um discurso retórico da mesma maneira que um texto escrito em prosa ou em verso; da mesma maneira que uma pintura mural ou em tela; que uma gravura impressa; que uma escultura; que uma obra arquitetônica; que uma peça musical ou teatral.

Tal conceito é o desdobramento de uma famosa tópica hora-ciana, enunciada na máxima ut pictura poesis, que consta em sua

12 | A esse respeito, ver também os traba-lhos publicados por HANSEN, João Adol-fo. “Artes seiscentistas e teologia política”. In: TIRAPELLI, Percival (Org.). Arte sacra colo-nial: barroco memória viva. Editora UNESP/Imprensa Oficial, e “Ler e Ver: pressupostos da Representação Colo-nial” (Op. Cit.).

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Ars poetica. Traduz-se literalmente por “assim como a pintura, a poesia”, estabelecendo uma relação entre ambos os gêneros artísticos. Àquele tempo, Horácio pretendia que a linguagem poética fosse entendida de maneira reflexiva e metafórica, da mesma forma que o era a pintura, segundo a interpretação renascentista.

Esta tópica torna-se uma verdadeira doutrina artística, sobre-tudo durante a Contrarreforma, quando a retórica torna-se uma ferramenta política de persuasão, reabilitando-se a dita doutrina como forma de autorizar a homologia entre discursos de diferentes gêneros artísticos, ou seja, fazendo-se compara-ções entre variados gêneros por semelhança de estruturação, uso de conceitos, figuras de linguagem, etc.

A tradição retórica ocidental, de matriz aristotélica e platônica, mas também horaciana, ciceroniana e quintiliana, visa a estru-turação de um discurso por meio da organização de conceitos que possuem momento e local preciso para sua apresentação. A arte da retórica tem como objetivo a persuasão do especta-dor, sendo um dos meios para tal a sua comoção (moção de seus afetos), e é por isso que começa a ser estrategicamente adotada pelas políticas contrarreformistas desde o século XVI, resultando em produtos artísticos nomeadamente mara-vilhosos. Isso não significa afirmar que as artes como gêneros retóricos surgem no Quinhentos, mas sim, que a partir desse momento elas são sistematicamente usadas, patrocinadas com destino a um grande público, em muitos casos, compendia-das ou recompendiadas em tratados que discorrem sobre sua constituição.

Entender, portanto, que todos os gêneros artísticos são, na verdade, discursos que visam a persuadir o espectador da ideia defendida é o ponto de partida para o real entendimento do universo cultural que vigora entre os períodos hoje catego-rizados como “renascença” e “barroco”. E mais: partindo-se do pressuposto de homologia entre discursos de variados gêneros, entendemos que existe enorme interlocução entre as artes, o que pode oferecer novas chaves de leitura para dife-rentes casos. Estas condições também podem ser admitidas como operações de agudeza de engenho, que trazem a novidade

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ao discurso pela recombinação de ideias, provocando a mara-vilha no espectador, e assim, a sua persuasão.

Os exemplos destas operações analíticas são inúmeros. Cita-rei alguns, propositalmente pertencentes a diferentes gêneros artísticos:

Em música, as transposições são variadíssimas, e apresentam uma homologia muito específica com o princípio do discurso oral, que ocorre na relação com o tempo, ou seja: um orador que fala ocupa um tempo específico para realizar, de maneira ordenada, todas as operações retóricas previstas na dispositio 13. A música, da mesma forma, é uma arte que possui igual relação com o tempo, e pode fazer analogias semelhantes. Por isso, dentre os vários subgêneros musicais (sonata, can-tata, concerto, etc.), os mesmos princípios discursivos foram ordenados de maneira harmônica ou melódica; além disso, a organização harmônica ou melódica da linguagem musical transpõe verdadeiras figuras de linguagem discursiva oral para figuras de linguagem musical, em operações verdadeiramente engenhosas. O resultado é a criação de figuras próprias do gênero musical, mas diretamente oriundas de figuras de lin-guagem discursiva.

É o caso, por exemplo, de uma figura relativa ao lamento, um afeto lúgubre descrito no famoso tratado de Christoph Bernhard 14 como passus duriusculus, correspondente à figura retórico-musical da pathopoeia (moção de afetos). Em resumo, trata-se da realização de uma linha melódica (em geral descen-dente) compreendida no intervalo de uma quarta, de maneira cromática. Trata-se de uma figura retórica que inspira um afe-to específico, associado ao pranto, e amplamente utilizada em árias de óperas, cantatas, ou mesmo concertos instrumentais; uma de suas utilizações mais célebres é, talvez, na Missa em Si menor de Bach (BWV232), no coral Crucifixus etiam pro nobis. O nome passus duriusculus é em si metafórico, pois quer dizer “passos duros” ou “passagem dura”. Quando Bach o utiliza como baixo para o Cruxifixus realiza uma espécie de metáfora musical dos próprios passos da Paixão de Cristo, que carrega sua cruz a duras penas, de uma maneira incrivelmente como-vente e dramática.

13 | Segundo Aristó-teles, o discurso deli-berativo é, a partir do costume, teorizado em cinco partes: Invenção [inuentio] (onde se esco-lhe os argumentos e a evocação de autoridade dos lugares-comuns); disposição [dispositio] (é realizada no transcor-rer de tempo em que se profere o discurso, e subdivide-se em quatro: Exortação [exordium] – atrai a atenção do ou-vinte; narração [narratio] – apresenta as ideias; argumentação [argumen-tatio] – discrimina os juízos sobre as ideias narradas; conclusão [conclusio]); elocução [elo-cutio] (a linguagem mais decorosa para melhor persuadir o ouvinte); memória (relativa à me-morização do discurso em si, porque oral, mas também à lembrança de outros dispositivos persuasivos, lugares-co-muns, etc., que podem ser usados para reforçar a deliberação original, mas que não estariam previstos originalmen-te); ação [actio] (persua-são cenográfica, para o momento da delibera-ção, onde estão previs-tos gestos e entonações de voz adequados).14 | BERNHARD, Christoph. Tractatus com-positionis augmentatus. C. 1657.

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Não só Bach utiliza-se de metáforas sonoras (melódicas ou harmônicas) para construir um discurso persuasivo. Claudio Monteverdi (1567-1643) é um dos compositores que iniciam esse processo, e obtém resultados de grande repercussão popular imediata. Mesmo que eu fique tentado a fazê-lo, não conviria analisar de maneira detalhada muitas figuras monte-verdianas eficazes. Limito-me a lembrar que Monteverdi vale-se muito de recursos miméticos que geram efeitos sonoros muito literais, por exemplo quando representa o cavalgar de um cavalo em batalha (Madrigal Gira il nemico insidioso amore ou madrigal representativo Combattimento di Tancredi e Clorinda), ou um duelo de espadas (Madrigal Altri canti d’amor). Estas figuras de linguagem aparecem em um novo gênero musical criado pelo próprio compositor, em uma verdadeira operação de agudeza retórica. Monteverdi, ao compor seu VIII livro de madrigais 15, os divide entre dois afetos, o afeto amoroso e o afeto guerreiro, este último reinventado por ele, como argu-menta em seu prólogo:

Havendo eu considerado as nossas paixões, ou afetações da alma, serem três as principais, isto é, Ira, Temperança e Humil-dade ou Súplica, como bem os melhores Filósofos afirmam, e mesmo a própria natureza de nossa voz ao caracterizar-se em aguda, grave e mediana, e como a arte da Música o notifica claramente nestes três termos de concitato 16, mole e temperado, e não sendo dentre todas as composições dos passados com-positores possível encontrar exemplo do gênero concitato, mas sim dos gêneros mole e temperado, mas descrito em Platão no terceiro [livro] da Retórica [...], por isso me pus com não pouco estudo e fadiga a reencontrá-lo [...] 17.

Esta passagem contém uma série de metáforas e analogias que vão se sucedendo. Monteverdi “inventa” uma disposição de afeto já prescrita por outros autores, mas até então não realizada em música. O que se vê aí é o mesmo processo de invenção descrito até agora: o lugar-comum torna-se enge-nhoso, porque é retirado de um gênero discursivo até então alheio à música; a “novidade” não está na criação ex novo de um subgênero artístico, mas sim, na recombinação de con-ceitos já existentes (o estilo Concitato e o gênero musical), coroada por uma novidade interpretativa específica (o afeto

15 | MONTEVERDI, Claudio. Madrigali guar-rieri, et amorosi [...]. Vene-za: Alessandro Vincen-ti, 1638. Os madrigais monteverdianos citados acima pertencem a este livro.

16 | A tradução do ter-mo original, concitato, os-cila entre “vívido”, “in-citado” ou “excitado”. Por isso sua associação com o “espírito guer-reiro”, uma dedução monteverdiana da ideia de Ira.

17 | Idem. Claudio Monteverde a’ chi legge. Tradução minha.

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da Ira é traduzido no Espírito Guerreiro por interpretação monteverdiana desse afeto); esta novidade é uma maravilha do engenho humano, e a agudeza que a concretiza usa da ho-mologia entre discursos, partindo do que foi prescrito pelos Filósofos e chegando até o discurso musical através de estru-turas e metáforas análogas. Além de tudo a homologia é tal que, seja aqui como em toda a sua obra, Monteverdi deixa claro que Música é Poesia.

Com estes exemplos espero descrever com clareza a matriz retórica das diversas artes produzidas especialmente na Con-trarreforma, e a condição de homologia entre os discursos proferidos em suas obras.

Para o caso da Arquitetura, e especialmente da arquitetura reli-giosa, conviria dizer que a profusão de sua ornamentação (seja pictórica ou escultórica) visa figurar ideias, conceitos e estru-turas discursivas de conteúdo moralizante ao figurar vícios e virtudes, ou instruindo o espectador sobre os exemplos de Fé Católica, que residem na figura de santos, papas, evangelistas, doutores da Igreja, etc.

Aí, a homologia entre discursos retóricos vem como um fator que permite a interlocução entre variados gêneros artísticos. A este ponto, significa ponderar que a arquitetura não se man-ifesta apenas pela organização do espaço, mas como um corpus que ostenta e abarca outros gêneros artísticos, adornada de pinturas e esculturas; ao mesmo tempo, um corpus que ostenta e abarca ideias, de maneira ampla.

Afinal, em que momento a pintura mural deixa de ser arquite-tura e se torna pintura? Em que momento a cantaria deixa de ser arquitetura e se torna escultura? Da mesma forma, em que momento a arquitetura deixou de ser ela própria pintura, escultura, ou qualquer forma de discurso? A homologia é tal, que permite claramente a transposição de temas, lugares-co-muns e discursos, entre todas elas. É o caso dos frontispícios de igrejas que funcionam, retoricamente, como estruturas de emblemas (sobre estes discorrerei a seguir) ou, de maneira recíproca, aos próprios frontispícios de livros, compostos por gravuras, mas que funcionam como verdadeiras arquitetu-

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ras e emblemas, quando ostentam a imagem de estruturas ar-quitetônicas, como bem observado por Zuvillaga:

Procede iniciar o estudo dos tratados de perspectiva analisando seus frontispícios, pois, além de ser a porta que convida o leitor a entrar em um livro, são também sua fachada, e ao mostrar o que este contém em seu interior possuem um caráter repre-sentativo. Estes frontispícios, que são as primeiras pranchas e em alguns casos são inclusive mais interessantes que outras do mesmo livro, costumam ter um marcado caráter arquitetônico e com frequência estão animadas com figuras alegóricas, cor-pos geométricos, instrumentos de desenho, etc. Algumas vezes levam lemas ou motes que fazem delas autênticos emblemas, pois a linguagem visual emblemática se desenvolveu a partir do Renascimento e alcançou seu esplendor durante o Barroco e, portanto, sua evolução coincide no tempo com a da perspec-tiva. 18

O excerto trata mais especificamente dos frontispícios de tra-tados de perspectiva, mas a ideia continua válida para a maio-ria dos frontispícios de livros, em virtude de seu conteúdo comumente emblemático. O que melhor se depreende desta analogia é que a ideia de um gênero artístico perpassa mais so-bre aquilo que nele está representado, de maneira conceitual, do que sobre sua materialidade em si. É claro que cada gênero possui particularidades que o representam (no caso da Ar-quitetura, talvez todas elas estejam ligadas a seu princípio de materialidade espacial), mas note-se também que uma arquite-tura não é somente algo construído, mas a representação de uma ideia de arquitetura, que se concretiza por conceitos, espa-ços, e também por imagens (fato que poderia explicar muito bem os desenhos “imaginários” de Leonardo e as represen-tações cidades ideais de Filarete e tantos outros, na virada do Quatrocentos para o Quinhentos). Mas a imagem não se con-cretiza por si própria, e sim quando é a definição ilustrada de um conceito: Não é que a imagem de uma voluta seja arquitetura por si só, mas quando é figurada de modo a representar a ideia de um elemento arquitetônico, como um capitel articulado gramaticalmente em sua própria Ordem arquitetônica, esta figura de capitel torna-se uma definição ilustrada da ideia de arquitetura e, por extensão, ela própria torna-se arquitetura,

18 | ZUVILLAGA, Javier Navarro de. Por-tadas, alegorías, emble-mas. In: Imágenes de la perspectiva. Madri: Sirue-la, 1996. P. 23. Tradução minha.

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“Il terzo libro di Sebas-

tian Serlio Bolognese

[...]”. (Veneza, Gia-

como de’ Franceschi,

1619). Frontispício.

Todos os elementos,

sejam arquitetônicos,

fitomórficos ou antro-

pomórficos, constroem

uma mensagem de

maneira alegórica sobre

o tema tratado na obra,

através da fórmula do

emblema. Essa alegoria,

pode-se dizer, já atua

como exórdio visual do

discurso que se desen-

volverá dentro do livro.

“I dieci libri

dell’architettura di M.

Vitruvio [...]” (Veneza,

Francesco Marcolini,

1556). Frontispício.

Aqui o frontispício

como representação

(ou alegoria) da própria

arquitetura se mostra

evidente, ao passo que

ele próprio é um Arco

do Triunfo.

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Andrea Pozzo. “Glo-

ria de Santo Inácio”,

em Sant’Ignazio de

Roma (1691-94). (Fonte:

http://upload.wiki-

media.org/wikipedia/

commons/d/de/

Church_of_SantIgnazio_

(448552660).jpg)

Pozzo escreve um trat-

ado sobre anamorfose

e pintura ilusionista,

conhecido também no

universo luso-brasileiro.

Donato Bramante.

Anamorfose em Santa

Maria presso San Sat-

iro, de Milão. (Foto do

autor)

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mesmo sendo imagem e não, fisicamente, capitel.

Talvez isso seja possível em um mundo onde todo arquiteto é um construtor. O “crítico de arquitetura”, “arquiteto que não constrói”, ainda está por surgir na sociedade setecentista. E, se ele não existe (ou se os “críticos” de arquitetura não são arquitetos de ofício, mas nobres interessados pelo assunto), talvez não haja plena separação entre o conceito de arquite-tura, expresso pelo desenho, e a arquitetura física.

Daí vem nossa dificuldade de se categorizar o tema da pers-pectiva como pertencente a algum dos tantos gêneros visuais. Talvez o desejo de especificá-lo seja mesmo um equívoco analítico nosso, próprio de uma ética cientificista que tem como ponto de partida metodológico a categorização; mas a categorização não fornece respostas a tudo, podendo levar a subcategorias intermináveis, especialmente quando os resulta-dos analisados começam a ser considerados híbridos. Quando se fala em perspectiva visual, há que se ter em conta todo um costume perspéctico em que, quando se pinta arquiteturas “il-usórias”, sejam elas anamorfoses que alteram a percepção es-pacial, também se está fazendo arquitetura. Afinal, a preensão espacial é física e visual em igual importância, e ambas atuam de maneira integrada. Talvez a melhor prova disso seja o que faz Bramante em Santa Maria presso San Satiro, criando um templo em cruz grega somente ao pintar uma anamorfose em perspectiva, na abside do altar-mor. Trata-se de pintura mural ou de arquitetura? Trata-se de ambos, um a serviço do outro.

Por fim, resta ainda outra possível analogia a se fazer entre o componente espacial da arquitetura e o fator tempo, que reside nos momentos da dispositio retórica: se os elementos da disposi-tio são subordinados ao fator tempo (ao intervalo de tempo no qual o retor profere seu discurso), a apreensão arquitetônica talvez também o possa ser, à medida que o espectador vai de-ambulando pelo edifício. Desta forma, pelo menos em casos em que a concepção do edifício todo se dê de maneira mais homogênea, uma fachada de igreja pode ser lida analogamente a um Exordium, que convida o fiel a adentrar o templo; sua nave pode ser comparada tanto a um discurso que se reinicia (ou seja, que contém em si toda a dispositio novamente), mas

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especialmente aos momentos da Narratio e Argumentatio, em que os temas da fé, com seus exemplos moralizantes, são ex-postos e comprovados ao fiel; e, finalmente, o local da Euca-ristia, onde a fé em Cristo se renova e se confirma, pode ser comparada à Conclusio de todo este discurso visual.

Símbolo e alegoria

Venho, para encerrar este capítulo, comentar sobre alguns elementos estruturadores das formas de discurso visual que se constituem a partir do Quinhentos. Trata-se de um tema muito amplo e complexo, do qual me limitarei a expor alguns pontos de seu funcionamento, juntamente com a explicação de algumas estruturas específicas.

A alegoria, como observa Hansen 19, é uma forma de me-táfora, ou seja, de um artifício de linguagem que constrói uma relação de equivalência entre dois valores semânti-cos distintos, para usar um no lugar do outro, de maneira indireta. Fundamentalmente diz “B” para significar “A”. O valor destes significados é cultural, solidificado ao longo dos tempos ou construído através do discurso.

Nas culturas que cultivavam as artes retóricas a alegoria ma-nifesta-se como um princípio formal das “retóricas das artes”, tanto por ser considerado elemento ornamentativo dos gêne-ros discursivos orais, desde os retores romanos, quanto por produzir formas de linguagem indiretas, que serviam a dife-rentes propósitos: promover associações ditas “engenhosas” entre tópicas de naturezas distintas; comover o receptor do discurso, por via da eloquência de alegorias consideradas “efi-cazes”; ocultar discursos, por meio de alegorias de interpre-tação mais difícil, capaz de ser entendida por seletos grupos sociais. Nesse universo que, como vemos, é bastante amplo, as alegorias classificam-se em graus de dificuldade interpretativa, que varia entre alegorias brandas e alegorias totais, o que exige at-enção e prudência de quem as estude, além de uma aproxima-ção bastante íntima de seu universo de produção, até porque muitas alegorias que, para nós, hoje são de difícil interpreta-ção, poderiam não o ser para o público contemporâneo à sua produção, em função do universo cultural que vigorava em

19 | Recomendo a leitura de seu livro: HANSEN, João Adol-fo. Alegoria - construção e interpretação da metáfora. Campinas: Hedra, 2006.

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sua contemporaneidade. E, se assim o for, todo o contexto de produção de uma obra muda substancialmente.

Se bem que presente durante toda a História da Arte euro-peia, o contexto de produção de alegorias visuais sofre profun-das alterações na virada do Quatrocentos para o Quinhentos, com a progressiva constituição de culturas cortesãs, que mani-festavam grande interesse por doutrinas ocultistas ou “orien-talizantes” que estavam chegando à Europa naqueles tempos, através de documentos em parte alheios àquela cultura, como livros de hieróglifos egípcios, até então indecifrados. Trata-se de um contexto pluralíssimo, que olha para hieróglifos egíp-cios, astrologia, filosofia platônica, a cabala judaica, e tantas outras fontes, construindo interpretações de mundo místicas e proféticas como, entre outras, nas doutrinas neoplatônicas de Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano. A febre pelas “simbologias”, em pouco tempo, atrai a atenção das novas cortes italianas, permitindo a construção de dis-cursos retóricos laudatórios a seus feitos militares, ou seus valores e nobreza.

A apreensão cortesã deste universo se trata de uma apreen-são culta e até “capciosa” dos sistemas de simbologias: dentre as novas cortes italianas, muitas eram compostas por mer-cenários ou hábeis militares, déspotas de origem não-nobre segundo a ordem política medieval, e que estavam assumin-do o comando de territórios importantes, especialmente na Península Italiana. Os discursos neoplatônicos atraem sua atenção pois permitem a construção de uma nova ordem de natureza “mística” que habilitava sua nobiliarquia, inexistente na ordem unicamente cristã estabelecida desde a Idade Média.

É o caso, por exemplo, de Sigismondo Malatesta, senhor de Rimini, para quem Alberti trabalha construindo o Tempio Ma-latestiano, destinado a glorificar aquela figura como se fosse um general romano através da emulação das ruínas romanas daquele local; de Federico de Montefeltro, senhor de Urbino, que constitui uma das cortes mais cultas do Quatrocentos, por onde passaram nomes como Piero della Francesca, Bramante e mais tarde Raffaello Sanzio, sendo notório o discurso sobre a Harmonia, que estabelece engenhosa relação entre a harmo-

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nia musical e celeste como alegoria da harmonia política do bom governo, celebrado por Montefeltro em seu studiolo; da família Medici, uma família de banqueiros, que chega ao pod-er dentro da antiga estrutura republicana florentina, e assume o controle político da cidade, constituindo uma corte noto-riamente culta, sobretudo na época de Lorenzo o Magnífico, grande mecenas dos filósofos neoplatônicos quatrocentistas. Todos eles promovem nas artes discursos que alegorizam vir-tudes como o Bom Governo, a Justiça, e interpretações místi-cas de seu próprio poder temporal.

Este contexto tão amplo leva à produção de tratados que visam “regular” o discurso visual em sistemas representativos de alegorias por meio de imagens, tornando-se eles próprios artis inveniendi. Tais compêndios regularizam de maneira formal a produção de alegorias, permitindo uma legibilidade mais se-gura, ao passo que a metáfora vem organizada em gêneros rep-resentativos como o emblema, a empresa/divisa ou as alegorias da Iconologia.

Este processo é uma espécie de “institucionalização” dos sím-bolos em sistemas alegóricos, o que desperta a necessidade, aqui, de se aclarar a diferenciação entre símbolo e alegoria: ao passo que o símbolo contém significação metafórica fecha-da e direta em si próprio, a alegoria se trata de uma cons-trução que articula diferentes símbolos gerando múltiplos significados, a fim de construir uma “metáfora composta”, com possibilidades de interpretação mais amplas. Devido à dificuldade de interpretação das alegorias propostas (isto é, devido à possível variedade de interpretação das metáforas expostas), os elementos compositivos alegóricos começaram a ser, concomitantemente, divididos em gêneros/sistemas representativos, que autorizam ou desautorizam, geralmente pelo costume, certos lugares-comuns interpretativos. Porém, note-se que, de acordo com o sistema representativo em que se insere, o elemento simbólico também pode sofrer alteração de significado na leitura final da alegoria, como observa Han-sen quando reporta as instruções de um dos tratadistas sobre o tema:

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Rengifo diz que, na composição de emblemas, as figuras são extraídas dos próprios efeitos que se pretende figurar: a ima-gem da Tocha incendiada, que fica mais acesa quando é incli-nada, significa “humildade”, dando a entender que a virtude mais se fortalece quanto mais se humilha. Invertida, faz a cera apagar o fogo, significando “leviandade”. De modo análogo, a imagem da “mosca”, em emblemas e na pintura do século XVII significa apenas “mosca” pousada numa [sic] fruto de um bodegón ou “natureza morta”; pintada como elemento de uma composição do gênero vanitas, significa “decomposição” e “morte”; e, usada sozinha, por exemplo numa divisa, num emblema ou numa inscrição irônica que se envia para alguém, significa “falta de vergonha”. 20

Como se vê, o elemento “tocha” possui diferentes significa-ções de acordo com a posição/contexto em que é represen-tado e, da mesma forma, o elemento “mosca”, o que denota estas engenhosas articulações entre símbolos, que produzem significações compostas e distintas.

É interessante observar, também, que o contexto de surgimento e difusão desta cultura quinhentista é o das cul-turas cortesãs, intimamente ligado a doutrinas políticas ma-quiavélicas, rechaçadas pelos princípios da Razão de Estado Católica, da qual pertenciam as grandes monarquias europe-ias, dentre as quais a portuguesa. No entanto, as culturas cor-tesãs italianas, como bem se sabe, serão admitidas nas grandes cortes europeias como padrões sociais e de representação no-biliárquica, especialmente no Seiscentos. Auxiliado por esta condição, os novos sistemas de representação artística pas-sam também a ser aceitos nas grandes monarquias, e também são incluídos nos projetos contrarreformistas do Vaticano, já que muitos desses sistemas representativos visam a figurar ví-cios e virtudes de maneira eficaz e conveniente 21. A sutileza é que aquilo que se antes destinava a edificar o perfeito Gentil-Homem passa também a edificar, de maneira específica, o fiel católico e as virtudes dos dogmas religiosos.

Vale lembrar, também, que esta análise que aqui faço diz res-peito exclusivamente ao desenvolvimento formal das alegorias, dentro de sistemas de representação. Ou seja, nesse contexto, seu

20 | HANSEN, João Adolfo. “Alguns pre-ceitos da invenção e elocução metafóricas de emblemas e empre-sas”. Revista chilena de literatura. N. 85, nov. 2013. Pp. 43-73. Dis-ponível em: <http://www.revistaliteratura.uchile.cl/index.php/RCL/article/viewAr-ticle/30184/31945>. Acesso em: 09 mar. 2013.

21 | E, até porque, muitos papas durante o Quinhentos e Seis-centos eram justamen-te oriundos das novas famílias importantes italianas, como o caso dos Medici (Florença) ou ainda dos Pamphili (Roma)

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surgimento e difusão está ligado antes às pequenas cortes ita-lianas, do que às políticas católicas e grandes monarquias; o uso de metáforas em discursos retóricos, no entanto, é um dado comum à cultura europeia desde sempre, como já dito. Aliás, poder-se-ia dizer que a metáfora é também um dos pilares das religiões semitas e, sobretudo, do cristianismo, a demonstrar-se pelas interpretações alegóricas de temas bíbli-cos e pelo modo como os ensinamentos de Cristo são propa-gados nos Evangelhos. A limite, o próprio ato fundamental da liturgia cristã, a eucaristia, tem sua razão de ser baseada na metáfora.

Sem me ater a uma minuciosa análise de tantos gêneros de representação alegórica, limito-me a comentar dois deles, muito úteis às análises que farei sobre meu objeto de estudo, no capítulo seguinte.

O primeiro trata-se do emblema, que começa a aparecer em 1531 na coletânea intitulada Emblemata, feita por Andrea Al-ciato. Inicialmente trata-se de pequenos poemas sobre vícios e virtudes que, em edições posteriores, têm a adição de gra-vuras, segundo proposta do editor. Esta nova configuração consagra-se como uma estrutura para o emblema, que passa a ser identificado como composto de Mote, Corpo e Alma, ou seja: título, figura e texto/epigrama. Esse sistema destina-se a proferir sentenças moralizantes e didascálicas, onde imagem e texto são interdependentes e igualmente válidas: Como a figura é uma definição ilustrada da mesma coisa que o texto diz, e o mote é o que as nomeia, é possível compor um emblema inteligível com apenas um ou dois destes termos. A leitura da mensagem, ainda assim, é sempre feita de maneira conjunta entre mais de um deles.

Esta estrutura pode ser usada analogamente em outros gêne-ros artísticos, e exemplo da pintura: a inscrição de um provér-bio em um quadro pode ser lida como o Mote do emblema (quadro), como no caso do tríptico O jardim das delícias terre-nas de Hieronymus Bosch que, quando fechado, figura Deus apontando a mão para a esfera terrena, acompanhado da ins-crição ipse dixit et facta s(ou)nt / ipse mandauit et creata s(ou)nt 22. As imagens isoladamente abrem margem a diversas hipóteses,

22 | “Ele o disse, e tudo foi feito; Ele o mandou e tudo foi criado” (Gê-nesis, 1:1).

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Andrea Alciato. “Omnia Andræ Alciati V. C.

emblemata” (Antuérpia, Christophori Platini,

1577). Emblema CLX. A estrutura do emblema

deve ser lida da seguinte forma:

[mote:] Mútuo Auxílio

[imagem]

[epigrama:] “O coxo é carregado sobre os om-

bros do cego;

E, como troca por esta aliança, tem os olhos

deste.

Quando falta algo a um dos dois, então a con-

córdia socorre a ambos:

Um empresta seus olhos, o outro empresta

seus pés.” (Trad: Luiz Armando Bagolim)

Note-se, no exemplo, a possibilidade de leitura

com apenas alguns dos termos que compõem

o emblema, bem como o conteúdo morali-

zante, que alegoriza uma virtude edificante (no

caso, o mútuo auxílio).

Albrecht Dührer. “Melancolia”, 1514. (Fonte:

http://www.princeton.edu/~his291/Jpegs/Du-

rer_Melancolia.JPG)

A composição alegoriza os espíritos criadores,

de artífices, cientistas, matemáticos, etc. Tais

espíritos eram vistos pela astrologia como in-

fluenciados por Saturno (daí, espíritos saturni-

nos), e também, como consequência disso,

tomados pelo afeto da Melancolia. O gesto

da figura, que descansa seu rosto apoiado

no braço e tem o olhar perdido no horizonte,

vira ele próprio um lugar-comum visual que

representa o afeto da Melancolia, a partir do

Quinhentos.

A gravura pode ser considerada um emblema,

pois o mote “Melancolia” vem inscrito nela,

permitindo que a imagem seja lida como

definição ilustrada daquilo que o mote diz;

não obstante, uma leitura da imagem indepen-

dentemente do texto também seria possível.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro112

mas a adição do Mote remete este emblema pintado à criação do mundo, e introduz os discursos sobre vícios e virtudes que irão se desenvolver no tríptico quando aberto. Outro bom exemplo de emblema está na gravura Melancolia de Dührer, uma alegoria dos artífices, espíritos saturninos inclinados ao engenho e à produção artística; ou na arquitetura, onde a in-dicação do orago de uma capela no frontispício do edifício também funciona como o Mote para o discurso retórico que se desenvolve em seu interior.

Outro desses gêneros seria a divisa/empresa, o que hoje se cos-tuma associar de maneira simplória ao “brasão” ou “heráldi-ca”, por vir figurado em um campo que, em origem, já foi um escudo. O gênero se conforma durante o séc. XVI, sendo co-mumente chamado divisa, passando a ser reconhecido como empresa durante o séc. XVII. Divisa vem do verbo “divisar”, que remete à disposição de elementos dividindo o campo de representação (bandeira ou escudo) na arte heráldica. O gênero também lida com as definições alegóricas de “corpo” e “alma”, através da relação entre imagem e sentença (provér-bio), porém de maneira mais específica que no emblema: a op-eração mental que o leitor deve fazer para interpretar esta ale-goria se dá de maneira conjunta entre seus elementos, já que quase todos são metafóricos por si só. Novamente, Hansen:

Observa-se, deste modo, que a imagem é pensada como dis-curso e vice-versa. O leitor/espectador de divisas vê-se, assim, às voltas com duas metáforas – uma visual, e outra verbal – cuja relação, que tem de efetuar para interpretar o que lê/vê, é alegórica: o visual tem tradução discursiva e o verbal, tradução visual. 23

Quando se diz que a divisa/empresa se constitui a partir do Quinhentos, se refere ao fato de sua estrutura começar a ser melhor definida desde então. No entanto, as operações alegóricas e os resultados formais deste gênero são antiquís-simos, como se observa pela própria arte heráldica. A divisa do Carmo pode se inserir neste contexto, inclusive por oferecer uma alegoria mais “branda” daquilo que designa. Ainda que sofra variações quanto ao desenho de elementos representa-tivos, fundamentalmente o seu campo é dividido em dois por

23 | HANSEN, João Adolfo. Alegoria - constru-ção e interpretação da metá-fora. Campinas: Hedra, 2006. P. 195.

O tríptico de Bosh,

quando fechado.

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Por uma arqueologia das formas de representação | 6 113

um elemento ascendente que remete ao Monte Carmelo; no topo dele, uma cruz; acima do Monte e aos lados da cruz, duas estrelas; no campo inferior do dito Monte, outra estrela.

A tradição carmelita aponta o surgimento desta divisa em 1499, figurada em um livro dedicado à vida de Santo Alberto; não encontrei qualquer edição desta obra e, portanto, não pude verificar se desde então já vinha sendo figurado algum mote em seu filactério 24. Ainda assim, e tomando-se por referência a divisa figurada em nossa capela de Mariana, é possível iden-tificar que estes elementos celebram o Monte Carmelo, local onde desde o séc. XII reúnem-se os Carmelitas no culto a Nossa Senhora (cruz no topo do Monte). A estrela que está no campo do Carmelo denota a própria Virgem, enquanto que as estrelas que estão no campo superior, os profetas Elias e Eliseu, que mais antigamente protagonizam o Carmelo como local sagrado, nos textos bíblicos, e profetizaram a vinda de Maria.

Além destas observações pontuais, convém notar outros pre-ceitos reguladores das divisas, igualmente úteis a nossos estu-dos. Paolo Giovio, em seu Dialogo delle imprese militari et amorose [...] (1557), observa cinco condições para se fazer uma boa empresa: (1) que tenha justa proporção entre Alma e Corpo; (2) que não seja obscura demais, nem muito facilmente in-teligível; (3) que tenha bela forma, e que se faça muito alegre, figurando-se “estrelas, Sóis, Luas, fogo, água, árvores verde-jantes, instrumentos mecânicos, animais bizarros & pássaros fantásticos” 25; (4) que não requeira forma humana; (5) que o Mote seja a Alma do Corpo, e que quem o escreva fale preferencialmente idioma diverso de quem compôs o Corpo, porque assim se garante certo grau de obscuridade; ainda, que o Mote seja breve, e que sua junção com o corpo seja con-stante e essencial para o gênero.

Esta prescrição oferece uma boa ideia do que se poderia en-tender visualmente por empresa/divisa no séc. XVI. Ressalto a necessidade de se construir uma alegoria moderada, ou seja, de interpretação nem branda e nem hermética (item 2), além da necessidade explícita de se representar símbolos de maneira

25 | GIOVIO, Paolo. Dialogo delle imprese mili-tari et amorose (1557) di monsignor Giovio Ve-scovo di Nocera; con un Ragionamento di Messer Ludouico Do-menichi, del medesimo soggetto. Con la tavola. In Lione, appresso Gu-glielmo Roviglio, 1559. Con Priuilegio del Rè. P. 9.

24 | Nome dado, no caso, à faixa onde se ins-creve o Mote da divisa.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro114

figurativa (item 3).

Por sua vez, o item 4 é colocado de forma capciosa: “que não se requeira forma humana”. Giovio não proíbe a representação humana e sim, como se verifica em muitas empresas, autoriza a representação humana por via da sinédoque, ou seja, a repre-sentação do todo pela parte. Nas empresas jamais veremos uma representação total da figura humana, e sim de partes dela: uma perna, um braço, olho, etc. É o caso, curiosamente, das empresas franciscanas, que figuram quase que obrigatoriamente os frontispícios das capelas mineiras das irmandades leigas de São Francisco de Assis. Em Mariana é possível ver esta empresa na vizinha Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e na Capela da Arquiconfraria do cordão de S. Francisco de Assis. Esta em-presa associa as chagas de Cristo aos estigmas de São Francis-co de variadas formas, inclusive utilizando o braço nu como denotativo de Cristo, junto ao braço vestido por um manto, denotativo do santo (ambos com chagas em suas palmas). Na capela da Arquiconfraria ambos os braços aparecem lado a lado, obliquamente, à frente de uma cruz; na capela vizinha ao Carmo, são dispostos de maneira complexa e engenhosa: Acima de tudo, uma cruz; logo abaixo, os mesmos braços; abaixo deles, porém, a empresa já configura-se em divisa, com o campo de um escudo dividido em dois, e delimitado por uma corda que se enlaça: à esquerda, as cinco chagas de Cristo, que milagrosamente reaparecem em São Francisco e, à direita, as armas de Portugal 26.

A associação entre esta Ordem e o Reino se dá de maneira engenhosíssima e extremamente eloquente: o lado esquerdo representa as chagas de Cristo, que reaparecem para São Fran-cisco na forma de cinco estigmas; o lado direito mostra as armas de Portugal, cujo centro é justamente cinco escudetes azuis besantados com cinco pontos prateados, elemento que, por si só, alegoriza a tradição oral da Batalha de Ourique, na qual Cristo teria aparecido a D. Afonso Henriques prometen-do-lhe vitória caso adotasse por armas as suas Chagas.

A disposição dos elementos simbólicos nos permite algumas leituras (bem como a hipótese de que pertenceriam a deter-minado gênero representativo ou visual, como a divisa). Obs-

26 | Convém notar que este universo cultural era realmente difundi-do. Em um “dicionário” editado em Portugal no início do Setecentos, ve-mos um extenso verbete para o termo divisa, que cita todos os pontos so-bre os quais a tratadísti-ca discorre, enriquecen-do-os com exemplos de divisas famosas feitas em Portugal e na Europa; cita também o trata-do sobre as agudezas de Emanuele Tesauro (“Manoel Thesauro”), e os mesmos cinco pon-tos enunciados por Gio-vio, além de evocar au-toridades como Platão e Cícero. Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Por-tuguêz, e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, [...]. Coimbra: 1712-13. V. 3, pp. 264-266 (DIV).

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Por uma arqueologia das formas de representação | 6 115

Pórtico de São Fran-

cisco em Mariana.

A Divisa franciscana

também atua como

emblema para o Fron-

tispício como um todo.

(Foto do autor)

ervo, por fim, uma clara relação de correspondência entre os estigmas franciscanos e a divisa de Portugal (escudetes azuis), neste caso. Esta relação não é “forçosa”, mas sim, convenien-te, ao se dispor lado a lado simbologias que autonomamente já possuem significação ligada aos 5 estigmas de Cristo. Ou seja: aquilo que é figurado em um lado espelha moralmente aquilo que é figurado de outro; a novidade é que ambos são

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro116

enlaçados pela corda, a figurar uma ideia de harmonia entre os terceiros franciscanos e o Reino, manifestação vitoriosa de Cristo para a irmandade e para o império português, enla-çados em perfeita comunhão. Esta alegoria é o Mote para a leitura do restante do edifício.

Espero ter demonstrado de maneira eficiente (ainda que um tanto cansativa) como são variadas as formas de construção e representação de ideias artísticas no universo cultural ao qual pertence nosso objeto de estudo. Em meio a tantos for-malismos equivocados, conceitos historiográficos anacrôni-cos, e ao próprio esquecimento desta tradição representativa, fica difícil entender a gênese destas artes, e quase impossível a sua leitura. É certo que o trabalho de reconstituição cul-tural destes preceitos tange apenas uma fração de um vasto universo que se solidificou por séculos, e o que eu há pouco eu trouxe é muito menos que isso. Trata-se apenas de algu-mas notas, tanto objetivas quanto possível, para familiarizar o leitor com o tema.

Porém, afora todo o conteúdo objetivo de que tratei, a maior reflexão que quero passar com este capítulo é que o cultivo da História e das fontes historiográficas tem, sim, objetivos claros e amplos, indo desde o situar de nossa contempora-neidade, perante o passado, fornecendo ferramentas para que possamos lidar, de maneira mais consciente e até objetiva, com nossa memória social e coletiva.

Acredito que o restauro, em essência, se realize em qualquer operação cultural que permita situarmo-nos na História, por meio de nossa memória coletiva. Identificamos este tipo de operação dentre os meios físicos, nos procedimentos para o restauro de edificações ou de objetos mas, na verdade, tudo isso são consequências materiais, ou seja, tentativas de se materializar uma ideia, sendo que esta ideia, mais do que a manifestação dela em qualquer formalismo, é o princípio e a finalidade do restauro. E por ser, em essência, restauro, precisa ela mesma sempre ser revisitada, reconstruída e questionada.

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Anexos:

J. S. Bach (BWV 232). Crucifixus etiam pro nobis (1714).

C. Monteverdi. Prólogo do VIII livro de madrigais (1638).

R. Bluteau. “Vocabulário Portuguêz, e Latino [...]”. Verbete “Divisa” (1712-13)

Note-se a figura do passus duriusculus na linha do baixo, que se repete a cada quatro compassos. Os saltos abruptos nas linhas melódicas das flautas e cordas, de maneira pausada, e fora de acento dentro dos com-passos (2os e 3os tempos), também alegorizam suspiros (figura do suspi-ratio). (Leipzig: Julius Rietz, 1856. Fac-símile em domínio público).

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7Flos Carmeli[confirmatio]

Carmo de Mariana. De-

talhe do Altar Mor.

(Foto do autor)

A Capela da Ordem Terceira de N. S. do Monte Carmelo constitui-se em marco paisagístico singular em Mariana, e mesmo dentro do repertório arquitetônico colonial brasileiro.

É o último monumento a ser implantado durante os tempos da colônia na praça que hoje se chama Praça Minas Gerais, em uma situação bastante interessante, pois concorre ao mesmo tempo em que orna com seus vizinhos: de um lado está a Capela da Ordem terceira de S. Francisco de Assis que, na região, concorre socialmente com o Carmo como irmandade tradicional e prestigiada; de outro, está a Casa de Câmara e Cadeia, sede do poder colonial que, de certa forma, legitima e autoriza ambos os edifícios religiosos.

Os três edifícios assentam-se em sítios bastante convenien-tes e decorosos: sua “concorrência” se dá de maneira sutil, de acordo com a ornamentação conveniente a cada edifício, mas todos estão implantados em cotas semelhantes; nenhum muito mais elevado que os demais.

A cota da praça, aliás, confere grande visibilidade ao conjunto, pois é uma espécie de “cota mediana” da cidade, permitindo a vista dos três edifícios tanto do alto (São Pedro dos Clérigos) quanto de baixo (Ribeirão do Carmo). Nesta relação entre al-turas e visuais, a tríade de edifícios disposta em formato de U conforma uma espécie de “palco” que se dirige especialmente para as cotas inferiores da cidade, sendo cada edifício visto de baixo como se fosse ainda maior do que realmente é.

Convém ressaltar, no entanto, que esses artifícios visuais se dão em condição de paridade entre os três edifícios. Três são

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os acessos à praça e, de cada um dos três, sempre dois deles ou todos os edifícios são igualmente notados.

Afirmei anteriormente que grande parte das composições vi-suais, arquitetônicas ou não, pudessem manifestar-se como formas discursivas que figurassem alegorias de variados tipos. Atendo-me a isso, percebo que o entendimento daqueles ho-mens sobre como dispor, no espaço urbano, diferentes edifí-cios, pudesse ser tão alegórico quanto a concepção de suas fachadas. Bastos 1 observa muitos preceitos, entre o decoro e a conveniência, como reguladores de um urbanismo conveniente que metaforizasse o governo português em cidades harmo-niosas que, por sua vez, metaforizassem o corpo místico do rei, que se estende pelos territórios de seu império. O decoro a se resguardar nesta tópica seria o da proporção e o da hierarquia: Da mesma forma que a cabeça (caput; capital) comanda os membros, existe uma justa e devida proporção entre todos os membros que compõem o corpo.

Pode-se imaginar, desta forma, o quão importante são as representações alegóricas de cada um destes edifícios neste espaço público que é uma espécie de emulação do Campi-

1 | BASTOS, Rodrigo de A. “Regularidade e ordem nas povoações mineiras do século XVIII”. In: Revista do IEB. N. 44, fev. 2007. Pp. 27-54.

Mariana, vista a partir

de S. Pedro dos Cléri-

gos, com destaque às

capelas da Praça Minas

Gerais. (Foto do autor)

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Flos Carmeli | 7 129

doglio romano. A Praça Minas Gerais é um dos locais mais importantes da cidade e, certamente, o de maior visibilidade. Àqueles tempos ocupar um sítio desta magnitude não sig-nificava ofuscar seus vizinhos, e sim, observar o decoro e a conveniência da cidade, permitindo-se concorrer com seus “rivais” sempre de maneira decorosa, ao mesmo tempo que respeitando seus superiores, sem excessos inapropriados.

O decoro do discurso religioso desenvolvido por cada uma das capelas é resguardado pela engenhosidade de seus fron-tispícios, que manifesta as virtudes próprias de cada orago; é neste campo do discurso visual, que para nós soa hoje como “disciplinado”, que se dá sua concorrência.

A capela dos terceiros franciscanos mostra-se sóbria e regra-da, evocando lugares-comuns que remetem à Paixão de Cris-to, confirmada pelas virtudes da Fé nos estigmas franciscanos. Já a capela dos terceiros carmelitas mostra-se benevolente e afável, como o são as virtudes de Nossa Senhora, cujos luga-res-comuns remetem à figura de uma Mãe amável e piedosa, como veremos adiante.

A arquitetura, de maneira específica, tem seu discurso regu-lado por uma gramática, que é a gramática das Ordens Ar-quitetônicas. Tal aspecto também é observado no decoro, isto é, na representação mais apropriada e conveniente para cada templo: São Francisco nos fala por meio da Ordem Tos-cana, mais dura e simples, ao passo que o Carmo nos fala por meio da Ordem Compósita, feminina e graciosa, obedecendo a uma tópica diversas vezes citada e emulada na tratadística, desde Vitruvio:

A primeira ordem chamada Toscana he a mais robusta, e mais simples porisso p ropria para os edifícios deste caracter: as ou-tras vaõ sendo successivamente mais delicadas porisso se em-pregaõ, ou sobre as mais robustas isto he, sobre a Toscana e a Dorica, ou para ornar aquella parte do edifício onde forem mais próprias. 2

Novamente Bastos 3, em sua tese de doutorado, identifica uma série de lugares-comuns caros a cada Irmandade examinada

2 | MAGALHÃES E ANDRADE, José Calheiros de. “Das or-dens em particular”. In: Regras das sinco ordens de architectura segundo os princípios de Vinhola, [...]. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1787. P. 61.

3 | BASTOS, Rodrigo de Almeida. A maravi-lhosa fábrica de virtudes: O decoro na Arquitetura Religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). São Paulo: Edi-tora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. 360p.

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro130

nas Minas Gerais, reconstituindo de ma-neira plausível conceitos úteis ao enten-dimento destes edifícios, e analisando especificamente os de Ouro Preto. Fun-damentalmente se observam elementos similares aos que comentei há pouco sobre os frontispícios de Mariana, como o gosto dos terceiros franciscanos pela representação do Fervor Religioso e Penitência (cap. 4) e a observação dos carmelitas pela formosura (cap. 2).

Ao dirigirmos, enfim, nosso olhar para o Carmo marianense de maneira espe-cífica, a primeira coisa que cabe notar é sua planta, que observa vários temas já ensaiados em outros edifícios da região, e bastante específicos da arquitetura de

origem lusitana do Setecentos. Trata-se, fundamentalmente, de um risco cujas torres sineiras vêm “embutidas” no corpo do edifício (isto é, na nave-salão principal). No Carmo, as torres já não ladeiam totalmente a nave-salão (como se vê na vizinha São Francisco, por exemplo), mas ressaltam-se suavemente pelas laterais, justamente como na São Francisco de Ouro Preto. Outro recurso empregado, de certa forma uma con-sequência deste princípio, é a projeção do frontispício para frente, avançado em relação ao plano das torres sineiras (no-vamente, como na São Francisco de Ouro Preto), se bem que de maneira mais “estática” que o frontispício análogo fran-ciscano, pois o frontispício carmelita se ressalta sob ângulos retos, deixando-se de lançar à graciosidade e formosura bus-cadas pelos ressaltos encurvados ouro-pretanos (os recursos que conferem os caráteres de formosura às plantas, buscados por muros em curva, podem ser verificados sobretudo na São Francisco, mas também, no Carmo de Ouro Preto, de ma-neira mais discreta).

Portanto, ainda que de maneira menos eloquente do que seus paradigmas ouro-pretanos, é possível afirmar que o Carmo de Mariana lança-se a recursos semelhantes da composição de planta e frontispícios presentes em nosso repertório colonial

Frontispício do Carmo

de Mariana. Note-se a

cimalha arqueada para

acomodar o óculo, e a

fachada que se projeta

para frente. (Foto do

autor)

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Flos Carmeli | 7 131

de fins do séc. XVIII.

Cabe dizer que este tipo de recurso compositivo, especial-mente no campo arquitetônico, opera ora em esferas culturais mais amplas (mais até do que se costuma afirmar), e ora em peculiaridades mais próprias, que possam talvez ser chamadas de “costume local”, ao se usar determinadas tópicas (coisa que talvez seja confundida por nossa historiografia com “gos-to brasileiro” ou mesmo “estilo” colonial).

Com relação ao primeiro gênero, também por vezes consid-erado “invenção nacional”, manifestado na projeção dos fron-tispícios e na rotação de elementos gramaticais, como colunas e entablamentos, é necessário dizer que, apesar da grande in-cidência no repertório colonial brasileiro (torres de N. S. da Conceição da Praia em Salvador; colunas de São Francisco em Ouro Preto, etc.), é provavelmente invenção seiscentista italiana, celebremente manifestada em recursos compositivos já berninianos e borrominianos: Se São Francisco em Ouro Preto possui suas colunas rotacionadas 45º em relação ao pla-no do frontispício, Bernini já o propôs, inclusive no mesmo Jônico, em S. Andrea al Quirinale; se o Carmo de Ouro Preto

Frontispício de S. Fran-

cisco em Ouro Preto

e contrafachada de

S. Pedro em Bolonha.

Note-se os mesmos

recursos de inclinação

de volutas e colunas

arquitravadas, para ob-

ter o efeito de apliação

monumental. (Fotos do

autor)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro132

contém ondulações e concavidades em seu frontispício, Borromini também já o houvera feito em S. Carlo alle Quattro Fontane, ou no frontão e entablamento do Oratorio dei Filip-pini, em Roma. Outros exemplos destes recur-sos visuais, ainda que menos célebres, também são encontráveis em Portugal e em outros can-tos da Europa, sendo digno de nota a contra-fachada da catedral de S. Pedro em Bolonha, desenhada na década de 1740 por Alfonso Torreggiani, que contém os mesmíssimos e-lementos do frontispício do Aleijadinho na São Francisco de Ouro Preto, como a rotação de colunas e volutas, projetando a composição toda para fora, dando uma impressão de gran-diosidade.

Ainda assim nota-se, como dito há pouco, a incidência de “costumes arquitetônicos” muito peculiares, especialmente na região das Minas de Ouro do Brasil setecentista, dificilmente identificados em outras localidades. Trata-se do emprego das cimalhas nas fachadas ou interiores das Naves, que co-mumente se interrompem, se arqueiam e se ressaltam, dando lugar a óculos e elevando frontões acima delas 4. Seu emprego, da forma que é feito, parece “fora de gramática” a princípio, já que uma cimalha nada mais é do que um entablamento, e a função do entablamento é, justamente, a de ser reto e hori-zontal para acomodar o frontão (“telhado”). De fato, as mais famosas fachadas seiscentistas italianas não promovem qual-quer “ondulação” vertical nos entablamentos, sendo verifica-das, ao máximo, algumas interrupções.

Seria difícil, aliás, propormo-nos a buscar razões de nature-za “gramatical” que supostamente justifiquem essas cimal-has tão peculiares e aparentemente “rebeldes”. No entanto, uma ressalva ao tema dos entablamentos e cimalhas ainda é cabível: mais do que desobediência à gramática, e mais do que “invenção nacional”, é possível que as cimalhas encon-tradas no Brasil possam valer-se de uma tópica esquecida por algum tempo na tratadística arquitetônica, que é o da Ordem Ática. Esta ordem arquitetônica aparece descrita nos autores

4 | A hipótese de que as cimalhas encurvadas e interrompidas seja uma peculiaridade daquela região brasileira é suge-rida por Sylvio de Vas-concellos em um ensaio curioso, de certa plu-ralidade temática. Ver: VASCONCELLOS, S. Mineiridade. Ensaio de caracterização. Belo Hori-zonte: Imprensa Oficial, 1968.

Estampa 70 do tratado

de Magalhães e An-

drade. Na Figura 1a, um

exemplo de entabla-

mento Ático. (Fonte:

Cópia de microfilme da

Biblioteca da FAUUSP)

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Flos Carmeli | 7 133

antigos, e é comentada no tratado de Cesare Cesariano, mas desaparece quando as regras das cinco ordens são sistematizadas por Serlio e Vignola. É interessante notar que em documentos que circularam em Portugal no fim do Setecentos essa tópica reaparece, e sua descrição apresenta certa similaridade formal com o que identificamos por “cimalhas” na arquitetura luso-brasilei-ra: no caso da edição portuguesa do tratado de Vignola feita em 1787 por Magalhães e Andrade, vemos que o autor incrementa o texto vignolesco com uma seção sobre a Ordem Ática, completando-o com uma estam-pa cuja composição de modenaturas se assemelha muito à das cimalhas coloniais, mais do que com qualquer entablamento de alguma Ordem específica, afinal,

...assim se chama huma ordem baixa feita de pilastras, que serve para os remates dos edifícios posta sobre algumas das outras ordens: ordinariamente aplicasse a ordem Attica quando se quer elevar o meio do edifício assima do intablamento prin-cipal que o cerca em roda, e a cornija desta ordem he o que fas o Timpano com que a obra se remata. Naõ se póde estabelecer huma regra fixa que determine as medidas desta ordem, porque isto depende da altura do edifício, e das ordens de Architectura, que lhe ficaõ inferiores [...] 5.

O fato é muito curioso. Por si só renderia uma discussão à parte, que não é o objetivo deste trabalho, limitando-me ape-nas a comentá-lo brevemente: a sua observação nos ajuda a situar a cimalha colonial setecentista, como algo que contém fundamentação gramatical, sendo autorizada pela tópica como algo de uso menos “rigoroso” em matéria de proporções. Os propósitos aos quais a Ordem Ática se serve, pela prescrição da tratadística, são também verificáveis no emprego efetivo das cimalhas coloniais: um coroamento de edifício que se assenta sobre pilastras e permite o ressalto e articulação de outros elementos gramaticais. Aparentemente a Ordem Ática, de acordo com o referido tratado, não possui capitel próprio, valendo-se, assim, dos demais.

5 | MAGALHÃES E ANDRADE, José Ca-lheiros de. Op. Cit. Pp. 152-153.

Cimalha do Carmo de

Mariana. Note-se a se-

melhança compositiva

entre estas modenatu-

ras e o exemplo de

Magalhães e Andrade.

(Elaboração do autor)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro134

Não se trata de pretender, com isso, que nossos mestres de obras fossem especificamente afeitos a determinada tratadísti-ca, mas de observar que também outras tópicas tidas como “menos difundidas” na tratadística italiana, pudessem ser cul-tivadas na literatura lusitana.

Quero agora me concentrar nas tópicas identificadas por Bas-tos (op.cit.) quando analisa o Carmo de Ouro Preto, e co-menta o Carmo de São João del Rei: Em ambos os casos, encontra-se (em Ouro Preto, na sacristia, e em S. J. del Rei no frontispício) os dizeres Gloria Libani e Decor Carmeli. Trata-se de uma citação Bíblica (Isaías 35:2) que faz referência ao Monte Carmelo.

O culto a Nossa Senhora do Carmo tem origem nos primeiros séculos da cristandade, quando um grupo de religiosos edifica um mosteiro naquele local em louvor a Nossa Senhora, e de lá origina-se a ordem religiosa dos carmelitas, bem como a tradição de associar Nossa Senhora ao Carmo. O Carmo, ou Monte Carmelo, localiza-se na Palestina, e é desde sempre considerado um lugar sagrado; seu nome em hebraico (karm-el) designa um pomar/jardim/lugar florido. Segundo o Velho Testamento, o profeta Elias teria lá protagonizado episódios importantes de sua vida; sua doutrina é seguida pelo profe-ta Eliseu, ambos caros à iconografia carmelita, juntamente com outros santos medievais como São Simão Stock, Santo Alberto, e Santa Tereza d’Ávila, reformadores da ordem reli-giosa. É lugar-comum dessa iconografia retratar seus santos em momentos cruciais de sua história; assim sendo, é recor-rente a visão do arrebatamento de Elias, e da outorga de vir-tudes feita por N. Senhora a seus santos: entrega da Regra dos carmelitas a S. Alberto; do escapulário e do manto carmelita a S. Simão Stock; do Sagrado Coração a S. Tereza.

O Carmelo também é citado no Livro dos Reis como local onde o profeta Elias prova o verdadeiro Deus de Israel diante do povo, e manda matar os profetas de Baal (1Rs, 18:16-45), ao passo que a citação feita anteriormente, mais precisamente, consta no capítulo intitulado A alegria dos redimidos, que fala sobre o fim de um tempo de privações.

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É sabido que a cultura católica, desde a idade média, desenvolve uma leitura bíblica que relaciona o Velho e o Novo Testamento de forma profética. Trata-se daquilo que Hansen chama de alegoria dos teólogos 6, onde o que é profetizado no Velho Testamento se cumpre no Novo Testamento. Desta forma, o capítulo em que Isaías profetiza o Carmo como lo-cal de onde viria a redenção aos tempos de agrura provocados pela seca no deserto é, de maneira autorizada pelas doutri-nas católicas, visto também como uma profecia da existência da Virgem Maria, que traz ao mundo o Salvador, tornando o próprio Carmo uma alegoria da salvação e redenção dos aflitos, ou seja, ele mesmo, uma alegoria de Nossa Senhora e da Salvação.

Assim diz o capítulo 35 de Isaías:

O deserto e a terra árida regozijar-se-ão. A estepe vai alegrar-se e florirComo o lírio ela florirá, exultará de júbilo e gritará de alegria.A glória do Líbano lhe será dada, o esplendor do Carmelo e de Saron;Será vista a glória do senhor e a magnificência de nosso Deus.

6 | HANSEN, João Adolfo. Alegoria. Op. Cit.

Carmo de Ouro Preto.

Note-se as curvas e

contracurvas do fron-

tispício e os elementos

da divisa carmelita

figurados de maneira

alegórica no frontão -

Crucifixo e três estrelas.

(Foto do autor)

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Vemos, portanto, como o Velho Testamento fornece lugares-comuns para os templos carmelitas, através da citação de Isaías; esta metáfora do local (Monte Carmelo) é verificada na sacristia do Carmo de Ouro Pre-to (pinturas do forro e lavatório); na portada do Carmo de S. J. del Rei, todos sempre abundantes de repre-sentações florais, na pintura do forro ou na cantaria, respectivamente; e novamente, no frontispício do Car-mo de Ouro Preto e de Sabará que, como observa Bastos, alegoriza o lo-cal por meio da representação visual do Carmo e da divisa dos carmelitas: o frontispício torna-se ele próprio o Monte Carmelo, ao ser encimado com uma cruz, ladeado por duas es-trelas suspensas acima do frontão, e outra em um minúsculo óculo-cego abaixo do frontão, provavelmente

construído apenas para abrigar este elemento.

Para o Carmo de Mariana, dirijo meu olhar tendo em conta es-tes lugares-comuns, mas também tendo em conta que alguns de seus elementos são realizados algumas décadas depois que os citados acima, o que acarreta em mudanças na unidade e eloquência do discurso retórico como um todo.

De seus ornatos, o primeiro que se apresenta ao espectador como exordio do discurso arquitetônico é o pórtico. Compõe-se de uma porta guarnecida por elementos em cantaria sem ordem arquitetônica específica, ainda que chame a atenção as amplas escócias que entremeiam o “fuste” e as ombreiras e, como próprio do costume na arquitetura lusitana setecentista, anunciam a verga que finaliza a estrutura do pórtico. A estru-tura é encimada por ombreiras em forma de volutas, recober-tas por flores e rocalhas, que deixam cair por sobre as laterais das ombreiras algumas flores em botão. Encimando o centro do conjunto, a divisa do Carmo anunciando ao expectador o

Pórtico do Carmo de

Mariana: Acima, a

Divisa carmelita; ao

redor, rocalhas e flores

guarnecendo a entrada.

(Foto do autor)

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orago dedicado pelo edifício. A divisa se compõe emoldurada também por rocalhas e, como de costume, tem seu campo dividido por uma figura ascendente identificada como o Mon-te Carmelo, encimado por uma cruz; no campo do Monte, uma estrela de seis pontas, e no campo celeste, duas estre-las de seis pontas. A composição é guarnecida por dois anjos (muito grandes e de feições bem “adultas”, por sinal) que, com uma das mãos sustentam uma coroa que está acima da divisa, enquanto que empunham a outra mão (a mão exterior à composição). Esta mão, examinada de perto, é representada fechada, mas possui um orifício que parece servir como su-porte para o encaixe de algum tipo de mastro por entre os dedos em punho, se bem que a estrutura em pedra-sabão (es-teatite ou esteatito) pareça muito frágil para tal 7. Por fim, cabe mencionar que no centro da verga vemos duas figuras: um sol, que mira para “fora”, no próprio plano do frontispício, e uma lua, que mira para baixo, acima de quem passa pelo pórtico.

Difícil interpretar estas metáforas de maneira articulada, espe-cialmente as últimas dos corpos celestes, possivelmente até de natureza hieroglífica. É sabido que Sol e Lua tratam-se de sím-bolos marianos reconhecíveis, tanto pela associação de Maria à Estrela da Manhã (Stella Matutina, como se verá adiante), quanto por associações proféticas como o caso do capítulo 12 do livro do Apocalipse (Ap 12:1): “Apareceu do céu um sinal extraordinário: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça”.

Ao entrar no templo, o espectador originalmente se depa-rava com o tapa-vento, que hoje não existe mais devido ao sinistro de 1999. Este elemento preparava a entrada do fiel, configurando uma espécie de Nártex e protegendo a Nave da exposição direta ao exterior. Tratava-se de um elemento totalmente lígneo composto de um pórtico ladeado por co-lunas jônicas, cujas folhas das portas sustentavam pequenos painéis retangulares com pinturas que figuravam paisagens campestres (muitos ciprestes) entremeadas por figuras huma-nas com objetos como um alaúde (mulher), uma espingarda (homem) ou um livro (mulher), ou uma jarra acima da cabeça (mulher); encimando o conjunto do tapa-vento, uma espécie de “frontão” com símbolos carmelitas, especialmente as três

7 | Não convém atermo-nos a o que ou mesmo se havia, de fato, a intenção de colocar algo nas mãos destes anjos; apenas observo que o acréscimo de ou-tros materiais na escul-tura em pedra (sobre-tudo aquela destinada a espaços externos), tais como pormenores mais delicados, é corrente na tradição construtiva de matriz europeia, como se vê em muitos exem-plos; para o caso car-melita, cuja iconografia é cara à figura do Es-capulário, seria mesmo conveniente fazê-lo em metal, sendo este um objeto delicado para ser feito em pedra. Cito-o por encontrar exemplos deste gênero no interior do edifício (como vere-mos adiante), e também em outros espaços pú-blicos configurados pe-los carmelitas.

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estrelas dispostas de maneira triangular.

Devido à dificuldade de se descrever um elemento deste tipo, hoje inexistente, recorro a fotografias e à leitura das fichas catalográficas de bens móveis, promovidas pelo MinC no fim dos anos 80 8 que, além de fornecerem informações técnicas sobre os bens integrados, oferecem descrições dos mesmos. Estas fichas catalogam as pinturas do tapa-vento como “in-gênuas” (naïve).

Ao adentrar, propriamente, a Nave, o espectador deparava-se com um espaço relativamente “limpo” de elementos, com-posto de apenas dois púlpitos idênticos e dois altares lade-ando de maneira oblíqua o arco-cruzeiro. Acima havia um forro emoldurado por pinturas que figuravam balaustradas em pretensas anamorfoses, como de amplo costume naquela localidade durante o período colonial, sem, no entanto, figurar qualquer figura humana “habitando” as balaustradas, como em complemento àquele costume. Ao centro, um medalhão emoldurado por rocalhas, figurando Nossa Senhora coroada, com o Menino Jesus nu, também coroado, em seu colo; am-bos sobre nuvens, entregando o hábito carmelita a São Simão Stock que, curiosamente, já está vestido. A santa também está vestida com hábito carmelita (marrom), e é circundada de figuras celestes tais como anjos. Acima da composição, novamente a divisa carmelita e, abaixo dela, uma cartela com a seguinte inscrição: A/C ORDO, ELIAS DUM VIXCRIT ORBE/ VIGEBTI ORDIS CUN/ SVERI FINIS ET EJUS ERIT GLORIA CARMELO/ SI SANTA À MATRE RE-SURGO/ ORDINIS EM NOSTRI/ GLORIA QUALIS/ ERIT. A dificuldade em traduzir estes dizeres me impedirá de comentar esta iconografia; resta a dúvida se o que está escrito realmente possui intuito didascálico, atuando como o epi-grama de um emblema cuja definição ilustrada fosse a imagem. Nesse caso, não irei tão a fundo nesta questão, justamente pela dificuldade de leitura.

A pintura do forro é atribuída a Francisco Xavier Carneiro, provavelmente do 2º quartel do séc. XIX.

8 | MINISTÉRIO DA CULTURA. SPHAN/P R Ó - M E M Ó R I A . INVENTÁRIO NA-CIONAL DE BENS MÓVEIS E INTE-GRADOS: Minas gerais. Módulo 2 – Região de Mariana. V. 6 – Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Rio de Janeiro, set. 1988.

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Em sequência, os altares laterais. Não farei uma descrição pormenorizada de todos os seus elementos compositivos, preferindo, para poupar o leitor, ater-me apenas aos elemen-tos principais de seu discurso visual: limito-me a dizer que compõem-se, nas extremidades, de colunas caneladas, com o terço inferior torso e, voltadas para seu interior, de pilas-tras misuladas, ou quartelões, ambos encabeçados por ordem compósita. O conjunto é encimado por uma divisa (não pude identificar qual fosse, mas provavelmente seria a carmelita), e emoldurado por uma sanefa, sendo todos os elementos arquitetônicos aqui descritos recobertos por ornamentação fitomorfa.

No que concerne a este grau de descrição, mais “estrutural”, pode-se dizer que ambos os altares são idênticos; o esquema compositivo se repete a partir do Altar Mor, sendo feitos os devidos ajustes para sua correta escala e hierarquia. No Altar Mor, porém, posso observar que a divisa que o arremata é seguramente aquela carmelita, sustentada por dois anjos no mesmo esquema compositivo que o do pórtico, e sustentando à mão que não segura a coroa, um escapulário; isso abre mar-gem à especulação de que também fosse previsto um escapu-

Pórtico do Carmo de

Mariana. Note-se os

orifícios nas mãos dos

anjos, e as figuras de

Sol e Lua na verga da

porta. (Foto do autor)

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lário para as mãos dos anjos do pórtico, mas não há maiores indícios desta hipótese.

Cabe, ainda, observar que o camarim do altar-mor é pintado com motivos de rosas, em padrões que se repetem de maneira “modular”; o sacrário, por sua vez, é decorado com aves que remetem a pelicanos. Embora não se pareçam fisicamente com pelicanos, estas aves remetem a um lugar-comum muito apreciado nas Minas Gerais (curioso é que sua representação é mais comum no começo do Setecentos, e não no fim), que reside na figura do pelicano. Autorizado pela tradição oral me-dieval, cria-se que o pelicano, diante da escassez, bicava seu próprio corpo para dar-se de alimento para seus filhotes. O pelicano é, portanto, metáfora de Cristo e alegoria da Euca-ristia. Neste caso, como disse, as aves não se parecem de fato a pelicanos, mas é evidente que uma delas, a maior, se “pros-tra” diante das menores, que encostam os bicos em seu peito, aludindo a este lugar-comum. Esta hipótese é reforçada pela representação efetivar-se de maneira muito conveniente, pois está no sacrário daquele templo, local onde são guardados os paramentos da Eucaristia, fisicamente entendido como local da representação, por extensão, do próprio Cristo. Além disso, segundo os cânones representativos autorizados pela doutrina ut pictura poesis, uma figura não precisa se parecer visualmente àquilo que quer representar bastando, para tal, que represente a ideia daquilo que será figurado. Desta forma, as ditas aves não precisam, deliberadamente, parecer-se a pelicanos, pois o modo em que estão dispostas as torna definições ilustra-das dessa “ideia” de pelicanos, que é muito específica. A isso somam-se os conceitos de vera fictio e falsa fictio, ou seja, ficção baseada na realidade, e ficção baseada na fantasia, respectiva-mente. Tais conceitos dizem respeito à proporcionalidade da representação ao paradigma representado (eicasia e fantasia), confirmando que a verossimilhança da representação visual de um conceito possui paradigmas deliberadamente variáveis9.

O altar-mor, atribuído ao Pe. Félix Antônio Lisboa, é data-do de fins do séc. XVIII (seu risco seria datado de 1797), ao passo que os altares laterais são situados na segunda década do séc. XIX, conforme as referidas fichas catalográficas do IPHAN. A correspondência entre a ornamentação de ambos

9 | Cf. HANSEN, J. A. “Ut pictura poesis e veros-similhança na doutrina do conceito no século XVII colonial”. Revista de crítica literária latinoa-mericana. 1997.

Largo de S. Martim em

Bolonha. A delicadeza

do elemento que figura

o escapulário justifica

sua feitura em metal,

promovendo uma

composição engenhosa

e muito conveniente

para a estatuária de

espaços externos. (Foto

do autor)

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é muito forte, fazendo crer que um serviu como referência aos demais.

Tudo o que descrevi há pouco visa chamar a atenção do leitor ao que considero os dois alicerces da representação alegórica deste edifício: O caráter feminino e a profusão de elementos fitomórficos.

O caráter feminino, que resguarda o decoro da Senhora, é expresso pelo rigor gramatical na escolha das ordens ar-quitetônicas: Em todo o edifício constata-se a escolha pela Ordem Compósita, sendo sua única exceção a Ordem Jônica do tapa-vento, à qual também é atribuído o caráter feminino. A Compósita deste edifício é bastante inventiva, e varia de desenho conforme a cantaria exterior, interior, e a talha. Tais variações, ao contrário do que talvez se pudesse pensar de início, podem se tratar justamente da acurada observação de uma tópica autorizada por Vignola:

Encontrando-se entre as antiguidades de Roma quase infini-tas variedades de capitéis, os quais não têm nomes próprios, mas se pode todos juntos com esse vocábulo geral denomi-

Carmo de Mariana.

Sacrário figurando

pelicanos e protuber-

ância da ornamentação

fitomórfica, espe-

cialmente em locais

de maior liberdade

compositiva, como o

quartelão. (Fotos do

autor)

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nar compósitos, e também seguem as medidas principais dos outros compósitos derivados, somente do Jônico e Coríntio; bem é verdade, que em alguns se verão animais em lugar dos caulículos, em outros cornucópias, e em outros outras coisas, talvez segundo o que a seus propósitos ocorria, [...] 10

A este ponto é necessário aclarar o seguinte: é fato que a pre-dileção pela Compósita não seja exclusividade carmelita, mas sim costume bastante vigente na região, especialmente na or-namentação dos Arcos Cruzeiros. Ao olharmos para outros templos, como São Francisco de Mariana, de Ouro Preto, ou o Carmo de Ouro Preto, vemos também a Compósita em seus Arcos Cruzeiros. O aspecto que reforço, no entanto, é que nos demais casos a Compósita é reservada para o Arco Cruzeiro, e nos casos carmelitas, especialmente neste mari-anense, é também empregada em outros lugares do edifício, seja por meio da cantaria, ou da talha.

E isto se dá porque, além de autorizada, a tópica da Compósita é muito conveniente, pois representa com dignidade o caráter feminino do edifício, e ainda permite a eloquência da inven-ção que, aqui, se dá pela profusão dos elementos fitomor-fos, que saem como cestos de flores e frutos, dos cestos do capitel Compósito, e inundam os fustes dos quartelões; que coroam as sanefas como se fossem guirlandas; que reapare-cem por detrás de frontões, ou mesmo na cantaria das vergas das portas e janelas mais importantes. Nada disto está fora da gramática arquitetônica, sendo inclusive muito respeitoso aos elementos mais sóbrios (estruturais) como os entablamentos e fustes, abundando somente onde é apropriado (quartelões e tímpanos), conferindo um aspecto aprazível e benevolente ao edifício.

Esta leitura é reforçada com a constatação de que as virtudes observadas neste edifício não são escolhas particulares dos carmelitas marianenses. Além de outros edifícios mineiros, como citado acima, a tópica carmelita em torno do Monte Carmelo, de Maria metaforizada nas flores, partindo-se dos textos do Velho Testamento, é facilmente verificável em vários edifícios ligados à Ordem também na Europa, sendo traduzida de forma semelhante em sua arquitetura.

10 | VIGNOLA, Gia-como Barrozio della. REGOLA delli cinque ORDINI d’Architettu-ra (c. 1736) di M. JAC. BAROZZIO da VI-GNOLA In Bologna nella Stamperia di Lellio dalla Volpe Con licenza de Supr. P. 63. Tradução minha.

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Vale à pena citar a capela de N. S. do Carmo na igreja de San Martino em Bolonha, completada por Torreggiani em 1773 e ornada de acordo com a estrutura do emblema, contendo inscrições em cártulas marmóreas que auxiliam a leitura da imaginária e pintura lá colocada (é curioso que, neste caso, a citação da passagem bíblica também é indicada). Dessa forma tem-se, acima da imagem do altar: “DECOR CARMELI/ISAJAE. XXXV. II.”; à esquerda, acima de uma tela: “JUS-TITIA IN CARMEL SEDEBIT/JSAIAE XXXII. XVI.”; à direita, acima de sua respectiva tela: “MANUS DOMINI IN MONTE ISTO/JSAIAE. XXV. X.”. Também é digna de nota outra capela lateral carmelita, em igreja homônima milanesa. A igreja é medieval, mas sua capela lateral, dedicada à Virgem do Carmelo, foi decorada sob risco de Gerolamo Quadrio, em fins do Seiscentos, sofrendo ainda outros trabalhos no início do século seguinte. De lá destaca-se a profusão da ornamenta-ção floral, como as guirlandas nos capitéis (que se alternam de Ordem mas, sobretudo, nos Jônicos), ou nos grandes florões que ornam os caixotões dos arcos. Inscrita no entablamento do altar principal, a frase: “VIRGO FLOS CARMELI”.

Capela do Carmo em

S. Martino (Bolonha),

e Capela do Carmo na

Chiesa del Carmine

de Milão. Note-se a

inscrição da tópica

no primeiro exemplo,

e a importância dos

florões, no segundo.

(Fotos do autor)

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Flos Carmeli é uma forte tópica carmelita, originária das obras de São Simão Stock, talvez um dos principais reformadores da Ordem. Flos Carmeli era a oração rezada pelo santo inglês, que se solidifica na tradição carmelita através de um hino can-tado no dia de sua festa e, mais tarde, também na festa de N. S. do Carmo:

Flos Carmeli, vitis florigera, splendor caeli, virgo puerpera singularis.Mater mitis sed viri nescia Carmelitis esto propitia stella maris.Radix Iesse germinans flosculum nos ad esse tecum in saeculum patiaris.Inter spinas quae crescis lilium serva puras mentes fragilium tutelaris.Armatura fortis pugnantium furunt bella tende praesidium scapularis.Per incerta prudens consilium per adversa iuge solatium largiaris.Mater dulcis Carmeli domina, plebem tuam reple laetitia qua bearis.Paradisi clavis et ianua, fac nos duci quo, Mater, gloria coronaris. Amen.11.

Mais do que carmelita, a tópica das flores como metáforas de Maria é antiquíssima e fortíssima na tradição católica como um todo. Basta pensar em lugares-comuns simples como Rosário ou rosácea. Não indo muito longe, o Padre Vieira, aliás, relembra estas associações ao editar trinta de seus ser-mões dedicados a Maria e ao Rosário, sob o título de Maria Rosa Mística.

Portanto, julgo bastante plausível ler este edifício (não o único dentre os mineiros) como uma grande alegoria daquele lugar florido, o Monte Carmelo que, por sua vez, metaforiza ele mesmo a própria Mãe de Deus, plena de virtudes afáveis, au-torizadas por tantas tópicas católicas. Tal alegoria se traduz na retórica do edifício através de sua iconografia juntamente com os elementos compositivos arquitetônicos e escultóricos, por meio da cantaria e talha.

Por fim, reforço estas hipóteses ao reproduzir também uma ladainha rezada pela tradição carmelita, que não poderia ser mais rica em metáforas e tópicas que exaltam as virtudes marianas, muitas delas claramente originadas do hino de S. Simão Stock e tão celebradas neste edifício. Dela se extraem metáforas instrutivas e diretas, por vezes advindas de outros lugares-comuns bíblicos, e reforçam sobremaneira os lugares-

11 | Flor do Carmelo, Vinha florida, esplendor do céu, virgem fecunda, és singular.Doce e bendita, ó Mãe puríssima, aos carme-litas, sê tu propícia, estrela do mar.Raíz de Jessé, de brotos floridos, queiras, feliz, ao céu pelos séculos nos elevar.Entre os abrolhos, viçoso lírio, guarda os escolhos, o frágil ânimo, Mãe tutelar.Forte armadura, frnete o adversário, na guerra dura, o escapulário vem nos guardar.Nas incertezas, conse-lho sábio; nas asperezas, consolo sólido queira nos dar.Mãe de doçura do Car-mo régio sê a ventura que o povo, em júbilo, faz exultar.Do paraíso és chave, és pórtico; prudente guia, a nós, de glória, vem coroar. Amém.Tradução disponível em: <http://www.sen-darium.com/2013/07/oracao-flos-carmeli.html>. Acesso em: 18 abr 2014.

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comuns que aqui identifico, ainda que de forma ampla. Me parece que, para os terceiros carmelitas, não havia nada mais digno a Nossa Senhora do Carmo do que erigir em seu louvor um edifício que é ele mesmo uma ladainha capaz de glorificar aquela que é considerada a Flor do Carmelo.

Flos Carmeli,/ Vitis florigera/ Splendor Caeli/ Virgo puerpera/ Singularis!/ Mater mitis,/ Sed vir nescia./ Carmelitas da privilegia,/ Stella Maris”.

Kyrie, eleison.Christe, eleison.Kyrie, eleison.Christe, audi nos.Christe, exaudi nos.Pater de caelis Deus, miserere nobisFili, Redemptor mundi, Deus, miserere nobisSpiritus Sancte Deus, miserere nobisSancta Trinitas, unus Deus, miserere nobisSancta Maria, ora pro nobisSancta Dei Genitrix, ora pro nobisSancta Virgo virginum, ora pro nobisMater Christi, ora pro nobisMater divinae gratiae, ora pro nobisMater purissima, ora pro nobisMater castissima, ora pro nobisMater inviolata, ora pro nobisMater intemerata, ora pro nobisMater amabilis, ora pro nobisMater admirabilis, ora pro nobisMater boni consilii, ora pro nobisMater Creatoris, ora pro nobisMater Salvatoris, ora pro nobisVirgo prudentissima, ora pro nobisVirgo veneranda, ora pro nobisVirgo praedicanda, ora pro nobisVirgo potens, ora pro nobisVirgo Clemens, ora pro nobisVirgo fidelis, ora pro nobisSpeculum justitiae, ora pro nobisSedes sapientiae, ora pro nobis

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Causa nostrae laetitiae, ora pro nobisVas spirituale, ora pro nobisVas honorabile, ora pro nobisVas insigne devotionis, ora pro nobisRosa mystica, ora pro nobisTurris Davidica, ora pro nobisTurris eburnea, ora pro nobisDomus aurea, ora pro nobisFoederis arca, ora pro nobisJanua caeli, ora pro nobisStella matutina, ora pro nobisSalus infirmorum, ora pro nobisRefugium peccatorum, ora pro nobisConsolatrix afflictorum, ora pro nobisAuxilium christianorum, ora pro nobisRegina angeloru, ora pro nobisRegina patriarcharum, ora pro nobisRegina prophetarum, ora pro nobisRegina apostolorum, ora pro nobisRegina martyrum, ora pro nobisRegina confessorum, ora pro nobisRegina virginum, ora pro nobisRegina sanctorum omnium, ora pro nobisRegina sine labe originali concepta, ora pro nobisRegina in caelum assumpta, ora pro nobisRegina sacratissimi Rosarii, ora pro nobisRegina pacis, ora pro nobisAgnus Dei, qui tollis peccáta mundi, parce nobis, Dómine.Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, exáudi nos, Dómine.Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, miserére nobis.

V. Ora pro nobis, sancta Dei Génitrix. R. Ut digni efficiámur pro-missiónibus Christi. Orémus. Concéde nos fámulos tuos, quæsumus, Dómine Deus, perpétua mentis et córporis sanitáte gaudére: et gloriósa beátæ Maríæ semper Vírginis intercessióne, a præsénti liberári tristítia, et ætérna pérfrui lætítia. Per Christum Dóminum nostrum. Amen

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8Da reflexão ao projeto[peroratio]

Desenho prepartório

para o frontispício

deste trabalho.

(Elaboração do autor)

Meu trabalho consistiu, até aqui, de duas frentes de análise: a primeira diz respeito à materialidade do edifício estudado, através do levantamento reorganizado; a segunda, diz respeito à representação cultural e social do edifício, através do levan-tamento de sua história e da formulação de algumas hipóteses de leitura de seu conteúdo retórico. Cada uma destas frentes se subdivide em outras tantas, de modo a reportar coisas fac-tuais e pontuais ligadas ao edifício, de maneira contraposta a comentários e investigações de caráter mais amplo, sub-sidiário às análises aplicadas. Sendo assim, a primeira frente de análise se subdivide entre o levantamento feito para o Carmo, e entre tantas considerações sobre a prática do levantamento arquitetônico, critérios metodológicos, etc. A segunda frente, por sua vez, é subdividida entre um relato da história do ed-ifício, com especial atenção à sua história recente, pontuado por considerações sobre as reconstruções arquitetônicas, à luz das teorias da restauração, além de um ensaio sobre a gênese artística do edifício, apoiado por considerações sobre distintas fórmulas de construção e representação artística em vigor nas sociedades pré-iluministas.

Por esta razão, faço questão de salientar que este Trabalho Final de Graduação não se trata de um projeto de restauro, mas de diversas reflexões sobre o restauro e matérias subsidiárias a ele, que visam a construir e orientar uma ideia de restauro que vai além da intervenção física, propriamente. Como já afirmei antes, acredito que o restauro tem como fundamento opera-ções em torno de nossa memória coletiva, e que essas opera-ções possam ocorrer de variadas maneiras. É isso que quero demonstrar com este trabalho, a partir da escolha de um ob-jeto de estudo tão peculiar, que representa um passado local

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muito celebrado mas pouco conhecido efetivamente, e uma história recente bastante representativa sobre como questões memoriais coletivas, como a tutela e a perda de objetos mate-riais, são encaradas no campo nacional do restauro.

O projeto, portanto, não é o escopo de meu trabalho, mas é certamente uma de suas finalidades dialéticas, pois demon-stra a aplicabilidade de tantas reflexões. Neste último capítulo, então, definirei minha proposta.

A definição do escopo de meu projeto parte de uma análise objetiva de suas demandas materiais e culturais. Para o caso, julguei apropriado fazer algumas considerações sobre o es-tado de conservação do edifício, mas focar o projeto, isto é, o desenho, na resolução de novas intervenções para o espaço interno do edifício, afetado pelo incêndio de 1999.

Considerações gerais: Patologias e estado de conser-vação

O levantamento aqui apresentado mostra que o estado de conservação geral do edifício é bom: não foram constatados problemas de estanqueidade nas coberturas, nem problemas graves de estabilidade dos muros; a manutenção geral aparen-ta ser constante, pois o edifício está em uso, e as instalações elétricas foram refeitas desde o incêndio.

Os problemas que a materialidade do edifício apresenta talvez sejam inerentes à sua concepção, e se concentram no escoa-mento das águas pluviais e conservação das argamassas. Isso porque, como edifício colonial, seu telhado não apresenta cal-has, e as águas escoam diretamente pelos beirais. Como sua planta é relativamente grande, também grandes são as águas dos telhados, neste caso, e o volume de água pluvial acumu-lada por cada água de telhado é considerável. A água, então, escoa das projeções maiores do telhado (Nave e Capela Mor) diretamente para o solo ou sobre os telhados do Corredor Lateral, Capela do SS., e Sacristia, atingindo-os sempre com força e em grande quantidade. Por esta razão os telhados mais baixos possuem uma dupla camada de telhas-canal cimenta-das sobre as fiadas comuns, para auxiliar o escoamento. Ai-

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nda assim, seja caindo sobre um telhado inferior, ou sobre o solo, a água sempre respinga para as laterais com certa força, o que propicia problemas de conservação das argamassas tais como crostas e manchas de umidade que, como se vê, são localizadas nesses pontos de maior afluxo de água; ao chegar ao solo, esta água es-corre pelas calçadas ou, atrás da Sacristia, por uma boca-de-lobo de aspecto recente. Apesar de seu desenho, o dimensionamento não parece dar conta do problema do respingo de água, sendo estes alguns dos pon-tos de maior profusão de manchas no revestimento. Além disso, esta intervenção lança mão de um artifício que me soa um tanto errôneo, pois cria um revestimento cimentício por cima do muro histórico que, além de tudo, não parece pro-teger o edifício da umidade. Este tipo de problema, a meu ver, não tem solução em projeto, a não ser uma manutenção constante que preveja periódicas trocas de argamassa. Talvez para o caso da boca-de-lobo, seja cabível um novo desenho, com sistema de escoamento melhor dimensionado e proteção do muro histórico melhor desenhada, talvez com uma parede azulejada assentada sobre argamassa de cal, ou mesmo com um anteparo independente, em vidro ou similar.

Também inerentes são as patologias decorrentes do desenho do frontispício e do revestimento das torres sineiras: no pri-meiro caso, os arremates do frontão e da cimalha não dão conta de proteger a fachada do escorrimento das águas, e no segundo caso, mais grave, a argamassa é colocada como ar-remate das torres, recebendo água diretamente e acumulando umidade e vegetação infestante, pesando sobre isso o mais difícil acesso físico. Mais uma vez, a solução proposta é a manutenção periódica, com a lavagem da cantaria e o refazi-mento do reboco, não sendo possível a eliminação do prob-lema; felizmente a cantaria externa não se mostrou danificada fisicamente pela ação das águas pluviais, o que limita as ações de conservação à limpeza, sem outras intervenções diretas na

Corredor Lateral e Ca-

pela Mor. Manchas por

umidade, e preparo do

telhado para a recepção

de grandes volumes

d’água, através da colo-

cação de uma “sobreca-

mada” de telhas-canal,

cimentada sobre o

telhado.

(Foto do autor)

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TFG | Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro152

pedra.

Com relação à estabilidade dos muros, uma observação: afir-mei que considero sua estabilidade sob controle, mas recon-heço que falta monitoramento para um parecer mais conclu-sivo. Com relação aos muros principais (do volume da Nave, Torres e Capela Mor), não constatei anomalias, mas com relação ao Corredor Lateral são verificadas algumas trincas, porém sempre de aparência superficial e sempre em torno das peças de cantaria da porta e janelas. Estas trincas podem ser apenas da argamassa (faltam testes de percussão para concluí-lo).

Com relação às instalações, observo que o edifício é provido de sistema de proteção de descargas atmosféricas (SPDA); também, sua fiação foi refeita, provocando dois resultados: um deles é positivo, pois instala conduítes seguros quando o sistema elétrico passa pela talha (Altar Mor), sem danifi-car a estrutura histórica; o outro eu considero inadequado e incoerente, pois quando a fiação vai para os demais lugares do edifício, foi simplesmente embutida nos muros históricos rasgando sua alvenaria como em uma obra comum. Este pro-cedimento é muito invasivo, além de completamente evitável, caso a questão do projeto elétrico fosse também encarada como projeto de restauro, e não mera instalação técnica. Con-sidero este equívoco, tão comum em nossos canteiros, muito grave.

Coro

Passo agora às intervenções de caráter menos técnico. Para tal, decidi começar intervindo no Coro, e a primeira coisa que faço é propor a volta do antigo emolduramento que o arrema-tava. Não consigo entender por que as intervenções de 2000 não o recompuseram, posto que não era tarefa difícil. Este elemento conforma de maneira ímpar aquela elevação interna da Nave, e tem a função estrutural de apoiar o pavimento do Coro, além de função gramatical de sustentar o trecho de Cimalha acima do mesmo. A gramática clássica, bem apoiada na teoria albertiana, sustenta que qualquer cimalha apoia-se sobre elementos de caráter estrutural, ditos “ósseos” (pilas-

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tras ou colunas), ou sobre alguma porção de muro. A inter-venção de 2000 reconstrói aquele trecho de cimalha em bloco cimentício, mas a deixa livre no espaço, sem a porção de alve-naria que se tinha abaixo dela, e sem o arco de madeira.

São estas, justamente, as duas funções que decido retomar. Meu pórtico será feito em estrutura metálica (duplo perfil I), de modo a sustentar parte do vigamento do Coro que tam-bém refarei em estrutura metálica, sendo o pórtico arqueado no topo com desenho semelhante ao original, isto é, trilobado. Esta intervenção encosta no muro original, mas não se apoia nele, sendo alicerçada apenas no solo, conservando íntegra a alvenaria histórica; outro dado importante originalmente era a cor escura (entre cinza e azul), que reforçava o emoldura-mento visual daquele espaço e também aparecerá em minha intervenção, através da coloração escura (preto ou grafite) do novo emolduramento metálico.

Corredor Lateral. Ra-

chaduras próximas aos

elementos de cantaria,

de aparência superfi-

cial.

Frontispício. Man-

chas de umidade na

cantaria do frontão e

na argamassa dos cam-

panários.

(Fotos do autor)

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Para os elementos seguintes, me pus a discriminar seus com-ponentes construtivos e gramaticais avaliando sua importân-cia, articulação geral, e de que modo é possível reconstruí-los, caso seja lícito, ou quando não, como possível reconstituí-los sem lançar mão da reconstrução em estilo, posto que não é o partido adotado por mim.

Na sequência, o pavimento do Coro, em si. Observando as fotos do original bem como a intervenção feita, elegi os se-guintes elementos como passíveis de reconstituição, devido à sua importância na composição: Assoalho que extravasa lat-eralmente e frontalmente o espaço delimitado pelas torres; forro em caixotões; viga transversal de apoio do Coro (origi-nalmente era disfarçada de “arco abatido”), afixada no arco de emolduramento como se fosse um pórtico.

Decidi, então, que reaproveitaria a estrutura atual do assoalho do Coro, que é composta por barrotes, fazendo-os apoiar-se sobre um novo engradamento metálico (perfis I), este en-gastado no pórtico e abaixo das janelas do frontispício. Por-

Croqui de estudo: Os

dois balaústres do Coro,

e sua assimilação para

o desenho do balaústre-

tipo.

(Elaboração do autor)

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tanto, o engastamento é pontual. Nessa composição, o novo engradamento metálico, agora exposto, mantém a ideia de forro em dois caixotões, como sempre existiu. Além dessa estrutura, é acrescentado um forro entre os barrotes e o en-gradamento, feito em compensado de madeira (20mm), com acabamento cru, isto é, apenas lixado e selado, sem verniz com adição de cor. Este forro é paginado com as nervuras da madeira de forma diagonal, formando uma composição romboide que alude aos antigos “florões” existentes nos pri-meiros caixotões, perdidos com o incêndio.

Acima do assoalho, o novo guarda-corpo. Julguei a balaus-trada original não passível de reconstrução, elegendo apenas seus elementos principais: acentuada linearidade do corrimão, verticalidade e hierarquia entre as peças das balaustradas, que se compunham de dois tipos. Nenhum deles foi reconstruído, sendo apenas mantida a ideia de hierarquia entre as peças mais grossas, que sustentavam o corrimão; os balaústres mais leves, apenas de preenchimento, decidi que não apareceriam em minha intervenção. O desenho destas peças, portanto, perde-se com o tempo não sendo mais cabível a sua reconstrução; ao invés disso, atendo-se ao fato de que o Coro tem uma função objetiva, que é a de sustentar e conter os músicos de igreja, julguei apropriado limpar o guarda-corpo de elementos que comprometessem o contato visual entre Coro e Altar Mor, eliminando tudo aquilo que não fosse essencial à estruturação do anteparo e à segurança, procurando não propor horizon-talidades desnecessárias em seu desenho, já que os resultados originais eram justamente de verticalidade, com os elementos dos balaústres. O novo guarda-corpo, portanto, se resume a um anteparo horizontal que acompanha a projeção do asso-alho do Coro, e é sustentado por elementos verticais que mi-metizam os balaústres mais grossos, porque são os balaústres estruturantes. Esse desenho de guarda-corpo, por ser mais “neutro”, julguei-o apropriado que se repetisse na balaustrada da Nave, ainda que os balaústres de lá fossem originalmente de desenho distinto daqueles do Coro.

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Tapa-vento

O elemento em sequência se mostrou um dos mais difíceis de ser resolvido. Para buscar uma proposta, tive de refletir sobre o que é um “tapa-vento”, e qual sua efetiva função. Quando em visitas turísticas guiadas por instrutores locais, diz-se, co-mumente, que o tapa-vento é um elemento que servia como atenuante dos ventos vindos do exterior da edificação, que podiam apagar as velas acesas dentro do templo durante os ofícios, quando suas portas estivessem abertas para a circula-ção de fiéis. Mais do que a citada função aparentemente “téc-nica” de “não deixar apagar as velas”, creio que esta máxima seja uma tradução bastante “inocente” do conceito de atenuar a interação interior-exterior, não por conta de perturbações à iluminação por velas, mas por conta de um resguardo de um espaço considerado sagrado, que se presta aos trabalhos de oração e ritos sacros. Os tapa-ventos coloniais são unanimi-dades naquelas capelas, conformando um espaço de transição entre exterior (profano) e interior (sacro), convidando o ex-pectador à oração, ao mesmo tempo que prepara seu espírito para que fale mais baixo e se porte de maneira decorosa ao templo, por exemplo, uma tópica que remonta também aos templos clássicos, a limite. É interessante como o espaço do Nártex é eficaz em realizar a transição entre o ambiente exterior (profano), e o interior (sagrado), que vai preparando o fiel para a sobriedade do espaço da Nave. Arrisco a dizer que, retoricamente, o Nártex atua como uma figura de cap-tatio benevolentiæ, analogamente exemplificado na abertura de ópera ou concerto: tal subgênero musical foi inventado quan-do os eventos musicais de aspecto cortesão passam também a atingir maior público nos teatros seiscentistas, ou mesmo nas grandes cortes. Sabe-se que estas as plateias eram muito falastronas e desatentas ao espetáculo em si; para enunciar, de maneira enfática, que o espetáculo da noite começava, foi inventada a abertura, que musicalmente tem como ponto de partida tempos pontuados, conferindo um tom solene à en-trada da peça; por sua vez, esta seção lenta (porém firme) é seguida por uma seção rápida, aonde desenvolvem-se outros temas da abertura. Uma abertura não é a peça musical em si, mas o enunciado dela.

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Considero os tapa-ventos como resquícios da ideia de Nártex, originalmente um elemento “alpendrado” exterior, confor-mando-o, assim, no interior da estrutura arquitetônica, o que se vê de maneira mais clara em capelas específicas, dependen-do da configuração do Coro, que se ajusta acima dele. Dois templos na região me sugerem esse “Nártex ideal”: São Fran-cisco em Mariana, e o Carmo de Ouro Preto; é interessante compará-los, também, a templos com Nártex verdadeiro, como o caso das duas igrejas borromínicas locais: Rosário dos Pretos – Ouro Preto –, e São Pedro dos Clérigos – Mariana.

O tapa-vento, portanto conforma um espaço ainda não to-talmente interior, dentro da capela, por meio de um antep-aro capaz de se abrir para cortejos mais solenes. Para mim, mesmo pesando-se a ornamentação que constituía seu antigo tapa-vento, hoje inexistente, tal elemento ainda não é a Nave da capela, em si; em essência, o tapa-vento não é a antiga composição em duas jônicas com um protuberante frontão. O tapa-vento apenas é um anteparo capaz de se abrir; nada mais que isso.

Assim sendo, e porque julguei impossível a reconstrução volumétrica deste elemento, a partir de ensaios com croquis, considerei este um elemento passível de maior ousadia projet-ual, pois não cri que precisava compactuar de maneira fechada com o programa ornamentativo do interior do Carmo. Proce-di, então, da seguinte forma: Duas folhas de portas emoldura-das em bronze, subdivididas em almofadas menores; as almo-fadas, quando voltadas para o exterior, são acabadas em uma fina folha também em bronze, material tão caro às grandes portas de entrada de tantos importantes templos católicos, como as portas de Ghiberti no Batistério e Florença; ou as portas de Rodin, de onde nasceu a escultura d’O Pensador; ou mesmo como as belíssimas portas que faz Manzù na S. Pedro de Roma. Essa escolha, aliás, não interfere no alvor da ambiência “rococó”, quase oitocentista, do interior do Carmo, até porque, voltadas para a Nave, as mesmas almofa-das devem ser preenchidas com laminados de madeira, com o acabamento “padrão” das intervenções que aqui propon-ho: selador ou verniz claro, deixando a madeira com aspecto quase cru, em sua cor natural; esta escolha bifacial enfatiza

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meu entendimento do tapa-vento como um elemento que ar-ticula exterior e interior.

O centro do novo tapa-vento terá um motivo especial, pois será adornado de maneira dialética, memorial. O Carmo de Mariana tem a sorte de conservar o topo do frontão do antigo tapa-vento, hoje carbonizado, exposto de maneira musealiza-da, mas com pouca visibilidade, pois consta em seu Corredor Lateral. Trata-se, talvez, do maior testemunho do incêndio de 1999 (junto com a cantaria interior, hoje explodida e dani-ficada), que pretendo ser melhor valorizado: Será, portanto, colocado no centro no novo tapa-vento como pretensa an-astilose, mas não uma anastilose verdadeira, pois a peça, que antes se localizava no topo do antigo tapa-vento, agora iria para o centro da composição, mais próxima ao olho do ex-pectador, de forma a lembrar, já na entrada do edifício, seu evento mais traumático. Seu posicionamento pretende con-ferir nova musealização à peça, construindo uma alegoria: o artefato original ainda é a única coisa que ornamenta o novo tapa-vento, e agora representa o renascimento do próprio ed-ifício, especialmente quando o sol exterior adentrar a Nave por meio do óculo/abertura onde será apoiado o objeto (o que alude, também, à ideia precedente de “semi-transparên-cia” conferida pelos vidros das portas do antigo artefato). Por fim, convém dizer que as folhas das portas serão apoiadas

Croquis de estudo: O

tapa-vento original, e

a análise da ornamen-

tação. Em sequência,

vários estudos de sim-

plificação volumétrica

que, curiosamente,

levam de maneira “au-

tomática” à proposta

realizada em 2000.

Isso demonstra que a

simplificação volumé-

trica não é um caminho

neste caso.

(Elaboração do autor)

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em duas hastes, ou “colunetas” metálicas, que articularão suas dobradiças. Estas hastes apoiam-se, em cima, na estrutura do novo Coro, e embaixo, em furos nas lastras de pedra, propor-cionando o contato mínimo da intervenção com o edifício, já que em apenas dois pontos do pavimento.

Altares laterais

Para o caso, comecei os procedimentos de projeto pensan-do sobre quais eram os elementos fundamentais de um al-tar: Mesa, Sacrário, e Nichos para o posicionamento da(s) imagem(ns). O retábulo, por sua vez, não me parece um item essencial do altar, mas sim, um elemento que unifica os de-mais, conferindo-lhes unidade o que, de certa maneira, não deixa de ser um “plano de fundo”.

Poderia, assim, desenhar uma intervenção a mais sutil pos-sível, realizando apenas os elementos fundamentais, deixando aparecer mais as imagens religiosas que qualquer pretenso re-tábulo. Porém, uma condição física do templo não o permitia: as paredes da Nave atrás dos altares laterais são compostas de nichos para, originalmente, encaixarem os altares laterais, posto que eram posicionados de maneira oblíqua (os nichos davam conta de abarcar os camarins dos Altares). A existência destes nichos, portanto, me constringe a compor um novo

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retábulo, pois é necessário um anteparo que oculte os nichos da alvenaria, por serem mal acabados e, sobretudo, provo-carem uma ideia oposta, visu-almente, da disposição oblíqua: Os nichos fariam a composição pesar para as laterais da Nave e, devido à sua profundidade, poderiam abarcar quase que to-talmente os elementos básicos, provocando certa sensação de “engolimento” das imagens e mesa de altar, por parte da al-venaria. Este resultado seria incoerente com a composição geral do templo, posto que os altares laterais, dispostos de maneira oblíqua, conferem um ar monumental ao mobiliário religioso como um todo, pois dão a sensação de abrirem-se para a Nave. Essa sensação de abertura, além de monumental, dirige o olhar para o Altar Mor, desenvolvendo uma relação de

unidade entre os três altares. A unidade é evidente ao decom-pormos a ornamentação, e repararmos que os elementos que compõem ambos os gêneros de altar são os mesmos, porém, com as devidas correções numéricas e escalares cabíveis à hi-erarquia de cada um, mesmo sabendo-se que os altares foram desenhados e arrematados por artífices em tempos diferentes (fato que, para mim, só corrobora a ideia de decoro da orna-mentação interna nos templos mineiros, mesmo até o começo do séc. XIX).

Constatar essa condição de unidade compositiva entre Altares Laterais e Altar Mor, me levou à seguinte reflexão: havendo unidade compositiva entre as diferentes hierarquias de altares, não poderia fazer um retábulo que não respeitasse os mes-mos princípios. Ao mesmo tempo, se a unidade compositiva

Croqui de estudo:

Análise da ornamenta-

ção nos antigos Altares

Laterais.

(Elaboração do autor)

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se dá, além de organização geral da composição, pela repetição de elementos isolados entre to-dos os altares, tal constatação afasta completamente a neces-sidade de se reconstruir algum elemento compositivo isolado, posto que aquilo que se perdeu nos antigos Altares Laterais se mantém intacto no Altar Mor.

Essa constatação flexibiliza a ideia de “perda” assumida a partir do incêndio, entendendo que a perda de elementos iso-lados não significa, por outro lado, a perda da gramática or-namentativa do edifício como um todo. A intervenção passa, dessa maneira, a entender que o restauro tem como foco o con-junto compositivo do Carmo, e não apenas os Altares Laterais, ou outro elemento isolado.

Com isso em mente, procedi à análise, propriamente dita, dos elementos compositivos dos Altares Laterais, sempre em con-fronto com o Altar Mor, identificando as Ordens Arquitetôni-cas, gêneros das colunas (colunas torsas) e quartelões, entabla-mentos, sanefas, etc., sobretudo em croquis analíticos.

Pude, desta maneira, elencar alguns recursos composicionais importantes: a ideia de amplitude dentro do Altar, que re-produz a ideia de amplitude realizada pelo conjunto, com a disposição de elementos de maneira oblíqua, guarnecendo o foco do retábulo (nicho central, ou camarim). Esse recurso é obtido pela colocação de elementos oblíquos ao plano do retábulo (capiteis de colunas), bem como à concavidade, em planta, do dito plano; marcações horizontais obtidas, pela Mesa de Altar; o campo do Falso Sacrário (um console onde se apoiam outros elementos litúrgicos, como crucifixos), que

Croqui de estudo: As-

similação dos elemen-

tos e organização plani-

métrica principais.

(Elaboração do autor)

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se delimita pelas mísulas dos elementos verticais; o campo dos nichos: camarim e nichos laterais; o amplo entablamento, in-terrompido apenas pelo arco do camarim; por fim, as sanefas que, na verdade, se arqueiam de maneira particular.

Também, os elementos verticais: quartelões e colunas torsas, com caneluras, encimadas por capitel compósito, todos pro-jetados para além do plano do retábulo, através das mísulas nos quais estão apoiados.

Feito isto, pude enfim valer-me dos mesmos elementos para compor os novos altares, observando sempre que cada el-emento é reconstituído, e não reconstruído. Dessa forma, as ideias retomadas pela intervenção não são literais, e sim metafóricas (como se verá adiante) e visuais.

Os novos Altares Laterais, portanto, partem do pressuposto de serem idênticos. Desenvolvem-se a partir de uma Mesa feita em chapa metálica, adjunta ao retábulo, este feito em argamassa armada em cimento branco; o material me parece adequado por ser visivelmente contemporâneo e, à distância, apresentar semelhança com o alvor dos antigos Altares, que permaneceram acabados com a camada preparatória em es-tuque. O campo do Falso Sacrário é feito em madeira, sempre em compensado com acabamento cru em selador ou verniz incolor ou amarelado. O camarim é acabado com o mesmo material, assim como o fundo dos nichos laterais; a ideia de amplitude, realizada por elementos oblíquos, é dada pela dis-posição igualmente oblíqua dos nichos laterais.

Todo o conjunto é emoldurado por uma armação metálica aparente, a ser pintada da mesma cor do novo pórtico do Coro, evidenciando unidade entre as intervenções contemporâneas. A gramática destes altares ainda se realiza pela ideia albertiana de ossa e complementa, sendo os elementos estruturais marcados em metal, e os elementos de “vedação”, em concreto branco, apresentando planos claramente estabelecidos.

A intervenção tem por princípio não recompor ou mesmo re-constituir qualquer coluna, pois considera uma coluna clássica o resultado de um sutil e intrincado desenho proporcional,

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que raramente permite uma versão “contemporânea” sua, posto que os princípios de composição contem-porâneos, pelo marcado caráter industrial e obje-tivo (forma-função), têm como pressuposto a sim-plificação de linhas, e isso é antagônico à gênese de elementos clássicos com-plexos, como colunas e capiteis.

Ainda assim, esta interven-ção entende certas liber-dades compositivas de outros elementos clássicos, como os quartelões, que nada mais são do que pi-lastras com formato autor-izadamente “fantasioso”, e pretende valer-se deles, entendendo que um altar não deva ser apenas um con-junto de elementos, dispos-tos de maneira “clara” ou “eficiente”.

Creio que intervir em um templo-edifício histórico significa dar atenção espe-cialíssima ao componente estético de uma interven-ção, a fim de legitimar as disposições litúrgicas e culturais de um espaço de culto. Sendo assim, decidi fazer aflorar um el-emento histórico da gênese deste edifício, de maneira artística, focando-me na questão das alegorias religiosas carmelitas.

Valendo-se do fato de os quartelões serem composições com liberdade mais “autorizada”, conforme a gramática clássica,

Perspectiva frontal do

Altar Lateral-tipo.

(Elaboração do autor)

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bem como ao fato de os elementos florais e fitomórficos con-stituírem-se como importantes alegorias de N. S. do Carmo, faço estes elementos aflorarem em minha própria intervenção: guarnecendo o camarim, será feita uma moldura com ondula-ções que remetem à marcação dos quartelões originais, sendo todo o conjunto erigido em madeira maciça (cedro ou abeto), e esculpido com motivos florais, por escultores da região.

Dessa forma, os novos Altares Laterais logram reconstruir ideias, e não formas, ao recompor o programa ornamentativo do Carmo de Mariana, em uma intervenção que visa prezar, por via de grande reflexão, pelas instâncias estética e histórica do binômio brandiano do restauro.

Intervenções pontuais: Luzes, som e forro

Feitas as considerações acima, parto para a etapa final de pro-jetos, uma vez decidido o escopo de minhas intervenções. A última coisa que decidi fazer é reduzir a poluição visual causa-da pelas luminárias e caixas de som afixadas à Nave e Capela Mor.

Para solucionar o problema, decidi esconder as caixas de som embutindo-as discretamente nos guarda-corpos dos púlpitos, posto que tratam-se de reconstruções; mesmo não concor-dando com os danos ao aparelho murário, provocados pelo projeto luminotécnico, entendo que o dano já foi feito, e decidi não eliminar os atuais pontos elétricos, mas sempre que pas-sar novas fiações, decidi que sejam feitas por conduítes exter-nos, muito discretos, afixados pontualmente ao revestimento do muro; as luminárias atuais são eliminadas, sendo propostas novas luminárias em material que ofereça certa relação de uni-dade com as demais intervenções por mim propostas. Seu de-senho é pautado pela maior simplicidade e discrição possíveis, sendo compostas de anteparo para ocultamento da lâmpada, e anteparos para reflexão da luz, direcionando-a para o alto e para baixo, de maneira específica. Por tal razão, são apresen-tados dois tipos de luminárias: um para serem embutidas no pórtico que emoldura o Coro (2 uns.), e outro para as paredes da Nave e Capela Mor (8 uns.).

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Por fim, convém mencionar, mas não especificar, o último ponto a se intervir: O forro que existia na Nave foi recompos-to volumetricamente após o incêndio, mas nunca se fez nada para se reconstituir a pintura que lá existia. Este é o ponto em que o arquiteto, como tal, já não deve intervir, mas apenas refletir e prescrever uma solução. Para o caso, não creio que se deva pretender reconstituir a figuração ou tema preexistentes; a proposta lançada em 2000, de se projetar opticamente a an-tiga pintura no forro soa interessante, mas é pouco factível, seja pela dificuldade em se posicionar projetores de baixo ao alto, seja pela grande quantidade de luz que adentra a Nave, e seja pelas poucas fotos de qualidade, do original.

Creio ser mais interessante delegar a tarefa de uma pintura ex novo, sobre o mesmo tema da entrega do Manto Carmel-ita feito por Nossa Senhora a São Simão Stock, a um artista contemporâneo. Convidaria alguém do porte de Sergio Ferro, cujo trabalho com figuração, paleta de cores e desconstrução da própria composição parece adequado ao Carmo.

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Corte perspectivado,

mostrando as novas

relações proporcionais

das interverções pro-

postas para o Nártex

e Coro: Tapa-vento,

pórtico metálico, e

balaustrada do Coro.

(Elaboração do autor)

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Corte perspectivado,

mostrando as novas

relações proporcio-

nais das interverções

propostas para a Nave:

Balaustrada da Nave e

Altares Laterais.

(Elaboração do autor)

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9Conclusão[conclusio]

Ouro Preto. Capela de

São Francisco de Assis.

(Desenho do autor)

O trabalho aqui apresentado procurou, através da discussão metodológica fomentada, promover a conciliação entre dife-rentes campos do conhecimento.

O campo do restauro, durante a graduação em Arquitetura, costuma despertar interesse de múltiplos perfis de estudantes, por diferentes razões. Isso se explica, em parte, por ser o próprio campo do restauro arquitetônico algo obrigatoria-mente interdisciplinar. Se, por um lado, é necessária a pesquisa histórica para embasar nossa visão acerca do edifício a se in-tervir, por outro, a intervenção não se faz sem o levantamento arquitetônico e estrutural, que dão conta de embasar alguma visão sobre a materialidade do objeto de estudo.

Na verdade, ambos os procedimentos analíticos dizem res-peito a uma compreensão cultural do edifício, obtida em igual peso pelos subsídios conceituais e materiais.

Esta necessidade, uma razão de ser da disciplina do Restauro, é uma via que oferece certa “segurança” para a tutela dos vari-ados bens materiais, mas que também promove dificuldade de aproximação por parte de um estudante médio, por conflitar com a ética formativa vigente em nossa contemporaneidade, fundada na especificidade da formação profissional. A limite, tal ética mercadológica, é uma contradição ao próprio campo arquitetônico como um todo, mas certamente se escancara de maneira gritante no restauro arquitetônico.

Com este trabalho, recorri a um estudo de caso que evidencia problemas de aproximação metodológica nestes dois funda-mentos da cognição cultural necessária para o restauro, repor-

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tando-os e refletindo sobre eles de maneira a apresentar novas soluções.

O que, seguramente, se pôde afirmar e, espero, de maneira pedagógica para meus colegas interessados nesta área, é que tanto o levantamento arquitetônico quanto a pesquisa históri-ca não são apenas medições e levantamento de documenta-ção, respectivamente.

Se a abordagem possui rigor metodológico, não significa afir-mar que a mesma seja um trabalho meramente técnico, e sim, algo que parte de um preparo cultural e crítico do restaurador, mas ao mesmo tempo aprimora a sua própria percepção com a finalidade da salvaguarda aos bens materiais, devendo estas análises serem mais ou menos extensas de acordo com as de-mandas de cada bem material.

Certamente isto não implica em afirmar que o arquiteto, ou qualquer outro tipo de “restaurador” deva ser capaz de, so-zinho, dar conta de todas as instâncias analíticas prelimin-ares ao restauro. Pelo contrário, todo procedimento de tutela deve ser feito após a formação de grupos de trabalhos com profissionais interdisciplinares (mesmo para este TFG, que pressupõe um trabalho individual, não foram poucas as inter-locuções com profissionais de diferentes áreas).

Mas não só: além de se formar uma equipe com arquitetos, engenheiros, historiadores, químicos, mestres pedreiros e canteiros, é também necessário que cada um deles possa dia-logar com as demais áreas, em algum nível. A mim muito sur-preende o quanto o arquiteto médio está despreparado para a pesquisa histórica, sabendo muito pouco sobre levantamento de dados, e menos ainda sobre como interpretá-los; da mesma forma, é assombroso como o historiador médio não sabe ir além das fontes escritas, deixando de lado o levantamento de iconografia ou, pior, não sabendo ler iconografias de épocas passadas, recorrendo a anacronismos atrozes para suposta-mente interpretá-las.

Tais equívocos são consequência de formações profissionais estreitas, em alguns casos decorrentes de pouco preparo cul-

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tural em todos os sentidos: pouca leitura, poucas aulas, pou-cas visitas a museus, salas de espetáculo, poucos dados... Em outros casos, os vícios decorrem de certa “displicência” de um perfil profissional que já se julga culturalmente preparado para intervir e opinar em assuntos sobre os quais se considera bom conhecedor a priori. É o caso do arquiteto bon vivant, que manifesta-se como insolente connaisseur de qualquer coisa, mas pouco pisa no canteiro de obras e jamais fará um levanta-mento arquitetônico ele mesmo, abaixo de sol e com a trena nas mãos. A figura que pinto não é um exagero. O arquiteto não-técnico, ou melhor, o arquiteto avesso aos conhecimentos técnicos, existe aos milhares e talvez seja o pior vício das es-colas de arquitetura brasileiras, quase todas, de perfil elitista como este.

Diante de tanta soberbia, mesmo com todo um aparato cul-tural à disposição, o connaisseur não se digna a render seu gênio a quase qualquer método cognitivo e de estudo. Como resultado esse arquiteto, quiçá o arquiteto médio brasileiro, é aquele pro-fissional que ainda não sabe fazer levantamento arquitetônico; mas também, ainda não conhece as Ordens Arquitetônicas nem as Modenaturas clássicas; ainda não conhece os materiais mais usados na construção civil; ainda não sabe conduzir um canteiro de obras com alguma autonomia...

Meu trabalho lança olhares sobre esta situação, de certa ma-neira, procurando demonstrar como o método (ou a busca do método adequado para cada situação) é instrumento cog-nitivo essencial para o projeto, especialmente no campo do patrimônio material e cultural.

No caso deste trabalho, o levantamento feito ofereceu condições para representar graficamente o edifício, ao passo que abriu meus olhos para componentes de sua gênese cul-tural, através da ornamentação, que dificilmente seriam nota-dos em uma simples campanha fotográfica, por exemplo. Es-tes vestígios culturais, por sua vez, puderam ser interpretados pela pesquisa documental e historiográfica feita, o que per-mitiu a formulação de uma série de hipóteses para embasar as intervenções, reformulando conceitos eminentemente so-ciológicos, mais que conceitos meramente formais.

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Neste sentido, é muito satisfatório constatar que tantos estu-dos aparentemente “complementares” à formação do proje-tista, durante a graduação, são na verdade subsidiários à forma-ção do arquiteto, de maneira ampla, indo desde a aproximação técnica, o desenho, e até mesmo aos preceitos culturais da História da Arte e História da Arquitetura.

Se, de alguma forma, as reflexões contidas neste trabalho constituem-se como algum tipo de percurso cognitivo válido, ao menos no recorte feito, vemos que o restauro e o pro-jeto também se valem efetivamente de importantes capítulos teóricos da arquitetura e de nossa própria sociedade, conse-guindo traduzi-los e interpretá-los inclusive para o projeto de linguagem contemporânea.

Este é o raciocínio que me leva à última reflexão deste cansativo trabalho, e é somente com ela que posso enfim concluí-lo:

Para o restauro arquitetônico, se, além do método cognitivo, os subsídios teóricos da arquitetura e diferentes artes são pressupostos essenciais, então é mesmo plausível que fazer uma intervenção de restauro não seja a reabilitação uma ima-gem específica, e sim, a materialização de ideias e operações mentais no campo da história e memória coletivas, o que im-plica no resultado formal não ser único, podendo falar por linguagem contemporânea a partir de conceitos clássicos e universais.

Trata-se, então, de uma questão dialética: Uma vez resguarda-da a integridade física de um bem material, dá-se que o escopo de uma intervenção de restauro passa a não ser o restauro de formas, e sim, de conceitos.

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