Textura Instrumental na Africa Ocidental

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Textura Instrumental na Africa Ocidental: a Peça Agbadza Marcos Branda Lacerda Este artigo trata preferencialmente de um fenômeno ainda pouco observado na dis- tribuição das partes fixas que constituem o conjunto instrumental Atsiã, da população Ewe do sul de Ghana: ao contrário do que se supõe normalmente na literatura musicolõgica sobre este gênero da música africana, os ins- trumentistas não responsáveis pela parte solis- ta podem introduzir eventualmente alterações estruturais na textura de uma peça determina- da. Procuro demonstrar também alguns concei- tos básicos da música africana ocidental, e fa- zer um paralelo entre a forma de organização da textura instrumental na müsica iorubá e ewe. Concluindo o trabalho, apresento uma colaboração à discussão sobre os princípios que regulam a orientação rftmica dos execu- tantes neste tipo de música. Conceitos básicos Em primeiro lugar, assume-se que to- dos os dançarinos e músicos de um conjunto instrumental da região costeira da África Oci- dental compartilham a sensação da presença de um valor periódico de duração, que cha- mamos de duração de referência.(l) Tal du- ração estaria submetida no decorrer de urna (1) ritmo binário duração de referência J duração de divisão fffi fffi peça invariavelmente a uma divisão rítmica binária ou ternâria. Realizações redundantes deste valor de duração seriam aquelas expres- sas respectivamente nos exemplos (1) e (2), através do que denominamos de durações de divisão. A definição de uma peça em razão da organização binária ou temária de um valor fixo de referência é importante no sentido em que os primeiros trabalhos sobre música per- cussiva da África Ocidental interpretavam as partes solistas de uma peça dada de maneira aditiva. A conseqüência disso foi uma ques- tionável diferença na conceituação teórica de partes instrumentais fixas e solistas, isto é, que estas partes funcionariam simultaneamente se- gundo preceitos teóricos diversificados.(2) Tanto o sistema binário quanto o temário admite uma divisão em duas fases da du~ão de referência: respectivamenten e r,.. No sistema temário esta divisão é menos freqüente. O tempo de uma peça é dado pelo tempo de articulação da duração de referência. Este valor situa-se normalmente entre) ,J. = 80 - 120. Desta forma é possível a introdução dos valores J (em binário) e 1em ternãrio, em configurações rítmicas assimétricas ou em encadeamentos. (2) ritmu t.e r né r i o duração de referência J. duração de divisão OliTI

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Textura Instrumental na Africa Ocidental:a Peça Agbadza

Marcos Branda Lacerda

Este artigo trata preferencialmente deum fenômeno ainda pouco observado na dis-tribuição das partes fixas que constituem oconjunto instrumental Atsiã, da populaçãoEwe do sul de Ghana: ao contrário do que sesupõe normalmente na literatura musicolõgicasobre este gênero da música africana, os ins-trumentistas não responsáveis pela parte solis-ta podem introduzir eventualmente alteraçõesestruturais na textura de uma peça determina-da. Procuro demonstrar também alguns concei-tos básicos da música africana ocidental, e fa-zer um paralelo entre a forma de organizaçãoda textura instrumental na müsica iorubá eewe. Concluindo o trabalho, apresento umacolaboração à discussão sobre os princípiosque regulam a orientação rftmica dos execu-tantes neste tipo de música.

Conceitos básicos

Em primeiro lugar, assume-se que to-dos os dançarinos e músicos de um conjuntoinstrumental da região costeira da África Oci-dental compartilham a sensação da presençade um valor periódico de duração, que cha-mamos de duração de referência.(l) Tal du-ração estaria submetida no decorrer de urna

(1)

ritmo binário

duraçãode referência Jduraçãode divisão fffi fffi

peça invariavelmente a uma divisão rítmicabinária ou ternâria. Realizações redundantesdeste valor de duração seriam aquelas expres-sas respectivamente nos exemplos (1) e (2),através do que denominamos de durações dedivisão.

A definição de uma peça em razão daorganização binária ou temária de um valorfixo de referência é importante no sentido emque os primeiros trabalhos sobre música per-cussiva da África Ocidental interpretavam aspartes solistas de uma peça dada de maneiraaditiva. A conseqüência disso foi uma ques-tionável diferença na conceituação teórica departes instrumentais fixas e solistas, isto é, queestas partes funcionariam simultaneamente se-gundo preceitos teóricos diversificados.(2)

Tanto o sistema binário quanto o temárioadmite uma divisão em duas fases da du~ãode referência: respectivamenten e r,..No sistema temário esta divisão é menosfreqüente.

O tempo de uma peça é dado pelo tempode articulação da duração de referência. Estevalor situa-se normalmente entre) ,J. =80 - 120. Desta forma é possível a introduçãodos valores J (em binário) e 1em ternãrio,em configurações rítmicas assimétricas ou emencadeamentos.

(2)

ritmu t.e r né r io

duraçãode referência J.duraçãode divisão OliTI

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Atingindo uma peça tempos extremamen-te rápidos, estes valores passam a ser omiti-dos. Ao contrário, no caso de tempos extre-mamente lentos, eles podem ser submetidos adivisões com valores inferiores.

Resta mencionar uma duração que possuia propriedade de interferir na regularidadebinária ou ternãria de uma peça, quando usadasucessivamente e não em configurações rítmi-cas assimétricas, a qual denominamos duraçãode contraste: l'. (em binário) e ) (em ternã-rio).

Sintetizando, a música instrumental daÁfrica Ocidental utiliza prioritariamente as se-guintes durações, que aqui são dispostas deacordo com as duas bases rítmicas possíveis.Estas durações podem ser entendidas tantocomo valores concretos, assim como valoresabstratos de orientação.

(3)

binário ternário

J duração de referência J.

I duração de contraste )

j' tI duração de divisão Jj f

As partes que compõem o conjuntoinstrumental percussivo da Africa Ocidental sedividem em dois grupos: o primeiro, do qualconstam partes instrumentais fixas, e o segun-do, constituído regularmente por um tamborsolista. Eventualmente, uma parte instrumentaldo primeiro grupo pode interagir diretamentecom o tambor solista, passando a fazer parte,em momentos previsíveis, do segundo grupo.A parte solista, normalmente responsável pelaregião mais grave do espectro sonoro, é reali-zada na maioria das vezes pelo tambor-mãe,conforme o costume africano de associar ofeminino aos tambores mais graves e maiores.As outras partes cabem aos tambores-suportee, também, de acordo com a constituição es-pecffica de uma orquestra, ídiofones. A parteeventualmente intercambiante é realizada porum tambor de resposta, conforme a musicolo-gia ewe,

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Textura instrumental

A música instrumental percussiva daÁfrica Ocidental se organiza acentuadamenteatravés da disposição periódica de configu-rações rítmicas. A esse tipo de estrutura cha-mamos modelo de periodicidade.(3) A inte-ração dos modelos de periodicidade quecompõem as partes do primeiro grupo instru-mental acima mencionado denominamos textu-ra. Os exemplos (4-5) referem-se à texturainstrumental das peças Kiriboto do repertóriobatá da cidade iorubã de Pobê, na RepúblicaPopular do Benin (exemplo (4» e Atsiagbe-ko,(4) que consta do repertório Atsiã da popu-lação ewe do sul de Ghana (exemplo (5)).

O conceito de modelo de periodicidadeaplica-se igualmente à parte solista. Em mo-mentos dados, o executante pode reter umaconfiguração rftmicarepetidamente, associan-do-a ao resto de uma estrutura linear variada.ou mesmo mantendo-a de forma isolada emcompleroentação ou contraste à textura. Mode-los de periodicidade contrastantes são comunsna parte do tambor-mãe na música iorubã.

O exemplo (6) foi extraído da execuçãode Lade Lade, do culto para Xangô emSakété.

Dependendo do grau de complexidadede uma peça, ou mesmo do estilo de uma de-terminada orquestra, a textura rítmica pode serorganizada de modo também a fornecer subsí-dios à permanente orientação dos executantessegundo um ciclo métrico dominante. Nosexemplos acima, observa-se um modelo de pe-riodicidade comum que serve a esta finalidade( ; 1 ~TI~J J 1),cuja freqüência nos dife-rentes repertórios de inúmeras etnias africanaslhe valeu a designação especffica de fôrmulapadrão (standard pattem).

Observe-se que no exemplo (6), a partedo akó consiste na repetição de umsegmento que ocupa toda a extensão métricacompreendida por um ciclo de 4 durações dereferência. Com efeito, a este instrumento ca-be regularmente a execução de configuraçõescorrespondentes ao ciclo métrico. Apenas DO

caso da fórmula padrão este instrumento cedeao omele abo a execução de um segmento deextensão métrica. As relações métricas no esti-lo ewe serão discutidas abaixo.

Na música batá iorubá, poucos são osexemplos em que uma unidade de tempo con-trastante com a duração' de referência sirva debase a uma configuração rítmica periodica-mente disposta nas partes texturais. Ou seja,as partes que compõem a textura de uma peçano repertório batá se referem, regularmente,

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(4) J. = ca, 86

omele akó

omele abo

eki

akó

(5)

gankogui

palmas

axatse

kagan

totodzi

kloboto

kidi

(6)

J. = 86-94-,,..-

~·LJ)]J) J J ]-=1r=: -....~.LJ [J J. ;. :1

\ -, rz"~.J JfIJmm:j, ~ r::

1. !TI >IJ >Tl >=fI :'I-,~ ~~,LJv[ J J. J. :1

~.J-' J [TIJ J l J J~t ~ r::::=.~m[TI rn rn .,r· .

J. = ca. 80 25-26

omele akó (. J J f J )TI ) J J J)iyailu It~

í·U~~~11 r ~::;..-

--, N ...., V ••••

eur açac de contraste iifijf:ili."óção de referÊncid ,. e » ,_ ~.

I I I I'---- 3: l. ----J '---- 3: Z ----J

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diretamente à duração de referência própria àbase rítmica binária ou ternária dessa peça.Desta forma, o contraste polirrftmico fica re-servado à relação entre eventuais momentos daparte do tambor-mãe e as partes texturais, co-rno no ciclo 27 do exemplo (8). .

O fenômeno rítmico de oposição entrepartes baseadas respectivamente na sucessãoperiódica da duração de referência e da du-ração de contraste, ou de seus respectivosmúltiplos, recebeu a denominação de ritmocruzado (cross rhythm). Praticamente, trata-sedas relações 2:3, 3:2, 4:3 e 3:4, respeitada aduração de divisão comum às duas partes.

O atributo "fixo" conferido às partestexturais justifica-se enquanto restrito ao con-traste entre sua relativa rigidez e o maior graude variabilidade na execução do solista. Nodecorrer de uma execução p<)dem ser usadasvariantes ornamentais, cuja introdução estariaa critério do músico tanto em razão de suapercepção das estruturas apresentadas pelo so-·lista quanto por uma contribuição indepen-dente à configuração geral da textura.

Desta forma, observa-se uma partici-pação extremamente exuberante do executantedo tambor éki da orquestra batá de Pobê, secompararmos ao tipo de execução do mesmotambor na orquestra de Sakété. Ao contrário,as estruturas do tambor-máe da orquestra deSakété contribuem muito mais ao enriqueci-mento da textura do que se apresentam comocontraste às partes fixas propriamente ditas.Particularmente a orquestra de Pobê apresentavariantes ornamentais nas partes dos tambo-res-suporte que implicam um adensamento daorganização da textura.

Antes de passar à descrição das va-riações de textura na peça Agbadza do re-pertório ewe, eu gostaria de revisar a afir-mação feita acima de que no exemplo (4) duaspartes - omele abo e akõ - ocupam a extensãointegral do ciclo métrico de quatro duraçõesde referência ( ). ).

A organização da parte do akõ sugereum espaçamento regular de uma configuração

(7)'I- 8

rr''--

"I,.I

3:4..I

..I

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rftmica com base em um múltiplo da duraçãode contraste própria ao ritmo temário ( J 1 ),que gera a relação 3:4 com a latente sucessãode 4 durações de referência:

Isoladamente, uma tal configuração rít-mica me parece extremamente complexa, con-siderando-se ainda que ela estaria sendo arti-culada cem base na seqüência de duração decontraste ( ) ), e não na seqüência de duraçãode referência forçosamente presente. A com-plexidade seria decorrente de o executante nãoarticular a batida isolada sobre a membranaaguda (batidas 3 e 6) no mesmo momento dearticulação de uma duração de divisão ( J' ),como na batida 9. Esta última batida, redun-dante em relação à seqüência de duração dedivisão, denota exatamente o caráter linear - enão cfclico - da parte do akó no interior daextensão métrica, preparando para mais um ci-cio métrico de 4 durações de referência. A re-lação polirrítmica 4:3 (ritmo cruzado) entre aparte do akó e o ciclo de duração de referên-cia, a meu ver neutralizada pelas batidas agu-das, estaria plenamente caracterizada isolan-do-se apenas as batidas simultâneas nas duasmembranas ( =*= ).

Esta discussão tem também como fina-lidade acentuar uma primeira diferenciação en-tre os estilos iorubá e ewe. O primeiro se ca-racteriza por uma textura inequivocamentepercebida em conjunção com a seqüência daduração de referência. No segundo, ao contrá-rio, ritmos cruzados apresentam-se de formapermanente, resultantes tanto da relação dasconfigurações fixas dos instrumentos suportequanto da relação destas com a seqüência deduração de referência. Além disso, mesmoadmitindo-se a relação polirrítmica no exem-plo iorubá acima, observe-se que o início dociclo polirrítmico 4:3 - isto é, o momento dearticulação simultânea das duas partes, coinci-de com o início da f6rmula padrão executadapelo omele abo. Na música ewe, como vere-mos abaixo, ciclos polirrítmicos podem ini-ciar-se em pontos distintos da fórmula padrão,o que a toma sem dúvida alguma peculiar en-tre os estilos percussivos africanos.

A peça Agbadza

David Locke apresenta as partes tex-turais de Agbadza de maneira ligeiramente di-ferente da versão registrada por RichardHiII.(5) Nesta não constam as palmas, e a par-te do tambor de resposta kidi configura-se deforma menos densa, mas estruturalmente idên-tica (isto é, com o mesmo relacionamento coma parte da campana, o gankogui). Na versãode Locke o tempo é de;. = 120, enquanto

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na versão de Hill de ). = ca.lOO. Final-mente, desta versão consta a participação dacabassa axatse,(6) da mesma forma como natextura de Atsiagbeko apresentada acima. Osexemplos (8-9) mostram a textura de ambasasversões. O conjunto é complementado pelotambor solista sogo, cuja participação serámencionadaabaixo.

(8) Agbnd z n (Hi ll)

gankogui

axatse

kagan

kidi

(9)

), ca.l00

Na gravação de HiII, a textura de Ag-badza mantém-se conforme o exemplo (8)durante os primeiros 59 ciclos métricos. Nociclo 60, o executante do kagan suprime otempo de uma duração de contraste, anteci-pando a relação de sua parte com a parte dogankogui. A configuração antecipada semantém até o ciclo 72, o que já significa umaconsiderável alteração estrutural da textura (v.exemplo (10».

Agbadz a (Lück(~)

gankogui

palma

kagan

kidi

(10)

gankogui

kagan

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A seguinte alteração se dá na parte dokidi, 3 cicIos inteiros após a alteração do ka-gano O executante antecipa pelo mesmo temposua parte no ciclo 64, estabelecendo um para-lelismo relativo com a parte do kagan até o ci-cIo 72. Com esta alteração se perdem elemen-tos essenciais de sua participação original natextura (v. exemplo (11)).

A pr6xima alteração, no ciclo 72, é a re-versão da parte do kagan à sua posição origi-nal na textura. O executante se utiliza do pro-cesso inverso, isto é, ele estende o tempo de

u ngankogu í 6(,

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duração da sua figura rítmica em mais uma du-ração de contraste, destruindo a relação de pa-ralelismo com o kidi até o ciclo 79, conformeo exemplo (12).

O executante do kidi estende-igualmenteo tempo de execução de sua figura rítmica nociclo 79, restabelecendo a relação anterior deparalelismo com o kagan. Ele passa a articularum novo ritmo simultâneo ao grupo 7'f queintroduz a figura do kagan. A partir do ciclo92, o tambor solista, o sogo, passa a tocar pa-ralelamente ao kidi, conforme o exemplo (13).

(12)

gankogui

kagan

kidi

(13) 81 - IO'/.

gankogui

kidi

sogo

\ /.r»

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(J J >]l > 1 J J)

p1tm ~7b,m)~tl~m/n~mJ

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Finalmente, no ciclo 108, kidi e sogopassam a articular simultaneamente uma con-figuração rítmica introduzida pelo motivo an-terior, permanecendo assim até o ciclo 125,quando a gravação chega ao fim através dagradual diminuição de volume. Note-se que asduas batidas acrescentadas são paralelas àconfiguração do kagan (v. exemplo (14)).

A peça Agbadza ilustra a riqueza derelações rítmicas contidas na textura do estiloewe. A notação adotada observa a presençate6rica de durações de referência, fáceis de se-

(14) 106- 125

gunkogui

kagan

kidi(sago)

rem deduzidas no estilo iorubá. Dispondo-seas configurações iniciais dos tambores suportesegundo suas qualidades métricas individuaisteríamos as seguintes opções apontadas noexemplo (15).

Para demonstrar o relacionamento po-lirrftmico das partes entre si e a seqüência deduração de referência, poderíamos substituirestes motivos pelos valores de duração de todaa sua extensão e posição métricas e reescreverteoricamente a textura inicial conforme osexemplos (16-17).

(15) ;1['1W rJTI D' jkagan ..,.,.,J;> --+

kidi fK!' )-2~~~ --+- ( .» .

(16) J. J. J. J.dur.ref.

kagan J) J. [J J.:> >

kidi ). J. [) ) J> > --- >----

(17)

duro r-ef .J. J. J. ). IJ. J. J. J.

kidi j J J d Jkagan .d· ~. J J

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A textura de Agbadza contém, portanto,um ritmo cruzado na razão de 3:4 entre a partedo kidi e a seqüência de duração de referên-cia, bem como de 4:3 entre a mesma parte e aparte do kagan.(7) Além disso, a parte do kaganrelaciona-se com a seqüência de duração dereferência de maneira regularmente sincopada.

A antecipação na parte do kagan no ciclo60, e a conseqüente alteração do comporta-mento do executante do kidi, provoca um em-pobrecimento da textura. A sua relação com aseqüência de duração de referência continuasendo regularmente sincopada, mas as relaçõesde ritmo cruzado anteriormente existentes fo-ram eliminadas. Considerando-se que ela nãopossui O caráter ornamental a que se referemaqueles que mais se ocuparam desta música, épossível que a alteração do kagan possa servista como um momentâneo "lapso" do execu-tante. No entanto, é interessante notar de quemaneira o conjunto resiste a essa mudança.

Eu gostaria ainda de ressaltar umarelação rítmica entre a seqüência de duraçãode referência e a seqüência resultante da de-composição dos valores de duração das confi-gurações do kagan e do kidi. O exemplo (18)demonstra um ritmo cruzado na razão de 3:2entre as durações de referência e aquelaseqüência que chamamos de seqüência sinco-pada de duração de contraste:(8)

Note-se que o ponto em que se encon-tram as batidas acentuadas do kagan e do kidi

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coincide com a batida 5 da f6rmula padrão;gerando para ouvidos não africanos a per-cepção equivocada da parte do gankogui, ex-pressa no exemplo (19). A posição da seqüên-cia de duração de referência em relação a estaconfiguração não coincide com aquela consi-derada correta.

O relacionamento entre a sequencia deduração de referência e a seqüência sincopadade duração de contraste é mais remoto do queaquele determinado pela extensão total dasconfigurações rítmicas, expresso nos exemplos(16-17). No entanto, ele passa a ser relevantelevando-se em conta também a contribuição dotambor solista.

A parte do sogo na gravação de Hill ca-racteriza-se pela execução de configuraçõessemelhantes às do ciclo 10 e 11 dos exemplos(20-21), que coincidem com a acentuação dokagan. A introdução desta frase, que podeapresentar-se bastante variada, se dá após aexecução de modelos de periodicidade, de ex-tensões diversas, muitas vezes conforme aacentuação do kidi (ciclos 12-13 e 14-15).Esta constante mudança(9) faz com que aseqüência sincopada de duração de contraste,comum a ambas as partes, emeIja como ele-mento articulador em oposição à seqüência deduração de referência, ou de durações corres-pondentes à extensão total das figuras dostambores suporte (ver exemplo (20».

(18) J. 1. J. J. IJ. J. J. J.j Z ! 4 s b

4 ) J 7TI > J ; J ,J l )oTJ > J J Jt

--+ , J ) O ~J ~JL.I

J ) J J J J>

(19)

duro ref.

kagan

kidi

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Em um destes segmentos o executantetransforma o motivo "a" em um modelo de pe-riodicidade (ciclos 60-61) e o expande atravésda retenção do grupo Jffi que introduz o moti-vo (ciclo 62). Neste momento, reforça-se aseqüência sincopada de duração de contrastecomo referência individual. Note-se que a in-trodução do motivo "a" se dá sempre no iní-cio do ciclo métrico, evidenciando a orien-tação métrica de acordo com a fórmula padrão.

(20) 10

ConclusãoO conceito de duração de referência

tem por finalidade substituir o termo "OO8t"dos estudos de língua inglesa sobre a músicaafricana. Este termo, comum entre músicosnorte-americanos, não é usado normalmentepor músicos de outras nacionalidades, apon-tando para uma certa impropriedade científi-ca em ser simplesmenté transposto para a aná-lise de um estilo musical alheio.

gankogu i tJ2 :D~~i J 1~2:?~~J.,~sogo .,JITj on [D. mn ~J[JjDTI DO J1).

uu L1JW U' r±±1r I f±ff Uff:[J u.r Ltl!QlagiU\) r' r r r=

gankugui

sogo

gankogui

sogo

(21)

sugo

j ] >JJ > J J J I; J >D > J j J

~ ) ~. J. l][)'ll J t· J. >1[>: -- J }. 1 ~. JJ r J }. li '( JJ ~.

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J >TI > J J J IJ J >TI ) J J J

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J

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(J J J. ). J

t[J ~[J [J ~[L J) JJ JJ Jj J-.....- "-'" '-'" ••.•......

A expressão "duração de referência",mesmo que imprópria para a prática musical,possibilita ainda a identificação do fenômenoem conjunto com elementos relacionados, co-rno as durações de contraste e divisão. Estasdesignações permitem ainda a sistematizaçãodos conceitos na análise das peças quecompõem um repertório africano, indiferente-mente da base rítmica binária ou temária desuas peças.f IO)

A música iorubá confirma a existência deum nível de orientação rítmica, expresso pelaseqüência de duração de referência. Nesta mú-sica, assim como em Agbadza e em outrosexemplos do repertório ewe, é primordialmen-te esta duração que rFgula os movimentos dadança de abertura do dorso e sucessão dospassos. Nas peças temarias, a seqüência deduração de referência se organiza metricamen-te de forma quatemária ( t· ou ~ ) quandoassociada à fórmula padrão, como demons-tram, no caso de Agbadza, as entradas regu-lannente na mesma posição da parte do sogo.

Com relação à legitimidade da referênciamental direta dos músicos ewe à seqüência deduração de referência, as opiniões são diver-gentes.t l I) As partes suporte conjuntamente ea alternância da referência do executante dosogo a elas tomam latente a seqüência sinco-pada de duração de contraste.

Neste sentido, a alteração estrutural daparte do kagan ganha relevância. Aceitando-seque o executante tenha realmente incorrido emum "lapso" no ciclo 60, devidamente "corri-gido" no ciclo 73, há que se observar que suaantecipação se dá em relação a esta seqüência.Isto é, o executante antecipa sua posição nociclo métrico em uma duração sincopada decontraste, e não em um valor da seqüência deduração de referência.

(22) duração de referência

duração sincopadade referência

duração de contraste

duraçáo sincopadade contraste

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Concluindo, eu gostaria de formularo exposto em um princípio de orientação e or-ganização rítmicas das partes texturais de umconjunto instrumental da África Ocidental,Segundo este princípio, cada parte de texturaestaria submetida exclusivamente às seqüên-cias de duração de referência e de contrasteem sua forma tética ou sincopada, conforme oexemplo (22).

A próxima relação possivel seria dadaem um nível métrico individual. Isto é, no ní-vel de distribuição regular de acentos dentroda respectiva seqüência de referência, comoexpresso nos exemplos (16-17) para o caso deAgbadza.

A diferença entre este tipo de abordageme aquele realizado por Locke é que nele asconfigurações de superfície poderiam ser re-metidas a um nível rítmico de referência indi-vidual profundo e abstratamente limitado àdisposição seqüencial-de apenas duas durações- a duração de referência e a de contraste. Arealização tética ou sincopada destas seqüên-cias determínária a posição destas configu-rações dentro do ciclo métrico.

Neste contexto, cabe mencionar a funçãoda f6rmula padrão. Por um lado, ela se subor-dina à projeção da duração de referência; poroutro, o seu arranjo linear interno permite in-ferir através do seqüenciarnento das três pri-meiras batidas a seqüência de duração de con-traste em posição tética, e, através do seqüen-ciamento das últimas quatro batidas, a seqüên-cia sincopada de duração de contraste.

Completando a comparação feita acimasobre os estilos iorubá e ewe, pode-se afirmarque no primeiro está excluída a referência àseqüência de duração de contraste em suaforma tética e sincopada nas partes texturais,enquanto que no segundo estas relações sãopossíveis em caráter permanente.

(J j J J J

~[J J J ) J'\Jl, )

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Notas

(I) Os conceitos aqui apresentados, referentes às duraçõesempregadas, foram originalmente desenvolvidos em minhadissertação de doutorado sobre a música para tambores batánas cidades de Pobê e Sakété da República Popular do Benin(Lacerda 1988:183-5). Para uma boa retrospectiva sobre.teoria da música africana, v. Kubik (1984). Uma abordagemj',~~~~i98~í~sentada aqui parcialmente, encontra-se em(2) V. discussão a esse respeito em Pantaleoni (1972:54-56) etambém as transcrições de Jones (1959).(3) V. Lacerda (1988:189-95) e Locke: (1982:239-240,exemplos 21-22).(4) Exemplo em Locke (1983:35).(5) Este estudo baseia-se em transcrição feita a partir da exce--lente gravação de Richard Hill, com a qual me OC1Jpei a títulode preparação para uma pesquisa de eampo na Africa Oci-dental. Na parte do sogo, parcialmente transcrita nos exem-plos 22-23, não foram consideradas as variações de timbre.A versão de Locke foi extraída de seu artigo (1982:235).(6) V. Ladzekpo et aL(1980) para uma sumária descrição dosinstrumentos ewe.(7) A relação de ritmo cruzado entre o kidi e o kagan passadesapercebida na análise de Locke (J982:233). Por outro Ia-do, ele vê na configuração do kagan .um .exemp~o de ritmocruzado horizontal, no qual as duas primeiras batidas sU$en-riam uma divisão em (luas fases da duração de referência

r7J ••n.) e as três últimas uma divisão tcmária.Em outras palavras, Locke considera O ritmo cruzado passí-vel de realização horizontal (a) e vertical (b).

D.m [:1IL(a) (b) L:l.-

(8) A seqüência sincopada de duração de contraste é vista porLocke (f982:237) como uma forma de realização do que eledenomina de "consistent offbeat accent".(9) Esta parece ser uma característica efetiva de Agbadza,uma vez que Pantaleoni (1972:60) faz a mesma observaçãosobre a atuação do sogo.(10) Note-se que os estudos de Locke (1982,1983) e Panta-leoni (1972) se referem exclusivamente às peças tcrnãrias dorepertório atsiâ.(11) V. Locke (1982:245, nota 7) e Pantaleoni (1972:54-8)para.wna exposição resumida desta discussão.

ReferênciasRichard Hill, Drums of Vlest Africa - Ritual Music of Ghana.

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