Texto uns óculos para a rita

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“Uns óculos para a Rita” Rita, olha as formigas! Rita, olha as formigas! Anda ver como elas carregam migalhas de pão - chamava a Marta. Rita encolhe os ombros. - Olha as casas delas debaixo do chão, parecem o túnel do metropolitano. Rita tornava a encolher os ombros e corria pelo jardim fora. - Tem cuidado com os pés. Estás a pisar as entradas dos formigueiros. Está a pisar as minhas formigas. - Não pisei nada! Não tapei nada! - barafustava a Rita irritada, e voltava a correr. - Pisaste, és má! – insistia a amiga. Rita então sentava-se, calada, num banco.

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“Uns óculos para a Rita”

Rita, olha as formigas! Rita, olha as formigas! Anda ver como elas carregam migalhas de pão - chamava a Marta.Rita encolhe os ombros.- Olha as casas delas debaixo do chão, parecem o túnel do metropolitano.Rita tornava a encolher os ombros e corria pelo jardim fora.- Tem cuidado com os pés. Estás a pisar as entradas dos formigueiros. Está a pisar as minhas formigas.- Não pisei nada! Não tapei nada! - barafustava a Rita irritada, e voltava a correr.- Pisaste, és má! – insistia a amiga.Rita então sentava-se, calada, num banco.E pensava “Por que é que a Marta tem a mania de inventar histórias de formigas que não existem?”Na escola, a professora dizia-lhe:- Rita, olha para o quadro!Ela olhava. Com o pau de giz, a professora ia desenhando bolas e risquinhos uns a seguir aos outros que os meninos copiavam com o lápis para o papel. No fim da aula, a senhora percorria as carteiras, examinava os cadernos.Não sabes que o a tem uma perna Rita?

Porque não puseste o ponto no i?Onde é que tens a cabeça?- Não vi.

- Hoje, de castigo não vais ao recreio.- Duas lágrimas tristes faziam o quadro mais cinzento e escondiam numa nuvem os AS e os IS.

Em casa , ao apertar o casaco e- clic- o botão caiu para o chão. Justamente o botão do meio do casaco novo. Era véspera de Natal. A mãe tinha feito as malas, o pai tinha chamado o táxi e o irmão já estava dentro do elevador. Iam para o Porto para casa dos avós. Rita, de gatas, procurava, procurava. Parecia que tinha pernas, o diabo do botão!Despacha-te ou chegamos atrasados. Rita, de gatas, procurava, procurava.- Vamos perder o comboio por tua causa!E Partiram. Que bom, uma emana de férias com um casaco novo. O pior era que toda a gente dizia:- Rita, que aconteceu ao teu botão?Quando regressaram, de noite, o irmão acendeu a luz da sala e exclamou:- Rita, olha o teu botão!- Não o vejo. És um mentiroso!- Não vês ali? – insistiu o pai?- Não!Então, ele apanhou-o e pousou-lho na mão.

Poucos dias depois, a Rita teve uma surpresa ao sair da escola. O pai estava lá e falava com a professora.- Hoje vou com a Rita ao médico.Depois de esperar numa sala cheia de gente, mandaram-nos entrar para o consultório com uma cadeira alta de encosto, muitas luzes, vidrinhos, aparelhos. Ao fundo havia um quadro branco com letras pretas: O contrário da escola, preto com letras brancas. O médico também tinha um ponteiro e apontava:- Quantas pernas tem esta letra? Sabes o nome dela? Parecia que as letras dançavam.

Eram difíceis de fixar. E estavam tão longe….Rita esfregou os olhos.

- E agora? – perguntou o médico.Finalmente eram letras maiores, mais fáceis de distinguir.- Tem três pernas para a direita…. É um E.E pôs-lhe diante dos olhos uns vidros redondos. Então, como que por magia, dos traços imprecisos surgiu um F tão preto, tão nítido, que nem podia acreditar. - Experimenta esta lente. Agora aquela.Com a qual vês melhor?

Rita foi escolhendo.- Vai dar-me uns óculos? – perguntou ela.- Não, vou passar-te uma receita e a seguir vais comprá-los a um oculista.

O oculista tinha balcões transparentes com armações lá dentro. Havia armações redondas, ovais e rectangulares. Cor-de-rosa, castanhas, pretas, prateadas e douradas.- Quero uns óculos a fingir de tartaruga, como os do pai – pediu a Rita.Mas eram muito pesados e grossos para a sua cara estreita de menina.- Vou experimentar uns dourados e redondos. Mas não gostou de se ver com eles e acabou por escolher uma armação de plástico da cor da pele.- Amanhã já estão prontos – garantiu a empregada de balcão enquanto passava o talão.

Qual não foi o seu espanto quando viu uma senhora, mesmo à sua frente, a colocar uns vidrinhos nos olhos.- Olhe que fica cega! Olhe que risca os olhos! – gritou a Rita. Sempre ouvi dizer que os olhos só se podem tocar com os cotovelos.Todos se riram à sua volta.- Estes são os meus óculos – disse a senhora.- São lentes de contacto – explicou o oculista.- Lentes muito pequeninas que se colocam directamente nos olhos. Só se tiram para dormir.

Ah! – compreendo. As lentes de contacto são os óculos das pessoas vaidosas que não gostam de esconder os olhos….

- Mas os óculos não escondem nada, até servem de moldura a uns lindos olhos – Emendou, com orgulho, o oculista. No dia seguinte, já com os óculos novos, a Rita, como de costume, foi correr para o quintal.Até que de repente, parou.

_ Que foi? – perguntou a amiga.- São as formigas. Não quero pisar os formigueiros. Olha as palhinhas que elas carregam para casa.- Mas tu nunca ligaste às formigas.- Nunca tinha reparado nelas. Vamos dar-lhes migalhinhas de pão.

Na escola, A Rita descobriu que o A é diferente do O, porque o A tem uma perna para baixo e o O tem uma perna para cima. E nunca mais se esqueceu da pintinha do i.

Em casa é ela a primeira a encontrar os botões que saltam da roupa, as agulhas que escapam das linhas e os berlindes que rebolam até a um canto escondido.De vez em quando tira os óculos para se lembrar como o mundo era antes, mas por pouco tempo, porque com eles tudo é muito mais bonito.

E à noite, às escuras no seu quarto, sonha que quando for grande há-de trabalhar com um microscópio, que tem lentes muito fortes, para descobrir as mais pequenas coisas que existem e que ninguém vê a olho nu, e com um telescópio, para descobrir estrelas e planetas distantes onde até hoje ainda ninguém chegou.

Luísa Ducla Soares, ”Uns óculos para a Rita”- Civilização