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    Em 1980, no encontro anual da AmericanAnthropological Association, Victor Witter

    Turner, Edward Bruner e Barbara Myerhoorganizaram um simpsio sobre antropologiada experincia. Deste simpsio resultaria eAnthropology of Experience(1986), com o arti-go, Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay inthe Anthropology of Experience, de Turner(1986).1 Trata-se de um dos seus ltimos textos.Publicado trs anos aps a morte do seu autor e no mesmo ano da publicao de alguns dos

    escritos mais conhecidos da antropologia ps-moderna2 , o subttulo poderia evocar, paraum leitor desavisado, a imagem de um testamen-to com os conselhos de um velho antroplogo,do alto da sua experincia, alertando os maisnovos para riscos iminentes. Certamente no essa a idia que Turner tem de experincia.

    Se no ensaio de Turner algum conselhohouver, certamente ele no seria da ordem de

    no corram riscos, ou evitem perigos. A eti-mologia de experincia, ressalta o autor, derivado indo-europeuper, com o signicado literal,

    1. Tambm em 1980, ao discutir os usos da metforado drama nas cincias sociais, Cliord Geertz ([1980]1983:29) destaca o conceito de experincia como sen-do uma categoria central para o entendimento da con-tribuio de Victor Turner ao campo da antropologia.

    2. Aqui me rero aWriting Culture: e Poetics and Poli-tics of Ethnography(Cliord e Marcus 1986) eAnthro-pology as Cultural Critique: An Experimental Momentin the Human Sciences(Marcus e Fischer 1986).

    JOHN C. DAWSEY

    Professor Livre-Docente do Departamento deAntropologia da USP e coordenador do Ncleode Antropologia da Performance e do Drama(Napedra/USP).

    justamente, de tentar, aventurar-se, correr ris-cos. Experincia e perigo vm da mesma raiz.

    A derivao grega,perao, passar por, tambmchama a ateno de Turner pelo modo comoevoca a idia de ritos de passagem.

    A idia de passagem no deixa de ser su-gestiva. De novo, retomando o incio do par-grafo anterior, se nesse ensaio algum conselhohouver, provvel que ele seja da espcie queBenjamin descobriu na atividade do narrador:uma sugesto de como continuar uma histria

    (Benjamin 1985b: 200). Porm, no se trata detestamento. Mais se parece com um manifesto.Um detalhe: nascido em 1920, Turner no erato velho assim quando escreveu este texto.

    Num momento de inexo no campo daantropologia, trs imagens do passado articu-lam-se ao presente, inscrevendo-se no ttulo deum ensaio: Dewey, Dilthey e drama. A terceiraimagem no deixa de evocar o jovem Turner

    e suas reexes originrias, sados do redemoi-nho dos anos de 1950, quando ele iniciava-senas pesquisas de campo.

    A gura de Dilthey tambm aparece comdestaque na introduo de From Ritual to e-atre: e Human Seriousness of Play, na qualuma premissa se anuncia: a antropologia daperformance uma parte essencial da antro-pologia da experincia (Turner 1982b: 13).

    Atravs do processo de performance, o contidoou suprimido revela-se Dilthey usa o termoAusdruck, de ausdrucken, espremer. Citando

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    Dilthey, Turner descreve cinco momentosque constituem a estrutura processual de cadaerlebnis, ou experincia vivida: 1) algo aconteceao nvel da percepo (sendo que a dor ou o

    prazer podem ser sentidos de forma mais inten-sa do que comportamentos repetitivos ou derotina); 2) imagens de experincias do passadoso evocadas e delineadas de forma aguda; 3)emoes associadas aos eventos do passado sorevividas; 4) o passado articula-se ao presentenuma relao musical (conforme a analogiade Dilthey), tornando possvel a descoberta econstruo de signicado; e 5) a experincia se

    completa atravs de uma forma de expresso.Performance termo que deriva do francs an-tigoparfournir, completar ou realizar intei-ramente refere-se, justamente, ao momentoda expresso. A performance completa umaexperincia (Turner 1982b: 13-14).

    A imagem de Dilthey tambm fulgura eme anthropology of performance (Turner1987b). O prprio Turner apresenta-se nes-

    te artigo como um dos precursores da viradaps-moderna na antropologia. O perigo, dizTurner, no vem dos chamados ps-moder-nos, mas das tentativas clssicas e recentesde fazer da antropologia uma das variantes dascincias naturais, uma cincia do ser huma-no sem vida, despojada de experincia vivida mais um sintoma de uma poca em que osignicado que no h signicado.3 Da a

    importncia de Dilthey. No mundo contem-porneo a busca do sentido torna-se cada vezmais difcil. As anidades entre a antropologiaps-moderna e antropologia da experincia(e da performance) de Turner revelam-se numdesvio: a ateno do antroplogo volta-se aosrudos e elementos estruturalmente arredios.

    Nesta apresentao, levando a srio a se-riedade humana da brincadeira [e Human

    3. Este comentrio, sobre uma poca em que o signi-cado que no h signicado, aparece em Turner(1986: 43).

    Seriousness of Play] (Turner 1982a), eu gostariade brincar com o modelo de drama socialdo autor, explorando uma possvel meta-nar-rativa de Dewey, Dilthey and Drama: An Essay

    in the Anthropology of Experience. Embora euno esteja exatamente contribuindo para ate-nuar algumas das crticas aos usos da noode drama social que vira, de acordo comGeertz, uma frmula para todas as estaes(Geertz [1980] 1983: 28) , intriga-me vercomo o prprio texto de Turner ilumina umaforma dramtica. Alguns rudos que surgem,quem sabe, do lmen do seu ensaio podem sus-

    citar questes em relao noo de experi-ncia. Haveria em Turner a nostalgia por umaexperincia que se expressa melhor na noode erfahrungdo que na de erlebnis? Anidadesentre a antropologia de Turner e o pensamentobenjaminiano merecem ateno. Assim comoalgumas diferenas. Antes de tudo isso, porm,convido o leitor a um exerccio de rememo-rao do percurso de Turner, que vai, como

    veremos, do ritual ao teatro, e do liminar aoliminoide.

    I Ritos e dramas sociais

    primeira vista, o percurso de Turner suge-re algo como um esquema evolucionista: do ri-tual ao teatro. No princpio, o ritual. Por outrolado, questes do pensamento teatral colocam-

    se desde o incio. Inclusive, a me de Turner,Violet Witter, que era atriz, foi uma das funda-doras do Teatro Nacional Escocs nos anos de1920. Em Schism and Continuity in an AfricanSociety, Turner supe que ritos de passagem,assim como dramas sociais, evocam uma formaesttica que se encontra na tragdia grega (Tur-ner [1957] 1996). As atenes de Turner paraelementos estruturalmente arredios eviden-

    ciam-se desde suas primeiras pesquisas, luzdas discusses de Max Gluckman sobre ritosde rebelio (Gluckman 1954), de Van Gen-

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    nep sobre ritos de passagem ([1908] 1960),e, certamente, de Violet Witter sobre teatro.

    Roland Barthes dene teatro como uma ati-vidade que calcula o lugar olhado das coisas

    (Barthes 1990: 85). Essa idia pode ser interes-sante para se discutir a prpria antropologia,particularmente como ela se manifesta em Vic-tor Turner. As anidades entre procedimentosetnogrcos e ritos de passagem so bastanteconhecidas. Ambos envolvem estratgias quevisam produzir efeitos de estranhamento emrelao ao familiar. A partir de deslocamen-tos do lugar olhado das coisas, conhecimento

    produzido e adquire densidade. A sacada deTurner foi ver como as prprias sociedades sa-caneiam-se a si mesmas, brincando com o peri-go, e suscitando efeitos de paralisia em relaoao uxo da vida cotidiana. Isso atravs de ritos,cultos, festas, carnavais, msica, dana, teatro,procisses, rebelies e outras formas expressi-vas. Universos sociais e simblicos se recriam apartir de elementos do caos.

    Nos anos de 1950, vendo como as aldeiasNdembu ganhavam vida em momentos de cri-se, Victor Turner elaborou o modelo de dramasocial que lhe serviria como instrumento deanlise, inclusive nas formulaes posterioresda antropologia da performance e antropologiada experincia. Discusses sobre ritos de passa-gem foram fundamentais para as formulaesde Turner. De acordo com o modelo de Van

    Gennep, ritos de passagem envolvem trs mo-mentos, ou sub-ritos: 1) de separao, 2) detransio (liminares), e 3) de reagregao. Nomodelo de drama social elaborado por Turner,os trs momentos desdobram-se em quatro: 1)ruptura, 2) crise e intensicao da crise, 3)ao reparadora, e 4) desfecho (que pode levar harmonia ou ciso social).

    Estruturas sociais entendidas, sob o sig-

    no da antropologia social britnica, comoconjuntos de relaes sociais empiricamenteobservveis esto carregadas de tenses. Em

    determinados instantes, tenses aoram. Ele-mentos no resolvidos da vida social se mani-festam. Irrompem substratos mais fundos douniverso social e simblico. As relaes sociais

    iluminam-se a partir de fontes de luz subter-rneas.

    Victor Turner produz um desvio metodo-lgico no campo da antropologia social brit-nica. Para se entender uma estrutura, precisosuscitar um desvio. Busca-se um lugar de ondeseja possvel detectar os elementos no-bviosdas relaes sociais. Estruturas sociais reve-lam-se com intensidade maior em momentos

    extraordinrios, que se conguram como ma-nifestaes de anti-estrutura. O antroplogoprocura acompanhar os movimentos surpreen-dentes da vida social.

    Experincias que irrompem em tempos eespaos liminares podem ser fundantes. Dra-mas sociais propiciam experincias primrias.4Fenmenos suprimidos vm superfcie. Ele-mentos residuais da histria articulam-se ao

    presente. Abrem-se possibilidades de comuni-cao com estratos inferiores, mais fundos eamplos da vida social. Estruturas decompem-se s vezes, com efeitos ldicos. O riso fazestremecer as duras superfcies da vida social.Fragmentos distantes uns dos outros entramem relaes inesperadas e reveladoras, comomontagens. Figuras grotescas manifestam-seem meio a experincias carnavalizantes (Turner

    1967b: 105-106). No espelho mgico de umaexperincia liminar, a sociedade pode ver-se asi mesma a partir de mltiplos ngulos, expe-rimentando, num estado de subjuntividade,com as formas alteradas do ser.5

    No espelho da anti-estrutura, guras vis-tas como estruturalmente poderosas podem

    4. Turner discute a noo de processo primrio, termo

    sugerido por Dario Zadra, em seu artigo sobre Hidal-go e a revoluo mexicana (Turner 1974a: 110).5. A metfora do espelho mgico aparece em vrios

    escritos de Victor Turner (Turner 1987a: 22).

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    mostrar-se como sendo extremamente frgeis.Inversamente, personagens estruturalmentefrgeis transformam-se em seres de extraor-dinrio poder (Turner 1969b: 94-130). De

    fontes liminares, imagens e criaturas ctnicasirrompem com poderes de cura para revitalizartecidos sociais.6 Entidades ambguas ou anma-las, consideradas como sendo estruturalmenteperigosas, energizam circuitos de comunicaoatroados.7 Abrem-se passagens em sistemasclassicatrios estticos. Surgem reas de con-tgio. Espaos hbridos. Escndalos lgicos.

    Nos momentos de suspenso das relaes

    cotidianas possvel ter uma percepo maisfunda dos laos que unem as pessoas. Despoja-das dos sinais diacrticos que as diferenciam eas contrapem no tecido social, e sob os efeitosde choque que acompanham o curto-circuitodesses sinais numa situao de liminaridade,pessoas podem ver-se frente a frente. Sem me-diaes. Voltam a sentir-se como havendo sidofeitas do mesmo barro do qual o universo so-

    cial e simblico, como se movido pela ao dealguma oleira oculta, recria-se. A essa experin-cia Turner d o nome de communitas.8

    Da experincia no lmen, propiciada pordramas sociais, surgem poderosos smbolos

    6. O terceiro momento dos dramas sociais, referente reparao de crises, propcio, de acordo com Turner,para a manifestao de ritos de cura (Turner 1968;1967a: 359-393).

    7. A discusso de Mary Douglas sobre o pangolim emrituais da cultura lele oferece um exemplo desse fen-meno (Douglas [1966] 1976: 202-204).

    8. Turner encontra nas discusses de Durkheim sobreefervescncia social um exemplo de liminaridade ecommunitas (Durkheim [1912] 1989: 456). Com-munitas, termo inspirado pelas reexes de MartinBuber, no deve ser confundido com qualquer prin-cpio de organizao social em comunidade, ou comformas de solidariedade descritas por Durkheim.

    Trata-se de uma experincia que irrompe de modoespontneo a partir de momentos de interrupo dasformas de organizao social (Turner 1969b: 126-127).

    multivocais.9 Assim se articulam diferenas. Osos que tecem as redes de signicado unicam-se em tramas carregadas de tenses.

    II Do liminar ao liminoide

    A publicao de From Ritual to eatre: eHuman Seriousness of Play, em 1982, marcauma inexo no pensamento de Victor Turner.Aqui se encontram as suas primeiras formula-es sobre uma antropologia da performance,um campo de estudos que surge nas interfacesda antropologia e do teatro nos anos de 1970,

    a partir do encontro e colaborao entre Vic-tor Turner e Richard Schechner. Uma de suasarmaes particularmente reveladora. Ataqui as cincias sociais praticamente s tm sepreocupado com questes de estrutura e de-sempenho de papis, diz Turner. A sua prpriaabordagem, ele prossegue, procura focar osmomentos de interrupo de papis (Turner1982c: 46).

    Esta questo retomada em e Anthro-pology of Performance, onde Turner apontaas diferenas entre a abordagem de Erving Go-man e a sua.10 Ao passo que Goman apre-senta-se como um observador do teatro da vidacotidiana, Turner se interessa particularmentepelos momentos de suspenso de papis, ouseja, pelo meta-teatro da vida social.11

    Em Liminal to liminoid, in Play, Flow,

    Ritual: An Essay in Comparative Symbology,Turner procura comparar sistemas simblicosde culturas que se desenvolveram antes e depois

    9. Dois artigos de Turner discutem a polifonia dos sm-bolos e o modo como eles surgem ou so elaboradosem meio aos dramas sociais (Turner 1974a: 98-155;1974c: 60-97).

    10. De Goman, ver, especialmente, e Presentation of Self in Everyday Life(1959).

    11. Turner diz: se a vida cotidiana pode ser consideradeacomo uma espcie de teatro, o drama social pode servisto como meta-teatro... (Turner 1987b: 76; minhatraduo).

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    da revoluo industrial (Turner 1982c:30). Apalavra liminoid, inventada por Turner, apre-senta a terminao oid, derivada do grego eidosque designa forma e sinaliza semelhana.

    Liminoid, portanto, semelhante sem ser idn-tico ao liminar.

    As idias sobre gneros liminoides de aosimblica haviam sido anunciadas, embora noelaboradas, no prefcio de Dramas, Fields andMetaphors: Symbolic Action in Human Society, in-dicando a direo de suas pesquisas posteriores:

    Eu gostaria de sugerir a idia de que aquilo que

    temos tratado como sendo os gneros sriosde ao simblica ritual, mito, tragdia, ecomdia (no seu nascimento) esto pro-fundamente implicados em vises repetitivasdo processo social, ao passo que os gneros queoresceram desde a Revoluo Industrial (as ar-tes e cincias modernas), embora menos sriosaos olhos da populao em geral (cincia pura,entretenimento, interesses da elite), tm apre-

    sentado um potencial maior para transformaros modos como as pessoas se relacionam entreelas e o contedo de suas relaes. Sua inun-cia tem sido mais insidiosa. Tendo-se em vista ofato de se manifestarem em espaos exteriores sarenas centrais da produo industrial, e de seconstiturem analogamente como liminoidesem relao aos processos e fenmenos limina-res de sociedades tribais e agrrias, a sua prpria

    exterioridade as libera da atividade funcionalem relao ao pensamento e comportamentodos membros da sociedade. Constituem para osseus agentes e audincias uma atividade optativa a ausncia de obrigaes ou constrangimentosadvindos de normas externas lhes confere umaqualidade prazerosa que favorece a sua absoronas conscincias individuais. Desta forma, o pra-zer transforma-se em assunto srio no contexto

    de mudanas inovadoras (Turner 1974b:16; mi-nha traduo).

    Nas culturas pr-industriais, esferas de ati-vidade ritual no se separam do trabalho: ritu-al trabalho. E trabalho no se desvincula davida ldica da coletividade. Nessas sociedades,

    particularmente, a brincadeira constitui umdos componentes centrais dos processos de re-vitalizao de estruturas existentes. O espelhomgico dos rituais propicia uma poderosa ex-perincia coletiva.

    Sociedades industrializadas produzem o quepoderamos chamar de um descentramento efragmentao da atividade de recriao de uni-versos simblicos. Esferas do trabalho ganham

    autonomia. Como instncia complementar aotrabalho, surge a esfera do lazer que no dei-xa de se constituir como um setor do mercado.Processos liminares de produo simblica per-dem poder na medida em que, simultaneamen-te, geram e cedem espao a mltiplos gneros deentretenimento. As formas de expresso simb-lica se dispersam, num movimento de dispo-ra, acompanhando a fragmentao das relaes

    sociais. O espelho mgico dos rituais se parte.Em lugar de um espelho mgico, poderamosdizer, surge uma multiplicidade de fragmentose estilhaos de espelhos, com efeitos caleidos-cpicos, produzindo uma imensa variedade decambiantes, irrequietas e luminosas imagens.12

    As diferenas e semelhanas sinalizadas porTurner em sua anlise exploratria dos fen-menos liminares e liminoides so resumidas a

    seguir:1) Fenmenos liminares tendem a predo-minar em sociedades tribais ou agrrias, ca-racterizando-se por princpios que Durkheimchamou de solidariedade mecnica. Fenme-nos liminoides ganham destaque em socieda-des de solidariedade orgnica, em meio aosdesdobramentos da Revoluo Industrial.

    12. Cf. nota 5, para uma referncia do uso da metforado espelho mgico em Turner. A metfora do esti-lhaamento de um espelho mgico inferida desuas discusses.

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    2) Fenmenos liminares tendem a emergirde uma experincia coletiva, associando-se aritmos cclicos, biolgicos e scio-estruturais,ou com crises que ocorrem nesses processos.

    Fenmenos liminoides geralmente apresen-tam-se como produtos individuais, embora osseus efeitos freqentemente sejam coletivos oude massa.

    3) Fenmenos liminares integram-se cen-tralmente ao processo social total, constituindoo plo negativo, subjuntivo e anti-estruturalde um todo que se constitui de modo dial-tico. Fenmenos liminoides desenvolvem-se s

    margens dos processos centrais da economiae poltica. Trata-se de manifestaes plurais,fragmentrias, e experimentais que ocorremnas interfaces e interstcios do conjunto de ins-tituies centrais.

    4) Fenmenos liminares tendem a apre-sentar caractersticas semelhantes s que seencontram nas discusses de Durkheim sobrerepresentaes coletivas. Trata-se da produo

    de smbolos que evocam signicados intelectu-ais e emotivos comuns a todos os membros dogrupo. Embora se manifestem freqentemen-te como a anttese das representaes coletivasprofanas, no deixam de compartilhar dassuas feies coletivas. Fenmenos liminoidestendem a apresentar caractersticas mais idios-sincrticas, associando-se a indivduos e gru-pos especcos que freqentemente competem

    num mercado do lazer, ou de bens simblicos.Nesse caso, as dimenses pessoais e psicolgi-cas dos smbolos tm preponderncia sobre asdimenses objetivas e sociais.

    5) Fenmenos liminares, mesmo quandoproduzem efeitos de inverso, tendem a re-vitalizar estruturas sociais e contribuir para obom funcionamento dos sistemas, reduzindorudos e tenses. Fenmenos liminoides, por

    outro lado, freqentemente surgem como ma-nifestaes de crtica social que, em determina-das condies, podem suscitar transformaes

    com desdobramentos revolucionrios (Turner1982c: 53-55).

    III O drama de Dewey, Dilthey, and

    Drama...

    Agora, passemos ao ensaio que serve comopr-texto desta apresentao. Invocando o es-prito liminoide que, de acordo com Turner,caracteriza boa parte da atividade intelectualno mundo contemporneo, como tambm aseriedade humana da brincadeira (que talveza caracterize um pouco menos) sou tentado,

    como j falei no incio desta apresentao, abrincar com o modelo de drama social do au-tor, aplicando-o ao prprio Dewey, Dilthey,and Drama: An Essay in the Anthropologyof Experience. O artigo, de fato, apresentaelementos de um drama, que podem ser pen-sados em termos dos momentos de ruptura,crise e intensicao da crise, ao repara-dora e desfecho. No drama do artigo e

    aqui preciso ateno a prpria metforado drama social de Turner aparece como mo-mento importante de reparao da crise,junto s contribuies de Dilthey e Dewey. Oelemento de ruptura pode ser identicadocom a Revoluo Industrial. E a crise e in-tensicao da crise com as diculdades en-contradas para ressignicar o mundo. Trata-sede uma crise de ao simblica. O indivduo

    carrega a responsabilidade de dar sentido aoseu universo. Os gneros expressivos foramdesmembrados e perderam poder no mundocontemporneo. Foram colocados s mar-gens dos processos sociais centrais. As noesde drama social e liminaridade (e suas fontesde poder) so importantes para se buscar umdesfecho feliz. Este vem com uma discussosobre a experincia de communitas suscitada

    pelo teatro!Tomando os quatros momentos do dra-ma social como elementos meta-narrativos

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    (codicados a, b, c, e d), as seqnciasdo ensaio de Turner podem ser analisadas daseguinte forma:

    [C1] AO REPARADORA: DEWEY.Inicia-se com uma discusso de Dewey, autorestratgico por sua nfase na articulao dastradies do passado ao presente (o tempo doagora). Tradio no precisa (nem deve?) virarsacrifcio. Assim como a tradio, a expressoartstica no se desvincula do cotidiano. Trata-se de uma celebrao da experincia cotidiana(ordinary experience). Dewey aparece, no con-

    texto do ensaio, como um dos atores centraisque contribuem para uma ao reparadora dacrise de fundo, ainda a ser delineada. Porm,Turner ir propor algumas reformulaes emrelao sua noo de experincia.

    [C2] AO REPARADORA: DILTHEY.A primeira reformulao vem de Dilthey, quepropicia uma distino fundamental entre

    mera experincia e umaexperincia. Aquise introduz a noo de erlebnis, experinciavivida. A etimologia de experincia remete noo de perigo, etc. Os elementos do mode-lo de experincia discutidos na introduo deFrom Ritual to eatreaparecem, embora node modo esquemtico. Dilthey surge comouma poderosa gura ancestral, tal como asque irrompem durante ritos de cura entre os

    Ndembu.13

    [B] CRISE E INTENSIFICAO DACRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE DESIGNIFICAR O MUNDO. Surgem as pri-

    13. Como j foi visto, Dilthey uma gura recorrentenos artigos de Turner. Na introduo de From Ritu-al to eatre: e Human Seriousness of Play, Turner

    imagina a frase O Professor Dilthey aprovaria comoum selo nal de aprovao das tentativas de gerar-se uma antropologia e um teatro da experincia (Cf.Turner 1982b: 18).

    meiras referncias ao que se poderia ver, nostermos do modelo de drama social, como acrise e intensicao da crise. Turner discuteas diculdades de se recriar universos sociais e

    simblicos no mundo contemporneo, ondeindivduos se vem sozinhos e abandonadosdiante da responsabilidade de darem sentidos suas vidas. Trata-se de uma crise de aosimblica. Como essa discusso segue apre-sentao da noo de erlebnis, seria possvelperguntar se Turner no estaria se vendo diantedos limites dessa idia de experincia.

    [C3] AO REPARADORA: A MET-FORA DO DRAMA SOCIAL DE TUR-NER. Turner parece sinalizar algo nessa direo:a unidade de experincia de Dilthey privilegiaquestes de cultura e psicologia. Talvez a men-o psicologia seja crucial. Em Liminal toliminoid... Turner observa que smbolos limi-noides tendem a ser de natureza pessoal e psi-colgica em vez de objetiva e social. At que

    ponto erlebnisse restringe experincia vividado indivduo? O artigo de Roger D. Abrahams,que segue ao de Turner em e Anthropologyof Experience, bastante explcito nesse senti-do (Abrahams 1986: 45-72). Abrahams suge-re cautela nos usos da noo de experincia,produzindo um distanciamento reexivo emrelao ao entusiasmo demonstrado por ela aolongo da histria cultural dos Estados Unidos.

    De qualquer forma, num movimento que re-vela o carter propositivo de seu ensaio, Turnerprocura demonstrar a relevncia de sua noode drama social para questes de experin-cia. Dramas sociais podem propiciar formasde acesso a substratos do universo social e sim-blico. Ritos que surgem como expresses deao reparadora (terceiro momento do dramasocial), assim como ritos que inauguram mo-

    mentos de ruptura (primeiro), criam o pal-co para que estruturas de experincia nicas(erlebnis) possam ocorrer. Isso devido s fontes

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    de poder (e perigo) que se associam ao lmen.Enm, a prpria noo de drama social, emconjunto com as idias de Dilthey e Dewey,apresenta-se, na organizao do artigo, como

    elemento crucial para a reparao da crise.

    [A] RUPTURA: REVOLUO INDUS-TRIAL; e [B] CRISE E INTENSIFICAODA CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDEDE SIGNIFICAR O MUNDO. Turner ob-serva: os rpidos avanos na escala e comple-xidade da sociedade, particularmente aps aindustrializao, zeram passar essa congu-

    rao liminar unicada pelo prisma da divisodo trabalho (...) reduzindo cada um dos seusdomnios sensoriais a um conjunto de gnerosde entretenimento que orescem no tempo delazer da sociedade, no mais no lugar central decontrole (Turner 1986: 42). Sinaliza-se nessetrecho, com a meno industrializao, aquiloque pode ser entendido como o primeiro mo-mento do drama social: a ruptura. A seguir,

    o autor evoca processos associados ao que pode-mos interpretar como a crise e intensicao dacrise, referindo-se aos gneros especializadosamputados que surgem do desmembramen-to (sparagmos) das formas de ao simblica.Mas Turner tambm sugere perspectivas paraum desfecho feliz: em meio fragmentaodos gneros, h sinais de uma busca para recu-perar dimenses suprimidas da experincia do

    numinoso, caracterstica do ritual arcaico.

    [C1] e [C3]. AO REPARADORA:DEWEY E DRAMA SOCIAL.A seguir, Tur-ner retoma a discusso de Dewey de que aforma esttica do teatro inerente prpriavida sociocultural. Mas, interpreta Dewey luz da noo de drama social. A natureza te-raputica e reexiva do teatro tem suas fontes

    na liminaridade. Trata-se de uma unicao deposies (as de Turner e Dewey, inicialmentedistintas) para a ao reparadora.

    [D] DESFECHO: COMMUNITAS. En-m, o desfecho. As idias de Dewey, comple-mentadas por investigaes na neurobiologia,contribuem para mostrar que o teatro e outros

    gneros de performance podem suscitar experi-ncias de communitas. Um senso de harmoniacom o universo se evidencia e o planeta inteiro sentido como uma communitas (Turner 1986:43). Pouco antes de chegar a esse momento cli-mtico, Turner comenta que o ritual e as artesperformativas derivam do cerne (corao)liminar do drama social at mesmo, comoacontece freqentemente em culturas decli-

    nantes, em que o signicado de que no hsignicado. Completou-se um percurso. Dacelebrao da experincia cotidiana (ordinaryexperience) de Dewey chegou-se, em compa-nhia do prprio Dewey, experincia extraor-dinria que interrompe o cotidiano, dando-lhesentido. E, sob a inspirao de Dilthey, o gran-de esprito protetor ancestral, foi-se da meraexperincia a umaexperincia.

    Enm, esse exerccio de interpretao dameta-narrativa dramtica do texto de Turnersugere um forma:

    Frase inicial Ttulo Dewey, Dilthey, e drama

    C1 Ao reparadora Dewey

    C2 Ao reparadora Dilthey

    B Crise...

    C3 Ao reparadora Drama (Turner)

    A Ruptura Revoluo industrialB Crise...

    C1 e C3 Ao reparadora Dewey e drama (Turner)

    D DesfechoCommunitas(Dewey, Dilthey e drama)

    Esta codicao poder evocar as partes deuma pea musical que so repetidas, variadas,combinadas, e retomadas.14 A analogia pro-pcia. Conforme o modelo de experincia de

    14. Agradeo ao meu orientando, Andr-Kees de MoraesSchouten, mestrando do Programa de Ps-Graduaoem Antropologia Social da USP, por esta observao.

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    Dilthey, citado no incio desta apresentao, adescoberta e construo do signicado tornam-se possveis na medida em que o passado arti-cula-se ao presente numa relao musical. Na

    frase inicial do ttulo irrompem trs imagensdo passado: Dewey, Dilthey, e... o jovem Tur-ner (que elaborou o modelo do drama social).Estas, poderamos sugerir, articulam-se a umpresente que vivido como uma crise: a di-culdade liminoide de ressignicar o mundo.15No caso de Dewey e Dilthey, particularmente,trata-se de vozes ancestrais oriundas de subs-tratos mais prximos aos de onde ocorrem os

    abalos originrios da ruptura, a RevoluoIndustrial. No desfecho, ressoam novamenteDewey, Dilthey e drama agora em voz uns-sona. At mesmo alguns rudos evocativos dacrise retornam neste nal. Vamos a eles.

    IV Rudos

    Um nal feliz: podemos ter experincias

    de communitas no teatro. Porm, o desfechodo artigo como revela a frase de Turner sobreculturas declinantes no elimina os rudos.Seria surpreendente para o prprio Turner, par-ticularmente, se os eliminasse: desfechos harmo-nizantes (ou at unissonantes) tendem a oferecerapenas solues parciais e provisrias. Mesmosem recorrer a Bertolt Brecht, Antonin Artaud,Nelson Rodrigues, Jos Celso Martinez Corra

    ou outras expresses do teatro contemporneo,h no prprio texto de Turner imagino no seulmen, em meio a inmeras sugestes de comocontinuar a histria razes para estranhar-se odesfecho. Se h nos escritos de Turner uma esp-cie de nostalgia por experincias de communitas,

    15. Observa-se que o ensaio foi publicado, como vimosanteriormente, no mesmo ano em que ganha fora,

    no campo da antropologia, a percepo de uma crisedas representaes atravs da publicao de doisdos textos mais conhecidos da antropologia ps-mo-derna. Cf. nota no. 2.

    tambm l se encontram bons indcios de caute-la em relao s suas manifestaes. Ressalta-senesse autor, alm da busca por communitas, asua ateno aos rudos. Um lembrete: aquilo que

    interessa a Turner o que ele chama de com-munitas espontnea, e no as manifestaes su-perciais, discutidas no captulo quatro de eRitual Process, como communitas ideolgica ecommunitas normativa (Turner 1969a: 131-165).

    Hoje temos acesso a experincias liminoides,cujas origens remetem s dimenses do liminar,diz Turner. At que ponto possvel num mun-

    do ps-revoluo industrial o acesso direto a ex-perincias liminares no est claro. No nal deLiminal to liminoid... Turner parece buscarna noo de ow (uxo) de Csikszentmihalyi noo que se refere ao envolvimento total dapessoa naquilo que ela faz algo parecido com acommunitas (Csikszentmihalyi1990). O desfe-cho daquele artigo em contraste com Dewey,Dilthey and drama... anti-climtico: com-

    munitas algo que se manifestaentreindivdu-os, enquantoowacontece no indivduo. Flowpertence ao domnio da estrutura.

    Duas questes se oferecem:1. A nostalgia de Turner pela experincia

    liminar que os rituais em sociedades de soli-dariedade mecnica podem proporcionar teriaa ver com uma percepo aguda, embora noexplicitada, dos limites da noo de erlebnis,

    experincia vivida? Creio que a tentativa de ar-ticular a noo de dramas sociais discussosobre erlebnissugere que sim.

    2. Rondando esse ensaio no seu lmen,quem sabe no haveria outra categoria deexperincia discutida por Dilthey erfahrung?No seria esta categoria mais apropriada doque a de erlebnispara iluminar a nostalgia deTurner por uma experincia coletiva, vivida em

    comum, passada de gerao em gerao, e ca-paz de recriar um universo social e simblicopleno de signicado?

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    V Benjaminianas

    As anidades entre as vises de Victor Tur-ner a respeito de fenmenos e processos limina-

    res, e a de Benjamin sobre erfahrungchamamateno. Ambas evocam a idia de passagem.Lembremos aqui, diz Gagnebin, que a pa-lavra Erfahrung vem do radical fahr usadoainda no antigo alemo no seu sentido literalde percorrer, de atravessar uma regio duranteuma viagem (Gagnebin 1994: 66).

    Experincia, no sentido de erfahrung, for-ma-se atravs da associao de dois saberes: da

    pessoa que vem de longe, vista como quemtem muito que contar; e da pessoa que passoua vida sem sair do seu pas e que conhece suashistrias e tradies. Benjamin escreve:

    Se quisermos concretizar esses dois gruposatravs dos seus representantes arcaicos, po-demos dizer que um exemplicado pelocampons sedentrio, e outro pelo marinhei-

    ro comerciante. (...) A extenso real do reinonarrativo, em todo o seu alcance histrico, spode ser compreendido se levarmos em contaa interpenetrao desses dois tipos arcaicos. Osistema corporativo medieval contribuiu espe-cialmente para essa interpenetrao. O mestresedentrio e os aprendizes migrantes traba-lhavam juntos na mesma ocina; cada mestretinha sido um aprendiz ambulante antes de

    se xar em sua ptria ou no estrangeiro. (...)No sistema corporativo associava-se o saberdas terras distantes, trazidos para casa pelosmigrantes, com o saber do passado, recolhidopelo trabalhador sedentrio (Benjamin 1985b:198-199).

    A interpenetrao desses dois saberes talcomo acontece nos ritos de passagem requer

    a transformao do estranho em familiar, e, aomesmo tempo, um movimento inverso capazde provocar, em relao ao familiar, um efei-

    to de estranhamento. No relato benjaminiano,tanto a gura do sedentrio como a do estran-geiro produzem estranhamento: uma, no casodo estrangeiro, suscitando distncia espacial, e

    outra, no caso do sedentrio, distncia tempo-ral. Atravs do saber recolhido pelo sedentrio,o passado faz estremecer o presente.

    Um detalhe chama ateno: a relao entreo mestre sedentrio e os aprendizes migrantesse constitui numa ocina de trabalho. Numambiente como esse, ao mesmo tempo em queelementos extraordinrios iluminam o cotidia-no, este no deixa de provocar os seus prprios

    efeitos de interrupo sobre as teias do ex-traordinrio. Esse detalhe, parece-me, pode sersignicativo, iluminando algumas das margensdo pensamento de Turner.

    Mas, antes de lidar com essas ou outrasmargens, deve-se ressaltar uma segunda a-nidade entre as vises dos dois autores: a dis-cusso de Turner sobre o enfraquecimentoda experincia de liminaridade no mundo

    contemporneo ressoa nas anlises benjami-nianas sobre o declnio da grande tradionarrativa, e debilitao de uma experinciacoletiva, comunicvel, e tecida na passagemdas geraes (erfahrung). Sabedoria, diz Ben-jamin, se expressa num conselho a respeito decomo continuar uma histria. Na medida emque as pessoas j no passam pelas mesmasexperincias, ou, se passando, no conseguem

    articular o presente ao que foi transmitido degerao em gerao como no caso dos sol-dados que voltavam mudos da guerra , a ca-pacidade de dar conselhos entra em declnio.Resta-lhes a sua experincia vivida, erlebnis e, diante da fragmentao da experinciacoletiva, a perplexidade em relao ao sentidode suas vidas.

    H, ainda, uma terceira anidade. Ao depa-

    rar-se com as novas formas narrativas do cine-ma, da fotograa, etc., Benjamin encontra, emsua dimenso mais profunda, algo que evoca

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    a grande tradio narrativa: o seu no-acaba-mento essencial (Gagnebin 1985:12). Trata-se da abertura dessa tradio para as mltiplase espantosas possibilidades interpretativas.

    Como exemplo de narrativa tradicional, Ben-jamin apresenta a histria de Psammenites,contada por Herdoto. E diz:

    Herdoto no explica nada. Seu relato dosmais secos. Por isso essa histria do antigoEgito ainda capaz, depois de milnios, desuscitar espanto e reexo. Ela se assemelhaa essas sementes de trigo que durante milha-

    res de anos caram fechadas hermeticamentenas cmaras das pirmides e que conservamat hoje suas foras germinativas (Benjamin1985b: 204).

    De modo semelhante, nos substratos maisfundos do entretenimento e dos novos gnerosde ao simblica, Turner descobre as fontes dopoder liminar. As formas expressivas que ger-

    minaram aps a Revoluo Industrial tambmpropiciam manifestaes do caos criativo, ca-pazes de surpreender, com efeitos de estranha-mento, as conguraes do real, energizandoe dando movncia aos elementos do universosocial e simblico. Embora estejam s margensde processos centrais de reproduo da vidasocial, estas expresses liminoides apresentamum potencial ainda maior do que as formas ar-

    caicas para promover a transformao das rela-es humanas.

    VI. Margens das margens

    Antes de abandonar esta apresentao, ar-risco algumas questes:

    1. O que dizer do rudo a frase sobre cul-turas declinantes em que o signicado de

    que no h signicado provocado por Tur-ner no momento em que o seu ensaio chega aum nal feliz? Ressalta-se que o rudo ime-

    diatamente precede algumas de suas arma-es mais entusiasmadas sobre communitas.16Como interpret-lo? Haveria aqui uma hesita-o, e, quem sabe, um indcio da cautela de

    Turner diante de manifestaes de communi-tas, particularmente em meio fragmentaodas relaes sociais e ao estilhaamento do es-pelho mgico do ritual?17

    2. Considerando-se que a experincia decommunitas tende a irromper s margens dasociedade, o rudo produzido no texto de Tur-ner seria proveniente de um duplo desloca-mento s margens das margens?18

    16. Um senso de harmonia com o universo se evidenciae o planeta inteiro sentido como uma communitas(Turner 1986: 43).

    17. Tendo-se em vista o movimento de expanso do uni-verso liminoide e seus efeitos de descentramento nasesferas de ao simblica evocativos, quem sabe, deuma espcie de revoluo copernicana sob a gide domercado , haveria nas expresses de nostalgia porliminaridade e communitas uma reao centrpeta,

    ou, ainda, uma tentao ptolomaica? At que pontoa nostalgia pelo liminar manifesta processos de for-mao, num mercado do lazer, de centros de podersimblico para controle e uso do caos criativo quese associa aos gneros liminoides de expresso?Em meio ao estilhaamento, ressalta-se a perplexida-de dos indivduos. Mas, haveria como reviver as con-dies do teatro antigo? O que implicaria transferiro peso da responsabilidade de atribuio de signi-cado do indivduo para o grupo (Turner 1986: 37)?Como reconstituir a coeso do universo simblico em

    meio proliferao das possibilidades interpretativas?E, nessas circunstncias, como reviver experincias decommunitas sem que elas virem experincias coleti-vas em que o signicado a falta de signicado? En-m, uma questo de fundo: a constituio de centrosgravitacionais num universo liminoide, e seus efeitosde atrao sobre as margens.

    18. O que irrompe s margens das margens? Turnercomparaumaexperincia, no sentido que lhe dadopor Dilthey, a uma pedra num jardim de areia Zen

    (Turner 1986: 35). Quando pedras viram areia na r-bita de uma reao centrpeta em meio ao possvelofuscamento da viso talvez seja preciso um duplodeslocamento do lugar olhado das coisas. Isso, para

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    3. Se a experincia liminar caracteriza-sepelo efeito de estranhamento que se produzem relao ao cotidiano, este rudo pode sina-lizar um estranhamento s avessas, provocado

    em relao ao extraordinrio?19 Isso, a partirde um cotidiano estranhado? No haveria aquiuma anidade com rudos produzidos em de-terminadas ocinas de trabalho, tais como asdos mestres sedentrios e aprendizes migrantesdiscutidas por Benjamin, conforme vimos an-teriormente?

    4. Nas ocinas medievais, Benjamin se de-para com a abertura da grande tradio narrati-

    va para as mltiplas e espantosas possibilidadesinterpretativas. Se o modelo de drama social deVictor Turner, assim como o modelo de ritosde passagem de Van Gennep, nos leva a pen-sar em termos de uma oposio dialtica entredois momentos, o cotidiano e o extraordinrio,o caso dessas ocinas no apresentaria um de-sao metodolgico, levando-nos a falar de umcotidiano extraordinrio ou extraordinrio co-

    tidiano, que se congura num quase susto ouespanto dirio? E de um espanto que se alojanuma tradio? Walter Benjamin escreve: Atradio dos oprimidos nos ensina que o estadode exceo a regra (Benjamin 1985c: 226).

    Ao tentar distinguir a sua abordagem da deErving Goman, Turner evoca, como vimos,uma distino entre teatro e meta-teatro. Aopasso que Goman toma interesse pelo teatro

    da vida cotidiana, Turner procura focar os mo-mentos de interrupo, os instantes extraor-dinrios, ou seja, o teatro desse teatro. Turner

    descobrir elementos que se distinguem ou escapaminclusive da periferia carnavalizante do movimentoordenador e para que o extraordinrio no viremera experincia.

    19. s margens das margens, abrem-se perspectivas num

    universo liminoide para que se possa detectar os efei-tos de estranhamento que se produzem em relaono apenas ao cotidiano, mas ao extraordinrio tam-bm.

    observa o meta-teatro da vida social.20 Mas, asocinas descritas por Benjamin podem suge-rir a necessidade de se juntar Goman e Tur-ner para tratar de um meta-teatro cotidiano.

    Anal, espelhos mgicos tambm tm as suasocinas. E viram estilhaos. Nas irrupes doextraordinrio tambm se encontra a experin-cia do ordinrio.

    Enm, de Dewey a Turner e de volta.E uma pergunta de rodap (virando texto):

    seriam determinadas manifestaes liminoi-des com destaque aos rudos que ocorrem smargens das margens dos processos centrais

    mais is, em sua dimenso mais profun-da, ao legado da experincia liminar do quecertas tentativas de reviver uma experincia decommunitas em meio ao esfacelamento das re-laes?21 Num mundo como esse, onde a ex-perincia da fragmentao torna-se cotidiana,os efeitos de estranhamento e a percepo doinacabamento das coisas ganham densidade.

    PassagensDepois de haver brincado com Dewey,

    Dilthey, and Drama..., sou tentado tambm abrincar com esta apresentao que est pres-tes a desmanchar. Nesse caso, porm, intriga-me ver como ela ilumina uma espcie de rito

    20. Cf. nota 11.

    21. Estou parafraseando a frase de Jeanne Marie Gagne-bin, que, numa anlise do ensaio benjaminiano sobrea obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica,escreve: Essas tendncias progressistas da arte mo-derna, que reconstroem um universo incerto a partirde uma tradio esfacelada, so, em sua dimensomais profunda, mais is ao legado da grande tradi-o narrativa que as tentativas previamente conde-nadas de recriar o calor de uma experincia coletiva(Erfahrung) a partir das experincias vividas isoladas

    (Erlebnisse). Ela completa: Essa dimenso, queme parece fundamental na obra de Benjamin, adaabertura (Gagnebin 1985: 12; Benjamin 1985a:165-196).

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    de passagem aqum do drama. Tomando ostrs momentos dos ritos de passagem comoelementos meta-narrativos (codicados a,b, e c), as seqncias da apresentao po-

    dem ser analisadas da seguinte forma:

    [A] RITOS DE SEPARAO. PREPA-RANDO O LEITOR PARA O CONTATOCOM UMA TRADUO.Aps uma breve in-troduo, cujo intuito de preparar o leitor parauma passagem, inicia-se num lugar relativamen-te familiar: os escritos de Victor Turner a respeitode ritos e dramas sociais. Aos poucos, como num

    rito de separao, adentra-se em territrios me-nos conhecidos, apresentando ao leitor algunsdos estudos de Turner sobre a Antropologia daPerformance e Antropologia da Experincia lu-gar perigoso onde se localiza boa parte da obrano traduzida de Turner. Assim se prepara o lei-tor para o contato com uma traduo.

    [B1] RITOS DE TRANSIO. BRIN-

    CANDO COM UMA META-NARRATIVADO TEXTO TRADUZIDO. A seguir, comoquem se encontra num rito de transio, brin-ca-se com o estranho, nele suscitando um efei-to de estranhamento. A brincadeira consiste emexplorar o lmen do texto traduzido de Turner. Oprprio Turner (nosso esprito ancestral) apre-senta-se como um guia convel, mostrando-noscomo voltar ao lugar familiar de onde havamos

    sado: os seus escritos sobre ritos e dramas sociais,e experincias de liminaridade e communitas.

    [B2] RITOS DE TRANSIO. BRIN-CANDO S MARGENS DAS MARGENS.Porm, no voltamos ao lugar familiar. A ex-perincia de liminaridade ganha densidade.No apenas permanecemos em meio s discus-ses do texto de Turner sobre a Antropologia

    da Experincia, mas, na companhia de Wal-ter Benjamin (pessoa relativamente estranha antropologia), exploramos os seus rudos e

    margens.22 Quer dizer, vamos s margens dasmargens. Uma ressalva: esta lio aprendemoscom o prprio Turner. O lmen pode ser umlugar privilegiado para se observar um fenme-

    no, tal como um texto.

    Enm, esta apresentao revela caractersticasde um rito de passagem. Falta-lhe, porm, orito de reagregao [C]. Trata-se de uma pas-sagem para um estado de passagem. No nal,multiplicam-se as manifestaes de um gnero dediscurso caracterstico de ritos de transio: asperguntas sem respostas boas parafazerpensar.

    Tradues, como a que vem a seguir, sopassagens. Requerem a transformao do es-tranho em familiar ao mesmo tempo em queprovocam no familiar um efeito de estranha-mento. Desenvolvem-se no lmen. Este termo,como Turner gostava de lembrar, vem do latimantigo, que evoca o lugar de surrar e debu-lhar. A idia de extrair gros ou sementes su-gestiva. No lmen se encontram sementes que

    conservam as suas foras germinativas taiscomo as dos relatos de Herdoto.A imagem de uma ocina, que vimos discu-

    tindo nesta apresentao, tambm interessan-te. Na ocina do tradutor interpenetram-se doissaberes, e duas lnguas uma que vem de longe,e outra supostamente sedentria. Ambas brin-cam com o perigo. Na entrada da ocina vemescrito: tentar, aventurar-se, correr riscos.

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