Texto escrito por Karl Kraus para a primeira apresentação ...burguesa diante desses lábios...

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Texto escrito por Karl Kraus para a primeira apresentação, organizada por ele, em 29 de maio de 1905.

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O amor das mulheres contém, como a caixa

de Pandora, todas as dores da vida, mas elas são recobertas por papel dourado e

têm tantas cores e aromas que não po-demos reclamar nunca por ter aberto a

caixa. Os aromas mantêm a velhice longe e resguardam até seus últimos momentos

a força inata. Toda felicidade vale a pena, e morro um pouco com esses aromas doces

e suaves que sobem da caixa má; apesar disso, minha mão – que a idade já faz tre-

mer – ainda encontra a força para girar a chave proibida. O que é a vida, a fama,

a arte! Troco tudo isso pelas invejadas horas nas quais minha cabeça, nas noites

de verão, ficava deitada sobre um peito moldado pelo cálice do rei de Tule – como

este, agora desaparecido…Félicien Rops

“Uma alma que se desperta esfregando o sono de seus olhos.” O escritor e amante, oscilando entre o amor e a criação artís-tica da beleza feminina, segura a mão de Lulu na sua e diz as palavras que são a chave para esse labirinto da feminilidade, o labirinto no qual às vezes o homem perdeu o sinal de sua razão. É o último ato de O espírito da terra. A dona do amor reuniu ao seu redor todos os tipos masculinos para que eles

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a sirvam, na medida em que aceitem o que ela tem a ofere-cer. Alwa, o filho de seu marido, é quem revela isso. E então, quando ele se inebria totalmente na doce fonte da perdição, quando seu destino quer se concretizar, no último ato de A caixa de Pandora, ele encontrará as seguintes palavras, deli-rando diante do quadro de Lulu: “Diante deste quadro recobro meu amor-próprio. Ele torna meu destino mais compreen-sível. Tudo o que vivemos se torna tão natural, tão evidente, tão claro quanto o sol. Quem se sentir seguro em sua posição burguesa diante desses lábios voluptuosos, carnudos, desses olhos inocentes de criança, desse corpo rosado, exuberante, que atire a primeira pedra”.

Essas palavras, ditas diante do quadro da mulher que se tornou a destruidora de tudo, porque tinha sido destruída por todos, envolvem o mundo do escritor Frank Wedekind. Um mundo no qual a mulher que tenha alcançado sua matu-ridade estética não está condenada a livrar o homem da cruz da responsabilidade moral. A percepção que se dá conta do trágico abismo existente entre lábios voluptuosos e posturas burguesas talvez possa ser, hoje, a única que vale a pena para um dramaturgo. Quem entendeu A caixa de Pandora, que, embora tenha em O espírito da terra seus pré-requisitos de conteúdo, só então encerra a compreensão intelectual do todo. Quem entendeu essa tragédia de Lulu estará diante de toda a literatura alemã, que parasita a mulher e extrai lucros psicológicos do “relacionamento entre os gêneros”, com a mesma sensação do adulto quando precisa aprender o bê-á--bá. Eu não teria medo de abrir essa grande revista de crian-

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cices psicológicas com alguns clássicos. Os mais profundos pesquisadores da vida emocional masculina começaram a balbuciar diante do piscar de olhos de suas próprias heroínas, e a tragédia indizível à qual elas emprestavam palavras foi, durante todos os tempos, a tragédia da perda da virgindade. Ouvimos através de todos os desenvolvimentos dramáticos até nossos dias um “sua puta”, muitas vezes também apenas um envergonhado “sua…”, murmurado por algum barbudo barato: sempre vemos o conflito criado pela membrana de um hímen. Os escritores nunca se sentiram aqui como liber-tadores da humanidade, mas se curvaram junto com ela sob a espada de Dâmocles, que a humanidade colocou sobre sua cabeça, voluntariamente, em humildade cristã. Eles recitaram, crentes, a loucura de que a honra do mundo seria menor, caso sua alegria fosse maior. E eles escreveram tragédias sobre aquilo “do qual nenhum homem consegue se livrar”. O fato de que seria muito mais difícil nos livrarmos das vulgaridades extravagantes de um carpinteiro pensante do que da aventura de sua Maria Madalena já é um fato literário em si. Mas foi apenas Frank Wedekind quem renegou e recusou a lamen-tação dramática sobre a diminuição do valor de mercado da mulher. Em seu poema confessional “Hidalla”, Fanny irrita-se com o cliente que a desprezou porque faltava-lhe “a virtude” que tornava suas colegas de gênero louváveis: “É por isso que não sou mais nada?! Era isso o que mais atraía em mim?! Existe um xingamento mais infame para um ser humano?… como esse de ser amada por causa de uma tal… virtude?!…. Como se fôssemos um pedaço de carne!”.

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E daí a violenta tragédia dupla, cuja segunda parte os senhores verão hoje: a tragédia do encanto feminino, acos-sado, sempre mal compreendido, que permite que um mundo mesquinho possa existir apenas no leito de Procusto de seus conceitos morais. Um fustigar da mulher que não está de-terminada pela vontade da Criação a servir ao egoísmo do proprietário, que só pode se elevar a seus mais altos valores em liberdade. Nenhum caçador de pássaros disse que a beleza fugaz de uma ave tropical emociona mais do que sua posse garantida, que estraga o esplendor da plumagem pelo confi-namento na gaiola. Que a hetaira seja um sonho do homem. Mas a realidade vai transformá-la – dona de casa ou meretriz – em sua escrava, porque a necessidade social do casamento vai mais além que o sonho do homem. Todo aquele que quer a mulher poliândrica, a quer para si. Tal desejo, nada mais, deve ser visto como a fonte primária para todas as tragédias do amor. Querer ser o escolhido, sem garantir à mulher o direito de escolha. E os Oberons não querem entender que Titânia[5] poderia perfeitamente acarinhar um burro, pois, devido à sua alta capacidade de reflexão e sua menor sexu-alidade, eles não estariam em condições de acarinhar uma mula. Por isso eles se transformam em burros no amor. Eles não conseguem viver sem uma boa porção de honra social: por causa disso, ladrões e assassinos! Entre os sofrimentos, porém, caminha uma sonâmbula do amor. Ela, na qual todas as virtudes da mulher se tornaram “taras” num mundo preso por convicções sociais.

Lulu foi entregue à justiça terrena por um dos conflitos

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dramáticos entre a natureza feminina e um homem idiota, e ela teria de pensar, durante nove anos de prisão, que a beleza é um castigo de Deus, caso seus devotados escravos do amor não inventassem um plano romântico para sua libertação, um plano que no mundo real não amadurece nem nas cabeças mais fanáticas e que não pode vingar por desejos fanáticos. Com a libertação de Lulu, porém – com o sucesso do impos-sível, o escritor mostra melhor a capacidade de sacrifício da escravidão por amor do que com o uso de um tema mais crível –, A caixa de Pandora é aberta. Lulu, a condutora da ação em O espírito da terra, agora é conduzida. Mais cedo do que antes, mostra-se que, na realidade, sua sedução é a heroína sofredora do drama; seu retrato, a imagem de seus belos dias, tem um papel maior do que ela mesma. E, se no passado, eram seus encantos ativos que animavam a ação, agora - em todas as escalas do caminho do sofrimento – é a distância entre a formosura de outrora e a desolação atual que suscita os sentimentos. A grande represália começou; a revanche de um mundo masculino que se atreve a vingar a própria culpa. “A mulher”, diz Alwa, “atirou no meu pai neste quarto; apesar disso, vejo tanto a morte quanto a punição como uma terrí-vel infelicidade que se abateu sobre eles. Também acredito que, se meu pai tivesse escapado com vida, não teria tirado totalmente sua mão da dela.” O jovem Alfred Hugenberg, cuja veneração tocante termina em suicídio, vem fazer companhia ao filho sobrevivente nessa capacidade de ternura. Mas para uma união, nunca antes tão surpreendente, surgem Alwa e a amiga Geschwitz, alguém de espírito forte, que não teme se

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sacrificar. Essa união é a de uma sexualidade heterogênea, mas que deixa os dois à mercê da magia da mulher de todas as sexualidades. Eis os verdadeiros prisioneiros do amor. Eles parecem sorver como delícias todas as decepções, todas as torturas que são geradas pelo ser amado, que não foi criado para a gratidão emocional, e abonam valores em todos os males. Seu ideário – independentemente de quanto parece distinto, em características individuais, do ideário do escritor – é aquele que já aparece no soneto de Shakespeare:

How sweet and lovely dost thou make the shameWhich, like a canker in the fragrant rose,Doth spot the beauty of thy budding name!O! in what sweets dost thou thy sins enclose.That tongue that tells the story of thy days,Making lascivious comments on thy sport,Cannot dispraise, but in a kind of praise;Naming thy name blesses an ill report.O! what a mansion have those vices gotWhich for their habitation chose out thee,Where beauty’s veil doth cover every blotAnd all things turns to fair that eyes can see!Take heed, dear heart, of this large privilege;The hardest knife ill-used doth lose his edge.

Também é possível taxar isso com a ridícula palavra médica e novelística “masoquismo”. Mas talvez ele seja o terreno do sentir artístico. Sem a “posse” da mulher, a segurança do

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beatus possidens, a fantasia pobre não pode ser feliz. Real-politik do amor! Rodrigo Quast, o atleta, arrumou um chicote de rinoceronte, e com isso ele a transformará não apenas na “futura acrobata mais maravilhosa de nossos tempos”, mas também numa esposa fiel, que só recepcionará os cavalheiros que ele mesmo determinar. O séquito dos verdugos começa com esses incomparáveis filósofos da moral do rufianismo: os homens se vingarão de Lulu com grosserias por aquilo que pecaram contra ela em insensatez. A série de apaixonados proprietários únicos necessariamente dá lugar à série dos que tornam o amor algo prático. Nela, Rodrigo – que infe-lizmente desaprendeu a capacidade de “equilibrar sobre o peito dois cavalos com todos os seus arreios” – é seguido por Casti-Piani, cujo rosto de patife exerce uma malvada violência sádica sobre o desejo sexual de Lulu. Para escapar de um que a extorque, ela precisa se lançar no colo de outro; é vítima de todos, se sacrificando por todos, até a exaustão, quando o último sumário vingador do gênero masculino – Jack, o estripador – entra no caminho. De Hugenberg, o mais emo-cional, o caminho leva a Jack, o homem mais sexual, a quem ela vai voando feito uma mariposa até a luz – o sádico mais extremado na lista de seus verdugos, cuja faca é um símbolo: ele extirpa dela aquilo com o que pecou contra os homens.

De uma sequência solta de acontecimentos, que uma fan-tasia folhetinesca poderia ter inventado, constrói-se para o olhar mais límpido um mundo de perspectivas, de estados de espírito e de perturbações, e a poesia banal torna-se a poesia do banal, que só pode ser condenada por aquela imbecilidade

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oficial que prefere um palácio mal pintado a uma sarjeta bem pintada. Contudo, não é nessa cena que está a verdade, mas atrás dela. Quão pouco lugar haveria no mundo de We-dekind, no qual as pessoas vivem pelos pensamentos, para um realismo das circunstâncias! Ele é o primeiro dramaturgo alemão que voltou a franquear o acesso, longamente negado, do pensamento ao palco. Todos os caprichos naturalistas fo-ram como que varridos pelo vento. O que está sob e sobre os seres humanos é mais importante do que seus dialetos. Eles inclusive – quase não ousamos dizê-lo - fazem monólogos. Mesmo se estão juntos em cena. A cortina se abre e um atleta gorducho traça seus planos para o futuro de cachês polpudos e rendimentos de cafetão, um poeta bravo reclama como Karl Moor sobre o século que mancha tudo, e uma mulher sofrida sonha com a salvação de sua amiga, amada com adoração. Três pessoas que falam, mas não conversam. Três mundos. Uma técnica dramática que atira três balas com uma mão. Descobrimos que há uma naturalidade mais elevada do que a pequena realidade, com cuja apresentação a literatura alemã nos transmitiu, durante duas décadas, no suor de seus pontos de vista, provas medíocres de identidade. Uma linguagem que apresenta a espantosa ligação entre caracterização e elevação aforística. Cada palavra adequada à personagem e seus pen-samentos, seu destino: uso da linguagem e lema. O cafetão diz: “A mulher, com seu jeito prático, não faz nem metade do esforço para sustentar seu homem do que o inverso. Isso se o homem se ocupar do trabalho intelectual e não colocar o espírito de família em risco”. Como um assim chamado

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realista teria dito isso? Nenhum outro dramaturgo alemão criou cenas com uma técnica mais artística de composição de ambiente como aquelas entre Alwa e Lulu no primeiro ato, entre Casti-Piani e Lulu no segundo e, principalmente, aquela no terceiro, na qual a condessa Geschwitz se mete na miséria inglesa com o retrato de Lulu, e nenhuma outra mão teria hoje coragem para tal abordagem do que há de mais íntimo no ser humano. Grotescamente shakespeariano como a própria vida é essa alternância de efeitos cômicos e trágicos até a possibi-lidade de ser tomada pela mais intensa convulsão ao calçar uma bota. Essa Moritat[6] usada de maneira visionária, esse melodrama aprofundado do Von Stufe zu Stufe[7] é, por fora, uma biografia; por dentro, o retrato de uma vida[8]. Esses acontecimentos passam correndo como um sonho febril – o sonho de um poeta doente por Lulu. No final, Alwa poderia coçar os olhos e acordar nos braços da mulher amada que só acordará de seu sono no Além. Esse segundo ato, parisiense, com suas cores pálidas de uma sórdida vida de meretrício: tudo como atrás de um véu, apenas uma etapa dos calvários paralelos de Lulu e Alwa. Ela, à frente, amassando o papel de um chantagista; ele atrás no salão de jogos, com uma ação fraudulenta nas mãos. Ele corre pela cena no delírio de cair no lumpesinato. Tudo pressiona rumo à decadência. Uma confusão de jogadores e mulheres bonitas sustentadas por seus amantes, enganadas por um banqueiro vigarista. Tudo mantido de maneira esquemática e num tom propositalmente convencional dos insossos diálogos de romances: “Venha, meu amigo! Agora vamos tentar nossa sorte no bacará!”. O

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“marquês Casti-Piani”, colocado no palco não como a charge de um rufião de meninas, mas como corporificação da missão do rufianismo de meninas. Em duas baterias de luzes sobre a sociedade, tão ofuscantes que apenas atenuam o mistério dos fatos; com tamanha ironia que tornam supérfluas centenas de panfletos contra a sociedade mentirosa e contra o Estado hipócrita. Um ser humano, o espião da polícia e o rufião de meninas ao mesmo tempo: “A promotoria de Estado está ofe-recendo mil marcos para quem entregar à polícia a assassina do dr Schön. Eu preciso apenas chamar o policial que está na esquina e estou com mil marcos na mão. Por outro lado, o estabelecimento Oikonomopulos, no Cairo, oferece sessenta libras por você. Isso são mil e duzentos marcos, ou seja, du-zentos marcos a mais do que a promotoria está pagando”. E como Lulu quer pagá-lo com ações: “Nunca me meti com ações. O advogado paga em marcos alemães e Oikonomo-pulos, em moeda inglesa”. O poder executivo mais imediato de moralidade estatal e a representação da casa comercial Oikonomopulos unidos numa mesma mão.

Um esgueirar-se e um precipitar-se fantasmagóricos, um grau de indicação dramática que Offenbach marcou, pois ele musicou a atmosfera de E. T. A. Hoffmann. Ato de Olím-pia. Como Spalanzani, o pai adotivo de um autômato, esse Puntschu engana a sociedade com suas ações falsas. Sua astúcia demoníaca chega a uma expressão filosófica em al-gumas frases de monólogo, que apreende a diferença entre os gêneros de maneira mais profunda do que toda a ciência dos neurologistas. Ele está vindo da sala de jogos e se alegra

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imensamente que sua moral judaica seja muito mais lucrativa do que a moral das prostitutas, que estavam lá reunidas ao seu redor. Elas têm de alugar, negociar, seu sexo, seu “Josafá” – ele pode se virar com sua razão. As pobres mulheres aplicam o capital de seus corpos; a razão do sujeito esperto permanece tinindo: “Que ele não precise ser banhado com água de colô-nia!”. Dessa maneira, a imoralidade do homem triunfa sobre a amoralidade da mulher. O terceiro ato. Aqui, onde entram cacetete, revólver e facão de abate, dessas profundezas de um mundo cru dos fatos, soam os mais puros sons. O inaudito, que acontece aqui, pode afastar aquele que não exige nada mais da arte que lazer, ou que não ultrapasse os limites de sua própria capacidade de sofrimento. Mas seu julgamento deveria ser tão fraco quanto seus nervos, caso ele queira negar a grandeza dessa peça. Essa visão febril deve ser vivenciada com tão poucas expectativas realistas quanto a “improvável” história de libertação no primeiro ato e o afastamento de Rodrigo, no segundo. E quem enxergar nessa sequência de quatro clientes de Lulu, que está se acabando como moça da rua, uma malícia crua e não uma ideia de um escritor nessa troca de impressões grotescas e trágicas, nesse amontoado de rostos horríveis, não pode se queixar do pequeno valor de sua própria capacidade de vivências. Ele merece ser con-temporâneo daquela literatura dramática sobre a qual Frank Wedekind fala de maneira tão dramática, através da boca de Alwa. Mas não é possível acreditar seriamente que alguém poderia ser tão míope, negando a grandeza do tratamento do tema por “constrangimento”. Não enxergando, diante de

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cacetetes, revólver e faca, que esse estupro seguido de morte acontece como uma fatalidade buscada nas maiores profun-dezas do íntimo da natureza feminina; esquecendo-se, diante da orientação lésbica da condessa Geschwitz, que ela tem uma grandeza e não representa um coletivo patológico, mas que passa pela tragédia como um demônio da infelicidade. O leitor só vai se dar conta das infinitas delicadezas desse trabalho brutal após uma maior aproximação: o presságio de Lulu sobre seu fim, que já lança suas sombras no primeiro ato, esse flutuar sob um encanto e esse planar sobre os destinos dos homens que se apaixonaram por ela; depois da notícia da morte do pequeno Hugenberg na prisão, ela se pergunta se “ele também está na prisão”, e o cadáver de Alwa torna sua casa ainda mais desconfortável. Assim, a intuição-relâmpago do homem mais extremado, Jack, que acaricia a cabeça da mulher menos feminina “como se ela fosse um cachorro” e imediatamente percebe, com empatia, o relacionamento da condessa com Lulu e, por isso, sua inadequação para sua terrível necessidade. “Este monstro está a salvo de mim”, ele diz, depois de tê-la matado. Ele não a matou para estuprá-la, apenas afastou um obstáculo. Para sua satisfação, ele poderia no máximo retirar-lhe o cérebro.

Não se deve procurar a essência do texto na excepcio-nalidade do seu tema – os alertas quanto a isso nunca são suficientes. Uma crítica, cuja índole presa a convenções não quebra a cabeça sobre as coisas do amor, já quis enxergar em O espírito da terra nada além de um drama de bulevar, no qual o autor “multiplicou grosserias com confusões”. Um

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intelectual de ponta de Berlim comprovou a falta de senso, com a qual ele se defronta com o mundo do drama duplo [9], ao aconselhar o talentoso autor a escolher, o mais rapida-mente possível, outro tema. Como se os escritores pudessem “escolher temas”, como o alfaiate ou o jornalista, que tam-bém empresta seu traje estilístico a opiniões alheias[10]. A crítica alemã ainda não sabe da força seminal que aqui gerou matéria e forma ao mesmo tempo. Estamos acostumados a aceitar como natural que o mundo oficial do teatro presuma erroneamente que seu ideal de modernidade seja preencher a cota anual de seus habilidosos cinzeladores, que os valores dos cachês se mantenham sempre no meio termo e que o gênio receba como única distinção não ser agraciado com nenhum prêmio Schiller[11], Grillparzer[12] ou Bauernfeld[13] (ou como a recompensa por empenho, boas maneiras e falta de talento possa se chamar). Mas, aos poucos, o escritor que não escreveu nenhuma linha que não levou sua visão de mundo e sua visão de teatro a uma absoluta congruência, e cujo curso de pensamento finalmente indica perspectivas para além do lastimável negócio, deve ficar exasperado por ser visto pelo mundo oficial da arte como uma curiosidade. Ele é “grotesco”. E, desse modo, os justos – que sempre matam dois coelhos com uma palavra só – acham que o carimbaram. Como se o grotesco fosse sempre o objetivo em si do espírito do artista! Eles confundem a máscara com o rosto e ninguém supõe que o pretexto mais grotesco aqui significa nada menos que o pudor do idealista. Que também permanecerá idealista ao afirmar num poema que preferiria ser uma prostituta do que

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ter a fama e a felicidade do homem mais rico, e esse pudor alcança esferas muito mais profundas do que o pudor daqueles que se escandalizam com os temas.

A reprimenda de que se “colocou algo dentro” de um texto seria seu maior elogio. Pois apenas naquelas peças onde o chão fica muito perto de seu teto não é possível, mesmo com a melhor das boas vontades, colocar nada. Na verdadeira obra de arte, porém, na qual um escritor criou seu mundo, todos podem colocar tudo. O que acontece em A caixa de Pandora pode ser usado tanto para a análise estética quanto – ouçam, ouçam – para a análise moral da mulher. A questão sobre se o escritor está mais envolvido com a alegria de seu florescimento ou com a observação de seu reinado destruído pode ser respondida livremente por cada um. Nessa obra, por fim, o censor fica satisfeito ao enxergar os descalabros da imoralidade apresentados com exemplar clareza e, na faca cheia de sangue de Jack, reconhecer mais uma ação liber-tadora do que Lulu como vítima. Dessa maneira, o público que não gostou da peça ao menos não precisa se manifestar sobre seu enfoque. Infelizmente. Pois eu considero o enfoque maldoso o suficiente. Vejo na montagem da mulher que os homens acreditam “possuir”, enquanto eles são possuídos por ela, a mulher que é outra para cada um deles, que a cada um deles mostra outro rosto e que, por causa disso, engana menos e é mais virginal do que a bonequinha domesticada; vejo aí a completa reabilitação da imoralidade – no dese-nho da mulher com a genial capacidade de não conseguir se lembrar, da mulher que vive sem temor, mas também sem

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os perigos da contínua concepção espiritual e que se desfaz de tudo que acontece por meio do esquecimento. Sedutora, não procriadora; não mantenedora da espécie, mas doadora de prazer. Não o cadeado arrombado da feminilidade, mas sempre aberto, sempre novamente fechado. Afastada da von-tade da espécie, mas sempre renascida depois de cada ato sexual. Uma sonâmbula do amor, que apenas “cai” quando é chamada, eterna doadora, eterna perdedora – um malandro com ares de filósofo diz dela na peça: “Ela não pode viver do amor, porque sua vida é o amor”. Para mim, a história parece nascer desse lamento infinito de que a fonte de prazer tem de se tornar a caixa de Pandora neste mundo estreito. “A pró-xima batalha pela liberdade da humanidade”, diz Wedekind em sua obra programática Hidalla, “será direcionada contra o feudalismo do amor! A vergonha que o ser humano tem diante de seus próprios sentimentos é do tempo da caça às bruxas e da alquimia. Uma humanidade que mantém segredos diante de si mesma não é ridícula?! Ou será que vocês acreditam na loucura popular de que a vida amorosa é mantida oculta porque é feia?! Ao contrário, o ser humano não ousa olhá-la nos olhos, assim como não ousa elevar os olhos diante de seu príncipe, de sua divindade! Você quer uma prova? Aquilo que a maldição representa para a divindade, a obscenidade representa para o amor! Uma superstição milenária, do tempo da barbárie mais profunda, mantém a razão nos eixos. Nessa superstição, porém, estão as três formas de vida das quais falei: a prostituta arrancada da sociedade humana como um animal selvagem; a moça mais velha que não se casou, traída

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por toda sua vida amorosa, condenada à deficiência física e mental; e a jovem mulher e sua virgindade reservada para um casamento favorável. Por meio desse axioma, espero ter inflamado o orgulho da mulher, tornando-a companheira de luta. Pois das mulheres com tal conhecimento, já que a vida boa e despreocupada estava fora de cogitação, eu esperava uma satisfação frenética pelo meu reino da beleza”.

Nada é mais barato do que a indignação moral. Um público culto – que foi formado não apenas pelo zelo dos dirigentes da polícia, mas também pelo gosto dos organizadores – despreza o meio barato da rejeição. Ele abre mão da oportunidade de aplaudir a própria decência. O sentimento dessa decência, o sentimento de ser moralmente superior aos malandros e beldades reunidos no palco, está firmemente arraigado e apenas o gabarola acha que tem de reforçar. Ele queria apenas mostrar também sua superioridade ao escritor. Mas isso não deveria impedir de nos sentirmos orgulhosos pelo esforço quase sobre-humano que fazemos quando afirmamos nosso respeito ao forte e audaz dramaturgo. Pois ninguém transformou, como ele, os vergões da vida em sulcos para uma semeadura literária.

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Preâmbulo,que antecede A caixa de Pandora,

da edição em livro de 1906 das obras completas (1913),que é o texto-base da edição da Reclam.

O “preâmbulo” foi revisado e bastante reduzido.Foram eliminadas principalmente as sentenças judiciais

de 1905 e 1906.

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Trabalhei durante nove anos, de 1892 até 1901, na peça que se segue. Antes de cada reedição eu sempre a revisava em profundidade, até chegar à forma atual, que deve ser a sua definitiva. Seguirão aqui as palavras que fiz acompanhar no livro de 1906, quando, de repente, a obra tinha sido judicial-mente sentenciada à destruição.

Depois de a acusação ter chamado a peça de uma obra barata sem qualquer dignidade moral ou artística, as três ins-tâncias que tinham de julgar a peça reconheceram exatamente suas qualidades morais ou artísticas. Essas instâncias foram: o i Tribunal Regional de Justiça em Berlim, o Tribunal do Reich em Leipzig e o ii Tribunal Regional de Justiça em Berlim.

Por conta desse reconhecimento, o i Tribunal de Regional de Justiça tinha resolvido libertar o acusado e liberar o livro. O Tribunal do Reich afirmou que as qualidades morais e artísticas não eram suficientes para redimir um texto de seu caráter imoral e, por esse motivo, anulou a primeira sentença. O ii Tribunal Regional de Justiça era da mesma opinião do Tribunal Regional e deliberou libertar os acusados e destruir o livro em sua versão anterior, embora as qualidades morais e artísticas da obra tenham sido destacadas de uma maneira incomparavelmente mais cuidadosa do que as resenhas pú-blicas até então.

O objetivo desta edição é manter essas qualidades morais e artísticas do livro e limpá-lo de todas as suas toxinas, que deixaram passar inadvertidamente no primeiro tratamento deste texto, nada fácil, arrogância artística e alegria criativa.

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Não me responsabilizo por reprimir e sumir com valores que foram reconhecidos como presentes por vinte juízes alemães, homens sérios e maduros. Permito-me aqui fazer apenas algumas breves observações, puramente objetivas.

A protagonista trágica nesta peça não é Lulu, como os juízes assumiram de maneira errônea, mas a condessa Ges-chwitz. Nos três atos, o papel de Lulu é totalmente passivo, à exceção de algumas intrigas; a condessa Geschwitz, porém, dá no primeiro ato uma prova de autossacrifício sobre-humano. No segundo, o curso dos acontecimentos a faz tentar superar a fatalidade do inadequado que pesa sobre ela, a partir do recrutamento de todas as energias emocionais. E no terceiro ato, depois de suportar as mais terríveis torturas emocionais com uma postura estoica, ela se sacrifica e morre ao defender sua amiga.

Nenhuma das três sentenças sobre a peça considerou ilícita a escolha dessa fatalidade terrível do inadequado que pesa sobre essa filha de Deus como objeto de uma séria construção dramática. Na realidade, nas antigas tragédias gregas os pro-tagonistas também estão quase sempre fora da naturalidade. Eles são da dinastia de Tântalo; os deuses lhes forjaram um aro de bronze ao redor da testa. Isso significa: apesar das mais intensas evoluções emocionais, que levariam à maior felicidade humana possível a todos que presenciaram sua luta, eles não conseguem se livrar da maldição que os domina como uma herança agourenta; eles vão afundando – impres-táveis à sociedade humana – sob as maiores torturas, em sua fatalidade. A inadequação não pode ser definida como tal de

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maneira ainda mais assustadora para a percepção do especta-dor. Se o espectador extrair dessa apresentação também um prazer artístico e um lucro emocional indiscutível, o trabalho no campo da moral é elevado ao campo da arte.

Apesar disso, não foi apenas a maldição da inadequa-ção que me fez escolhê-la como objeto de minha montagem dramática. Fiz isso muito mais porque não encontrei essa fatalidade tratada dramaturgicamente da maneira que se apresenta em nossa cultura atual. Fui tomado pelo impulso de separar a imensa tragédia humana de combates emocionais excepcionalmente grandes, totalmente infrutífera, do destino do ridículo e aproximá-la da compaixão e da misericórdia de todos que não são afetados por ela. Como um dos meios mais eficazes para atingir esse objetivo, achei necessário cor-porificar o desdém vil e o estridente riso sardônico, que o ser humano inculto tem para essa tragédia, num personagem bastante expressivo. Para esse fim, criei o personagem do vigoroso Rodrigo Quast. Rodrigo Quast é o oposto da con-dessa Geschwitz. Durante o trabalho, eu estava totalmente consciente da tarefa de que as revoluções espirituais nas quais a condessa Geschwitz foi arremessada por sua infelicidade tinham de ser tão exaltadas do ponto de vista moral quanto mais brutais seriam as piadas que eu colocaria na boca desse brutamontes. Eu estava totamente consciente de que as pia-das tinham de ser constantemente esvaziadas e tornadas supérfluas pela seriedade com que eu tratava o destino da condessa Geschwitz, e que por fim a seriedade trágica deveria aparecer como vencedora reconhecida, inconteste, no campo

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de batalhas, caso a obra tivesse de cumprir seu objetivo. Todas as apresentações confirmaram que consegui criar

essa impressão com o último ato da peça. Mas as sentenças dadas sobre o drama em sua forma anterior também con-firmam esse fato. A sentença do Tribunal do Reich e a do ii Tribunal Regional de Justiça de Berlim contestam apenas que a impressão desejada da tragédia também é suscitada no “leitor comum”. Claro que não necessariamente! Pois entre a grande massa dos “leitores comuns” está, em primeiro lugar, também o indivíduo inculto, que aparece no drama em si como atleta, e a tendência da peça é dirigida contra seu riso desdenhoso. Evidente que o açoitado pela sátira percebe seu efeito não pela leitura apenas, mas também quando vê, para sua grande surpresa, como pessoas cultas consideram desprezível e risível a imagem do caráter criada por ele. Além do mais, as obscenidades que coloquei na boca desse bru-tamontes não chegam nem perto daquelas de um Falstaff, Mefisto ou Spiegelberg.

Quando publiquei este drama em sua forma anterior, es-tava profundamente convencido de que estava satisfazendo uma exigência da mais alta moralidade humana. Também tinha consciência de que a publicação poderia ter como conse-quência uma denúncia sobre atentado à moral ou divulgação de textos imorais. O fato de a consequência realmente ter se concretizado não me serve como prova contrária ou a favor da validade de minha certeza. Mas, desde sempre na essência de nosso desenvolvimento intelectual, o indivíduo que dá um passo decisivo à frente em alguma área intelectual é colocado

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diante do juiz por afronta a essa mesma área. Um médico que, confiando em sua pesquisa, promove uma cirurgia ainda não testada está se expondo, de antemão e com total consciência, ao perigo de ser acusado de lesão corporal ou morte por ne-gligência. A experiência mostra que todas aquelas áreas cujas formas convencionais são radicalmente opostas se aproximam em suas situações mais extremas. Remédio e veneno diferen-ciam-se apenas no seu modo de utilização. A superioridade e o ridículo raramente são diferenciados de maneira confiável pelos contemporâneos. O verdadeiramente superior sempre foi percebido como ridículo em seus primórdios, e algumas novidades, tidas por todos os contemporâneos como supe-riores, revelaram-se num piscar de olhos como os maiores ridículos. Summum jus e summa injuria são termos que vão se corresponder até o final dos tempos.

A norma que prendeu nossa cultura nos fatos citados nesse processo mental há dois milênios, e que provavelmente man-terá sua validade por toda eternidade, é o destino do funda-dor de nossa religião, que foi julgado por blasfêmia divina pelo sinédrio em Jerusalém. Mas o Evangelho mostra que o sinédrio só se ocupou do caso depois de muita hesitação e com extrema contrariedade, obrigado por uma exigência que não lhe dava mais nenhuma opção, quer dizer, pela parábola proferida no átrio do santuário sobre a destruição do templo e sua reconstrução em três dias. Os Evangelhos também relatam que o sinédrio dominava sua magistratura com uma dignidade que nenhum juiz do presente pode sobrepujar. Apesar disso, nesses casos, a infelicidade de ser julgado é sempre menor

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do que a infelicidade de ter de julgar.O último motivo para eu citar esse caso como norma em

relação à sentença proferida sobre minha peça é a diferença entre a moral burguesa, que o juiz é obrigado a proteger, e a moral humana, que não é da competência de nenhum tipo de capacidade de julgamento humano. Nas três sentenças profe-ridas sobre o drama, o amor comprável foi classificado como imoral, e seu exercício como prostituição. Essa designação é totalmente adequada do ponto de vista da moral burguesa.

Mas nobres literatos de todos os tempos, do rei Sudraka (“o carrinho de terracota”) até Goethe (“o deus e a dançarina”) sentiram-se chamados a proteger as infelizes vítimas do amor comprado contra o banimento geral. E Jesus Cristo fala para os religiosos e os juízes de seu tempo: “Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus” (Evangelho de Mateus 21, 31). Do seu ponto de vista, Jesus Cristo não pode falar de maneira mais lógica, mais coerente, pois ele constrói o reino de Deus para os que têm dificuldades e os que carregam fardos, não para os ricos; para os doentes, não para os saudáveis; para os pecadores, não para os justos. Essa proposição, mais a surpreendente autenticidade do pro-cesso havido contra os “profanadores do templo”, é para mim a comprovação mais cabal contra a afirmação da pesquisa bíblica atual de que Jesus nunca viveu e que as histórias do Evangelho são apenas uma invenção devocional de presbíteros ulteriores, pois qual religioso ousaria proferir tal proposição mesmo que apenas num púlpito?

Mas, escuto o juiz perguntar, será que a cultura não está

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se desintegrando de maneira lastimável pelo fato de os que têm dificuldades, os doentes e os pecadores encontrarem nessa moral sua justificativa? Tenho respostas em abundância para essa pergunta, que tranquilizam qualquer preocupação; pois se a moral humana quer ficar acima da moral burguesa, então ela precisa estar fundada sobre um conhecimento mais abrangente da essência do mundo e do ser humano. Mas sem uma ordem explícita, eu não me encarrego de defender as proposições do fundador de nossa religião diante do juiz.

No lugar da relação do elenco, que o drama seja precedido pelo belo cartaz da apresentação, inesquecível para mim, que Karl Kraus organizou em Viena.

Neste momento, reitero meus agradecimentos a Karl Kraus por isso.

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