Texto de Opinião

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MARCELO COELHO Perigo ao volante O motorista nada pode --moralmente, tecnicamente, geracionalmente-- contra os jovens da bicicleta O país, como se sabe, vai evoluindo aos poucos. Tempos atrás, uma das grandes reclamações de todo motorista era as Kombis. Costumavam entalar-se no trânsito, nunca sabiam o próprio destino, e deviam trazer algum entrave na visibilidade do para-brisa --de modo que resfolegavam meio às cegas por ruas sempre erradas. Pois bem, as Kombis desapareceram da cidade. Pertencem ao passado; foram igualmente esquecidos outros vilões do trânsito de 1970: as mulheres e os homens de chapéu. As mulheres deixaram de ser minoria, tornando impossível a identificação de incompetências específicas. Quanto aos homens de chapéu, emblema de quem já está numa idade mais avançada, pode-se dizer que continuam por aí. São os últimos que ainda reclamam das mulheres no trânsito, aliás. Trata-se de rivalidade antiga. Mas nós, os sem-chapéu, temos outros motivos de inquietação. Não digo os motoqueiros, que a esses nos acostumamos, e bem ou mal buzinam quando passam. Os alcoolizados estão provisoriamente sob controle. Não se pode dizer o mesmo de quem guia falando ao celular.

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Perigo ao Volante, texto de Marcelo Coelho

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MARCELO COELHO

Perigo ao volanteO motorista nada pode --moralmente, tecnicamente, geracionalmente-- contra os jovens da bicicleta

O país, como se sabe, vai evoluindo aos poucos. Tempos atrás, uma das grandes

reclamações de todo motorista era as Kombis.

Costumavam entalar-se no trânsito, nunca sabiam o próprio destino, e deviam

trazer algum entrave na visibilidade do para-brisa --de modo que resfolegavam meio às

cegas por ruas sempre erradas.

Pois bem, as Kombis desapareceram da cidade. Pertencem ao passado; foram

igualmente esquecidos outros vilões do trânsito de 1970: as mulheres e os homens de

chapéu.

As mulheres deixaram de ser minoria, tornando impossível a identificação de

incompetências específicas. Quanto aos homens de chapéu, emblema de quem já está

numa idade mais avançada, pode-se dizer que continuam por aí.

São os últimos que ainda reclamam das mulheres no trânsito, aliás. Trata-se de

rivalidade antiga.

Mas nós, os sem-chapéu, temos outros motivos de inquietação. Não digo os

motoqueiros, que a esses nos acostumamos, e bem ou mal buzinam quando passam.

Os alcoolizados estão provisoriamente sob controle. Não se pode dizer o mesmo

de quem guia falando ao celular.

Com dez cervejas na cabeça, o motorista pode até estar pacificado, entregue à

letargia do momento. Geralmente age em horários determinados, nos quais é de todo

modo imprudente sair de casa, com bêbados ou sem eles.

Pelo menos o motorista alcoolizado usa as duas mãos. Não é assim com o usuário

do celular. Usa só uma, ou então prende o aparelho entre o ombro e o pescoço, o que

muda o eixo de sua orientação dentro do carro e fora dele.

Seja como for, ele está falando e ouvindo, ao contrário de quem bebeu, que fica

em silêncio. Já falou e ouviu o bastante por aquela noite.

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O homem do celular (há mais homens do que mulheres usando celular? Acho que

sim) fala, mas não tem certeza de estar sendo ouvido. Está em relação com o seu

aparelho, não com o interlocutor.

Deduzo uma regra sobre isso. Podemos nos relacionar com um ser humano e uma

máquina ao mesmo tempo --tanto que conversamos bem com o passageiro enquanto

estamos ao volante. Mas não com dois aparelhos ao mesmo tempo. Juntos, o carro e o

celular são demais para o cérebro normal.

É assim que vemos um Audi com muitos cavalos de potência deslocando-se na

transversal entre várias faixas da avenida, como se fosse um carrinho de pipoqueiro. De

repente, ele arranca: acordaram-no, caiu a ligação.

O carro então emborca para a direita --é que o motorista largou essa mão do

volante para teclar novamente o número perdido. Consegue a linha; corrige em seguida a

própria rota, girando à esquerda. Talvez pratique iatismo nas horas vagas.

Não sabemos nada a seu respeito, claro, pois ele está protegido pelo insulfilme.

Assim, não apenas ouve mal e fala com dificuldade, como também enxerga pouca coisa.

O homem do celular era minha maior angústia até pouco tempo atrás. Surgiu

outra, contudo, até pior. Refiro-me aos ciclistas.

Dez da noite, numa avenida movimentada, três deles tangenciaram a direita do

meu carro; eu, barbeiro confesso, tentava ir pela faixa da direita para dar passagem a um

ônibus que, saindo do túnel à esquerda, logo teria de cruzar várias faixas para entrar, por

sua vez, na faixa da direita reservada à sua circulação. Enfim, é complicado.

Os três que eu quase abalroei tinham muita pressa, e medo também. Precisavam

juntar-se ao grupo, de mais de 50, que fazia seu passeio noturno.

Passeio? Ao contrário dos motoqueiros, é verdade que o ciclista não está ali a

trabalho. Está fazendo loucuras por um motivo nobre. Ele se manifesta politicamente.

Afirma que você, o motorista, é um imoral, um cretino, um reacionário, um destruidor

do planeta.

O fato de ele ter razão não aumenta, naturalmente, minha simpatia pela causa.

Não gostaria, entretanto, de atropelá-lo. Sinto quase como se ele me forçasse a isso.

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O motoqueiro, ao menos, faz barulho. O ciclista é insidioso, frágil, secreto.

Conspira contra o carro: confia no poder das massas --às dezenas, e logo às centenas,

conquista a faixa do ônibus, entre os quais se esconde, e conquistará as outras.

Não sei andar de bicicleta. Mas já me vejo tendo de aderir ao movimento. O

motorista nada pode --moralmente, tecnicamente, geracionalmente-- contra os jovens da

bicicleta. São rápidos demais, ousados demais, não ligam para ninguém --até porque

nem usam celular.FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/106658-perigo-ao-volante.shtml

Acesso em: 02/05/2013

O SENTIDO DO TEXTO1. Ao escrever seu artigo de opinião, quem Marcelo Coelho considerou como seus

principais interlocutores?

2. O que a fonte de onde o texto foi retirado e o público ao qual se destina pode indicar

com relação à linguagem usada? Por quê?

3. Qual é a questão tratada por Marcelo Coelho no texto “Perigo ao volante”?

4. O que o autor critica em relação aos ciclistas? Explique.

5. Qual é o principal ponto de vista defendido pelo autor? Que argumentos ele usa para

sustentar sua opinião? Dê exemplos.

6. O texto propõe uma reflexão a respeito dos ciclistas no trânsito urbano. Você concorda

com a opinião do autor? Justifique com seus próprios argumentos sua opinião.

Os artigos de opinião são publicados em jornais, revistas, em sites e costumam

levar o nome de quem os escreveu, para que o leitor saiba que a opinião defendida é

daquele autor. A intenção comunicativa desse texto é defender uma opinião sobre alguma

questão polêmica e cuja discussão, na sociedade, é importante.

Mesmo que um artigo de opinião não chegue a convencer o leitor, ele o faz refletir,

repensar seus pontos de vista sobre o assunto, ou, ainda, construir novos argumentos

para defender a posição que já tinha sobre o tema.