Texto de Moura Filha
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EMBELEZAR A CIDADE : A CONCEPÇÃO DE UM NOVO
PADRÃO ESTÉTICO PARA AS CIDADES BRASILEIRAS NO
SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX.
Maria Berthilde Moura Filha
Universidade Federal da Paraíba. Departamento de Arquitetura. Centro de Tecnologia. Campus I.
João Pessoa. PB.
O objetivo que se persegue é analisar a formação de uma nova concepção estética para as cidades
brasileiras, ao longo do século XIX e início do século XX, observando-se, particularmente, quais
os princípios introduzidos para a construção de cenários urbanos esteticamente compatíveis com o
ideário de modernização e progresso que era defendido naquela época. Pretende-se, também,
verificar como foi crescente a associação entre a qualidade da arquitetura produzida e a
valorização estética da cidade. Para tanto, estuda-se diversas propostas de intervenção urbana,
feitas para o Rio de Janeiro no período em estudo, observando o discurso sobre o embelezamento
da cidade e analisando as medidas voltadas para valorização estética da paisagem urbana.
Este trabalho é parte da dissertação desenvolvida durante o Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Seu objetivo é
analisar a construção de um novo padrão estético para as cidades no Brasil da
segunda metade do século XIX e início do século XX, identificando a introdução
de princípios que visavam a valorização da paisagem urbana. Pretende-se,
também, verificar como foi crescente a associação entre a qualidade da arquitetura
produzida e o desejo de “embelezar e aformosear” a cidade.
A fim de fazer esta análise, optou-se por estudar diversos projetos de intervenção
urbana concebidos para o Rio de Janeiro, procurando extrair desses as propostas
voltadas para o embelezamento da cidade. Foram analisados projetos e
normatizações elaboradas no período em estudo, encontrados em arquivos do Rio
de Janeiro, além de realizar-se uma revisão de títulos já publicados sobre esta
temática, mas sempre direcionando a leitura para a questão aqui abordada.
2
Estuda-se o Rio de Janeiro, uma vez que, sendo o principal centro econômico e
político do Brasil naquela época, constituía também o foco das novas idéias sobre a
cidade. Sabe-se que o Rio, devido a sua condição de sede do poder político e
principal centro comercial e financeiro do país, teve um crescimento da população,
superior à capacidade de absorção do seu espaço edificado. Diante dos problemas
urbanos desencadeados por este fato, foi adotado um discurso sobre a cidade
dominado pelo trinômio sanear, circular e embelezar, que iria orientar todas as
propostas que visavam a melhoria do meio urbano e a construção de uma imagem
de cidade moderna para o Rio de Janeiro, e que serviria de modelo para muitas
outras cidades do Brasil no final do século XIX e início do século XX.
Cada um dos fatores desse trinômio foi trabalhado de forma mais ou menos enfática
pelas propostas de intervenção urbana elaboradas nesse período, sobressaindo-se, a
cada instante, aquele que parecia mais pertinente diante dos objetivos a serem
alcançados. Num primeiro período, o saneamento vai ser o ponto central das
propostas. Considerando os problemas existentes então, os higienistas vão
difundir a idéia de que a saúde da população fazia parte da construção de uma
nação saudável e desenvolvida, alertando o poder público para a necessidade de
sanear as cidades. A partir da assimilação dessas idéias, a medicina teve que
ampliar sua atuação, não se limitando a tratar apenas o “corpo físico”, mas
intervindo também no “meio físico que coincidia com a cidade”.1
Mas verifica-se que apesar do centro das atenções ser a questão da insalubridade
da cidade, cresciam em paralelo as preocupações com a estética urbana.
Saneamento e estética são dois aspectos evidentes no projeto de posturas que,
José Pereira Rego, médico e vereador, apresentou em 1866, à Câmara do Rio de
Janeiro, “visando impedir a proliferação de cortiços no perímetro da cidade velha
e em suas adjacências”, lançando, também, normas legais bem definidas para
controle e padronização da “fisionomia arquitetônica” da cidade, pois considerava
que “os defeitos e irregularidades de nossas edificações (...) contribuem para
destruir todo embelezamento da principal e talvez primeira cidade da América
Meridional, concorrem igualmente para empiorar o seu estado higiênico”.2 Com
o objetivo de uniformizar a arquitetura da cidade, Pereira Rego determinava a
3
altura das casas de diversos logradouros, as quais deveriam também obedecer aos
modelos previamente designados pela câmara. (esse projeto foi arquivado)
Duas questões ganham relevância nesse projeto de Pereira Rego, devido à
permanência e ênfase que vão adquirir em todas as propostas subsequentes para o
Rio. A primeira é a intenção civilizadora e moralizadora dessas propostas que
colocavam o saneamento da cidade como pré requisito e símbolo de progresso e
aperfeiçoamento do povo. O segundo ponto é o estabelecimento de uma relação
direta entre a salubridade do meio urbano e as questões referentes ao
embelezamento, nesse caso associado em particular, aos “defeitos e irregularidades”
da arquitetura existente na cidade. Verifica-se que o item embelezamento vai ter
uma ascensão marcante nesse período, como reflexo das obras de remodelação de
Paris, empreendidas por Haussmann, fazendo-se presente em todos os discursos,
projetos e decretos referentes à modernização das cidades.
A partir da década de 1870, o saneamento do Rio de Janeiro vai passar a fazer
parte do debate político nacional. Para ganhar a credibilidade dos investidores, era
preciso que o país demonstrasse prosperidade, principiando por sua capital que
deveria estampar “para efeito externo, uma imagem que não mais a associasse
com o atraso, a doença, tal como o Rio era conhecido na Europa”.3
No entanto, o estado de insalubridade que tomava conta do Rio de Janeiro, não era
em nada favorável à construção dessa imagem de prosperidade. A situação exigia
medidas de maior alcance, levando a Câmara Municipal, em 1870, a editar um
novo código de posturas, determinando um plano a partir do qual seriam
projetadas as ruas, praças e edifícios. Este plano estabelecia a largura mínima das
vias, as dimensões das edificações e das suas portas e janelas, proibia o uso de
rótulas, postigos, cancelas, balcões, portas e janelas de abrir para a parte de fora.4
Adotavam-se medidas que, ao mesmo tempo em que serviam para melhorar a
salubridade do meio urbano, possibilitando uma melhor ventilação e insolação,
também transformavam a imagem citadina, uma vez que interferiam na forma já
tradicional de construir as edificações e configurar o espaço urbano, que
caracterizava as cidades brasileiras, há muito tempo.
Em 1874, o governo imperial nomeou uma “Comissão de Melhoramentos da
Cidade do Rio de Janeiro”, que não atuou sobre o núcleo mais antigo da cidade,
4
apesar desse ser considerado como o grande foco de insalubridade do Rio,
tornando-se o objetivo do seu plano, a ordenação das áreas de expansão urbana
mais importantes.
Segundo os membros dessa Comissão, o Rio “(...) devia não apenas sofrer
profundas transformações em sua estrutura urbanística - a fim de que estivesse em
condições de suportar as demandas geradas pelo seu acelerado processo de
crescimento - mas também modificar a imagem inestética que ela projetava sobre
os que a contemplavam”.5
Neste sentido, os engenheiros da Comissão apresentaram alguns princípios a partir
dos quais se construiria uma nova imagem para o Rio. Sobre as ruas propõem que
conservassem a “direção retilínea”, tanto quanto o permitido pelos acidentes do
terreno e pelas construções existentes, mas advertem :
“extensas ruas em linha recta nem sempre produzem bom effeito, (...) Algumas
inflexões de alinhamento são necessarias para produzir variedade e mostrar os edificios
sob angulos diversos, e determinam igualmente effeitos de sombra e de luz, que
contribuem para realçar a belleza do panorama, offerecendo novos pontos de vista”.6
No que se refere às regras para construção de edifícios particulares, a Comissão
julgava que deveria limitar-se àquelas referentes à salubridade das habitações,
determinando os materiais de construção mais adequados, o sistema sanitário, as
relações entre a altura das fachadas e a largura das ruas, e também entre a
dimensão dos vãos de iluminação e a área dos cômodos. Quanto à “fisionomia”
das edificações, a Comissão não achava conveniente “marcar para os edifícios de
cada rua um tipo de fachada”, dando liberdade aos proprietários para construírem
segundo “seus gostos, seus hábitos e suas conveniências pessoais” uma vez que “a
uniformidade na apparencia seria prejudicial á belleza das construcções”.7
As regras ditadas pela Comissão de Melhoramentos da Cidade foram alvo de muitas
críticas. O Engenheiro Vieira Souto, por exemplo, considerava que os princípios
definidos para as construções particulares iam de encontro às doutrinas dos tratados
de arquitetura, prejudicando a proporção e a beleza dos edifícios. Achava também
inadequada a relação estabelecida entre a altura das edificações e a largura das vias,
uma vez que tendia a repetir sobre quem as observava, a mesma sensação de
“profunda vala” causada pelos estreitos becos existentes na cidade velha.8
5
Apontava-se a melhoria da qualidade das construções urbanas, como um dos requisitos
necessários para fazer delas uma expressão de progresso, sendo comuns críticas como a
de Vieira Souto que dizia : “(...) não há entre nós architectura, salvo honrosas, porém
poucas excepções.” 9 Na verdade, vai haver uma crescente associação entre a imagem
da cidade e o papel que a arquitetura cumpria enquanto parte da paisagem urbana. Para
Vieira Souto, era preciso adotar medidas que garantissem o padrão das edificações,
cabendo à Câmara a organização de um minucioso código que disciplinasse a
construção dos prédios particulares, e a regulamentação dos profissionais atuantes na
cidade, exigindo a qualificação dos mesmos.
Ao aproximar-se o final do século XIX, higiene e bem estar da população
continuavam a ser os argumentos centrais utilizados por todos aqueles que
defendiam mudanças para o meio urbano no Rio de Janeiro. No discurso já
existente sobre a cidade, eram cada vez mais exploradas as idéias opostas de limpo
e sujo, saúde e doença, ordem e desordem, belo e feio, com a intenção de condenar
tudo que dizia respeito à cidade antiga, julgada como o lugar da doença, sujeira e
desordem, e justificar a substituição dessa por uma nova cidade saudável, ordenada
e, principalmente, bela. Difundia-se, cada vez mais, a idéia de que sanear o Rio,
significava não só a erradicação do meio insalubre que comprometia o bem estar da
população, mas também “a renovação da estética da cidade, cuja expressão eram as
fachadas de seus prédios, o aspecto de seus logradouros públicos”. 10
Tudo isso dava espaço para projetos de intervenção, como o proposto pelo
arquiteto italiano, Giuseppe Fogliani, em 1884, para execução de uma grande
avenida no centro do Rio de Janeiro. Essa avenida reuniria estabelecimentos do
alto comércio, bancos, companhias de seguro e de navegação, que se
empenhariam em construir edifícios compatíveis com o padrão oferecido pela
avenida, onde já estavam previstos espaços para dois grandes hotéis, um teatro
lírico e um teatro dramático. Não se tratava de uma intervenção levada a cabo pelo
poder público, mas de um empreendimento imobiliário a ser executado por
alguma empresa que o adquirisse.
Se esta área da cidade era então considerada inqualificável quanto à higiene e
padrão da arquitetura, o projeto de Fogliani trazia a preocupação de valoriza-la
com prédios monumentais, incentivando a melhoria da qualidade da arquitetura,
6
através da execução de alguns edifícios bem elaborados. Dizia ele : “A nova rua
dará à cidade um aspecto elegante que nunca teve e despertará o gosto pelas belas
construções arquitetônicas”.11
Fogliani tratava a cidade como um cenário, fazendo uso de edifícios monumentais
e jardins para fechar a perspectiva da avenida proposta. A intenção estética no seu
projeto era evidente :
“Para se ter uma ligeira idéia da beleza desta rua basta imaginar-se o espetáculo de
que gozará o indivíduo colocado na Rua Primeiro de Março, que estender a vista por
uma larga avenida ladeada de construções elegantes e altas, terminando no vasto
jardim do Campo da Aclamação, ou daquele que, colocado neste último ponto,
considerar ao fundo do quadro os dois majestosos edifícios do Correio e da Bolsa” 12
É interessante observar a distância que havia entre as propostas do poder público,
enquanto normatizador da higiene e da estética da cidade, e o projeto ambicioso
desse empreendimento imobiliário, muito mais preocupado com o embelezamento
da cidade, como forma de viabilizar um investimento lucrativo do setor. Nesse
caso, era a beleza da cidade que predominava.
Apesar da maior presença do Estado enquanto regulador das concessionárias de
serviços públicos e normatizador do espaço urbano, da estética e da saúde pública,
verifica-se que as grandes intervenções reformadoras, embora desejadas, não
aconteceram na época do Império, uma vez que todas as atenções estavam então
voltadas para manutenção da unidade política e da ordem social do país.13
Por fim, proclamada a República, era preciso construir a imagem do novo regime
e uma identidade coletiva para o país. É sob a divisa “Ordem e Progresso” que a
República vai construir sua imagem junto à sociedade, manipulando com idéias,
símbolos e representações capazes de atrair a simpatia e a aceitação do povo.
Um dos símbolos mais importantes, adotado pelo ideário republicano, foi a
cidade. O processo de construção da “ordem e progresso” do Brasil estava
diretamente relacionado com a urbanização : a cidade modernizada, higienizada e
bela apresentava-se como o “lugar de construção dos paradigmas da ordem
moderna, baseado nas idéias de ciência, progresso e civilização”.14
Trabalhava-se com o imaginário social para fazer da cidade esse símbolo dos
novos tempos do país, tirando partido dos elementos que alimentavam esse
7
imaginário coletivo - os serviços, os transportes, o incremento do consumo e do
lazer citadino - para favorecer a assimilação da cidade, como o centro irradiador
da novidade, da civilização, do progresso. Para tanto, o meio urbano precisava,
cada vez mais, atender a requisitos de higiene, estética, funcionalidade e
rentabilidade, adequados à nova ordem capitalista e burguesa.15
Persistia a intenção de transformar o Rio de Janeiro, agora capital da República,
em uma cidade moderna, que representasse o país com dignidade. Assim, a tônica
de todos os discursos sobre a cidade vai continuar a ser a regeneração sanitária e a
questão do embelezamento e construção de uma nova imagem urbana, que vai se
fazer cada vez mais evidente, ainda que as ações, nesse sentido, aparecessem
muitas vezes camufladas pelo discurso higienista e moralizador, aplicado,
também, no tocante à formação de uma sociedade civilizada, compatível com a
cidade modernizada.
Constata-se que nesse período, as propostas de intervenção urbana serão sempre
baseadas em justificativas técnicas e orientadas por profissionais com formação
acadêmica, informados sobre os caminhos que vinham sendo trilhados para impor
às cidades um crescimento racional e sistematizado. Vão ser esses profissionais
que vão lançar alguns projetos de intervenção urbana, para o Rio de Janeiro e,
também, para outras cidades em todo o país.
Em 1890, o engenheiro Joaquim Galdino Pimentel, lente da Escola Politécnica,
expôs ao público, na Casa Moncada à Rua do Ouvidor, seu “Projeto de
Melhoramento e Embellezamento da cidade do Rio de Janeiro”. Tendo
conhecimento da “feição moderna” que as cidades antigas da Europa vinham
ganhando, Galdino Pimentel procurou adaptar para o Rio, o plano de Paris, por ser
esse “reconhecidamente modelo sob os pontos de vista artistico e hygienico”.16
Submetido à apreciação do público e da imprensa, o projeto foi aprovado e
elogiado por todos, uma vez que lançava propostas condizentes com os ideais de
modernização da época. Sobre as vantagens resultantes da sua execução, disse o
“Correio do Povo”, de 16 de novembro de 1890 :
“Seja elle levado a effeito e esta Rio de Janeiro, pesada e feia, cortada de ruas
estreitas e tortuosas, apresentando umas construcções sem gosto, impossiveis,
8
ver-se-há dentro em pouco transformada em uma das capitaes mais bellas do
mundo civilisado, em uma Paris americana”. 17
Assim pensava também, o engenheiro civil Tito Barreto Galvão : “Na nossa
opinião a importancia e a riqueza de Pariz, que excede á do Brazil, são devidos ás
despezas que forão feitas para o seu embellezamento”.18 Tito Galvão usava esse
argumento para justificar sua proposta para abertura de uma grande avenida, em
substituição da antiga Rua Sete de Setembro. Dizia ele : “A avenida servirá de
passeio, embellezará, saneará e facilitará grandemente o transito do centro da
cidade; enfim, será de uma utilidade immediata, enorme, constante”. 19
Retomava com isso, o trinômio sanear, circular e embelezar, com grande ênfase
sobre esse último ponto, já que era intenção apagar a imagem da cidade antiga e
anti-estética. Nesse sentido, apontava as vantagens da sua proposta :
“Cumpre notar que o projecto que estudamos redunda em um beneficio duplo
para a nossa capital, porquanto não se trata sómente da construcção de uma
grande obra ou monumento, mas ao mesmo tempo, da suppressão de uma
deformidade : em vez de um aleijão ( a actual rua Sete de Setembro ) uma
ornamentação monumental”. 20
É possível identificar, no discurso do Eng. Tito Galvão, as palavras chave que
traduziam os objetivos a serem alcançados e também, os artifícios que utilizava
para chegar a tais objetivos : abertura de largas avenidas articuladas às praças, a
imponência dos edifícios e beleza da sua arquitetura, ressaltando-se cada vez mais
a contribuição das belas edificações como fator de embelezamento da cidade.
A evidência da intenção estética nesse projeto de intervenção urbana para o Rio de
Janeiro, leva a pensar que para consolidação da ordem e do progresso propostos pela
República, parece, muitas vezes, que a construção de um cenário de cidade moderna
e embelezada, que servisse de pano de fundo para as ações de uma sociedade
civilizada e representasse o progresso do país, ganhava prioridade sobre as demais
questões urbanas, como a higiene e a saúde pública defendidas pela medicina social
como pontos essenciais para construção de uma nação desenvolvida.
Para elaboração desses cenários, tornava-se cada vez mais importante a presença
das avenidas largas, das praças, jardins, passeios, e de uma arquitetura
monumental, que fizesse o enquadramento de toda a cena. A arquitetura,
9
entendida como as faces que definem os espaços urbanos e lhes configura a
imagem, ganhava evidência na concepção desses cenários, sendo alvo de normas
que regulavam sua estética ou, quando se tratavam de edificações de forte
referência para a cidade, eram tratadas com rigor estético e monumentalidade.
Se a intenção de construir um cenário para representar a modernização e civilização
do país, já se mostrava tão evidente nesses projetos elaborados para o Rio de
Janeiro, no final do século XIX, essa intenção vai ser ainda mais marcante, como
veremos, na reforma urbana levada a cabo por Pereira Passos, considerado o grande
paradigma para construção das cidades modernas no Brasil, no início do século XX.
Segundo alguns autores, nesta reforma de Pereira Passos, “a ordem das
prioridades na solução dos problemas da cidade” foi sendo invertida, “colocando
definitivamente em primeiro plano a questão de sua imagem”. 21 Se esta inversão
já era apontada nos projetos anteriormente propostos - verificando-se, cada vez
mais, a utilização dos termos embelezamento e aformoseamento, para justificar as
intervenções - a preocupação com a imagem do Rio era agora evidente, podendo
ser identificada em diversas medidas que compunham o plano do governo.
Tratando-se de um projeto para melhoramento e embelezamento do Rio de
Janeiro, certamente o principal referencial continuava a ser “a Paris de
Haussmann”. Para tanto, “as largas avenidas, os elegantes magazines, os floridos
jardins deveriam moldar a imagem do novo Rio, não mais identificado com suas
tradições, com sua história, mas com as grandes civilizações européias”. 22
A verdade é que se criava grande expectativa em torno da reforma urbana do Rio,
desejando ver soluções para os problemas que a cidade apresentava. Neste sentido,
a crônica publicada pelo periódico Renascença, de abril de 1904, noticiava o início
das obras dizendo : “O mêz de março, que findou, desta vez, por bem aventurada
excepção, sem calores excessivos e sem o tremendo cortejo de molestias e
desolações, viu o inicio das grandes obras que hão de transformar a colonial cidade
do Rio de Janeiro, numa bella, arejada e architectonica metropole moderna”. 23
Na medida em que o projeto elaborado para reforma urbana do Rio de Janeiro
demonstrava uma preocupação especial com a valorização estética da cidade, vê-
se abrir espaço para a formulação de um projeto estético, que consistia em
selecionar, organizar e elaborar arquitetonicamente determinados elementos
10
urbanos, submetendo-os a um processo de composição com o intuito de obter
dessa paisagem construída com base nos princípios componentes desse projeto,
uma cidade valorizada pelas regras da estética. 24
A abertura, alargamento e retificação das ruas e avenidas constituíam os elementos
que, até então, haviam recebido maior atenção, em todos os planos elaborados para
o Rio de Janeiro. Apontava-se como conseqüência dessas ações, uma série de
benefícios para circulação, higiene e estética da cidade : entre as quais, possibilitar a
substituição, em um curto espaço de tempo, dos prédios antigos situados nas ruas
estreitas; vindo “despertar o gosto architectonico, pois, offerecendo as ruas largas e
bem situadas uma renda compensadora aos predios nella edificados, os proprietarios
animar-se-ão a construil-os em melhores condições”. 25
Observa-se que o efeito estético das avenidas estava relacionado com as
dimensões das vias, com o traçado que deveria ser o mais retilíneo possível, com
o tratamento paisagístico e a arquitetura que as delimitava, com as perspectivas
encerradas por construções imponentes, etc.
Entre todas as intervenções realizadas no Rio de Janeiro, certamente, a Avenida
Central pode ser apontada como o grande cenário do Brasil moderno, já que foi
idealizada para ser o mais importante cartão postal do país. Diante disso, era
redobrada a atenção para com os aspectos da estética, chegando a imprensa a
referir-se à Avenida Central como uma das “avenidas projetadas para o
embelezamento da capital”. 26
A fim de que a Avenida Central se apresentasse à altura das expectativas
colocadas, foi promovido um “concurso de fachadas”, com o objetivo de impedir
que aí se manifestasse a antiga forma de construir sem arte, selecionando os
prédios condizentes com a grandiosidade da Avenida e garantindo espaço para as
construções artísticas. A repercussão desse concurso foi logo percebida, dizendo
a imprensa : “Já os capitalistas e o publico em geral começam a convencer-se de
que os edificios da avenida devem ter esthetica e devem dar testemunho publico
do nosso adiantamento artistico e intellectual”. 27
Para aqueles que desejavam ver surgir o novo Rio de Janeiro, mais belo e
moderno, a reforma urbana parecia ser a oportunidade ideal. Por isso, surgiam as
manifestações de apoio ao projeto do prefeito Pereira Passos :
11
“(...) Então V. Ex. traçará á vontade as novas artérias sobre os escombros do
antigo coração da metrópole, tendo o cuidado de exigir construcções em
harmonia com a grandeza da reforma, todas attendendo ás modernas exigencias
da hygiene e conforto e aos requisitos da arte de architectura, (...)
E se V. Ex. estimular essa reforma benemerita, estabelecendo premios annuaes,
embora modestos, recompensando as casas mais bellas, as villas operárias mais
hygienicas e confortáveis, em breve haverá ahi uma verdadeira febre de esthetica
urbana (...)”. 28
Está claro que a qualidade estética das edificações era um dos elementos que
requeria grande atenção do poder público e da própria população. Esta mesma
preocupação fazia surgir, também, outras propostas, como a da criação de “um
imposto especial para as casas cujo aspecto não obedecesse a um certo numero de
regras : o imposto sobre a feiura, o imposto esthetico. Quem quizesse construir
esses abominaveis caixões que constituiam a architectura colonial tradicional
podia fazêl-o; mas pagaria o enfeiamento das nossas ruas.” 29
As medidas que contribuíam para o embelezamento e engrandecimento das
cidades, eram aclamadas como demonstração de patriotismo daqueles que
acreditavam no Brasil moderno. Dizia-se : “(...) o verdadeiro e são amor á patria é
esse que lhe imprime os vestigios do esforço e da dedicação de seus filhos, da
vontade que elles têm de alindal-a, de enobrecel-a, de fazel-a tão importante e tão
bella como as mais bellas e importantes”. 30
O embelezamento das praças e a concepção arquitetônica dos espaços urbanos
surgiam como outro fator desse projeto estético para a cidade moderna. O
tratamento paisagístico das praças já existentes e a abertura de outras, vão ser
medidas destinadas a valorizar a cidade. Nesses espaços, surgiam equipamentos
públicos artisticamente projetados, muitos desses destinados ao lazer da população.
Em Botafogo, por exemplo, o projeto da Avenida Beira Mar, incluía algumas
construções dispostas da seguinte forma : “Ao meio d'estes ajardinados ficarão
collocados um restaurante, um theatrinho para crianças, chalets de abrigo, e no
extremo da Avenida um pavilhão para musica, no centro de um bello bosque, que
certamente se tornará um ponto concorridíssimo. (...)”. 31 Era a valorização da
cidade como “vitrine da civilização” que gerava as modificações dos espaços
urbanos e incentivava o surgimento desses novos equipamentos que deveriam,
12
também, estar de acordo com a grandeza e a beleza da cidade, sendo alvo de
críticas, aqueles que não atingiam tal objetivo.
Começavam a proliferar, também, edifícios públicos que surgiam para atender
funções decorrentes do desenvolvimento econômico, político e social, mas que
deveriam também marcar presença na cidade com sua monumentalidade. Na
Avenida Central, ao lado de edifícios destinados às melhores casas de comércio,
às grandes companhias, aos clubes e hotéis, o governo construiu a Escola de Belas
Artes, a Biblioteca Nacional, o Supremo Tribunal, o Teatro Municipal e o Palácio
Monroe, todos tratados como monumentos que se impunham no meio urbano
como importantes referenciais da cidade modernizada.
Esses edifícios públicos monumentais se destacavam na cidade, em virtude de
uma representação arquitetônica própria e de uma localização, que os
transformava em pontos focais na estrutura urbana, pois surgiam protegidos por
limites espaciais bem precisos e com posição de destaque em relação às demais
edificações e aos percursos viários.
Analisando o caso do Teatro Municipal do Rio de Janeiro - imponentemente
implantado diante de uma praça, compondo um cenário com outros prédios de
grande porte, como a Biblioteca Nacional e o Palácio Monroe - é possível
entender como essas tipologias requeridas pelo novo modo de vida urbana,
expressavam, através da arquitetura, as aspirações de beleza próprias da época.
Opondo-se às críticas sobre os gastos excessivos decorrentes da construção do
Teatro Municipal, a imprensa dizia : “Naturalmente, lhes parecia muito mais
atilado deixar fazer a Avenida, e depois desapropriar meia duzia de predios para
construir o theatro ou sepulta-lo n'uma qualquer dessas ruas estreitas, onde não
fosse visto nem suspeitado.” 32
Discursos como este, demonstram o desejo de evidenciar esses equipamentos
públicos mais importantes, colocando-os em posição de destaque, valorizando-os
como referenciais no cenário citadino, entendido como uma estrutura urbana
arquitetonicamente elaborada.
É importante atentar que, trabalhando com esses diversos elementos urbanos, o
projeto estético delineado para modernização e embelezamento do Rio, não se
13
destinava à cidade como um todo, sendo aplicado, especificamente, na construção
daqueles cenários planejados para vida cotidiana de uma elite civilizada,
rejeitando toda uma outra realidade urbana, considerada incompatível com os
ideais de progresso da época.
A valorização e o embelezamento da paisagem urbana, sob a orientação desse
projeto estético, era exaltada pelo discurso oficial que via essa ação sobre a cidade
do Rio de Janeiro, como o ponto de partida para um processo semelhante em
outras cidades do país, ampliando, assim, as imagens referenciais do Brasil
moderno. Dizia-se então :
“Que vale, porém, a grita desharmonica desses pequenos sentimentos
subalternos, em face do enthusiasmo, dos applausos e da admiração sem limites
que essa benemerita obra tem despertado nesta cidade e no país inteiro, em cujos
centros de população vae servindo de fecundo estimulo a emprehendimentos
semelhantes ?” 33
Identifica-se o rebatimento deste ideário no discurso do poder público de diversos
estados brasileiros. Como exemplo, o item “Obras Públicas” da mensagem de
governo dirigida à Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, em 1906, fazia o
seguinte comentário :
“Acompanhar cada um dos membros da grande Federação brasileira, nos limites de suas
forças econômicas, o bello exemplo que nos tem dado o eminente estadista Excmo. Sr.
Dr. Rodrigues Alves, cujo programma governamental rigorosamente executado bastante
fomento vai dando ao commercio, ás industrias, á navegação, a todos os ramos da
actividade humana e com especialidade ao saneamento e á belleza da Capital Federal, é
dever de honra, obrigação inherente ao espirito de continuidade que, no dizer expressivo
do preclaro Dr. Affonso Penna, ‘deve caracterizar os governos nas questões que tocam
de perto á honra, á propriedade e á grandesa da Nação e dando impulso conveniente ás
medidas que interessam ao bem estar, ao progresso e á commodidade do povo, de modo
a tornar amada a República’”. 34
Verifica-se que, de fato, ocorreu um processo de transformação da paisagem
urbana que atravessou todo o final do século XIX e início do XX, fazendo surgir, no
meio citadino, espaços concebidos segundo uma nova visão estética de cidade, onde
a arquitetura desempenhava um papel importante. Em todo o país, os governos
estaduais passaram a investir em melhoramentos urbanos visando transformar as
capitais dos seus estados, em cidades saudáveis, ordenadas e belas, a exemplo da
14
Capital Federal que se firmou como um paradigma de cidade moderna no Brasil do
início do século XX.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
1 - PECHMAN, Robert Moses. A cidade dilacerada : ordem e urbanismo. In : Encontro Nacional
da ANPUR, 5, Belo Horizonte, 1993. P. 15/16.
2 - Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro. Códice 44-2-7. F. 9-14. Apud. BENCHIMOL, Jaime
Larry. Pereira Passos : um Haussmann tropical. Rio de Janeiro : Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992. P. 131/2.
3 - PECHMAN, Sérgio & FRITSCH, Lilian. A reforma urbana e seu avesso : algumas
considerações a propósito da modernização do Distrito Federal na virada do século. Revista
Brasileira de História. V.5. n.8/9. São Paulo ; ANPUH/Marco Zero, set/1984, abr/1985. P. 174.
4 - Código de Posturas da Illustrissima Camara Municipal do Rio de Janeiro e Editaes da mesma
Camara. Rio de Janeiro : Eduardo & Henrique Laemmert, 1870. Secção segunda. Título Primeiro.
Parágrafos 1 a 14.
5 - PECHMAN & FRITSCH. Op. Cit. P. 150. Grifo nosso.
6 - 1° Relatório da Commissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro :
Typographia Nacional, 1875. P. 17. Grifo nosso.
7 - Id. Ibid. P.18/19.
8 - Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro. Critica dos trabalhos da respectiva comissão.
Collecção de artigos publicados no “Jornal do Commercio” de 23 de Fevereiro a 15 de Abril de
1875 por L. R. Vieira Souto. Rio de Janeiro : Lino C. Teixeira, 1875. P. 75/107.
9 – Id. Ibid.. P. 71.
10 - PECHMAN & FRITSCH. Op. Cit. P. 174.
11 - FOGLIANI, Giuseppe. Projeto de Melhoramentos na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro : Tip. E Lit. F. Borgonovo, 1903. Apud. BENCHIMOL. Op. Cit. P. 198.
12 – FOGLIANI. Op. cit. P. 13/4. Id. ibid. P. 199. Grifo nosso.
13 - CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas : o imaginário da República no Brasil.
São Paulo : Companhia das Letras, 1990. P. 23.
14 – PECHMAN. Op. cit. P. 1.
15
15 - PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um novo olhar sobre a cidade : a nova história cultural e as
representações do urbano. In : Seminário de História Urbana, 2, Salvador, 1993.. P. 9/11.
16 - Projeto de Melhoramento e Embellezamento da Cidade do Rio de Janeiro pelo Dr. Joaquim
Galdino Pimentel, Engenheiro Civil. Rio de Janeiro : Typ. De G. Leuzinger & Filhos, 1891.
17 - Apreciação do jornal Correio do Povo, de 16 de novembro de 1890, sobre o Projeto de
Melhoramento e Embellezamento da Cidade do Rio de Janeiro, do Dr. Galdino Pimentel. Id. Ibid. P. 10.
18 - GALVÃO, Tito Barreto. Saneamento e Embellezamento da Capital Federal. Rio de Janeiro :
Typ. De G. Leuzinger & Filhos, 1892. P. 17.
19 - Id. Ibid. P. 25.
20 - Id. Ibid. P. 23. Grifo nosso.
21 - DEL BRENNA, Giovanna Rosso. (org.). Uma cidade em questão II : O Rio de Janeiro de
Pereira Passos. Rio de Janeiro : Índex, 1985. P. 8.
22 - PECHMAN & FRITSCH. Op. Cit. P. 175.
23 - Chronica. Renascença, abril 1904, p. 41-44. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 173/174. Grifo
nosso.
24 - Cf. GREGOTTI, Vittorio. Território da Arquitetura. São Paulo : Perspectiva, 1994. P. 12.
25 - Prefeitura do Districto Federal. Melhoramentos da Cidade projectados pelo Prefeito do
Districto Federal Dr. Francisco Pereira Passos. Rio de Janeiro : Typographia da Gazeta de
Noticias, 1903. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 43/44.
26 - Embellezamento da cidade. Correio da Manhã, 17/4/1903. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 50.
27 - O concurso architectonico. Jornal do Brasil, 31/3/1904. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 162.
28 - Carta aberta ao Prefeito. Gazeta de Notícias, 6/3/1903. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 33/4.
29 - R. Singapura. Notas. A Notícia, 16/7/1904. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 203.
30 - Avenida Central. Jornal do Brasil, 14/11/ 1905. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 391.
31 - Souza Rangel. Melhoramentos do Rio. Renascença, dez/1904. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 283.
32 - Theatro Municipal. O Commentario, abril 1904, P. 306. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 173.
33 - Discurso proferido pelo Dr. Aureliano Portugal, Secretario do Prefeito do Distrito Federal, no
dia 21 de fevereiro de 1906, por occasião de se inaugurar, no Jardim da Praça da Gloria, a Fonte
Artistica de marmore, offerecida á cidade do Rio de Janeiro, pelos industriaes portuenses Adriano
Ramos Pinto & Irmão. Apud. DEL BRENNA. Op. Cit. P. 458/9.
34 - Mensagem apresentada á Assemblea Legislativa do Estado em 1o. de setembro de 1906 por
occasião da installação da 3a. sessão de 4a. legislatura pelo Presidente do Estado Monsenhor
Walfredo Leal. Parahyba do Norte : Imp. Official, 1906. P. 14/5. Grifo Nosso.