Texto Crise Energia Brasil

11
Foi loucura, mas houve método nela: gênese, dinâmica e sentido da crise energética brasileira César Benjamim Em eletricidade, o Brasil ocupa no mundo uma posição semelhante à da Arábia Saudita em petróleo. Graças a isso, mais de 90% de nossa capacidade de geração se baseia em duas coisas gratuitas, a água das chuvas e a força da gravidade. Bacias hidrográficas generosas, com centenas de rios permanentes e caudalosos, se espalham por grandes regiões - Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte - cujos regimes de chuvas são bem diferentes. Por serem rios de planalto, seguem trajetórias em que, de modo geral, a declividade é suave. Quando barrados, formam grandes lagos. São energia potencial estocada. É só fazer a água cair, passando por uma turbina, que geramos a eletricidade mais barata do mundo, de fonte renovável e não poluente. Se as barragens forem construídas em seqüência, ao longo do curso de um rio, a mesma gota d'água é usada inúmeras vezes, antes de se perder no oceano. Como a quantidade de chuvas varia em cada ano, os reservatórios funcionam como uma espécie de poupança. A decisão de formá-la data de cinqüenta anos atrás. Foi impulsionada pela maior seca de nossa história, que durou de 1951 a 1956. Nunca, até hoje, se viu coisa igual. Cinco anos sucessivos com pouquíssima chuva em quase todo o país provocaram grandes transtornos e um pesado racionamento de energia. Tínhamos então 3.500 megawatts-hora (mWh) de potência instalada, sob controle do capital privado, principalmente estrangeiro, que investia pouco e travava uma permanente queda de braços com o Estado para obter aumentos de tarifas. O Brasil da década de 1950 queria crescer. Precisava de energia. Em 1957, o Estado construiu a barragem de Furnas, para garantir o necessário aumento de oferta. Como a memória da grande seca era fresca, o moderno sistema elétrico brasileiro, que nasceu ali, foi dimensionado para suportar outra ocorrência como aquela, acumulando combustível - ou seja, água - suficiente para cinco anos de operação, mesmo sem chuvas. A expansão do sistema passou a ser planejada de modo que a demanda prevista para os cinco anos seguintes permanecesse sempre igual à "energia firme", ou seja, a energia que pode ser gerada em regime de seca. A taxa de risco tolerável foi fixada bem baixa, em 5%. Com o esforço e o talento de várias gerações, tudo se aperfeiçoou. Como as chuvas também variam de região para região, o sistema foi interligado por linhas de transmissão, de modo a permitir que um operador central racionalize o uso da água disponível em todo o país. Graças a isso, os reservatórios situados em diferentes bacias hidrográficas, que não têm nenhuma ligação física entre si, funcionam como se fossem vasos comunicantes. Se chove pouco na bacia do rio São Francisco e muito na bacia do rio Paraná, a usina de Paulo Affonso é orientada a colocar pouca energia na rede, economizando sua água que se tornou preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensação. Ao colocar mais potência na rede, Itaipu cede água, indiretamente, para Paulo Affonso. Nos lares, escritórios e fábricas, ninguém percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o fornecimento da energia em cada momento. Quanto à garantia de desempenho no tempo, um sofisticado modelo estatístico, aqui concebido e alimentado com os dados da hidrologia brasileira, permite gerar uma série que simula o comportamento do nosso

Transcript of Texto Crise Energia Brasil

  • Foi loucura, mas houve mtodo nela: gnese, dinmica e sentido da crise energtica brasileira Csar Benjamim Em eletricidade, o Brasil ocupa no mundo uma posio semelhante da Arbia Saudita em petrleo. Graas a isso, mais de 90% de nossa capacidade de gerao se baseia em duas coisas gratuitas, a gua das chuvas e a fora da gravidade. Bacias hidrogrficas generosas, com centenas de rios permanentes e caudalosos, se espalham por grandes regies - Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte - cujos regimes de chuvas so bem diferentes. Por serem rios de planalto, seguem trajetrias em que, de modo geral, a declividade suave. Quando barrados, formam grandes lagos. So energia potencial estocada. s fazer a gua cair, passando por uma turbina, que geramos a eletricidade mais barata do mundo, de fonte renovvel e no poluente. Se as barragens forem construdas em seqncia, ao longo do curso de um rio, a mesma gota d'gua usada inmeras vezes, antes de se perder no oceano. Como a quantidade de chuvas varia em cada ano, os reservatrios funcionam como uma espcie de poupana. A deciso de form-la data de cinqenta anos atrs. Foi impulsionada pela maior seca de nossa histria, que durou de 1951 a 1956. Nunca, at hoje, se viu coisa igual. Cinco anos sucessivos com pouqussima chuva em quase todo o pas provocaram grandes transtornos e um pesado racionamento de energia. Tnhamos ento 3.500 megawatts-hora (mWh) de potncia instalada, sob controle do capital privado, principalmente estrangeiro, que investia pouco e travava uma permanente queda de braos com o Estado para obter aumentos de tarifas. O Brasil da dcada de 1950 queria crescer. Precisava de energia. Em 1957, o Estado construiu a barragem de Furnas, para garantir o necessrio aumento de oferta. Como a memria da grande seca era fresca, o moderno sistema eltrico brasileiro, que nasceu ali, foi dimensionado para suportar outra ocorrncia como aquela, acumulando combustvel - ou seja, gua - suficiente para cinco anos de operao, mesmo sem chuvas. A expanso do sistema passou a ser planejada de modo que a demanda prevista para os cinco anos seguintes permanecesse sempre igual "energia firme", ou seja, a energia que pode ser gerada em regime de seca. A taxa de risco tolervel foi fixada bem baixa, em 5%. Com o esforo e o talento de vrias geraes, tudo se aperfeioou. Como as chuvas tambm variam de regio para regio, o sistema foi interligado por linhas de transmisso, de modo a permitir que um operador central racionalize o uso da gua disponvel em todo o pas. Graas a isso, os reservatrios situados em diferentes bacias hidrogrficas, que no tm nenhuma ligao fsica entre si, funcionam como se fossem vasos comunicantes. Se chove pouco na bacia do rio So Francisco e muito na bacia do rio Paran, a usina de Paulo Affonso orientada a colocar pouca energia na rede, economizando sua gua que se tornou preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensao. Ao colocar mais potncia na rede, Itaipu cede gua, indiretamente, para Paulo Affonso. Nos lares, escritrios e fbricas, ningum percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o fornecimento da energia em cada momento. Quanto garantia de desempenho no tempo, um sofisticado modelo estatstico, aqui concebido e alimentado com os dados da hidrologia brasileira, permite gerar uma srie que simula o comportamento do nosso

  • sistema hdrico em um perodo - evidentemente, virtual - de dois mil anos. Espetacular ferramenta de planejamento: toda vez que as simulaes mostravam um risco de ocorrncia de dficit futuro maior do que 5%, estava na hora de construir uma nova hidreltrica. E se, por falta de chuvas, o dficit nos fazia aproximar de 5% de risco no presente, estava na hora de ligar usinas trmicas, que formam o "banco de reservas" do sistema. Dessa combinao de caractersticas, resultava uma altssima confiabilidade. O Brasil, finalmente, tinha energia barata e segura. Mesmo sendo estatal, o setor nunca foi monoltico. Organizou-se em torno de uma holding - a Eletrobras, criada em 1962 -, cercada por empresas federais (principalmente, grandes geradoras), estaduais (principalmente distribuidoras, mas tambm geradoras) e at mesmo algumas empresas privadas de menor porte, que continuaram existindo. Esse time transformou o Brasil em campeo mundial de hidreletricidade. Entre 1957 e 1995, a capacidade instalada saltou de 3.500 mWh para 55.000 mWh. A palavra racionamento foi morar nos dicionrios e na memria dos cidados mais velhos. Os especialistas estrangeiros em hidreletricidade vinham at ns, para aprender, e nos invejavam. Que pas no gostaria de ter um sistema energtico limpo, renovvel, barato, capaz de estocar combustvel para cinco anos, apto a transferir grandes blocos de energia do Sul para o Norte, do Nordeste para o Sudeste, gerenciando de forma integrada bacias hidrogrficas fisicamente distantes milhares de quilmetros? Que planejador no sonharia pilotar um sistema que lhe d vrios anos de folga para tomar decises, pois absorve sem nenhum problema qualquer descompasso presente entre oferta e demanda? Quem no gostaria de gerenciar empresas com tantas usinas j amortizadas, altamente rentveis mesmo vendendo barato a energia que produzem? Era assim o sistema eltrico brasileiro, at seis anos atrs. Poderia continuar mais ou menos assim, submetendo-se, claro, aos aperfeioamentos cabveis. Sorte nossa. Os outros pases que tambm usam muita energia hidreltrica, como os Estados Unidos e o Canad, j esgotaram seu potencial. Ns, no. Estamos longe disso. Mesmo rejeitando projetos megalomanacos e aceitando restries ambientais rigorosas, ainda podemos pelo menos dobrar o potencial hidreltrico instalado, expandindo um sistema cujo custo marginal (o custo de construo de novas unidades) muito inferior ao da opo termeltrica, que usa principalmente diesel ou gs, inevitvel na maior parte do mundo. At o fim da dcada de 1970, o sistema gerava sem problemas os recursos para sua prpria expanso. Isso comeou a mudar nos anos 80, com as crises gmeas da dvida externa e da inflao. Sucessivos governos passaram a usar a capacidade de endividamento de nossas robustas empresas eltricas para obter os dlares necessrios ao pagamento dos juros exigidos pelos credores externos. Ao mesmo tempo, reprimiam sistematicamente reajustes de tarifas, para conter a inflao. Com as empresas endividadas (sem que os recursos por elas captados tivessem sido usados no prprio setor) e tornadas deficitrias, logo se estabeleceu uma ciranda de calotes. As distribuidoras - que so a "bilheteria" do sistema, pois recebem o dinheiro do consumidor - tiravam sua parte e transferiam o que sobrava; as estaduais faziam o mesmo, quando era possvel; as grandes geradoras federais, situadas no fim da linha, morriam na praia. Em meados da dcada de 1990, as dvidas cruzadas atingiam US$ 50 bilhes. Era o argumento de que precisavam aqueles que passaram a defender o desmonte do sistema.

  • Chegava o tempo das privatizaes. O primeiro passo preparatrio para as privatizaes - dado por Fernando Henrique Cardoso, ainda como ministro da Fazenda - foi a consolidao e posterior anulao dessas dvidas cruzadas intra-setoriais, recolocando as empresas em posio rentvel. O segundo passo foi a modelagem de um novo sistema no estatal, que seria baseado na atrao de investidores privados, especialmente estrangeiros. A energia passaria a ser uma mercadoria como as demais, sujeita a oscilaes de oferta e demanda, e o sistema estatal cooperativo daria lugar a um sistema privado concorrencial. Coisa moderna. Era uma transio sem precedentes, aqui e no mundo. Desconhecida. Dificlima. Como veremos, talvez impossvel. Mas o Banco Mundial exigia. J na Presidncia, Fernando Henrique comeou ento a operao-desmonte, cuja lgica louca e implacvel, como veremos, lanar o Brasil na maior crise de sua histria. O governo entregou a charada a uma empresa inglesa, a Coopers & Lybrand, com a orientao de privatizar tudo, rapidamente. Foi mais realista que o rei. Alguns anos antes, em plena era Reagan, os Estados Unidos, ptria do liberalismo, haviam tomado o cuidado de preservar sob controle estatal o seu sistema de gerao hidreltrica, parte do qual continua a ser operado diretamente pelo Exrcito. Isso se explica, de um lado, pela necessidade de preservar nas mos do Estado o ncleo estratgico do sistema energtico, sem o qual o pas pra. De outro, porque gerenciar hidreltricas gerenciar as reservas de gua, com implicaes diretas sobre abastecimento, irrigao agrcola, navegao interior, meio ambiente, pesca, turismo e inmeras outras atividades. (A Frana foi muito mais radical: seu sistema eltrico permanece estatal e monoltico.) Nada disso comoveu os nossos tecnocratas. Eles entendem de derivativos, mercados futuros, hedges, rolagens, emprstimos-ponte, fluxos financeiros em geral, mas no sabem nada de economia real, cuja base justamente a energia. So funcionrios do capitalismo financeiro. Acordam pensando em como atrair investimentos estrangeiros para equilibrar temporariamente as contas externas que eles mesmos arrombaram. Dormem pensando em como obter, da sociedade, mais recursos para manter em dia os pagamentos de juros a bancos e instituies internacionais, que lhes daro bons empregos depois. Vivem gerenciando um eterno curto prazo. Em suas mos, o melhor sistema hidreltrico do mundo, o motor da economia brasileira, virou um ativo financeiro a mais, disponvel para fazer caixa. Um belo patrimnio a ser consumido. O relatrio produzido pela Coopers & Lybrand uma das maiores obras-primas da ignorncia universal. Como o sistema ingls puramente trmico, eles simplesmente ignoraram a forma especfica de otimizao da hidreletricidade brasileira, tratando as linhas de transmisso como uma parte "neutra" do sistema, uma parte que permaneceria estatal, com a gerao e a distribuio sendo entregues a agentes privados. Se implantado, esse modelo causaria uma perda imediata de 25% na potncia instalada. A gritaria foi enorme, e algumas loucuras foram corrigidas. A reforma acabou criando uma empresa privada, chamada Operador Nacional do Sistema (ONS), encarregada de controlar toda a gerao, seja ela feita em usinas privadas ou ainda estatais. ele quem determina quanta energia cada usina colocar na rede em cada momento (conforme a base de

  • dados fsicos do sistema) e a que preo (calculado a partir do custo marginal da operao do sistema naquela configurao). O ONS ignora contratos ou qualquer tipo de acerto entre empresas. Tem poder absoluto. Em contrapartida, seu modo de operar transparente para todos os agentes envolvidos: as decises so tomadas por computadores, segundo programas de otimizao conhecidos. Os demais integrantes do sistema tm cpias atualizadas dos dados e dos programas, de modo que as decises do ONS podem ser acompanhadas e checadas. Ao contrrio do que se pensa, a operao fsica do sistema permaneceu, pois, absolutamente centralizada, mesmo depois das privatizaes. uma especificidade brasileira, que decorre da herana de nossa base hidreltrica interligada. A empresa privada que compra uma geradora apenas uma investidora em energia, e no uma operadora de usina. Ela no controla sua prpria operao, no define quanto vai produzir, nem fixa seus preos. Seu ganho de natureza exclusivamente financeira. Como se v, o novo modelo no conta com um mercado de energia propriamente dito - a menos para a parcela sobrante -, o que demonstra que a venda das usinas obedeceu apenas a um imperativo ideolgico e a um interesse imediato de obter recursos. Outros absurdos, no entanto, persistiram, alm do absurdo em si, que esquartejar e privatizar o setor. A venda comeou pela "bilheteria" (as distribuidoras), antes mesmo que fosse criada a agncia reguladora (Aneel), que seria uma pea-chave no funcionamento de qualquer novo modelo. Os contratos foram leoninos: a Light, por exemplo, que ao ser privatizada tornou-se uma subsidiria da EDF francesa, compra energia de Furnas (ainda estatal) a US$ 23 o kWh e a entrega ao consumidor residencial a US$ 120 (o consumidor francs, cuja renda muito maior que a nossa, paga US$ 75 mesma EDF para receber 1 kWh gerado em usinas atmicas, muito mais caras). Durante oito anos, por contrato, a empresa privatizada no precisa repassar ao consumidor nenhum ganho de produtividade, nem precisa fazer investimentos na expanso do sistema que adquiriu. Um convite remessa de lucros. O capital estrangeiro no se fez de rogado. Segundo a Gazeta Mercantil de 13 de maro de 2001, a Light privatizada distribuiu como dividendos 98% de seu lucro, generosamente entregues aos novos acionistas estrangeiros. O grupo americano AES retirou US$ 300 milhes da Cemig em dois anos, sem iniciar nenhuma obra nova. Quando o governador Itamar Franco interveio, retomando o controle da empresa, foi crucificado pela equipe econmica, insultado em Nova York por Armnio Fraga e tratado como dbil mental pela imprensa. Na outra ponta do sistema, em vez de atrair capitais privados para empreendimentos novos, garantindo assim o aumento da capacidade geradora, o governo colocou venda as usinas hidreltricas que j existiam, muitas das quais, como vimos, amortizadas, capazes de gerar quase de graa: US$ 5 o kWh. Os investidores queriam o que estava pronto, de modo a recuperar rapidamente o capital investido. Ganharam a parada. O sistema eltrico brasileiro comeou a ser financeiramente canibalizado, como fora em passado longnquo, e suas fatias foram sendo distribudas pelo mundo inteiro. A antiga Eletrosul (hoje Gerasul) virou belga; a Cerj (RJ), chilena; a CEE-NNE (Norte e Nordeste), a CEE-CO (Centro-Oeste), a Eletropaulo, a Elektro e a Cesp-Paranapanema (SP), americanas; a Coelce (CE), a Coelba (BA) e a Celpe (PE), espanholas; e

  • assim por diante. Tudo com dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), retirado do nosso salrio. S em 1998, o BNDES, gerente do FAT, repassou R$ 5 bilhes para financiar os grupos privados que compraram estatais do setor eltrico. Detalhe macabro: a Resoluo 2.668 do Banco Central, assinada em 1999, probe que o mesmo BNDES conceda financiamentos a empresas estatais, proibidas de investir. Na contabilidade do FMI, esse tipo de investimento gasto, gera dficit pblico. Como boa parte da gerao continuava - e continua - estatal, o Brasil parou de investir na expanso do sistema energtico, tendo em vista obter um supervit contbil. Os investidores estrangeiros, por sua vez, preferiram seguir comprando as usinas prontas, que o governo generosamente lhes ofertava. Com o crescimento natural da demanda e a necessidade de colocar, a cada ano, mais potncia na rede, restou ao sistema consumir suas reservas de gua. No novo modelo, as decises de investimento foram entregues a agentes privados, preferencialmente estrangeiros, que trariam dlares e tecnologias. Tais agentes, como se sabe, tm um cardpio de opes em escala mundial. No portfolio de negcios ao seu alcance em cada momento, pode ocorrer perfeitamente que o item "gerao eltrica no Brasil" ocupe uma posio tremendamente modesta, de acordo com suas avaliaes de rentabilidade e risco. No um escndalo, nem evidncia de m-f, que eles decidam no investir aqui. Escndalo e evidncia de m-f o governo entregar o destino do nosso setor energtico a quem nem sabe direito onde fica o "Brazil". Uma vez tomada, tal deciso contm um desdobramento lgico: a energia, no Brasil, teria de ser transformada em um negcio muito atrativo. Ora, usinas hidreltricas exigem a imobilizao de recursos vultosos, e nelas o retorno do capital muito mais lento. O investidor privado prefere naturalmente a termeletricidade, de retorno mais rpido, embora de maior custo (entre US$ 40,00 e US$ 60,00 o mWh), pois nela o combustvel comprado. Nenhum problema, desde que o custo possa ser repassado ao consumidor. (Estranho mercado, que tende a levar o sistema a uma configurao em que a mercadoria mais cara substitui a mais barata, mas deixemos isso de lado.) Eis o que importa destacar agora: a opo ideolgica pela privatizao embutia uma opo tcnica, tecnicamente indefensvel: a mudana da matriz energtica brasileira. Este, como veremos, um ponto-chave da crise. Ao lanar-se em tamanha aventura, to arriscada e to desnecessria, o governo brasileiro insistiu em trs mitos. O primeiro: real e dlar manteriam a paridade durante muito tempo, sem sobressaltos, pois a estabilidade cambial seria garantida pelo Banco Central. O segundo: o petrleo (e, com ele, o gs boliviano, combustvel das usinas trmicas a serem construdas) permaneceria barato, pois o governo americano garantia que o Oriente Mdio estava sob controle. O terceiro: grandes investidores estrangeiros estavam indceis para despejar seus dlares aqui. O erro de clculo - se clculo houve - no poderia ter sido maior. Em janeiro de 1999 o real desabou, e o governo foi obrigado a alterar o regime de cmbio, que passou a flutuar. Enquanto isso, o preo do petrleo triplicou, atingindo o patamar de US$ 30; como o preo do gs boliviano indexado ao petrleo, o custo de gerao nas usinas trmicas previstas

  • saltou para mais de US$ 40 o mWh, com o dlar valendo agora o dobro, em real (ver "Geopoltica do gs"). Os investidores, por sua vez, multiplicaram exigncias: 70% dos novos projetos deveriam ser financiados pelo BNDES, o preo do gs deveria ser estabelecido em contratos de longo prazo, o governo brasileiro precisava assumir os riscos cambiais de todas as operaes, e assim por diante. (No esqueamos: num primeiro momento, o investidor estrangeiro transforma dlares em reais, para operar dentro da economia brasileira; no futuro, ele precisar sair do real e retornar ao dlar, para realizar seu lucro na moeda que interessa aos seus acionistas; por isso, a relao entre o real e o dlar, hoje imprevisvel, passa a ser decisiva para determinar se ele ter lucro ou prejuzo; o "risco cambial" do negcio.) Muitos outros problemas se acumularam, pois no faltavam contradies no novo modelo, nunca dantes testado. Problemas nos quais o governo nunca pensara, porque no entende do ramo. Exemplos. Como, na maior parte do tempo, o Brasil tem sobra de energia hidreltrica barata, e como o Operador Nacional do Sistema quem define em cada momento que energia ser efetivamente jogada na rede, as usinas trmicas desejadas pelo governo fatalmente permaneceriam desligadas nos anos de boas chuvas. Que investidor privado aceitaria construir essas usinas sem contratos de longo prazo, com preo certo e garantido? Mas, que distribuidoras aceitariam assinar esses contratos em um momento de alta do preo do gs, sabendo que, pelas novas regras, elas perderiam seus consumidores cativos em 2005, quando se estabeleceria a concorrncia tambm nessa ponta do sistema? Por outro lado, j em 2002 geradoras e distribuidoras seriam livres para negociar seus preos. Logo, era essencial que a agncia reguladora (Aneel) definisse a chamada "referncia externa do preo da energia", tendo em vista proteger os consumidores contra acordos abusivos, firmados pelas empresas. Mas, com que critrios a Aneel poderia definir tal referncia, se o recm-criado mercado spot estava sujeito a variaes gigantescas de preos, e se no existem no Brasil mercado futuro de energia nem consumidores livres? Impasses desse tipo, sempre renovados, foram paralisando as decises. Criou-se um gritante descompasso entre a velocidade de desmonte do modelo anterior, que era de lebre, e a velocidade com que se conseguia fazer avanar a implantao do novo modelo, que simplesmente empacara. Em relatrios, reunies e seminrios, os especialistas multiplicaram alertas: "Sem investimentos em gerao e transmisso, continuamos gastando os estoques de gua. A capacidade do sistema vai se esgotar. As curvas de oferta e demanda se cruzaro nos prximos anos." O Plano Decenal da Eletrobras - documento oficial, publicado em 1998 -, afirmava que 2000 seria "crtico" em relao a risco de dficit. Ainda era tempo. As privatizaes poderiam ser suspensas, mantendo nas mos do governo a capacidade de gerenciar um estoque regulador de energia barata. As empresas estatais de energia, entesouradas em pelo menos R$ 30 bilhes, poderiam ser autorizadas a retomar os investimentos em grande escala (Furnas, por exemplo, afirma ter R$ 10 bilhes parados, por ordem do governo). O BNDES poderia ser liberado para somar-se a elas nesse esforo. Problemas relativamente simples de transmisso, que exigiam investimentos pequenos, permitiriam otimizar o sistema um patamar mais

  • adequado. Uma poltica agressiva de conservao de energia contribuiria. Novas tcnicas de gerao distribuda, co-gerao e energias alternativas estavam disponveis. A montanha, porm, no se moveu. Chegamos a um ponto crucial deste artigo, o de compreender o incompreensvel: partindo de um sistema reconhecidamente confivel e repleto de reservas, como foi possvel cairmos em um buraco negro? Por que a crise, anunciada com tanta antecedncia, no foi detida e revertida? Como pde o sistema marchar para o suicdio, como se fosse uma fatalidade? Para tal, temos de compreender como os agentes relevantes do novo modelo se comportaram ao enxergar a crise que se agigantava. Imaginemos que, em 1998, um extraterrestre preocupado com o destino do Brasil procurasse esses agentes, perguntando o que cada um estava fazendo, diante da aproximao do colapso. Eis o que ele ouviria: (a) Do Operador Nacional do Sistema: "Mais do que ningum, eu vejo a aproximao da crise, pois sou responsvel pela operao fsica do sistema. Mas, na nova diviso de tarefas, minha responsabilidade otimizar a oferta de energia em cada momento, atendendo a demanda que cresce. Sem investimentos, sem novas usinas geradoras, sem linhas de transmisso, resta-me esvaziar os reservatrios, para cumprir minha misso no presente, e enviar relatrios ao governo, alertando-o para a situao. o que tenho feito." (b) Do Ministrio das Minas e Energia: "No posso liberar os investimentos das empresas ainda estatais de energia, pois elas esto submetidas ao Conselho Nacional de Desestatizao, comandado pelo pessoal da Fazenda. Informei o presidente sobre o risco de dficit, apontado nos relatrios do ONS. O presidente est atado pelos acordos com o FMI, mas apoiou o programa emergencial que concebi, que prev a construo de 49 usinas trmicas, dando aos investidores garantias sobre o preo futuro do gs." (c) Das distribuidoras (parte totalmente privatizada do sistema): "Eu tambm sei que a crise est em curso, mas por favor compreenda minha situao. Neste momento, estou coberta por meus contratos com as geradoras. Se eu contratar mais energia agora, para proteger meus consumidores, terei de estabelecer contratos de 20 anos a US$ 40 o mWh, pois o gs est muito caro. Sei que este preo tende a cair. No poderei repassar o sobrepreo atual aos consumidores, pois a Aneel no me deixa. Mesmo que deixasse, no resolveria o problema, pois meus consumidores ficaro livres para escolher outras distribuidoras em 2005. Contratar agora energia nova, induzindo investimentos em gerao, me levar falncia. Prefiro ficar parada onde estou. Se, pelo menos, eu pudesse fazer contratos mais curtos..." (d) Dos investidores privados em gerao (novos agentes do sistema): "Eu tambm sei que se aproxima uma crise. Mas, por favor, no me venha a Aneel tentar me impor contratos mais curtos com as distribuidoras, pois eles no garantem o retorno do investimento que eu deveria fazer. Por outro lado, esse sbito aumento no preo do gs importado refora a necessidade de proteo cambial, pois minha moeda de referncia o dlar. Fiquei muito inseguro com este novo cmbio flutuante. No posso assinar, sem proteo, contratos de 20 anos, comprometendo-me a entregar uma energia que depende

  • de um gs cujo preo no sei qual ser. Alm disso, o governo de vocs est preparando a privatizao de Furnas, que uma galinha gorda, pronta para dar uma bela canja, enquanto por aqui o governo americano tambm est iniciando um programa de termeltricas. Prefiro esperar para escolher, na hora certa, a opo mais segura e rentvel. Com a aproximao da crise, talvez as autoridades brasileiras fiquem mais sensveis..." (e) Da agncia reguladora (Aneel): "Sei que todos esperam que eu defina o valor normativo, ou 'referncia externa', da energia, de modo a estimular os contratos. Mas no tenho nenhum critrio objetivo para fazer este clculo. A Fazenda no me deixa soltar um valor alto demais, pelo impacto na inflao. Os investidores no aceitam um valor baixo demais. Por outro lado, as distribuidoras no aceitam contratos longos em energia trmica, pois o preo atual do gs est muito alto. Com contratos curtos, os investidores no investem. Como posso regular esta mixrdia?" (f) Do Ministrio da Fazenda: "No estou seguro que se aproxime uma crise energtica, isso coisa do tempo dos nossos avs. Nem me lembro quando tivemos a ltima. Essas incertezas so naturais, fazem parte do processo de alterao da matriz energtica e da transio para o mercado. Quanto s ameaas de colapso, so apenas lobby. Querem hedge cambial, querem tarifas indexadas, querem mexer em contratos j assinados, isso cheira mal. Sou responsvel por trs tarefas consideradas prioritrias pelo presidente da Repblica: garantir supervit fiscal, manter a inflao dentro das metas e concluir a privatizao do setor eltrico. Todas elas reforam minha posio de reter recursos no caixa do governo. Grandes investimentos, feitos por empresas estatais, so coisa do passado. Alm disso, ningum gosta de comprar empresas que estejam iniciando projetos vultosos, pois isso imobiliza muito capital e dificulta uma rpida distribuio de dividendos. Se o mercado funcionar, tudo se arranja." Fiis s suas prprias lgicas, nenhum dos atores era capaz de deter a crise. Pior: vrios deles no desejavam fazer isso, fosse porque implicava um nvel exagerado de exposio ao risco, fosse porque uma crise controlada impulsionaria a transio desejada. Restava s uma carta: Petrobras. Com os investidores privados pulando fora e a situao energtica se agravando, o ministro Tourinho apelou para que a velha e boa estatal construsse as trmicas salvadoras. Do ponto de vista estritamente empresarial, uma operao arriscadssima. Ela aceitou, assumindo para si o risco cambial. Por qu? Primeiro, a Petrobras estava com um mico preto na mo: o famoso gasoduto Brasil-Bolvia, inaugurado em 1998, ainda opera com menos de 40% de sua capacidade, por falta de demanda. Com um agravante: o contrato que a Petrobras assinou do tipo take or pay. Ou seja, a empresa obrigada a pagar por todo o gs que poderia ser entregue, usando-o ou no. Estava tendo um prejuzo financeiro gigantesco, que justificava o risco igualmente gigantesco do novo negcio. Por outro lado, entrando diretamente na produo de energia eltrica, ela diversificaria sua atuao, podendo fortalecer sua posio estratgica, e ainda por cima ajudaria o governo em um momento difcil, tornando-se sua credora moral. Montado para ser privatista, na hora da crise o modelo caa de novo no colo do Estado, mas j inteiramente comandado pela lgica do capital privado. Pois, estruturado historicamente na base hidreltrica, que coerente com nossa dotao natural de recursos, o enorme sistema energtico brasileiro, na prtica, fora levado a abandonar o potencial hdrico

  • inexplorado, sua maior vantagem comparativa no mundo atual. J se movia puxado por um fio imaginrio, atado em uma ponta metafsica. As trmicas, em torno das quais tudo passou a girar, simplesmente no existem! E, em condies normais, no so (nem sero) necessrias para atender a demanda! O rabo passara a abanar o cachorro. Um cachorro cot! Ionesco, Beckett, Kafka, todos os surrealistas, fostes humilhados! * * * Foi loucura, mas houve mtodo nela. Todos agiram segundo sua prpria lgica, e a soma das lgicas particulares que produziu uma paralisia geral diante da crise anunciada. No houve acaso: no novo modelo, ningum mais responsvel pelo problema energtico brasileiro como um todo. A taxa de risco - historicamente mantida sempre abaixo de 5% - fora deixada solta, ao sabor do mercado. Mas, ainda tnhamos energia disponvel, graas s velhas reservas de gua, que estavam indo embora. O tempo corria contra ns. Em agosto de 1999, o risco de racionamento atingiu 30%. O ministro Tourinho consultou os orixs da Bahia e apostou. Afinal, tinha 70% de chances de no-racionamento, e precisava de tempo para deslanchar o programa das trmicas, agora apoiado pela Petrobras. Em dezembro, as reservas hdricas do sistema chegaram no ponto mais baixo da histria: 18%. O risco de black-out foi a 50%. O nvel dos reservatrios passou a ser acompanhado dia a dia, os relatrios passavam de mo em mo, mas qualquer alerta que vazava para a imprensa era logo desmentido. Enredado na teia que ele prprio montara, o governo optara pelo silncio. Em janeiro e fevereiro de 2000, choveu extraordinariamente. So Pedro no nos faltou. Os reservatrios encheram de novo, embora sem retornar a nveis minimamente seguros. Como no veio a crise anunciada, o pessoal da Fazenda confirmou sua impresso de que tudo no passava de um gigantesco lobby. Foi cuidar do que sabe fazer e do que acha importante fazer: conter investimentos e produzir supervit contbil para ficar de bem com o FMI. Graas a essas chuvas excepcionalmente fartas, ultrapassamos 2000 sem crise energtica aparente. Chegamos em dezembro com os reservatrios em 28%. Beleza. Um ano antes, estavam em 18% e no houve problema. Por que haveria em 2001? Raciocnio medocre, mas que encheu Fernando Henrique de alegria e coragem. Tanta coragem que, em fevereiro deste ano - h apenas trs meses! -, ele resolveu fazer graa. Para faturar em cima dos reclamos populares por mais segurana, foi s televises anunciar o Projeto Iluminao Pblica Eficiente (Projeto Reluz), voltado para "tornar eficientes oito milhes de pontos de iluminao pblica e instalar um milho de novos pontos eficientes." Para o meio rural, lanou o Programa Luz no Campo, que tinha como meta "levar energia eltrica a um milho de propriedades e domiclios at 2002." Comprometeu-se tambm a "zelar pela segurana para o investidor privado e os direitos do consumidor quanto oferta de energia, a qualidade dos servios e a modicidade das tarifas." O presidente enlouquecera, houve quem acreditasse. * * *

  • Se voc joga dois dados e tira uma dupla de seis, comemore. Mas no tente de novo. Prudncia, no entanto, no o forte de um governo dominado por financistas e especuladores. Eles gostam de apostar. No lance de 2001, So Pedro nos sorteou uma dupla de um. Choveu bem menos que a mdia. Como o sistema vinha operando com a chuva de cada ano, a crise emergiu. O presidente se disse surpreso, chocado. Lus Pinguelli Rosa rebate: "A surpresa do governo com a crise uma farsa. Ele foi exaustivamente avisado, por mim e por outros colegas, em muitas ocasies, desde pelo menos cinco anos atrs. No somos gnios nem adivinhos. Bastava verificar a evoluo das curvas de oferta e demanda e verificar onde elas se cruzariam. Deveria ter sido em 2000, mas nesse ano tivemos sorte." O sistema eltrico brasileiro, com seus grandes reservatrios, permitiu que se fizessem barbaridades durante cinco anos, sem que a sociedade percebesse, pois havia reservas acumuladas. Um sistema de base trmica resistiria poucas semanas, se tanto. Agora, porm, essa mesma inrcia est contra ns: nosso combustvel no pode ser comprado em nenhum mercado, a preo nenhum. Depende de novas chuvas, fartas. A ameaa que paira sobre o Brasil no a de ter de pagar mais caro para manter-se ligado e aceso. A ameaa , pura e simplesmente, a de entrar em colapso. Justamente porque o combustvel de que precisamos no se compra, nosso sistema anterior de planejamento energtico - hoje desmontado - era to cuidadoso, preferindo errar por excesso de cautela, nunca por irresponsabilidade. Quando a crise no podia ser mais escondida, o presidente mostrou na televiso um grfico (histograma) para dizer que os governos Fernando Collor (1989-1992) e Itamar Franco (1992-1994) eram os culpados. Os investimentos em energia teriam diminudo naqueles perodos e se recuperado espetacularmente durante os seis ltimos anos. Hoje sabemos que os dados de Fernando Henrique: (a) consideravam como "investimento" o dinheiro das privatizaes, que apenas transferiram a propriedade de empresas j existentes e no aumentaram em nenhum megawatt-hora a capacidade instalada; (b) incluam a gerao feita em usinas da Argentina e do Uruguai, de onde o Brasil, nos ltimos anos, passou a importar eletricidade (algo to bizarro quanto a Arbia Saudita transformar-se em importadora de petrleo!); (c) faziam dupla contagem de 1.000 mWh gerados no sistema Norte, pois o presidente considerou que a linha de transmisso Imperatriz-Braslia acrescentava 1.000 mWh ao sistema, quando, como diz o nome, ela apenas transmite essa energia do Norte na direo do Sudeste. Dos 5.200 mWh que Fernando Henrique mostrou como conquistas de seu governo, 2.500 mWh eram falsos. No exerccio do mandato, em plena crise, lidando com uma questo vital, o presidente do Brasil mentiu deliberadamente nao. * * * Criou-se uma situao indita, que ainda no foi corretamente dimensionada pela opinio pblica. Em tempos de paz, nenhum governo do mundo jamais colocou o seu pas sob risco to alto como o governo de Fernando Henrique Cardoso. O Operador Nacional do Sistema prev que chegaremos em novembro com apenas 10% dos reservatrios preenchidos, a menos que ocorram chuvas muito improvveis em agosto, setembro e outubro. No pior momento, at hoje, operamos com 18%. Talvez o presidente e sua equipe econmica no saibam - afinal, o que eles sabem? - de uma informao crucial: se chegarmos nesse nvel, ignora-se o que poder ocorrer. As

  • turbinas instaladas no Brasil so programadas para gerar energia em 60 hertz (ou 60 ciclos por segundo) e s podem faz-lo nesta freqncia, pois todas as nossas mquinas, equipamentos e eletrodomsticos esto ajustados a ela. Isso exige que as turbinas mantenham, com estabilidade, uma certa velocidade de rotao. Quando a coluna d'gua diminui, o peso da gua tambm diminui e o fluxo se torna menos estvel, exigindo que as turbinas faam mais esforo para manter a rotao programada. Se o esforo for excessivo, os sistemas de proteo entram em ao automaticamente, interrompendo a gerao. Ocorrem quedas sbitas e descontroladas, que podem ser seqenciais, por sobrecarga. Se o nvel de 10% for de fato atingido, o sistema eltrico brasileiro, que j foi referncia mundial, no ter mais confiabilidade operacional. No se trata de hiptese longnqua. Ao contrrio, a mais provvel. O relatrio 19-2001 do Operador Nacional do Sistema, que aponta esse cenrio, previa que o armazenamento nas regies Sudeste e Centro-Oeste estivesse em 33% no incio de junho. Em meados de maio, essas regies j estavam com 29,7%. Mesmo assim, no momento de fechamento desta matria, o governo brasileiro e a Rede Globo de Televiso ainda passam para a opinio pblica a idia de que o pas vive a incerteza de fazer ou no fazer racionamento, e que a sociedade quem vai decidir sobre isso, ao decidir entre esbanjamento e racionalizao do consumo individual. Depois de cinco anos de desgoverno, a incerteza que est colocada diante de ns bem outra. entre racionamento e colapso. O tempo e a sorte passaram a ser os elementos decisivos. Em vez de reconhecer a gravidade da crise e trabalhar para enfrentar o pior cenrio, o governo resolveu apostar novamente. Se chover bastante nos prximos meses (o que no provvel, pois a estao seca), passaremos raspando, sofrendo os inconvenientes j bem conhecidos. Se no chover excepcionalmente, o pas apagar. Chegaremos ao caso-limite de lanar uma sociedade em um salve-se-quem-puder, de destruir fisicamente uma grande economia, sem guerra externa, apenas pela implacvel aplicao de uma ideologia, chamada neoliberal. Que Deus nos proteja. Nota: Este artigo no poderia ter sido escrito sem conversas do autor com trs especialistas em energia: Lus Pinguelli Rosa (vice-diretor da Coppe/UFRJ), Roberto d'Arajo (diretor do Instituto Ilumina) e Sebastio Soares (ex-diretor do BNDES), que tambm forneceram generosamente fontes de consulta. Na correria final, nenhum deles pde ler o texto, pelo qual no so responsveis. Um quarto especialista, igualmente generoso, pediu que seu nome no fosse citado, por causa da funo que ocupa. Minha homenagem a ele fica por conta da reproduo de uma de suas ltimas frases em nossa conversa: "Estou deprimido. O sistema eltrico brasileiro generoso, nos d muito tempo para corrigir bobagens eventuais. S no admite cinco anos de bobagens. A ele se torna cruel." Quem quiser saber mais sobre a crise energtica, v ao stio http://www.ilumina.org.br/, alimentado por tcnicos do setor, abnegados e patriotas. Csar Benjamin editor. Autor de A opo brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998) e integrante da coordenao nacional do Movimento Consulta Popular. (artigo escrito em maio de 2001)