Texto CAdernos de Historia Corrigido

19
Os Sambaquis do Brasil: uma análise das diferentes formas de interpretação destes vestígios durante a segunda metade do século XIX. Felipe Daniel do Lago Godoi Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto [email protected] Resumo O objetivo deste artigo é apresentar as diversas perspectivas elaboradas por pesquisadores nacionais e estrangeiros acerca de um mesmo objeto, os sambaquis, durante a segunda metade do século XIX. Estes depósitos de materiais acumulados ao longo do tempo tornaram-se objeto de investigação por parte dos naturalistas e uma das fontes por meio da qual era possível acessar o passado dos povos que habitavam o Brasil e que não possuíam uma cultura escrita. Palavras-chave História – Naturalistas– Sambaquis Abstract The aim of this article is to present the different perspectives produced by national and foreign researchers about the same object, the sambaquis, during the second half of the nineteenth century. These deposits of materials accumulated over time have become the subject of investigation of naturalist and one possible way to access the past of the people who inhabited Brazil and haven’t had a written culture. Keywords History – Naturalists – Sambaquis

description

Artigo academico

Transcript of Texto CAdernos de Historia Corrigido

Os Sambaquis do Brasil: uma anlise das diferentes formas de interpretao destes vestgios durante a segunda metade do sculo XIX.Felipe Daniel do Lago Godoi

Mestrando em Histria pela Universidade Federal de Ouro Preto

[email protected]

O objetivo deste artigo apresentar as diversas perspectivas elaboradas por pesquisadores nacionais e estrangeiros acerca de um mesmo objeto, os sambaquis, durante a segunda metade do sculo XIX. Estes depsitos de materiais acumulados ao longo do tempo tornaram-se objeto de investigao por parte dos naturalistas e uma das fontes por meio da qual era possvel acessar o passado dos povos que habitavam o Brasil e que no possuam uma cultura escrita.

Palavras-chave

Histria Naturalistas SambaquisAbstract

The aim of this article is to present the different perspectives produced by national and foreign researchers about the same object, the sambaquis, during the second half of the nineteenth century. These deposits of materials accumulated over time have become the subject of investigation of naturalist and one possible way to access the past of the people who inhabited Brazil and havent had a written culture. Keywords

History Naturalists SambaquisIntroduoNo sculo XIX, a consolidao do discurso histrico tornou-o o principal vetor a partir do qual se poderia discorrer acerca do passado. Assim, a investigao histrica oitocentista baseada principalmente na anlise de documentos escritos, de acordo com os mtodos fornecidos por esta disciplina, proporcionava aos homens uma forma de conhecer o passado ordenando-o e tornando-o inteligvel ao presente.

Porm, as investigaes sobre o passado da humanidade no se limitavam apenas operao historiogrfica. Os registros materiais encontrados no solo proporcionavam outra forma de se ter acesso ao passado e interpret-lo, produzindo tambm um discurso sobre o tempo pretrito, gestado a partir de reas do conhecimento diversas da Histria, como as Cincias Naturais. Os estudos destes vestgios proporcionavam aos homens de cincia uma forma de compreender o passado que partia de uma perspectiva de tempo profundo, mais ampla do que a fornecida pela cultura histrica oitocentista e os registros escritos.

Foi assim que, no Brasil, durante a segunda metade do sculo XIX, diversos pesquisadores nacionais e estrangeiros produziram um conhecimento sobre o passado nacional formulado a partir de suas anlises sobre os vestgios materiais encontrados no territrio brasileiro. Este conhecimento se tornava til para a compreenso de como viviam os primitivos habitantes do Pas, uma populao que no deixara registros escritos e que, de alguma forma, ainda se fazia presente, seja nos restos materiais seja na presena do elemento indgena remanescente.

Deste modo, saberes como a Arqueologia, Etnografia e a Antropologia reuniram-se, ao lado da Histria, na produo de um conhecimento que pudesse lanar luz sobre a obscura histria das pocas anteriores ao descobrimento do Brasil e seus primitivos habitantes, auxiliando ainda, nas aes a serem tomadas com relao aos indgenas que habitavam o pas.

Nestas investigaes, os Sambaquis, depsitos de conchas e artefatos indgenas encontrados ao longo do territrio brasileiro, foram um dos principais alvos de anlise destes homens cincia interessados em perscrutar o tempo remoto de Brasil. Estes vestgios suscitavam diversas interpretaes por parte dos pesquisadores durante o sculo XIX, que discutiam sobre as origens destes, a sua antiguidade e como viviam os povos que neles deixaram suas marcas. Dessa forma, estudar os sambaquis era uma maneira de investigar o passado profundo da nao, um perodo que ainda se apresentava obscuro para os homens do sculo XIX.

A Historiografia sobre a institucionalizao da Arqueologia no Brasil tem demonstrado como esta disciplina esteve relacionada com os projetos polticos do Estado Nacional. Gestado ainda na primeira metade do sculo XIX dentro de instituies ligadas ao Estado Imperial, como o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB), o discurso arqueolgico, assim como o discurso histrico, esteve imbudo da tarefa de produzir um passado e cimentar uma identidade nacional para jovem nao independente. A ao fazer isto, Arqueologia, Antropologia e Etnografia, trataram de procurar um tempo ontolgico e profundo, um passado indgena majesttico que fundasse retrospectivamente, na Pr-histria, uma gloriosa representao histrico-coletiva para o presente monrquico (FERREIRA, 2007:2).

Alm disto, o conhecimento arqueolgico no Brasil oitocentista fazia parte da criao de uma geoestratgia atuando em conjunto com a Geografia e a Histria Natural na demarcao de fronteiras geopolticas, estabelecendo um registro sobre as populaes indgenas e um saber sobre estas. Dessa forma, produziu-se um discurso que, sob o signo da cientificidade, contribuiu para a cristalizao de identidades culturais sobre os indgenas baseadas na interpretao dos vestgios materiais encontrados no territrio nacional. Tal discurso servia ainda como lastro para referendar as aes realizadas no que tange poltica indigenista. (FERREIRA, 2002, 2007).

Contudo, apesar das investigaes arqueolgicas e etnogrficas buscarem indcios de um passado nobre para a nao, como a existncia de monumentos arquitetnicos semelhantes aos deixados pelos antigos Incas, no havia consenso, dentro do prprio pas, sobre a reconstruo de um passado enobrecido (SANJAD, 2011:135). Ao analisarem os sambaquis, por exemplo, muitos dos pesquisadores chegavam a concluses discordantes acerca de vrios aspectos destes vestgios. A seguir, aprestaremos algumas desta diferentes interpretaes feitas por aqueles que estudaram os sambaquis durante a segunda metade do sculo XIX. Os SambaquisMas afinal o que seria um sambaqui? Esta palavra de origem indgena, de acordo com Guilherme de Schch de Capanema,

significa litterlamente monto de conchas; de Tamba concha, e ky collinas conicas como peitos de mulher. Nos substantivos guaranis a mudana do t em h aspirado ou em gu forma a passagem do valor absoluto ao relativo e recproco; como os portuguezes na sua lngua no tm aspirao davam-na por pou s. Alm disso em palavras compostas, o genitivo occupa o primeiro lugar, dahi resulta hambaky, collina de conchas. Pde tambem ser estropiamento de hamba-kyab, refugo ou varredura de concha (CAPANEMA: 1876:82)

Para Joo Mendes de Almeida, autor do Diccionario geographico da provincia de S. Paulo, a palavra sambaqui seria na lngua dos indgenas it-mb-ati o que significaria monto de cascas de ostras (ALMEIDA, 1902, citado em LFGREN, 1893:54).Assim, vemos que na opinio destes autores, os sambaquis podem ser compreendidos como depsitos de conchas e cascas de ostras. Alm destes objetos, eram encontrados nos sambaquis ossos de peixes, de mamferos e humanos, e tambm instrumentos fabricados pelos povos que habitavam perto destes locais.

A importncia dos estudos destes vestgios pode ser exemplificada nas palavras de Carlos Wiener, naturalista viajante do Museu Nacional, para quem o humilde sambaqui tem para a sciencia universal a mesma importancia que a magestosa pyramide do Egypto ou do Mexico (...) o craneo de um cacique to interessante como o de um Phara (WIENER, 1876:20). Os sambaquis indicavam a presena material de uma antiguidade ainda obscura aos olhos dos estudiosos do sculo XIX, cuja investigao poderia auxiliar no entendimento do Homem, uma vez que, segundo Wiener, para entender a humanidade preciso conhecel-a desde as suas primeiras manisfestaes, sem o que nunca se poder bem compreendel-a. (WIENER, 1876:20).

Como parte das investigaes sobre estes vestgios, os pesquisadores descreviam as caractersticas das regies em que os sambaquis eram encontrados. Estas anlises eram importantes para que se pudesse estabelecer comparaes entre os diferentes locais onde os sambaquis se situavam. Alm disso, eram descritos os prprios sambaquis, seu tamanho, forma, quantidade e quais os objetos eram encontrados nestes. Tudo isso compunha uma geometria dos sambaquis, (FERREIRA, 2005), que buscava caracteriz-los e compar-los.

A partir da descrio dos sambaquis, autores procuravam apreender a origem destes montes, se seriam obra da natureza ou da ao humana, ou de ambas em conjunto. Para o engenheiro e naturalista Karl Rath, seria devido a fora da gua e a ao das mars, que as conchas se ajuntavam formando os montantes (RATH, 1871) . Guilherme Schch de Capanema considerava que, apesar de construdos pela mo do homem, os sambaquis estavam sujeitos ao natural, o que explicaria a existencia, pois de sambaquis em lugares, onde se do condies contrarias s que presidiam a sua construco, revelando o alteamento do littoral. (CAPANEMA 1876: 87). Essa mesma opinio possuia Carl Von Koseritz, afirmando que os sambaquis antigamente se situavam mais prximos das praias do que quando ele os estudou, sendo que este distanciamento prova quanto tem crescido a terra nquelas regies (KOSERITZ, 1884:180). Os Homens dos SambaquisPara aqueles que consideravam os sambaquis como produto da atividade humana era possvel, por meio da anlise destes, inferir hipteses sobre os modos de vida da populao que os construram. Carlos Wiener afirma que alguns sambaquis foram construdos de forma intencional, sendo estes obra da paciencia do homem, que, durante largo espao de tempo, tinha em vista um fim definido, isto , sambaquis artificiaes, verdadeiros monumentos arqueolgicos (WIENER, 1876:15).Contudo, esta interpretao dos sambaquis enquanto monumentos no era consensual. No relatrio feito pelo engenheiro alemo Heinrich Kreplin, que investigou os sambaquis de Santa Catarina, consta que,

formarem estas colinas uma espcie de monumento ainda mais improvvel, visto que entre os indgenas atuais no existe o mnimo de vestgio de uma tradio concernte a isto, e nem sequer deixaram monumentos em parte alguma, mesmo quando tinham disposio meterial superior. (KREPLIN, 1872:188, citado em FARIA, 2003:128).

Dessa forma, vemos que para Kreplin os indgenas, tanto do passado como do presente, eram e so incapazes de produzirem monumentos arqueolgicos. Este argumento, que remete ao esteretipo da indolncia indgena (FARIA, 2003), tambm estava presente em Wiener, ao falar da existncia de outros tipos de sambaquis, que eram de origem simultaneamente artificial e fortuita, sendo productos da indolencia humana que no removia para longe o resto das refeies (WIENER, 1876:15). Sob esta tica, os sambaquis so vistos como uma espcie de restos de lixo, ou, segundo Capanema, como frutos da varredura de conchas, operao necessria a povos que andavam descalo e nus sentando e deitando sobre o cho. (CAPANEMA, 1876).

Ao analisar este tipo de sambaqui, Wiener no deixa de tecer mais comentrios sobre os costumes dos indgenas. Para este autor, a presena de grande quantidade de fragmentos de ossos humanos em meios s conchas indica que os ndios que ali viviam eram antropfagos e que a carne humana era provavelmente mais apreciada do que qualquer outro alimento (WIENER, 1876:15), uma vez que havia mais ossos humanos do que outro tipo de material. Esta opinio tambm era partilhada pelo Dr. Von Eye, que investigara os sambaquis do sul do Brasil e que, segundo Luiz Castro Faria, admitiu a prtica da antropofagia, embora ciente de que no havia noticia de tal costume entre os ndios que habitavam a regio, nem entre seus antepassados. (FARIA, 2003:136).Porm, Rudolf Virchow, eminente pesquisador nos campos da biologia e tambm atuante no campo da antropologia biolgica, discordava das observaes de Von Eye, acerca da existncia da prtica antropofgica entre os indgenas. Mesmo nunca tendo visitado o Brasil, Virchow, a partir dos relatos que recebia, considerava que a presena de esqueletos inteiros e a falta de sinais de golpes artificiais nos ossos dos indivduos iam de encontro s teses a favor do canibalismo. Nenhuma das peas que examinamos tinha sinais de golpes ou abertura artificial na cavidade medular. Alm disso, o sr. Kreplin fala com absoluta segurana da existncia de esqueletos inteiros (VIRCHOW,1882: 224, citado por FARIA, 2003:140). Para este cientfico, a falta de rigor na coleta dos materiais e das observaes tornava prematura qualquer concluso sobre a prtica de canibalismo (FARIA, 2003:140).

As divergncias de interpretaes entre os pesquisadores tambm se davam quanto possibilidade dos sambaquis terem sido utilizados como cemitrios pelos indgenas. Essa hiptese era descartada por Guilherme de Capanema que afirmava que

H quem sustente que as ostreiras eram aproveitadas para enterrar os mortos; no isso muito verossimil, porque ento seriam mais frequentes as ossadas; parece antes que tambem esses ossos, de algum velho, ou doente que fosse abandonado, constituam lixo como o mais e eram atirado sobre o monte. (...) Reduzimos assim sua singela expresso natural o sambaqui, que teve de servir para tanta produco fantastica, ora sendo diques, ora trincheiras, outras vezes mausolos, e at construces para o culto. (CAPANEMA, 1876: 85-86)

J Karl Rath, Carlos Wiener e Domingos Soares Ferreira Penna eram partidrios da opinio de que os sambaquis eram locais onde os indgenas praticavam rituais fnebres. Para Wiener, este costume era tambm um sinal de barbrie, pois indicava que os indgenas enterravam seus mortos junto aos restos e lixos, fato que atestaria a ausncia de leis sociais uma vez que para este autor, a existncia de cemitrios com tmulos indice do grande passo dado pelo bpede carnvoro (antropophago) para tornar-se homem (WIENER, 1876:17). Entretanto, Domingos Soares Ferreira Penna, naturalista viajante do Museu Nacional, possua uma viso mais otimista com relao aos indgenas. Segundo este autor, fora testemunhado por pessoas de conceito que havia entre os sambaquis esqueletos humanos inteiros, sendo que um desses estaria encerrado em uma urna. Este seria o indcio da prtica de rituais fnebres entre os indgenas, e, ainda que estes rituais se dessem em meio a outros detritos, esta era uma demonstrao de venerao e amizade ao fallecido de quem os parentes no se queriam separar. (PENNA, 1876:96).Assim, podemos observar que, se aos olhos de Wiener o enterro dos mortos junto aos restos de alimentos seria um atestado de selvageria e barbrie, Ferreira Penna entende esta prtica como uma demonstrao de sentimentos nos indgenas.

A idade dos sambaquis

Esta diversidade de opinies com relao aos sambaquis se fazia presente nas tentativas de estabelecer a antiguidade destes elementos e daqueles que os construram.Carlos Wiener afirmava que, apesar da dificuldade em datar tais objetos, era possvel estipular que os sambaquis possuam cerca de dois ou trs sculos de antiguidade (WIENER, 1876).

O botnico Alberto Lfgren estende um pouco mais estas cifras, postulando que os sambaquis j existiam quando os portugueses chegaram ao Brasil, apresentando-se j nesta poca cobertos de vegetao, sendo esta a mesma forma de quando ele os analisou, em 1893. Assim, considerando o tempo necessrio para que o sambaqui atingisse tal estado e somando a diferena temporal entre o presente de Lfgren e os anos do descobrimento do Brasil, o autor afirma que a antiguidade dos sambaquis paulistas no pde, portanto, ser muito inferior talvez a um millennio; e nada absolutamente favorvel a opinio de serem elle mais modernos (LFGREN, 1893: 83).

J os germnicos Carl Von Koseritz e Karl Rath, consideram estes vestgios ainda mais antigos. Segundo Koseritz, a existncia de fsseis de espcies extintas nos sambaquis demonstra, que pertencem poca ante-diluvial (KOSERITZ, 1884:180). Karl Rath, considerava que (...) com estas provas [os sambaquis] pde-se garantir sem medo de errar, que o gnero humano existia por todo o mundo e mrmente no Brasil, onde numeroso povo habitou antes do grande diluvio chamado na geologia a Myocene ou geral inundao (RATH, 1871:291)

Os sambaquis e os depsitos de conchas da DinamarcaOutro aspecto debatido sobre os sambaquis quanto a semelhana destes com os depsitos de concha encontrados na Europa, em especial na Dinamarca. Esta associao entre os vestgios encontrados no territrio brasileiro e os encontrados no territrio dinamarqus era algo feito desde a primeira metade do sculo XIX. Fora com base nesta possvel relao entre o passado brasileiro e o europeu, que o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro passou a manter contato, desde o perodo de sua criao em 1838, com a Sociedade dos Antiqurios do Norte, entidade situada em Copenhagen.

De acordo com Manoel Luiz Salgado Guimares, esta relao era intermediada pelo dinamarqus Peter Wilhelm Lund, que nas dcadas de 1830 e 1840 realizava investigaes arqueolgicas nas cavernas de Lagoa Santa em Minas Gerais. O objetivo da entidade dinamarquesa era de encontrar vestgios que atestassem a presena dos povos nrdicos nesta regio do planeta antes da chegada dos portugueses e espanhis. Contudo, medida que esta possibilidade foi se tornando remota, os contatos entre as entidades do Brasil e da Dinamarca foram diminuindo at cessarem (GUIMARES, 2001).

Esta relao, Brasil-Dinamarca, novamente vem tona com as investigaes dos sambaquis, devido a sua semelhana com os montes de ostras denominados de kojkknmoddings. Esta similaridade era ressaltada por Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que afirmava serem ambos os vestgios depsitos de concha marinha acumulada de forma gradual pela mo do homem, onde e se encontravam objetos e esqueletos humanos de diferentes pocas. (NETTO, 1882). Karl von Koseritz tambm ir afirmar tal identidade, parecem-se as ostreiros chamados as da Conceio extraordinariamente com os Kjokkjemoddings da Dinamarca (KOSERTIZ, 1884:80). Outro autor que traa semelhante paralelo Rudolf Virchow, que, com base nos relatrio recebido de Von Eye, afirmara: no tardei a me convencer de que se tratava aqui de obra de mos humanas, diversa apenas quanto localizao, mas em geral absolutamente idntica, em todos os pormenores, aos kjokkenmoddings pr-histricos das costas europeias. (VIRCHOW,1882: 218, citado em FARIA, 2003:135).

(...) mas os prprios outeiros, mesmo os bem altos (...) devem ser indiscutivelmente encaradas como obra humana, no como coisa rigorosamente artificial, no verdadeiro sentido da palavra, mas como produto da atividade do homem, como autntico kjokkenmoddings. De um modo geral o aspecto dos sambaquis deve ser semelhante ao dos montes de conchas de Portugal, sobretudo ao Cabea de Arruda , que descrevi na sesso de 20 de novembro de 1880 (VIRCHOW, 1882: 340, citado em FARIA, 2003:139)

Porm nem todos estavam de acordo com esta semelhana. Carlos Wiener e Kreplin contestavam tal identificao.Consideraes FinaisDiante de uma populao, cuja ausncia de registros escritos, tinha seu passado inacessvel por meio dos mtodos propriamente histricos, cabia aos homens de cincias e letras do sculo XIX lanar mo de outros recursos para preencher esta lacuna no tempo. Assim, as investigaes feitas pelos engenheiros, botnicos e viajantes naturalistas, que percorriam o territrio nacional analisando os vestgios encontrados, era uma das maneiras de esclarecer este tempo obscuro. Como afirmara Carlos Wiener,

a natureza das plantas e dos animaes que esta regio produz,bem como, os costumes do homem que nella habita, suggerem-nos estas asseres sobre a natureza actual do paiz e permittem uma certa induco acerca de seu passado. (WIENER, 1876:6)

Com este fito, disciplinas como a arqueologia e a etnografia tornaram-se importantes enquanto cincias capazes de conferir uma inteligibilidade e um sentido para este tempo remoto inserindo-os no discurso histrico.

A necessidade de esclarecer este passado vinha tambm dos desafios que o presente impunha. Ao classificar o estado de civilizao dos povos que habitavam o Brasil, estes homens de cincia tambm discutiam o futuro da nao e qual o lugar para os indgenas remanescentes destes antigos habitantes na sociedade oitocentista. Alm disto, percorrer o territrio nacional em suas regies mais distantes e menos conhecidas era tambm uma forma de (re)descobrir o pas e demarcar suas fronteiras com base tanto na materialidade dos vestgios quanto em uma pretensa ancestralidade da ocupao territorial.

Com relao s divergncias nas interpretaes destes objetos, Nelson Sanjad alerta para a necessidade de se ater posio poltico-social dos investigadores, pois nem todos realizavam suas anlises a partir de um mesmo lugar institucional, alm de terem sido constantes as disputas pessoais e institucionais pela liderana das pesquisas e pela prioridade das descobertas (SANJAD, 2011:135). Neste debate diferentes campos do conhecimento que realizavam seus cortes epistemolgicos durante a segunda metade do sculo XIX, reuniram-se em torno de um mesmo objeto, o passado da nao.Referncias CAPANEMA. Guilherme Schch de. Os Sambaquis. In Ensaios de Sciencia: por diversos amadores. Rio de Janeiro: Brown & Evaristo, 1876.

FERREIRA, Lucio Menezes. Vestgios de Civilizao: a arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877). 2002. Dissertao. IFCH, UNICAMP, Campinas, SP, 2002.__________. Solo Civilizado, Cho Antropofgico: A Arqueologia Imperial e os Sambaquis. IN: FUNARI, Pedro Paulo Abreu; JR, Charles Orser; SCHIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira (orgs.). Identidades, Discurso e Poder: Estudos da Arqueologia Contempornea. So Paulo: Annamblume/FAPESP, 2005. pp. 135-146.__________. Territrio Primitivo: a institucionalizao da arqueologia no Brasil (1870-1917). 2007. Tese. IFCH, UNICAMP, Campinas, SP, 2007. GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Nao e civilizao nos trpicos: O Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o projeto de uma histria nacional. Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n1. P 5-27, 1988.

___________. Para reescrever o passado como Histria: o IHGB e a Sociedade dos Antiqurios do Norte. In: HEIZER, Alda, & VIDEIRA, A. A. Passos. Cincia, civilizao e Imprio nos Trpicos. Rio de Janeiro: Access, 2001.

KOSERITZ, Carl Von: Os Sambaquis da Conceio do Arroio. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Laemmert, v.47, p.179-182, 1884.

LFGREN, Alberto. Os Sambaquis de So Paulo. Boletim da Comisso Geogrfica e Geolgica de So Paulo. So Paulo: Vanorden & Comp., 1893, p. 31-42.

NETO, Ladislau de S. M. A origem dos Sambaquis. Revista da Exposio Antropolgica Brasileira, 1882, p. 37-38PENNA, Domingos Soares Ferreira. Breve Notcia sobre os Sambaquis do Par. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imprensa industrial, v.1, p.85-101, 1876.

RATH, Karl. Noticia etnlolgica sobre um povo que j habitou a costa do Brasil, bem como o seu interior, antes do Dilvio Universal. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Garnier, v. 34, p.287-292, 1871. SANJAD, Nelson. Cincia de potes quebrados: Nao e regio na arqueologia brasileira do sculo XIX. Anais do Museu Paulista. So Paulo, v.19. n1. p. 133-163, jan.-jun. 2011.WIENER, Carlos. Estudos sobre os sambaquis do sul do Brasil. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imprensa industrial, v.1, p.1-21, 1876.

Sobre a consolidao do discurso histrico no XIX ver KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos modernos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc. Rio, 2006.

Para uma anlise acerca da relao entre a descoberta de um tempo profundo e sua relao com o estudo dos objetos naturais ver GOULD, Stephen J. Seta do Tempo, Ciclo do Tempo: mito e metfora na descoberta do tempo geolgico. So Paulo, Cia. das Letras, 1991. e ROSSI, Paolo. Os Sinais do Tempo: Histria da Terra e das naes de Hooke a Vico. So Paulo, Cia. das Letras, 1992.

Cf: Ferreira, 2002, 2007.

Sobre a relao do discurso histrico no Brasil oitocentista e a formao do Estado Nacional ver Guimares, (1988).

Lcio Menezes de Ferreira lembra que assim como a Histria, a Arqueologia, enquanto disciplina acadmica, se constituiu ligada construo dos Estados modernos, do Nacionalismo e Imperialismo.

Segundo Silva Figueira, 2005, Guilherme Schch de Capanema, nasceu em Minas Gerais (em Timbopeba, nos arredores de Mariana-MG), filho do austraco Roque (Rochus) Schch, bibliotecrio e conservador do Gabinete de Histria Natural da Imperatriz Leopoldina. Era engenheiro de formao, foi lente na Escola Militar de Engenharia e tambm adjunto da Seo de Mineralogia do Museu Nacional, atuando tambm como naturalista, sendo um dos colaboradores da Flora Brasiliensis do Botnico Calr Philip Von Martius. FIGUEIRA, Silvia M. F. Cincia e Tecnologia no Brasil Imperial: Guilherme Schch, Baro de Capanema (1824-1908). Varia Histria Belo Horizonte,. Vol.21, n.24, p. 437-455, Julho de 2005.

As citaes de documentos seguiro a grafia conforme consta nos originais.

Diccionario geographico da provincia de S. Paulo, precedido de um estudo sobre a estructura da lingua tupi e trazendo, em appendice, uma memoria sobre o nome "Amrica". Obra posthuma. So Paulo: Typographia a Vapor Espindola, Siqueira & Comp., 1902.

Carl Friederich Joseph Rath Nasceu em Stuttgart, na atual Alemanha em 1802. Chegou ao Brasil em 1845 atuando na Provncia de So Paulo como engenheiro, porm sua produo intelectual e sua atuao profissional podem ser relacionadas aos diversos campos cientficos que abrangia as chamadas cincias naturais na primeira metade do sculo XIX, como a paleontologia, a geologia, a mineralogia e a geografia. SALGADO, Ivone. Atuao profissional de Carl Friederich Joseph Rath e as Cincias Naturais na primeira metade do sculo XIX. Revista Esboos, Florianpolis, v.17, n.23, pp.247-257, 2010.

Carl Julius Christian Adalbert Heinrich Ferdinand Von Koseritz nasceu em Dessau, na Germnia, 1830. Em 1851 veio ao Brasil para atuar em uma tropa de mercenrios que combateriam o governo do de Juan Manuel Rosas. Desertando da vida militar, passa a atuar como poltico e jornalista em diversos peridicos nas cidades de Pelotas e Porto Alegre na Provncia do rio Grande. Faleceu em 1890. ARAUJO, Rodrigo Cardoso Soares de. Laos e Traos de identidade numa leitura de Karl Von Koseritz. Revista de Histria da UEG. Goinia, v.1, n.1, p.65-85, jan/jun.2012..

De acordo com Luiz de Castro Faria, este relatrio fora enviado ao pesquisador Rudolf Carl Ludwig Von Virchow, que o leu em uma das reunies da Sociedade Berliniense de Antropologia, Etnologia e Pr-histria.

Johan Albert, Constantin Lfgren nasceu em Estocolmo na Sucia em 1854. Em 1874 veio ao Brasil como integrante de uma expedio comandada pelo naturalista Anders Fredrik Regnell (1807-1884) com o objetivo de explorar a flora das regies de So Paulo e Minas Gerais. Dentre as diversas atividades realizadas em territrio brasileiro, Lfgren integrou a Comisso Geogrfica e Geolgica do estado de So Paulo, onde teve a oportunidade de estudar os Sambaquis da regio de Santos, no litoral paulista.

A grafia dos nomes destes objetos varia conforme o autor, mas acreditamos tratarem todos dos mesmos objetos.

Em seu artigo A Cincia de potes quebrados: Nao e regio na arqueologia brasileira do sculo XIX., Sanjad apresenta um exemplo desta relao entre interpretaes discordantes entre os estudiosos da arqueologia e os conflitos institucionais existentes.