Texto benjamin

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Durante anos estiveram ali, bem no alto na estante, em boa companhia. Alinhavam-se perfeitamente, em sentido geométrico, a outras obras literárias de caráter bem diferente. Permaneceram silenciados por anos, recolhendo a poeira de escapamentos barulhentos, de chaminés de fábricas e outros mais contaminantes que conseguem atingir uma casa a mais de 80 metros de altura. A turvês em que se encontravam era sinônimo da imprudência deste leitor, que os havia adquirido persuadido pela entusiasmada referência de um professor, ainda da época da academia. O retiro intelectual por mim imposto a Benjamin e suas “Obras Escolhidas” perdurara por mais de uma década. As páginas amarelaram-se e as raras saídas da estante realizavam-se por mudanças meramente organizacionais do escritório. A poeira acumulada pelo descaso só começou a ser retirada recentemente. O retorno a academia teve fundamental peso neste processo de limpeza e, neste contexto, o contato com uma nova mestre foi decisivo para o embarque na “viagem” em Benjamin. Mal sabia que este embarque significaria uma passagem sem retorno. O início da incursão se deu através de “Infância em Berlim”. E já, de início, um estranhamento tomou conta deste leitor: crônicas? Como poderia a História ser explicada através de uma narrativa em forma de pequenas crônicas? Como seria possível o entendimento sem uma linearidade temporal entre estas crônicas? Questões e mais questões

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Durante anos estiveram ali, bem no alto na estante, em boa

companhia. Alinhavam-se perfeitamente, em sentido geométrico, a

outras obras literárias de caráter bem diferente. Permaneceram

silenciados por anos, recolhendo a poeira de escapamentos

barulhentos, de chaminés de fábricas e outros mais contaminantes

que conseguem atingir uma casa a mais de 80 metros de altura. A

turvês em que se encontravam era sinônimo da imprudência deste

leitor, que os havia adquirido persuadido pela entusiasmada

referência de um professor, ainda da época da academia.

O retiro intelectual por mim imposto a Benjamin e suas “Obras

Escolhidas” perdurara por mais de uma década. As páginas

amarelaram-se e as raras saídas da estante realizavam-se por

mudanças meramente organizacionais do escritório.

A poeira acumulada pelo descaso só começou a ser retirada

recentemente. O retorno a academia teve fundamental peso neste

processo de limpeza e, neste contexto, o contato com uma nova

mestre foi decisivo para o embarque na “viagem” em Benjamin. Mal

sabia que este embarque significaria uma passagem sem retorno.

O início da incursão se deu através de “Infância em Berlim”. E já, de

início, um estranhamento tomou conta deste leitor: crônicas? Como

poderia a História ser explicada através de uma narrativa em forma

de pequenas crônicas? Como seria possível o entendimento sem uma

linearidade temporal entre estas crônicas? Questões e mais questões

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começaram a se interpor sobre a leitura e, a princípio, com certa

desconfiança. Desconfiança alimentada pela voz do racionalismo

científico em que, até então, nutrira meu conhecimento histórico.

O dilema posto era amainado por encontros semanais: as aulas de

quinta-feira. Nelas ouvia, com atenção, através da suave voz da

mestra, que era necessário aprender a ler Benjamin. Aquela leitura

mecânica, conteudista, metodológica e pragmática não permitiria

continuar a “viagem”. Ler passou a ser ressignificar, viver, romper

com os paradigmas que até então me orientavam. Ler passou a ser

permitir-se. Foi a partir daí que pude perceber o significado das

primeiras palavras de Tiergarten. “Saber orientar-se numa cidade não

significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se

perde numa floresta, requer instrução”. Precisei me perder para

poder encontrar-me.

O esforço para ler Benjamin, não à luz da razão mecanicista que

regra o ser na modernidade, mas a partir da vivência/experiência

despertada pela própria leitura descortinou possibilidades até então

por mim inimagidas. A princípio pela própria forma como nosso

pensador trata o conhecimento.

Em “Infância em Berlim”, as crônicas de memória, ou mônadas,

revelavam a cada página uma interação única entre o que era lido

com este leitor. As lembranças relatadas por Benjamin, neste sentido,

parecem atemporais. Embora retratando sua infância, vivenciada no

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início do século XX, o texto conduzia-me, em flashs, a minha época

de criança. Momentos em que era, como o pequeno Benjamin, o

grande caçador de vaga-lumes, que povoavam o início do anoitecer

da cidade onde morava. Ou, então pude novamente sentir o aroma

mágico que emanava do fogão a lenha que aquecia os dias de

inverno na fria casa de madeira em que habitava. Rememorar os

momentos de doença, onde o isolamento das brincadeiras de rua

quase apagavam o sentido da existência, bem como os

questionamentos e a insatisfação das obrigações religiosas diante de

coisas bem mais agradáveis a um jovem adolescente.

Este rememorar e resignificar, proporcionado pela leitura das

mônadas beijaminianas, lançam um olhar a contrapelo do que

cientificamente se define como História e Memória. E mais do que

isso, a maneira como elas se relacionam. Da mesma forma que

nestes fragmentos a relação entre sujeito e objeto é indissociável, a

relação entre Memória e História deve ser entendida como una.

Benjamin rompe com a hierarquização “natural” de que a Memória

tange apenas ao individual, ao saber popular, enquanto cabe à

História, como ciência, dar conta da explicação, do sentido coletivo ao

passado.

As imagens criadas a partir de brechas que se abrem nos relatos de

Benjamin permitem não só reconstruir a experiência individual de sua

infância, como também compreender a crítica às transformações

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modernizadoras pela qual passava a Alemanha nesta época. Assim,

em muitos momentos somos conduzidos do universo da criança, do

sentido mágico que esta dá às possibilidades do viver, à crítica sobre

as inovações tecnológicas (telefone) ou às instituições dominadas

pelo racionalismo técnico, como a escola, que transformam o ser

humano apenas num apêndice da máquina capitalista.