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86 • Bem-vindo ao deserto do Real! A felicidade depois do 11 de Setembro 87 3 4 em questão as relações dominantesj 3 Então, a primeira coisa a fazer é atacar o próprio cerne dessa atitude hegemônica, a noção de que o " respeito pelo Outro " é o axioma ético mais elementar. Devo insistir particularmente que a fórmula " respeito pelo Ou- tro" nada tem a ver com nenhuma definição séria do que sejam o Bem e o Mal. O que significa " respeito pelo Outro " quando se está em guerra contra um inimigo, quando se é brutalmente aban- donado por uma mulher em troca de outro, quando se tem de julgar as obras de um " artista " mediocre, quando a ciência tem de enfrentar seitas obscurantistas, etc.? Geralmente é o "respeito pelo Outro " que é injurioso, que é mau. Especialmente quando é a resistência contra os outros, ou o ódio aos outros, que impele uma ação subjetivamente justa.' A crítica óbvia neste caso é: os exemplos do próprio Badiou não demonstram os limites de sua lógica? Claro, ódio pelo inimigo, intolerância com a falsa sabedoria, e outros, mas a lição do último século não foi a de que, até mesmo – e especial- mente – quando somos presos nessa luta, deveríamos respeitar um certo limite – o limite da radical alteridade do Outro? Não devemos jamais reduzir o Outro a nosso inimigo, a defensor do falso conhecimento, e assim por diante: nele ou nela sem- pre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra Conforme esse raciocinio, deveríamos enfatizar especialmente a nature- za ambigua ("indecidível " , para usar um termo em moda) do feminismo contemporâneo nos paises desenvolvidos ocidentais—o feminismo ame- ricano predominante, com sua virada legalista a la Catherine MacKinnon, um movimento ideológico profundamente reacionário, sempre pronto a legitimar as intervenções militares americanas que envolvam interesses feministas, sempre pronto a fazer comentários condescendentes sobre as populações do Terceiro Mundo (desde a obsessão hipócrita com a dito- rectomia até os comentários racistas de MacKinnon sobre a presença nos sérvios de genes de limpeza étnica e de estupro...). "On Evil: An Interview with Alain Badiou", Cabinet, número 5 (in- verno de 2001), p. 72. pessoa. O totalitarismo do século XX, com seus milhões de vítimas, mostrou o resultado último de seguir até o fim o que nos parece uma " ação subjetivamente justa" — e portanto não deve causar espanto que Badiou acabou por apoiar diretamente o terror comunista. E precisamente essa a linha de raciocínio que devemos re- jeitar; consideremos o caso extremo, uma luta mortal e vio- lenta contra um inimigo fascista. Devemos mostrar respeito pelo abismo da radical Alteridade da personalidade de Hitler oculto sob todos os seus atos de maldade? Seria a este caso que deveríamos aplicar as famosas palavras de Cristo sobre ter ele vindo trazer a espada e a divisão, e não a unidade e a paz: por causa do nosso amor pela humanidade, até mesmo (o que restar dela) pela humanidade dos próprios nazistas, devemos lutar contra eles de forma absolutamente cruel e desrespeitosa. Em resumo, o sempre citado provérbio judeu sobre o Holocausto (" Quando alguém salva um homem da morte, está salvando toda a humanidade") deve ser completado por: "Quando al- guém mata um único inimigo verdadeiro da humanidade, está salvando toda a humanidade". A verdadeira prova ética é não somente a disposição de salvar as vítimas, mas também – tal- vez até mais – a dedicação implacável à aniquilação dos que fizeram as vítimas. O que a ênfase na multidão e na diversidade disfarça é, na- turalmente, a monotonia subjacente à vida global de hoje. No seu interessante livreto sobre Deleuze,' Main Badiou chamou atenção para o fato de que, se já houve um filósofo capaz de redescobrir e repetir sempre a mesma matriz conceitual ao tra- tar de qualquer tópico, da filosofia à literatura e ao cinema, esse foi Deleuze. A ironia desta revelação é ser precisamente esta a crítica padrão a Hegel — não importa o tema que esteja 5 Ver Main Badiou, Deleuze, Paris, Hachette, 1997.

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em questão as relações dominantesj 3 Então, a primeira coisa afazer é atacar o próprio cerne dessa atitude hegemônica, a noçãode que o "respeito pelo Outro " é o axioma ético mais elementar.

Devo insistir particularmente que a fórmula "respeito pelo Ou-tro" nada tem a ver com nenhuma definição séria do que sejam oBem e o Mal. O que significa "respeito pelo Outro " quando seestá em guerra contra um inimigo, quando se é brutalmente aban-donado por uma mulher em troca de outro, quando se tem dejulgar as obras de um "artista " mediocre, quando a ciência temde enfrentar seitas obscurantistas, etc.? Geralmente é o "respeitopelo Outro " que é injurioso, que é mau. Especialmente quandoé a resistência contra os outros, ou o ódio aos outros, que impeleuma ação subjetivamente justa.'

A crítica óbvia neste caso é: os exemplos do próprio Badiounão demonstram os limites de sua lógica? Claro, ódio peloinimigo, intolerância com a falsa sabedoria, e outros, mas alição do último século não foi a de que, até mesmo – e especial-mente – quando somos presos nessa luta, deveríamos respeitarum certo limite – o limite da radical alteridade do Outro? Nãodevemos jamais reduzir o Outro a nosso inimigo, a defensordo falso conhecimento, e assim por diante: nele ou nela sem-pre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra

Conforme esse raciocinio, deveríamos enfatizar especialmente a nature-za ambigua ("indecidível " , para usar um termo em moda) do feminismocontemporâneo nos paises desenvolvidos ocidentais—o feminismo ame-ricano predominante, com sua virada legalista a la Catherine MacKinnon,um movimento ideológico profundamente reacionário, sempre prontoa legitimar as intervenções militares americanas que envolvam interessesfeministas, sempre pronto a fazer comentários condescendentes sobre aspopulações do Terceiro Mundo (desde a obsessão hipócrita com a dito-rectomia até os comentários racistas de MacKinnon sobre a presençanos sérvios de genes de limpeza étnica e de estupro...)."On Evil: An Interview with Alain Badiou", Cabinet, número 5 (in-verno de 2001), p. 72.

pessoa. O totalitarismo do século XX, com seus milhões devítimas, mostrou o resultado último de seguir até o fim o quenos parece uma "ação subjetivamente justa" — e portanto nãodeve causar espanto que Badiou acabou por apoiar diretamenteo terror comunista.

E precisamente essa a linha de raciocínio que devemos re-jeitar; consideremos o caso extremo, uma luta mortal e vio-lenta contra um inimigo fascista. Devemos mostrar respeitopelo abismo da radical Alteridade da personalidade de Hitleroculto sob todos os seus atos de maldade? Seria a este caso quedeveríamos aplicar as famosas palavras de Cristo sobre ter elevindo trazer a espada e a divisão, e não a unidade e a paz: porcausa do nosso amor pela humanidade, até mesmo (o que restardela) pela humanidade dos próprios nazistas, devemos lutarcontra eles de forma absolutamente cruel e desrespeitosa. Emresumo, o sempre citado provérbio judeu sobre o Holocausto("Quando alguém salva um homem da morte, está salvandotoda a humanidade") deve ser completado por: "Quando al-guém mata um único inimigo verdadeiro da humanidade, estásalvando toda a humanidade". A verdadeira prova ética é nãosomente a disposição de salvar as vítimas, mas também – tal-vez até mais – a dedicação implacável à aniquilação dos quefizeram as vítimas.

O que a ênfase na multidão e na diversidade disfarça é, na-turalmente, a monotonia subjacente à vida global de hoje. Noseu interessante livreto sobre Deleuze,' Main Badiou chamouatenção para o fato de que, se já houve um filósofo capaz deredescobrir e repetir sempre a mesma matriz conceitual ao tra-tar de qualquer tópico, da filosofia à literatura e ao cinema,esse foi Deleuze. A ironia desta revelação é ser precisamenteesta a crítica padrão a Hegel — não importa o tema que esteja

5 Ver Main Badiou, Deleuze, Paris, Hachette, 1997.

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discutindo, Hegel sempre consegue ajustá-lo ao molde do pro-cesso dialético. Não existe uma espécie de justiça poética nofato de ser Deleuze, o anti-hegeliano, o único filósofo a quemse pode aplicar essa afirmação? E isso é especialmente perti-nente com relação à análise social: existe coisa mais monótonaque a poesia deleuziana da vida contemporânea como a proli-feração descentrada de multidões de diferenças não-totalizáveis?O que impede (e portanto sustenta) essa monotonia é a multi-plicidade de ressignificações e deslocamentos aos quais se sub-mete essa textura ideológica básica.

Unbreakable [ Corpo fechado] (de M. Night Shyamalan, 2000— com Bruce Willis) é paradigmático da moderna constelaçãoideológica no contraste mesmo entre forma e conteúdo.O con-teúdo é infantilmente ridículo: o herói descobre que é na ver-dade um herói de história em quadrinhos, invulnerável e in-vencível, da vida real... Quanto à forma, é um refinado dramapsicológico de ambientação melancólica e lenta: o sofrimentodo herói que descobre ser traumaticamente difícil aceitar o querealmente é, sua interpelação, seu mandato simbólico

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está bem ilustrado na cena em que seu próprio filho quer atirarnele, para lhe provar que ele é realmente invencível: quando opai resiste, o filho começa a chorar, desesperado por o pai nãoser capaz de aceitar a verdade a respeito de si próprio. Por queBruce Willis resiste a levar um tiro? Teria ele medo de morrer,ou teria medo de ter uma prova incontestável de ser invencível? Enão é exatamente este o mesmo dilema de Kierkegaard rela-tivo à "doença até a morte"? Temos medo de descobrir nãoque somos mortais, mas, pelo contrário, que somos imortais.

E a dificuldade de assumir a interpelação é um tópico importante daHollywood pós-tradicional. Qual é a característica unificadora entre doisfilmes de Martin Scorsese, A última tentação de Cristo e Kundun? Nosdois casos, a encarnação humana da figura divina (Cristo ou o DalaiLama) é representado no difícil processo de assumir seu mandato.

Neste caso, devemos ligar Kierkegaard a Badiou: é difícil, ver-dadeiramente traumático, para um animal humano, aceitar quesua própria vida não é apenas um processo estúpido de repro-dução e busca do prazer, mas que ele está a serviço de uma Ver-dade. E é assim que a ideologia parece trabalhar hoje, no nossoautoproclamado universo pós-ideológico: executamos nossosmandatos simbólicos sem admiti-los e sem "levá-los a sério":apesar de funcionar como pai, este faz acompanhar essa fun-ção de um fluxo constante de comentários irônicos ou refle-xivos sobre a estupidez de ser pai, etc.

O grande sucesso em desenho animado da Dreamworks, Shrek(de Andrew Adamson e Vicky Jenson, 2001), expressa perfeita-mente esse funcionamento predominante da ideologia: é umahistória de fadas padrão (o herói e seu assistente simpaticamenteconfuso vão derrotar o dragão e salvar a princesa de suas garras)embalada em engraçados "estranhamentos" brechtianos (quan-do assiste ao casamento na igreja, a multidão recebe instruçõesquanto à forma de reagir, tal como na falsa espontaneidade daTV: "Rire", " Silêncio respeitoso! " ), desvios politicamente cor-retos (depois do beijo, não é o ogro quem se transforma nobelo príncipe, é a linda princesa quem se transforma numa garotagordinha e comum), cutucadas irônicas na vaidade feminina(enquanto espera o salvador, a bela princesa adormecida arrumarapidamente o cabelo para se apresentar mais bela), reversõesinesperadas de personagens maus em bons (o dragão malvado serevela uma fêmea carinhosa que mais tarde ajuda os heróis), atéreferências anacrônicas a costumes modernos e cultura popular.

Em vez de aplaudir açodadamente esses deslocamentos ereinscrições como potencialmente "subversivos" e elevar Shrekà condição de mais um "lugar de resistência", devemos foca-lizar o fato óbvio de que, por meio de todos esses deslocamen-tos, contou-se a mesma velha história. Em resumo, a verdadeirafunção desses deslocamentos e subversões é exatamente tornar