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O Museu Afro-Brasil (SP) como lugar de memória e salvaguarda do patrimônio cultural para o povo-de-santo: narrativas institucionais sobre o Candomblé. Elizabeth Castelano Gama* O artigo propõe discutir o primeiro tópico trabalhado na tese em andamento Lugares de memórias do povo-de-santo: patrimônio cultural entre museus e terreiros que se refere às narrativas sobre o Candomblé em museus institucionais. O acervo que será abordado no texto é o do Museu Afro-Brasil em São Paulo. O Museu Afro-Brasil está localizado no Parque Ibirapuera e em 2014 completa uma década de sua inauguração. Idealizado por Emanuel Araújo 1 , contou com o trabalho de uma equipe de profissionais especializados em diversas áreas e tinha como eixo de trabalho a criação de um espaço expositivo da experiência do negro, lutando contra uma visão que minimiza a herança africana como uma das matrizes do processo de formação da identidade brasileira. Assim, o Museu Afro-Brasil foi pensado, sobretudo, como um museu da diáspora africana 2 . É proposto pelo diretor do Museu expor o que de africano há na sociedade brasileira, assim como os resultados da miscigenação ético-cultural que produziram uma originalidade pós-diáspora. Essa intenção declarada é relevante para o propósito da análise porque revela opções e caminhos importantes para entender o acervo a partir da leitura sobre a religiosidade afro-brasileira e o lugar do Candomblé nessa representação. A exposição é dividida atualmente em 6 setores temáticos. São eles: África, Trabalho e Escravidão, Religiões afro-brasileira, Sagrado e Profano, História e Memória e Artes Plásticas. Não há uma divisão com salas específicas, mas os núcleos temáticos podem ser reconhecidos através de cores. A ausência de divisão explícita parece evocar uma fluidez entre campos da arte, história e memória que se complementam, por vezes se fundem, no universo cultural afro-brasileiro. Se num olhar apressado podemos enxergar * Doutoranda em História. Universidade Federal Fluminense. 1 Emanoel Araújo é artista plástico e curador baiano, ex-diretor da Pinacoteca de São Paulo, criador e diretor do Museu Afro-Brasil. 2 MUSEU AFRO BRASIL. O Museu Afro Brasil. São Paulo: Banco Safra, 2010. p. 09

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O Museu Afro-Brasil (SP) como lugar de memória e salvaguarda do patrimônio cultural

para o povo-de-santo: narrativas institucionais sobre o Candomblé.

Elizabeth Castelano Gama*

O artigo propõe discutir o primeiro tópico trabalhado na tese em andamento

Lugares de memórias do povo-de-santo: patrimônio cultural entre museus e terreiros que

se refere às narrativas sobre o Candomblé em museus institucionais. O acervo que será

abordado no texto é o do Museu Afro-Brasil em São Paulo.

O Museu Afro-Brasil está localizado no Parque Ibirapuera e em 2014 completa uma

década de sua inauguração. Idealizado por Emanuel Araújo1, contou com o trabalho de uma

equipe de profissionais especializados em diversas áreas e tinha como eixo de trabalho a

criação de um espaço expositivo da experiência do negro, lutando contra uma visão que

minimiza a herança africana como uma das matrizes do processo de formação da identidade

brasileira. Assim, o Museu Afro-Brasil foi pensado, sobretudo, como um museu da

diáspora africana2.

É proposto pelo diretor do Museu expor o que de africano há na sociedade

brasileira, assim como os resultados da miscigenação ético-cultural que produziram uma

originalidade pós-diáspora. Essa intenção declarada é relevante para o propósito da análise

porque revela opções e caminhos importantes para entender o acervo a partir da leitura

sobre a religiosidade afro-brasileira e o lugar do Candomblé nessa representação.

A exposição é dividida atualmente em 6 setores temáticos. São eles: África,

Trabalho e Escravidão, Religiões afro-brasileira, Sagrado e Profano, História e Memória

e Artes Plásticas. Não há uma divisão com salas específicas, mas os núcleos temáticos

podem ser reconhecidos através de cores. A ausência de divisão explícita parece evocar

uma fluidez entre campos da arte, história e memória que se complementam, por vezes se

fundem, no universo cultural afro-brasileiro. Se num olhar apressado podemos enxergar

* Doutoranda em História. Universidade Federal Fluminense. 1 Emanoel Araújo é artista plástico e curador baiano, ex-diretor da Pinacoteca de São Paulo, criador e diretor do Museu Afro-Brasil. 2 MUSEU AFRO BRASIL. O Museu Afro Brasil. São Paulo: Banco Safra, 2010. p. 09

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pouco didatismo na organização da exposição, a partir de uma leitura dialógica percebemos

a intenção de não conduzir o olhar do observador. Se a proposta do museu é questionar uma

visão consagrada sobre a África e a diáspora, inicia esse processo na própria organização

do acervo que dá a possibilidade ao observador atento fazer múltiplas leituras da narrativa a

partir dos objetos.

Incluo o Museu Afro-Brasil na categoria “museu institucional” diferenciando-o dos

demais museus pesquisados na tese que são os “museus da repressão”, aqueles que

guardam objetos religiosos oriundos exclusivamente da repressão policial e os “museus

sociais” ou “museus comunitários”, que são os espaços criados dentro dos terreiros com

objetos selecionados para exposição pelo povo-de-santo.

Analiso no texto o núcleo temático Religiões Afro-Brasileiras observando as

narrativas sobre o Candomblé e sua relação com as demais religiões de matriz africana

expostas. Contudo, elementos do Candomblé aparecem em outros núcleos e também

incidirá análise, fazendo assim uma leitura da religião no conjunto da exposição de longa

duração e não apenas circunscrito ao núcleo religioso.

Realizei até o momento quatro visitas ao Museu Afro-Brasil, sendo que nas últimas

duas realizei descrição de todos os objetos do setor destinado à religiosidade, registro

fotográfico dos espaços e objetos e uma entrevista com a pesquisadora da instituição, a

historiadora Juliana Ribeiro, que atua no Museu desde 2004. Desse modo, as observações

presentes no texto encontram-se em caráter inicial de pesquisa, apontando caminhos para

discussão.

A construção da memória social do Candomblé a partir da narrativa

museológica do Museu Afro-Brasil.

O projeto sobre acervos que contem objetos relacionados ao Candomblé foi

elaborado com questões que privilegiam a observação de relações entre os objetos e o

tempo histórico, especificamente o século XX. Dessa forma, a partir das questões propostas

para serem analisadas no acervo do Museu Afro-Brasil, percebemos que a narrativa sobre o

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Candomblé não contempla a dimensão histórica, ou melhor, contempla mais a dimensão

artística dos objetos, seu valor estético, que sua dimensão histórica. Não há a proposta de

contar o desenvolvimento da religião atentando para a historicidade dos objetos, a

intervenção do tempo, mudanças e permanências, fatos históricos, não são priorizados na

narrativa.

Em relação ao conjunto do acervo, as peças sobre Candomblé remetem-se sempre

ao seu valor estético, complexo, mas, atemporal. A relação passado e presente da religião

não tem marcações nítidas. Vale ressaltar que a proposta do Museu não é contar uma

história da religião no país, mas reunir um conjunto de elementos que compõe a

contribuição africana para a sociedade brasileira.

Dentro dessa primeira avaliação, encontram-se algumas fotografias presentes na

exposição. Na série Retratos de Madalena Schwartz, há várias personalidades negras

fotografadas, como Solano Trindade, Abdias Nascimento, Pelé, Elza Soares etc. Entre as

personalidades estão presentes três sacerdotes do Candomblé baiano de grande expressão:

Iyalorixá Menininha do Gantois, Iyalorixá Olga do Alaketu e o Babalorixá Balbino Daniel

de Paula. Também estão presentes na exposição retratos do fotógrafo Pierre Verger,

imagens da Iyalorixá Senhora e da iyalorixá Stella de Oxóssi, atual sacerdote do Ilé Asé

Opô Afonjá.

O papel de líderes religiosos do Candomblé na construção da memória social da

religião tem um papel histórico no processo de visibilidade da religião. Apesar disso, a

trajetória dos sacerdotes mencionados não são exploradas na exposição. Ao lado das

fotografias, apenas o nome do sacerdote, casa que exerce sacerdócio e a autoria da

fotografia.

Na visita a exposição em Janeiro de 2014, o Museu reformava um novo espaço no

acervo destinado à memória da Iyalorixá Olga do Alaketu, mudando a perspectiva e

conferindo destaque ao papel das trajetórias individuais para a representação do

Candomblé.

O recurso às homenagens aos líderes religiosos na construção da memória da

religião é largamente usado nos museus sociais. No museu Ile Ohun Lailai (Asé Opô

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Afonjá), grande parte do espaço é destinado às Iyalorixás da casa desde sua fundação e no

Memorial no Gantois a escolha foi expor a história do terreiro a partir da trajetória da

Iyalorixá Menininha do Gantois.

No espaço reformado este ano, a Sala Olga do Alaketu, há série de fotografias da

Iyalorixá, um vestuário completo para o Orixá Oyá feito pela própria Iyalorixá e um

conjunto de fotografias do processo de feitura do vestuário. A dimensão artística e criativa

do povo-de-santo é um dos principais argumentos que destaco ao longo de todo o acervo

sobre o Candomblé. Por isso, ressalto que variados elementos que foram analisados até o

momento da pesquisa informam que a dimensão artística é mais vibrante na exposição que

o diálogo dos objetos com o tempo, passado ou presente.

Visão da Sala Olga do Alaketu com vitrine do vestuário

Fotografias do processo de confecção do vestuário pela Iyalorixá

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Essa dimensão valorativa das peças como obras de arte também são encontradas no

mesmo espaço com as ferramentas de Orixá que compõem a Coleção Mestre Didi.

Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, é outra personalidade do Candomblé

baiano que tem sua trajetória bastante celebrada. Mestre Didi foi sacerdote, escritor e artista

plástico.

Temos, assim, na exposição de suas peças a valorização de suas ferramentas como

peças artísticas, mais que peças inseridas no universo cotidiano do terreiro carregada com o

complexo simbolismo que cada ferramenta representa na história dos Orixás. Seus usos e

funções dentro do universo religioso são pouco contemplados.

Ferrramentas de Mestre Didi

Um espaço significativo do núcleo de religiosidade é destinado às vitrines de roupas

de Orixás. São roupas e ferramentas que foram confeccionadas por Mestre Didi e estão

dispostas vestidas em manequins em tamanho real. Não há referência de data ou uso ritual.

Nas vitrines há informações sobre características gerais de cada Orixá, sua relação com a

natureza (domínio), nome de suas insígnias (ferramentas) e relação com santos católicos

que possuem sincretismo.

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O pesquisador Roberto Conduru, ao escrever sobre o acervo do Museu da Magia

Negra3, depositado no Museu da Polícia no Rio de Janeiro, observa que o acervo de objetos

religiosos presentes no museu pode possuir múltiplos significados, entre eles o documental

e o artístico. Menciona o valor dos objetos enquanto arte se os olharmos como artesanato.

Essa dimensão estética é o ponto principal observado no núcleo de religiões afro-

brasileiras, o que redimensiona nossa observação sobre a narrativa presente sobre o

Candomblé, já que a relação entre a origem e história dos objetos é pouco contemplada pela

curadoria. Ao mencionar esse fato durante a entrevista realizada com a pesquisadora do

Museu, a historiadora Juliana fala sobre a importância do trabalho dos pesquisadores dentro

da instituição para equilibrar a preocupação prioritariamente estética do curador Emanoel

Araújo. A inserção da dimensão histórica por estes pesquisadores produz um material

histórico sobre o acervo principalmente através de publicações, seja da exposição de longa

duração, como as temporárias.

Durante a entrevista perguntei sobre a origem dos acervos presentes nos núcleos, a

pesquisadora informou que muitas peças chegam à exposição não identificadas, têm origem

em exposições temporárias, são doadas e inseridas na exposição de longa duração. O que se

nota com a fala de Juliana (?) é que se nesses dez anos de funcionamento do Museu Afro-

3 Catálogo da exposição fotográfica do acervo da Magia Negra. 2009

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Brasil a dimensão estética do acervo foi priorizada, está em curso um projeto de

investigação da história do acervo. Há menção de um projeto de história oral com Emanuel

Araújo, já que muitas peças não têm identificação escrita. Iniciativa que considero

pertinente para a valorização do acervo em seu aspecto documental.

Considerações finais: o papel social do núcleo educativo. Inserções identitárias.

Além do museu Afro-Brasil proporcionar a amostra de objetos de conteúdo inéditos

em museus brasileiros, exibindo uma face do Candomblé diferente da exposta nos demais

museus que salvaguarda partes da memória da religião ligada à repressão no início do

século XX, o museu conta com um projeto educacional voltado para a construção de uma

memória social diferenciada a partir da preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro.

A ideia do desenvolvimento da pesquisa no museu Afro-Brasil é observar o papel

do núcleo de educação no acompanhamento da visita do acervo. Para isso, acompanharei

algumas visitas orientadas por educadores para observar reações do público frente ao

conteúdo da exposição. A ideia surgiu das observações feitas por Juliana (?) na entrevista

quando perguntei sobre a reação do público povo-de-santo durante as visitas.

Para a minha surpresa, as reações são diversas. A princípio, a ideia geral que tinha

era de que o público religioso poderia identificar-se, mas apontar prováveis “erros” nas

representações religiosas, já que a proposta é estética, mais que documental. A

pesquisadora confirmou que havia bastantes comentários sobre esses “erros”, contudo

também apresentou uma outra realidade desse contato.

A outra realidade apresentada diz respeito ao resultado final da visita pelos grupos

quando muitos integrantes fazem questão de declararem-se iniciados no Candomblé ou

Umbanda. E deu como exemplo uma visita de um grupo escolar infantil em que uma

criança confessou ser iniciada na presença de seus colegas, fato que era escondido no

convívio escolar.

A narrativa apresentada, a partir de seu caráter estético, explorando a beleza e a

criatividade das religiões abordadas, permitiu à criança mais que se identificar, orgulhar-se

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ao afirmar que aquele universo apresentado fazia parte de seu cotidiano. Dessa forma, a

partir da narrativa desse tipo de experiência, incluímos no projeto a observação dessas

visitas e a produção de entrevistas com os educadores que acompanham grupos diversos

para verificar os tipos de resultados que a opção da exposição a partir do valor estético do

candomblé desempenha na tentativa de modificar a imagem que as religiões afro-brasileiras

possuem dentro da cultura visual da sociedade brasileira.

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Regina; CHAGAS, Mário de Souza (orgs). Museus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond/Demu, 2007. CONDURU, Roberto. Fatos culturais, coisas bárbaras. Catálogo da exposição fotográfica do acervo da Magia Negra. 2009 CURY, Marília Xavier. Os usos que o público faz dos museus - A (re)significação da cultura material e do museu. Musas, n. 1, p. 86-106, 2004. SILVA, Nelson Fernando Inocêncio da. MUSEU AFRO BRASIL NO CONTEXTO DA DIÁSPORA: dimensões contra-hegemônicas das artes e culturas negras. Tese (Doutorado em Artes). UnB, 2013.

GOMES, Alexandre Oliveira; OLIVEIRA, Ana Amélia R de. A construção social da

memória e o processo de ressignificação dos objetos no espaço museuológico. Museologia

e Patrimônio, v. 3 n. 2, jul/dez. 2010

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JULIÃO, Letícia A pesquisa histórica no museu. In: CADERNO de Diretrizes Museológicas I. 2ª ed. Brasília: Ministério da Cultura; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Departamento de Museus e Centros Culturais; Belo Horizonte: Secretaria de estado da Cultura, Superintendência de Museus, 2006, p. 93-105.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a

exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. Nova

Série, São Paulo, v. 2, n. 1, jan./dez. 1994