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Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social Departamento de Psicologia Clínica - IPUSP ; Anais da VII Jornada APOIAR: SAÚDE MENTAL E ENQUADRES GRUPAIS: A PESQUISA E A CLÍNICA - São Paulo, 7 de novembro de 2009 69 OFICINA PSICOTERAPÊUTICA DE CARTAS, FOTOGRAFIAS E LEMBRANÇAS EM GRUPO COM IDOSOS Claudia Aranha Gil9 9 Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo sob a orientação da Professora Livre Docente Leila Cury Tardivo, Pesquisadora do Projeto APOIAR ŔLaboratório de Saúde Mental e Psicologia clínica Social e psicóloga responsável pela Oficina Psicoterapêutica de Cartas,Fotografias e Lembranças na Ser e Fazer ŔIPUSP 10 Professora Livre Docente pelo IPUSP, Orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de psicologia da USP e da Pontifícia universidade Católica de Campinas; Coordenadora da Ser e Fazer-Oficinas Terapêuticas de criação. 11 Professora Livre Docente pelo IPUSP, Docente e orientadora nos programas de graduação e pós graduação do IPUSP; Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social ŔProjeto APOIAR Tânia Aiello-Vaisberg10 Leila Cury Tardivo11 RESUMO O crescente envelhecimento populacional e o consequente aumento da expectativa de vida têm gerado novas demandas no campo da saúde mental. Apresentamos neste estudo uma proposta de atenção psicológica dirigida à população idosa que utiliza enquadre grupal. Nas Oficinas Psicoterapêuticas, por meio de enquadres clínicos diferenciados, inspirados na Psicanálise Winnicottiana, aos pacientes são apresentadas materialidades de diversas naturezas com o objetivo de facilitar a comunicação emocional. A Oficina que abordamos nesse trabalho ocorreu no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do IPUSP e foi dirigida

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Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social Departamento de Psicologia Clínica - IPUSP ; Anais da VII Jornada APOIAR: SAÚDE MENTAL E ENQUADRES GRUPAIS: A PESQUISA E A CLÍNICA - São Paulo, 7 de novembro de 2009 69

OFICINA PSICOTERAPÊUTICA DE CARTAS, FOTOGRAFIAS E LEMBRANÇAS EM GRUPO COM IDOSOS

Claudia Aranha Gil9

9 Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo sob a orientação da Professora Livre Docente Leila Cury Tardivo, Pesquisadora do Projeto APOIAR ŔLaboratório de Saúde Mental e Psicologia clínica Social e psicóloga responsável pela Oficina Psicoterapêutica de Cartas,Fotografias e Lembranças na Ser e Fazer ŔIPUSP

10 Professora Livre Docente pelo IPUSP, Orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de psicologia da USP e da Pontifícia universidade Católica de Campinas; Coordenadora da Ser e Fazer-Oficinas Terapêuticas de criação.

11 Professora Livre Docente pelo IPUSP, Docente e orientadora nos programas de graduação e pós graduação do IPUSP; Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social ŔProjeto APOIAR

Tânia Aiello-Vaisberg10

Leila Cury Tardivo11

RESUMO

O crescente envelhecimento populacional e o consequente aumento da expectativa de vida têm gerado novas demandas no campo da saúde mental. Apresentamos neste estudo uma proposta de atenção psicológica dirigida à população idosa que utiliza enquadre grupal. Nas Oficinas Psicoterapêuticas, por meio de enquadres clínicos diferenciados, inspirados na Psicanálise Winnicottiana, aos pacientes são apresentadas materialidades de diversas naturezas com o objetivo de facilitar a comunicação emocional. A Oficina que abordamos nesse trabalho ocorreu no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do IPUSP e foi dirigida a um grupo que do qual fizeram parte cinco homens com idade entre 60 e 73 anos, com queixas diversas, entre as quais, sintomas depressivos. Os participantes são convidados a trazer para a sessão cartas, fotografias e objetos, que são afixados ou apoiados em um quadro magnético e durante uma hora e meia falam sobre as recordações despertadas. A partir desta experiência, temos observado que os objetos apresentados possibilitam o lembrar e o compartilhar as lembranças em um ambiente sustentador, favorecendo uma resignificação do passado no presente e a criação de perspectivas futuras, onde o lembrar pode ser entendido como possibilidade de integração do Self. Concluímos que este enquadre favorece o desenvolvimento das potencialidades de cada indivíduo, promovendo a melhora dos sintomas depressivos e possibilitando experiências emocionais mutativas.

Palavras-Chaves: Idosos. Oficina Psicoterapêutica. Psicanálise Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social Departamento de Psicologia Clínica - IPUSP ; Anais da VII Jornada

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APOIAR: SAÚDE MENTAL E ENQUADRES GRUPAIS: A PESQUISA E A CLÍNICA - São Paulo, 7 de novembro de 2009 70

INTRODUÇÃO

INTERVENÇÕES PSICOTERAPÊUTICAS DIRIGIDAS AO IDOSO: A BUSCA POR NOVOS ENQUADRES CLINICOS

O crescente envelhecimento populacional e o conseqüente aumento da expectativa de vida são considerados hoje uma tendência mundial. As projeções demográficas apontam que em vinte anos haverá mais de um bilhão de pessoas com mais de sessenta anos no mundo O Brasil caracteriza-se por um processo de acelerada transição demográfica, marcada por um grande aumento da população idosa e a tendência da população jovem decrescer. Assim, o número de idosos com mais de sessenta anos passou de três milhões em 1960, para sete milhões em 1975 e 14 milhões em 2002, com uma projeção que aponta que em 2020 serão 32 milhões de idosos no nosso pais. (GIANETTI, 2005).

Ao refletirmos sobre estas questões, dentre outras, surge como verdadeiro desafio dar qualidade, em todos os sentidos, a estes anos a mais de vida, levando em conta tanto as características inerentes a esta fase, quanto à singularidade do idoso. No campo da saúde mental, devemos considerar, no entanto, a demanda pelo cuidado ao sofrimento psíquico e a busca por enquadres clínicos diferenciados que possam atender melhor às necessidades dos indivíduos na velhice.

As primeiras questões relativas às intervenções psicoterapêuticas dirigidas ao idoso surgiram no início do século XX, introduzidas por Freud (1905/1990). Vivendo em uma sociedade que considerava o indivíduo velho aos 50 anos, Freud acreditava que o método psicanalítico que criara não era passível de ser aplicado em pessoas mais velhas. Um pouco mais tarde, Karl Abraham (1927/1970), discípulo e colaborador de Freud,dentre os vários temas nos quais se aprofundou, dedicou-se também a escrever sobre o tratamento psicanalítico na idade avançada. Ele destaca que deve ser considerada a singularidade dos processos mentais de cada indivíduo e não somente o fator idade, antes de se decidir se há a possibilidade ou não de ser aplicado o método psicanalítico. Para ele, o prognóstico do paciente dependia mais da época em que a neurose formou-se (a idade da neurose) do que a idade do paciente.

Para Kernberg (1995), embora a prevalência de transtornos da personalidade na idade avançada seja cada vez mais alta, ainda são escassos os estudos e dados relativos ao diagnóstico e tratamento desta população. O autor aponta que o preconceito cultural e profissional tem criado um viés de entendimento, que tem impedido que um maior número de pesquisas científicas possa ser realizado. Este autor considera ainda a existência da relutância em psicanalistas mais jovens de tratarem pessoas mais velhas, pois podem ser ativados conflitos familiares universais e tabus infantis que podem fazer com que o terapeuta sinta-se ameaçado. Segundo o autor, é necessário, portanto, que o terapeuta tenha uma grande experiência de vida, acrescida do conhecimento técnico relativos a patologias de caráter suficiente para que ocorra o fortalecimento da identificação com o paciente idoso, possibilitando assim o trabalho terapêutico.

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Salvarezza (2005), psicanalista e pesquisador na área da psicogerontologia, aponta que não há duvidas quanto à necessidade, eficácia e indicação da psicoterapia na velhice frente à demanda por cuidados no campo da saúde mental. Para o autor, a indicação da psicoterapia para o idoso faz parte de um tripé no qual estão incluídas ainda a psicofarmacologia e a psicoterapia de apoio com os familiares. A eficácia terapêutica será relativa aos recursos disponíveis utilizados. A partir de uma extensa pesquisa bibliográfica sobre o tema, Salvarezza (2005) coloca que as dificuldades atribuídas à realização da psicoterapia, especialmente psicanalítica, na velhice são geralmente relacionadas aos próprios psicanalistas e dizem respeito principalmente as resistências atribuídas aos preconceitos sobre a velhice e aos aspectos contratransferências.

Em tese recentemente apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Schawarz (2008) propõe uma forma de intervenção por meio da psicoterapia grupal breve dirigida aos idosos. A partir do aporte teórico da Psicologia Analítica, a autora trabalhou com um grupo de sete idosos, alunos de uma Universidade Livre da Terceira Idade da região do ABC. Foi utilizado o Método de Rorschach como teste e reteste para avaliar tanto a evolução de cada participante como do próprio grupo. O foco delimitado foi auto-estima e foram usados durante as sessões recursos expressivos (desenhos), material onírico e relaxamento. Como conclusões foram apontados benefícios decorrentes do processo psicoterápico, tais como: maior controle da ansiedade, redução do nível de crítica e do nível de ansiedade e de medo associados às relações interpessoais, o não reaparecimento de conteúdos relacionados à impulsividade e ao descontrole, controle emocional mais eficaz e uma afetividade mais viva, com uma maior abertura para o contato com o outro.

O Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo abriga projetos de diversas naturezas, entre os quais aqueles dedicados à pesquisa de enquadres clínicos diferenciados com pacientes idosos. No APOIAR temos desenvolvido atendimentos em Psicoterapia breve12, além de pesquisas sobre Qualidade de Vida e Depressão em idosos e a utilização de Técnicas Projetivas13. A Ser e FazerŔOficinas Psicoterapêuticas de criação- serviço pertencente ao Laboratório, tem também desenvolvido trabalhos neste âmbito e dentre eles devemos destacar o trabalho realizado com pacientes de uma Unidade de Referência à Saúde do Idoso da cidade de São Paulo, onde relatam o atendimento grupal de idosos por meio da Oficina Psicoterapêutica de Tapeçaria e Outros Bordados (Manna e Aiello-Vaisberg 2006) e também a Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças, enquadre clínico que ora abordamos neste estudo.

12 Altman, M. Yamamoto, K; Schawarz, L.R. Tardivo, L.S.L.P.C. Atendimento em Psicoterapia Breve Operacionalizada a idosos. IN:Tardivo,L.S.L.P.C.;GIL,C.A. APOIAR Ŕ Novas propostas em Psicologia Clínica,São Paulo,Sarvier,2008.

13 Projeto em fase de conclusão, financiado pelo CNPq sob a coordenação da Profa. Livre Docente Leila Cury Tardivo intitulado : Qualidade de Vida e Depressão em idosos de São Paulo ŔEstudo de validação do Teste Projetivo SAT.

A pesquisa por enquadres clínicos diferenciados voltados ao idoso resultou em nossa Dissertação de Mestrado, apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (GIL, 2005). Este estudo tinha como objetivo principal, compreender o idoso que busca a

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clínica psicológica com sintomas de depressão. Foram apresentados por meio de narrativas, dois atendimentos clínicos de pessoas idosas com sintomas de depressão, que ocorreram no período de 10 a 12 sessões individuais, com uma sessão semanal. Foram utilizados instrumentos projetivos: o Questionário Desiderativo e o Teste de Apercepção temática para idosos (SAT), empregados não só como auxiliares no psicodiagnóstico, mas como facilitadores e mediadores no contato terapêutico. Com um modelo inspirado nas Consultas Terapêuticas propostas por Winnicott (1965/1994), apresentamos os Encontros Terapêuticos como forma de intervenção psicoterápica dirigida ao idoso, os quais demonstraram ser ao longo do processo potencialmente mutativos

A OFICINA PSICOTERAPÊUTICA DE CARTAS, FOTOGRAFIAS E LEMBRANÇAS

A Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças é baseada em um modo de intervenção psicanalítica que utiliza enquadres clínicos diferenciados á luz da teoria Winnicottiana. Este trabalho vem sendo desenvolvido no âmbito da Ser e Fazer Ŕ Oficinas Psicoterapêuticas de criação- e APOIAR, serviços abrigados no Laboratório de Saúde mental e Psicologia Clínica Social e é realizado atualmente no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e também em parceria com instituições diversas.

As Oficinas Psicoterapêuticas tem se caracterizado por constituir um importante espaço que privilegia tanto o atendimento a comunidade quanto o desenvolvimento da pesquisa clínica. Nesta perspectiva, podemos considerar que os enquadres clínicos diferenciados, constituem-se em settings alternativos nos quais o método psicanalítico pode ser concretizado com rigor (AIELLO-VAISBERG, 2004). As Oficinas Psicoterapêuticas, a partir de diferentes tipos de materialidades mediadoras, visam oferecer um ambiente terapêutico que possa favorecer o crescimento emocional e o desenvolvimento das potencialidades de cada indivíduo, criando condição de sustentação emocional e a recuperação do gesto criativo, podendo assim gerar mudanças.

A apresentação da materialidade mediadora em cada oficina é vista como um elemento facilitador do brincar, podendo ser considerado como um paradigma do Jogo do Rabisco proposto por Winnicott (1968). A materialidade que é usada como mediação na comunicação entre o terapeuta e o paciente tem a função de facilitar a expressão do gesto espontâneo, fazendo com que o paciente saia de um estado de passividade e possa agir sobre o mundo, recuperando assim a possibilidade de existir de modo criativo no mundo.

Neste tipo de enquadre se destaca o caráter não interpretativo em que o terapeuta não segue o modelo de Ŗsaber sobre o outroŗ decifrando o que ficou inconscientemente recalcado, mas parte do principio que a possibilidade da experiência do encontro inter-humano se fará acompanhar naturalmente pela articulação simbólica (AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2003). Assim, nesta proposta de enquadre diferenciado, segundo Aiello-Vaisberg (2006): ŘA intervenção fundamental neste caso será o manejo ou holding, mediante o qual se exerce um cuidado à continuidade de ser, que favorece movimentos no sentido da integração pessoal que se encontra no gesto criadorř. (p.26). Na Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças, são realizados encontros semanais onde os pacientes recebem o convite para que tragam cartas, fotografias, objetos ou ainda lembranças de qualquer natureza. Sobre um cavalete, apóia-se um quadro magnético branco que auxiliado por imãs, recebe e sustenta os

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diferentes objetos trazidos em cada sessão. Forma-se ainda na base do quadro um beiral, onde são apoiados objetos, livros, cadernos, etc. Deste modo no espaço potencial criado, no conjunto, ocorre à manifestação de uma expressão coletiva, mas que conserva o também o particular e singular de cada indivíduo. Após afixar os objetos os participantes posicionam-se ao redor do quadro e é aberto um espaço para falar sobre as recordações e experiências que estes objetos suscitam, bem como sobre tantos outros acontecimentos que fazem parte da vida de cada um. Ao final da sessão, o quadro magnético é fotografado e a fotografia compõe um álbum que registra a produção do grupo.

Segundo Machado ET Al (2003, p.68), os objetos trazidos as sessões podem ser designados como Ŗobjetos dramáticosŗ, pois:

..provêm da história de vida de cada um e têm o poder de constelar, no aqui e agora, uma experiência emocional significativa do passado (...) esta expressão enfatiza o enraizamento do objeto na trajetória do viver pessoal, bem como o fato de virem entretecidos com narrativas de histórias de vida.

Ainda segundo as autoras, a partir de articulações teóricas com o pensamento de Politzer (1928/1975) e Bleger (1963/1984, o termo dramático neste caso é usado em seu justo significado, pois, para Politzer (1928/1975, p.27) não existe nenhuma conduta na esfera humana que não tenha sentido e a compreensão deste sentido deve se dar em um contexto que leve em conta a história de cada indivíduo em seu aspecto singular. Este autor irá utilizar o conceito de drama e, ao falar sobre a vida dramática do homem, ressalta que é justamente esta característica dramática que irá possibilitar um estudo cientifico.

Com o objetivo de ampliar a compreensão das vivências emocionais dos participantes neste tipo de enquadre, devemos considerar os conceitos de recordação e transicionalidade como elementos centrais sob a ótica psicanalítica.

Em 1912, Freud ao descrever a dinâmica da transferência, aponta para os impulsos inconscientes que não desejam ser recordados, mas Ŗ... esforçam-se por reproduzir-se de Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social Departamento de Psicologia Clínica - IPUSP ; Anais da VII Jornada APOIAR: SAÚDE MENTAL E ENQUADRES GRUPAIS: A PESQUISA E A CLÍNICA - São Paulo, 7 de novembro de 2009 75

acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de alucinaçãoŗ. (1912/1990, p.143); fazendo uma clara referência aos mecanismos dos sonhos. Posteriormente no artigo intitulado ŖRecordar, Repetir e Elaborar Ŗ(1914/1990), Freud retorna a este tema e já com a teoria da hipnose abandonada, crê que a tarefa principal do tratamento psicanalítico neste sentido, é desvelar, a partir da associação livre, o que o paciente deixava de recordar. Tratava-se, portanto, de preencher lacunas na memória, o que só poderia ser possível superando as resistências oriundas da repressão.

Ainda neste artigo, Freud introduz a idéia da recordação no tratamento psicanalítico que assume a forma de uma atuação, ou ainda da repetição à medida que o paciente não consegue superar as resistências devido aos conteúdos que ficaram reprimidos. Assim, quanto maior a resistência do paciente, mais ele substituirá o recordar pelo repetir (acting out). Baseado

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nestes aspectos, o objetivo do tratamento psicanalítico englobava a possibilidade do paciente passar recordar ao invés de estar preso à compulsão a repetição. Deste modo, para Freud, o principal instrumento para que ocorresse esta modificação estava no manejo da transferência pelo analista onde fosse possível substituir a neurose comum pela neurose de transferência, passível então de ser curada pelo trabalho psicanalítico.

Em 1951, Winnicott ao abordar os Objetos e Fenômenos transicionais, deixa claro que não é seu objetivo tratar o uso dos primeiros objetos nas relações objetais,seja este o punho do bebe ou o primeiro ursinho de brinquedo, mas sim, segundo ele, ŖMeu interesse aqui é a primeira posse, e a área intermediária entre o subjetivo e o que é objetivamente percebidoŗ (p.318). Nesse sentido, Winnicott refere-se a expressão ŖObjeto Transicionalŗe ŖFenômeno Transicionalŗ para nomear à área intermediaria da experiência entre, por exemplo, o polegar do bebê e o ursinho e mais tarde a outros fenômenos , como por exemplo entre o erotismo oral e a verdadeira relação objetal. Winnicott (1951) designa esta terceira área como uma região intermediária da experimentação e tanto a realidade externa quanto interna do indivíduo contribuem para a sua existência. O autor destaca a função desta área, como relacionada a um lugar de descanso para o indivíduo, frente à tarefa de manter as realidades externas e internas, ao mesmo tempo, separadas e também inter-relacionadas.

JUSTIFICATIVA

Desde 2003, temos desenvolvido a Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças. Esta oficina, desde sua concepção, tem sido marcada pelo caráter inclusivo que tem norteado nossos trabalhos e atende a pacientes de idades e demandas diversas, representando assim uma experiência que tem se revelado bastante frutífera e de grande potencial mutativo. É importante notar que embora tenhamos sempre mantido o caráter inclusivo do trabalho, o grupo que vem ao longo dos anos participando da Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças é predominantemente composto por pessoas acima de sessenta anos de idade, sendo que atualmente é formado por idosos em sua totalidade.

Devemos considerar também como justificativa quanto à relevância deste trabalho, o crescente envelhecimento populacional e a conseqüente necessidade de melhorar a qualidade de vida do idoso, o que nos motiva a buscar novos enquadres clínicos que possam ser profícuos a esta população. Além do mais, observamos com base em dados da literatura que embora tenha havido progressos nos últimos anos, ainda há uma carência de trabalhos que contribuam para uma maior compreensão do envelhecimento sob a luz dos conceitos psicanalíticos.

O objetivo deste estudo é apresentar as reflexões sobre o atendimento grupal de idosos por meio da Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças.

ASPÉCTOS METODOLOGICOS

A Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças que abordamos neste estudo foi dirigida a um grupo que manteve a configuração atual por um ano, do qual fazem parte cinco homens com idade entre 60 e 73 anos. Os participantes procuraram o Laboratório de

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Saúde Mental e Psicologia Clínica Social Ŕ Ser e Fazer Oficinas Psicoterapêuticas de Criação/APOIAR com queixas diversas, entre as quais sintomas depressivos. A Oficina é realizada semanalmente e neste enquadre, os pacientes são convidados a trazer para a sessão cartas, fotografias e objetos, que são afixados ou apoiados em um quadro magnético e durante uma hora e meia falam sobre as recordações despertadas.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Durante o processo psicoterapêutico os pacientes têm trazido a Oficina fotografias, cartas e objetos variados e temos vivenciado diversas situações que resultam, sem dúvida, em um rico material clínico. No entanto, neste estudo, vamos nos referir a alguns aspectos de três pacientes e sua participação na Oficina a título de ilustração clínica.

Jorge14 tem 70 anos e mora com a esposa e um neto de oito anos, cujos pais (sua filha e o genro) residem em outra cidade. Relata desde o início desanimo e tristeza, principalmente após o assassinato do filho de 30 anos, cinco anos atrás. Conta que desde então não falam sobre este assunto na família, o que para Jorge, tem sido muito difícil. Logo que iniciou o trabalho na oficina,Jorge trouxe muitas fotografias e desenhos realizados pelo neto.Trouxe também objetos; um radio,a carteira de trabalho e várias referências sobre momentos importantes da sua vida (formatura,casamento,aposentadoria,etc.).

14 Os nomes dos pacientes são fictícios, e assinaram Termos de Consentimento para a realização de estudos científicos com seu material.

Após seis meses de participação da Oficina, Jorge passou a trazer fotografias tiradas dos filhos na infância. Aos poucos, foi nos contando sobre aspectos da vida de seu filho e também sobre as circunstâncias de sua morte, ocorrida de forma bastante violenta. Relatava que o grupo era o único lugar onde podia falar sobre o filho e chorar sua morte, pois a esposa ainda evitava falar do assunto e perante os amigos e demais familiar ele procurava não demonstrar seus sentimentos, pois achava que deveria manter uma imagem de homem forte que apesar das adversidades conseguia manter-se firme. Em uma sessão trouxe um álbum de fotografias vazio e se propôs a fazer um álbum com fotografias de seu filho. Durante algumas sessões, dedicou-se de fato a esta tarefa, auxiliado pelo grupo que opinava quanto à ordenação e posição das fotografias no álbum. Jorge ao longo das sessões tem se mostrado mais animado e faz planos sobre a volta da filha e o genro para sua casa e atividades que quer realizar na companhia do neto.

Paulo tem 60 anos e aposentou-se recentemente. Disse sofrer, segundo ele, de Ŗfobia socialŗ, pois tem muita dificuldade no relacionamento com as pessoas. Está separado da esposa há muitos anos e tem um filho já casado com o qual mantém pouco contato. Sente-se isolado, inseguro e com poucos prazeres na vida. Durante o processo psicoterapêutico Paulo enfrentou sérias dificuldades financeiras, o que resultou na perda de seu apartamento e a mudança para uma casa mais simples em um bairro na periferia da cidade. Paulo, na época da mudança trouxe várias fotografias de seu apartamento e durante as sessões as ordenava de forma cuidadosa no quadro, pois dizia que mostrar ao grupo como seu apartamento era o deixava mais tranqüilo e seguro quanto ao futuro e sua capacidade de se adaptar a nova casa.

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Com o passar do tempo, Paulo passou a trazer muitas fotografias de sua nova casa, demonstrando o cuidado com que cuidava da organização e de aspectos da decoração. Passou a sentir-se melhor e mais adaptado a nova vida. Paulo trouxe também fotografias e cartas que escrevera para uma namorada. Em uma sessão mais recente trouxe um bolo, o primeiro que havia feito até então, para ser compartilhado com o grupo e demonstrou muita satisfação ao ser elogiado por todos.

João tem 72 anos e há alguns anos atrás perdera uma perna devido a Diabete. Este processo resultara em uma depressão, pois João nos contava no início do processo psicoterapêutico, que logo após a amputação passou a achar que sua vida havia terminado. Passou a isolar-se, a dormir muito e alimentar-se mal. Apesar do apoio que dizia receber da esposa, filhos e netos, João mostrava-se muito triste e com dificuldades de fazer planos para o futuro. Nesta época ele foi encaminhado ao psiquiatra, mas não aderiu à medicação devido aos efeitos colaterais que dizia sentir.

João demorou vários meses até conseguir trazer uma fotografia dos filhos à sessão. Dizia que ao perder a perna não tinha mais nada a oferecer, e sentia um grande vazio em sua vida. Embora já tivesse aprendido a se locomover com desenvoltura com o apoio das muletas, reclamava de sua dependência e falta de energia ao realizar as tarefas diárias. Durante a realização da Oficina, João trouxe as sessões um número reduzido de objetos.Um dia foi convidado a participar de um coral por um dos integrantes do grupo.Ele relutou bastante , mas começou a participar dos ensaios e aos poucos foi demonstrando satisfação em cantar.Em uma das últimas sessões João trouxe o convite para uma apresentação do coral, o que foi recebido animadamente pelos demais participantes.

A partir do material clínico podemos considerar que os três pacientes em questão trazem referências marcantes com relação a perdas que sofreram ao longo da vida. Estas perdas acompanhadas de seu significado emocional foram expressas durante as sessões, por meio dos Objetos Dramáticos (MACHADO ET AL, 2003) trazidos as sessões aliados as narrativas de cada paciente. Assim, Jorge ao fazer o álbum do filho pode vivenciar algo do passado em um momento presente, o que não fora possível até aquele momento, o que resultava em um estado melancólico. Este Ŗfazerŗ o álbum revelou-se em nosso entender associado ao Ŗserŗ, pois foi acompanhado de sentido para Jorge. Esta resignificação do passado no presente, tornou possível a criação também de um sentido para o futuro, a medida que Jorge passou a fazer planos e valorizar as suas possibilidades presentes ( a volta da filha para casa e o planejar atividades com o neto).

Do mesmo modo, percebemos que Paulo, também com uma vida marcada por perdas, à medida que traz as fotos de seu apartamento e depois da nova casa, pode dar também um novo significado a estes fatos. Em conseqüência, as suas fotografias que retratavam de início somente objetos, passam também incluir pessoas (a namorada) e mais tarde, da mesma maneira que Jorge ocorre à nova experiência do Ŗfazerŗ um bolo e compartilhar com o grupo. Paulo pode assim vivenciar uma forma de ser mais criativa e próxima de si mesmo.

João, que mostrava a dor de sua perda presentificada no próprio corpo (a amputação da perna) demonstrou uma grande resistência em trazer as sessões os objetos solicitados. A perda da perna representava para João, a sua própria incapacidade em levar uma vida criativa

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e significativa. Neste sentido, não era possível constelar no presente a experiência passada, o que era representado pela ausência dos Objetos Dramáticos. Com o processo terapêutico, percebemos que João pode também experimentar um novo Ŗfazerŗ, que neste caso, auxiliado pelo holding do grupo, traduziu-se no ato de cantar e convidar o grupo para que o assistisse. Somente deste modo foi possível, a nosso ver, a apresentação de uma forma mais espontânea do Objeto Dramático (o convite para o coral).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio destes objetos dramáticos, temos observado ao longo de nossa experiência o acontecer de um mundo transicional (AIELLO-VAISBERG, 2006), onde o passado (que pode ser recente ou mais remoto) se presentifica, em um movimento de resignificação, que auxiliado pela possibilidade do compartilhar emoções com o grupo em um ambiente favorecido pelo holding do terapeuta; torna possível abrir e criar novas perspectivas para o futuro. Neste sentido,gesto e narrativa se entrelaçam,buscando obter no encontro terapêutico a presentificação do Self.

Desta forma, podemos pensar que a materialidade utilizada em nossa Oficina possa ser um agente catalisador do estabelecimento de uma forma de relação transferencial. Em tal relação, a possibilidade de lembrar e compartilhar estas lembranças com o grupo, em um ambiente sustentador, em que exista o holding oferecido pelo terapeuta e pelo próprio grupo, torna possível o criar/encontrar do paciente. Este processo leva, por sua vez, a uma resignificação do passado no presente e ao mesmo tempo a criação de perspectivas futuras, trilhando um caminho em direção a uma forma mais integrada de ser e estar no mundo, onde o lembrar pode ser entendido como possibilidade de integração do self, rumo a uma existência mais criativa e próxima de si mesmo.

Concluímos que este enquadre favorece o desenvolvimento das potencialidades de cada indivíduo, promovendo a melhora dos sintomas depressivos e possibilitando experiências emocionais mutativas.

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