Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador,...

26
CAPOEIRA A MALÍCIA E A FILOSOFIA DA MALANDRAGEM Nestor Capoeira Existe uma preocupação, comum a várias pessoas, com o conteúdo - violência, pornografia, incentivo ao consumo exagerado, etc. - da programação da televisão e da própria Internet. O que fazer? Ou melhor diríamos: tentar fazer o quê? Pois uma censura, mesmo baseada em motivos justos e bons, poderia ser um precedente perigoso. Outros estudiosos se preocupam em como a televisão, independente do conteúdo da mensagem (o que está veiculado nas novelas, nas séries, nos telejornais, nos anúncios, etc.), altera o relacionamento do indivíduo com o imaginário; o real; a sociedade; e com os outros indivíduos. Pelo simples fato de passar grande parte de suas horas de folga passivamente sentado frente ao aparelho de TV, ou do computador e da Internet, ocorrem alterações mais profundas no indivíduo que poderia supor o pensamento marxista, ou as terapias da modernidade. Preocupações e problemas complexos. E mesmo que estivéssemos seguros da propriedade de certa forma de ação, esta seria de difícil realização face ao poder dos grandes complexos mass mediáticos, e da grande popularidade da televisão e da Internet que, afinal de contas, também são maravilhosas ferramentas pedagógicas e comunicacionais. Nossa proposta é mais simples e está direcionada na direção oposta: ao invés de enfrentar o Golias virtual; fortificar o David mestiço. Ou seja: a televisão invade, com projetos de absorção, o campo existencial e o imaginário do espectador, oferecendo-lhe um espaço/tempo (simulado) social absolutamente novo. A Internet seduz, com sua maravilhosa gama de informações e possibilidades, tanto o estudioso quanto o jovem pois, além de tudo, oferece a possibilidade

Transcript of Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador,...

Page 1: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

CAPOEIRAA MALÍCIA E A FILOSOFIA DA MALANDRAGEM

Nestor Capoeira

Existe uma preocupação, comum a várias pessoas, com o conteúdo - violência, pornografia, incentivo ao consumo exagerado, etc. - da programação da televisão e da própria Internet.

O que fazer? Ou melhor diríamos: tentar fazer o quê? Pois uma censura, mesmo baseada em motivos justos e bons,

poderia ser um precedente perigoso. Outros estudiosos se preocupam em como a televisão,

independente do conteúdo da mensagem (o que está veiculado nas novelas, nas séries, nos telejornais, nos anúncios, etc.), altera o relacionamento do indivíduo com o imaginário; o real; a sociedade; e com os outros indivíduos. Pelo simples fato de passar grande parte de suas horas de folga passivamente sentado frente ao aparelho de TV, ou do computador e da Internet, ocorrem alterações mais profundas no indivíduo que poderia supor o pensamento marxista, ou as terapias da modernidade.

Preocupações e problemas complexos. E mesmo que estivéssemos seguros da propriedade de certa forma

de ação, esta seria de difícil realização face ao poder dos grandes complexos mass mediáticos, e da grande popularidade da televisão e da Internet que, afinal de contas, também são maravilhosas ferramentas pedagógicas e comunicacionais.

Nossa proposta é mais simples e está direcionada na direção oposta: ao invés de enfrentar o Golias virtual; fortificar o David mestiço. Ou seja: a televisão invade, com projetos de absorção, o campo existencial e o imaginário do espectador, oferecendo-lhe um espaço/tempo (simulado) social absolutamente novo. A Internet seduz, com sua maravilhosa gama de informações e possibilidades, tanto o estudioso quanto o jovem pois, além de tudo, oferece a possibilidade

Page 2: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

adicional de uma comunicação que não apresenta a problemática dos relacionamentos de "corpo presente".

Em contrapartida, nós vamos fortificar uma outra opção; uma opção da ordem da brincadeira e da vadiação, da malandragem alto-astral, do ritual e do mito, da dança, luta, canto, ritmo, com raízes africanas - a capoeira. Uma opção que, por ser "multidisciplinar", é diversa de outras (ótimas) opções: esporte, artes marciais, dança, yoga, terapias diversas, etc.

A escolha desta proposta - "não enfrentar o Golias virtual; fortificar o David mestiço" -, tem tudo a ver com a malícia da capoeira. Na capoeira não se "bloqueia" um golpe; ao contrário, o capoeira se esquiva "acompanhando" o ataque e, no mesmo movimento, contra-ataca ou derruba (com uma rasteira, etc.).

Pois "bloquear" é interessante para uma arte marcial que visa objetivamente vencer uma luta física. Mas na capoeira - "escola de sabedoria para a vida" - nos preparamos para situações em que o "inimigo" é tão forte, ou tão "virtual", que é impossível pensarmos em "bloqueio". Ou como nos confidenciou o finado mestre Canjiquinha: "dá pra escorar a pancada de um camarada muito forte; mas não dá pra escorar um caminhão desgovernado à 120 km/hora".

É assim que, em especial nos últimos anos, temos dado tratos à

bola no sentido de fortificar a capoeira para as novas necessidades deste nosso século. Não será afirmando um passado pre-mídia que deflagaremos esta resistência, como já vimos em Janice Caiafa (1). Trata-se de não se furtar à inevitabilidade da era das transmissões no tempo, mas a partir daí produzir outros efeitos; lembrando sempre que o Estado e os grandes complexos transnacionais não são onipotentes.

RITUAL E MITO

Ritual e mito andam juntos.

Page 3: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

Poderíamos dizer que o ritual é o mito em ação.Civilizações passadas, que não conheciam a escrita, deixaram sua

herança de sabedoria através do mito. Mas, também, aquelas que conheciam perfeitamente a escrita, tinham sua força vital e identidade em seus mitos; estes constituiam o pano-de-fundo panorâmico e os reservatórios de águas profundas donde fluiam os sonhos e imaginação do povo; a maneira diária de viver e fazer coisas; bem como a arte e a ciência.

Mesmo em nossos dias, até mesmo no mundo ocidental, sentimos a força e sabedoria dos antigos mitos de civilizações de outrora, como, p.ex., os mitos de Édipo, Eletra, Narciso, re-interpretados pela mente ocidental de Sigmund Freud.

Povos e nações que perderam seus mito, ou os trocaram por outros valores "modernos e contemporâneos", são como árvores desenraizadas que não mais se alimentam da terra e dos mananciais de águas profundas, por isto, estão em grande perigo: perderam suas raízes, perderam sua identidade, e vemos a instalação de uma espécie de doença social, ainda que aquela nação tenha atingido um elevado grau de desenvolvimento tecnológico e bem estar material. Trata-se de algo do mesmo contexto da "desterritorialização".

A capoeira, e a cultura brasileira, estão profundamente enraizadas em mitos que constituíram nossa identidade. Entre estes, estão aqueles que nos tornam bastante "religiosos" ou "espiritualisados", semelhante, p.ex., à Índia - a capoeira está para o Brasil, assim como a yoga para a Índia -; esta "espiritualidade" em oposição, neste aspecto, aos Países Centrais do Primeiro Mundo cujo valor maior é o dinheiro secundado pela tecnologia.

Estes mitos nos vieram dos índios que originalmente habitavam o Brasil; vieram também de Portugal, muitas vezes ligados ao catolicismo ou aos judeus ou à antiga cultura árabe (os árabes estiveram em Portugal durante os quatro séculos que precederam a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500); e - talvez a contribuição

Page 4: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

mais forte - os mitos que vieram com os milhões de africanos capturados e trazidos ao Brasil para o trabalho escravo.

Mas como funciona o mito no dia-a-dia de uma pessoa?Tomem meu exemplo neste exato momento: eu posso me

imaginar, e me sentir, como mais um elo de uma corrente de energia constituída de carne, sangue, ossos e sonhos, que se inicia lá atrás, com os primeiros capoeiristas africanos no Brasil, que não aceitaram a condição de ser apenas um escravo, algo que não possuia uma alma e podia ser comprado e vendido como um cavalo. Eles mantiveram-se estreitamente ligados às suas culturas, seus rituais e mitos, e assim passaram seu saber para gerações futuras - já agora constituidas de bandidos e marginais no final dos 1800s -; que enfrentaram a sociedade de então: “Nós nos negamos a ser a força de trabalho sobre a qual a classe dominante vai se espojar e vampirizar!”.

E uniram-se em maltas que aterrorizavam a parte “obediente” da população. E estes violentos foras-da-lei também deixaram seu conhecimento de vida e de viver no Jogo, para as futuras gerações de capoeiristas.

E este saber passou para os mestres que criaram as "academias" nas decadas de 1930/1940, e finalmente veio a mim através meu mestre - Leopoldina -, e também daqueles jogadores jovens ou idosos que contribuiram para a formação da minha maneira de jogar o Jogo, dentro e fora da roda.

Neste exato momento, no Institut for Idraet da Odense Universitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se chama Capoeira.

E quando escrevo, não sou só "Eu" que escreve; mas também todos aqueles outros do passado, e também os do presente - os meus contemporâneos no Jogo que participam desta mesma herança.

Na verdade, quando eu escrevo, ou jogo, ou ensino capoeira, sou até mesmo aqueles que virão depois de mim e para os quais espero

Page 5: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

transmitir o que aprendi.Na verdade, neste exato momento, diante da tela iluminada do

computador, não sou apenas um jogador de capoeira - sou a própria Capoeira.

E por isto sou forte.

Este é o poder do Mito; e como ele funciona no dia-a-dia de uma pessoa.

E evidentemente isto é muito diferente de um enfoque ocidental e “primeiro-mundista” de minha atual situação: sentado aqui, eu pensaria se estava ganhando tanto dinheiro quanto ganhava no Brasil; me preocuparia em escrever algo que causasse uma boa impressão a fim de conseguir um maior status e empregos melhor remunerados.

E, por isso, eu seria fraco. Eu teria somente a mim mesmo. Um simples e solitário indivíduo confrontando a Sociedade e o

Sistema no qual vivemos.

Huizinga e o Homo Ludens:

A capoeira, de acordo com a documentação que conhecemos atualmente, percorreu um longo caminho:

- a capoeira escrava do começo dos 1800s, descrita e desenhada por Rugendas em 1835 (3);

- as maltas cariocas, após 1850, que dominavam as ruas do Brasil Império, descritas por Plácido de Abreu no seu Os capoeiras de 1886;

- os valentões baianos, os brabos pernambucanos, e os malandros cariocas, no começo dos 1900s;

- os educadores (4) que criaram o sistema de ensino em academias: mestre Bimba, na década de 1930, em Salvador; mestre Sinhozinho (capoeira/luta sem berimbau), 1930, no Rio de Janeiro; mestre Pastinha, 1940, em Salvador;

- as propostas de Waldemar da Liberdade, Noronha, Canjiquinha,

Page 6: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

Caiçaras, entre outros, nos 1940/50s, na Bahia;- o Grupo Senzala, carioca; e mestres baianos que emigraram para

São Paulo (Suassuna, Acordeon, e outros), a partir da década de 1960;- a expansão no Brasil, no estrangeiro a partir dos 1970s, e as

novas gerações de mestres e professores de diferentes linhagens.

Vamos, agora, estudar desdobramentos desta dinâmica; apontar alguns desvios e perdas que, creio eu, podem levar a uma ruptura radical com os fundamentos da capoeira. No cerne de minhas preocupações esta a possível perda do brincar e da brincadeira que é parte essenciail do Jogo.

Esta coisa, aparentemente inconsequente e "infantil" - o brincar -, é também algo básico na vida e na cultura humana. Vamos aprofundar este ponto de vista com Geertz, Lewis, e principamente Huizinga e Winnicott, nas páginas seguintes.

Johan Huizinga nos diz no seu Homo Ludens, de 1938:

Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber...Mas existe uma terceira função, que se verificatanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. (5)

E concluiu que a "expressão Homo Ludens merece um lugar em nossa nomenclatura."

Huizinga é bem radical em relação ao papel do jogo, da brincadeira, no seu "exame dos problemas gerais da cultura"; tanto é

Page 7: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

assim que não hesita em afirmar:

É no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve. (6)

O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. (7)

O jogo/brincadeira seria algo que envolveria a tensão, a alegria, o divertimento e, muitas vezes, uma certa dose de perigo. O jogo não estaria ligado a qualquer grau ou tipo de civilização, nem tampouco à "qualquer concepção do universo"; o jogo possuiria uma "realidade autônoma".

Quando lemos Huizinga temos a impressão que ele está falando especificamente do jogo da capoeira. Mas não; Huizinga é um alemão do final dos 1800s e começo dos 1900s, e nunca conheceu a capoeira. Ele escreve sobre o jogo e a brincadeira como algo que existe em todas as civilizações de todos os tempos. Ele nos dá muitos exemplos da China de séculos atrás, de ilhas perdidas no Pacífico, e de tribos africanas; assim como de países "civilizados" como a sua Alemanha nativa.

Eu creio que, para o capoeirista e para o pesquisador, é muito interessante este enfoque.

Estamos acostumados a pensar a capoeira como uma jóia única e preciosa. E o sucesso que tivemos após 1970, quando começamos a "conquistar" o Brasil - hoje somos 25.000 professores e mestres -, e a ensinar esta "atividade exótica" no estrangeiro, parece comprovar esta

Page 8: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

ideia: estamos em mais de 150 países; metrópoles como Nova Iorque, Paris, Londres, Tóquio e Berlin tem mais de 30 academias bombando; em 2013 o Ministro das Relações Exteriores do Brasil afirmou que a "capoeira é o mais forte vetor de divulgação da língua portuguesa no exterior".

E no entanto, vem este alemão, que nunca ouviu falar de capoeira, dizendo que estuda o papel do jogo e da brincadeira na cultura humana desde 1903, e em 1938 publica um livro que hoje é básico nas universidades do "Primeiro Mundo".

É, no mínimo, curioso: pois se, por um lado (a visão dos capoeiristas) a capoeira é realmente algo "único e precioso"; por outro lado (a visão de um estudioso alemão de 1900), a capoeira também seria uma das representantes de algo que surgiu sob diferentes formas ao longo dos tempos e em muitas civilizações diferentes: "há nele (no jogo/brincadeira) uma tendência a ser belo";" tensão, equilíbrio, compensação, contraste, variação, solução, união e desunião"; o jogo "lança sobre nós um feitiço", é "fascinante", "cativante".(8)

Em termos filosóficos dá muito em que pensar.Em termos práticos é um alerta para que tenhamos cuidado para

não transformar a capoeira/ jogo/brincadeira em algo com regras rígidas; em algo baseado nas leis da competição excessiva; em algo regulamentado por organismos ou pessoas de visão e entendimento curto, que só pensam no "sucesso" e no "dinheiro" a curto prazo, tal qual na nossa sociedade capitalista, racional, e consumista do começo dos anos 2000.

E Huizinga, que devido ao local de nascimento - Alemanha - e a época em que viveu - no entorno dos 1900s -, deveria louvar as virtudes da "seriedade" (como atualmente fazem tantos de meus colegas, mestres de capoeira), prefere considerar o jogo/brincadeira algo de "ordem mais elevada".

... jogo, enquanto tal, é de ordem mais elevada do

Page 9: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade. (9)

O alemão, ainda mais aquele de 1800/1900, era um homem "sério" que tinha muito respeito pela "honestidade". Por isto, é que acho muito curioso quando Huizinga fala a respeito da "seriedade" que seria "inferior" ao Jogo; e, a mesma coisa, quando fala do "jogador desonesto, batoteiro": ele minimiza a "culpa" do "batoteiro"; mas, ao mesmo tempo, não perdoa o "desmancha prazeres".

Também veremos em Winnicott - conheciso e renomado médico e psicanalista inglês dos 1900s (que tambem não conhecia a capoeira mas que achava que o brincar era básico na cultura e no ser humano) - uma crítica radical ao "estraga prazeres": "quem não sabe brincar estraga a brincadeira dos outros".

Vejamos, por agora, este texto de Huizinga:

O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um "desmancha-prazeres". Este, porém, difere do jogador desonesto, do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmancha prazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo... Torna-se, portanto, necessário expulsá-lo, pois ele (o desmancha prazeres) ameaça a existência da comunidade dos jogadores.A figura do desmancha-prazeres desenha-se com mais nitidez nos jogos infantis... Mesmo no universo da seriedade, os hipócritas e os batoteiros sempre tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres. (10)

Page 10: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

Muniz Sodré repensando a filosofia da malandragem

No Rio de Janeiro dos 1920s/1930s, enquanto segmentos sociais hegemônicos tentavam mudar, no imaginário, a imagem da capoeira marginal dos 1800s; apresentando-a "seriamente" como a Luta Nacional, "desvinculada das raízes africanas e da vivência na marginalidade" (11); observava-se também a reação das "classes populares" com a construção e consagração do Malandro.

O Malandro, ironicamente, vai se popularizar em todo o Brasil através dos "sambas de malandragem" tocados no rádio - uma nova e fascinante invenção da moderna tecnologia (!) que, no Brasil, tornou-se (o rádio) uma "ferramenta pedagógica" do Estado Novo de Vargas que pregava o trabalho duro e honesto.

O Malandro vai atravessar horizontalmente toda a cultura e maneira de ser do carioca; e, em consequência, do brasileiro. E, verticalmente no tempo, vai também ser vetor ativo e atuante na formação da atual "filosofia da capoeira" - a malícia.

O Malandro surge nas mesmas freguesias (bairros) anteriormente dominados pelas maltas: Gloria, Cais do Porto, Centro, e a Lapa que tinha sido o lar da fanigerada Flor da Gente.

O Malandro era o herdeiro destronado e solitário das maltas cariocas - uma ligação extremamente importante que poucos percebem -, dizimadas (12) pela perseguição policial do início da República na virada do século XIX para o XX, comandada por Sampaio Ferraz, o Cavanhaque de Aço.

- Solitário: agindo individualmente e sem o poder do grupo, o malandro não se tornou um risco para a polícia e para o novo Regime Republicano como tinham sido as maltas de capoeira do Império.

- Destronado: sem o apoio de algum político poderoso, o malandro era um elemento fragilizado que contava apenas com sua esperteza, sua lábia, seu charme, seu know-how do jogo e das mulheres, sua capacidade de apelar inesperadamente para a

Page 11: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

capoeiragem e para a navalha quando se via acuado e sem possibilidades de resolver a situação "na conversa".

A capoeira das maltas de 1800s não deixou registro de mão própria, exceto pelo Os Capoeiras de Plácido de Abreu (1886); os registros que temos são de outros atores, como "a pena do escrivão de polícia" (13).

Por sua vez, a malandragem seminal do comecinho dos 1900s também não deixou registro próprio, exceto pelas falas de Kalixto (1906), e do Negro Ciríaco em entrevistas após vencer a luta com Sada Miako (1912) - entrevistas que foram muito bem analisadas pelo cérebro afiado de mestre Jair "Perigo" Moura (14).

Sobrou, principalmente, a voz do sambista. As letras de samba por muito tempo constituiram o principal, senão o único, documento verbal que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente (15). E é no samba, em especial os que louvam o Malandro, numa linhagem que começa com Geraldo Pereira e Noel Rosa, e chega até nossos dias com Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, que vamos encontrar os fundamentos da filosofia da malandragem; ou seja, como o Malandro entende e lida com o dinheiro e o trabalho, as mulheres e o sexo, o jogo e as drogas, o samba e a alegria, a violência e o machismo, a espiritualidade e o materialismo, o Sistema e a polícia, etc.

Muniz Sodré - um dos mais importantes pensadores brasileiros da atualidade -, por sua vez, tambem resalta a importância da alegria: "se quiséssemos fazer uma filosofia brasileira teríamos que partir da alegria; o povo é voltado para isto". E, nesta mesma entrevista, falou do contexto que envolve a filosofia da malandragem, o jogo da capoeira, a espiritualidade, e a alegria.

Talvez seja necessário repensar a malandragem. Não mais o malandro da Lapa dos 1920 e 1930, mas a malandragem como esse jeito de se livrar dos

Page 12: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

pesos e das amarras. Quando isto acontece voce tem a alegria, algo muito importante que eu abordei no (livro) "Estratégias sensíveis".A malandragem como ese jeito de burlar as dificuldades e os obstáculos, em vez de fazer face ao obstáculo como no box - duas técnicas que se batem. A malandragem como esse jeito de contornar o adversário, como na capoeira; eu acho que isto pode ser brasileiro. Pode até vir de um lugar - Rio de Janeiro -, mas é uma forma que encontra as estratégias de um povo para contornar a impiedade do Estado.Esse malandro talvez tambem tenha alguma coisa de espiritual nele. Não é a toa que uma das maiores entidades da espiritualidade carioca seja o Malandro; o Zé Pelintra que chefia uma falange imensa...

No Brasil há uma vocação para o facismo em todos os níveis - os ruralistas, os evangélicos, etc. -, se fossemos um país extremamente organizado seria um problema... o que é eficiente, o que é eficaz - seja o Ministério Público, ou o Judiciário, etc. -, cai no autoritarismo, cai no autocratismo, se torna uma pequena ditadura. Na verdade, eu penso que o país tem uma vocação para a ditadura, para o facismo; não é essa coisa que se pensa - bonomonia...O povo brasileiro é conservador e, quando ele se organiza, muitas vezes utilisa formas que não são próprias às instituições populares, formas que tem uma tendência para o facismo... No entanto, as instituições populares são organizadas e não são facistas: um bloco de carnaval, o jongo, o candomblé, a capoeira. Não são facistas mas

Page 13: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

também não são democráticas, são formas conservadoras...

Mas no Brasil, temos a malandragem que destroi esta burocracia e nos salva.O povo joga capoeira.O povo dribla as adversidades como o capoeira dribla o adversário, e faz isso cantando; e quando pode, bate. (16)

Huizinga comprende que a força de um jogo é tal que: "as comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo" (17) - coisa que nós capoeiristas entendemos perfeitamente.

E, dentro deste contexto, semelhante a Muniz Sodré, Huizinga resalta a importância da alegria e da festa:

Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma eliminação da vida quotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria. (18)

A brincadeira segundo Winnicott

Então, o cerne de nossa proposta para a capoeira é a brincadeira; e este jogo-brincadeira é permeado pela alegria (como queria Huizinga).

O brincar é coisa séria para muitos estudiosos como vimos com Huizinga. Vejamos, agora, o que diz Lewis em sua tese de doutorado, (minha tradução):

No seu mais famoso artigo, Geertz propõe que a

Page 14: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

briga de galos balinesa é uma espécie de 'deep play' (brincar profundo) e esta é uma frase que eu (e outros) achamos extremamente afortunada para pensar a respeito de muitas formas de expressão cultural, incluindo a capoeira...Todavia, uma questão que Geertz não colocou é precisamente porque o brincar é tão revelador de padrões culturais profundos...Talvez parte da resposta tenha a ver com, como o brincar serve como um framework (grade) para contextualizar encontros sociais. Esta foi a visão central de Bateson (19) em relação ao brincar, que Goffman expandiu para um enfoque geral para compreeder a natureza humana. (20)

Então, para estes pensadores, o brincar (do ser humano quando criança) é a base de todos "encontros sociais" que ele vai encetar pelo resto de sua vida.

Por sua vez Winnicott (21), famoso e respeitado médico e psicanalista, com a experiência prática de cuidar de milhares de crianças e jovens, orfãos ou "problemáticos", no pós-grande-guerra inglês da década de 1940, resgata e legitima o brincar - que tambem é um dos fundamentos básicos do Jogo de Capoeira.

Dizer que o "brincar é um dos fundamentos básico do Jogo de Capoeira", não é invenção minha, pois antes de sua "modernização" - 1930 e mais fortemente 1960 em diante -, a capoeira era carinhosamente chamada por seus praticantes de brincadeira ou de vadiação. Mestre Pastinha (1889-1981), o mestre seminal da capoeira angola, chegava a afirmar que "a capoeira é uma coisa vagabunda", no sentido de ser uma coisa prazerosa, vadia, sem compromissos com a objetividade.

Uma vadiação que, na opinião unânime dos mestres da Velha Guarda, "fazia a cabeça" do iniciante transformando o aprendiz num

Page 15: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

"capoeirista": alguém que conhece os fundamentos, não só da malandragem, mas os requintes desta filosofia (da malandragem) materializados numa brincadeira corporal, que pode ser usado como luta mortal; e também pode uma filosofia de vida, uma ética no dia-a-dia das pessoas, procurando determinar-lhes os objetos bons ou supremos, o Bem, uma boa "maneira de ser" ou a "sabedoria da ação" - práticas tambem preconizadas pelos antigos filósofos gregos, em especial os estóicos.

Eu creio firmemente que estes velhos mestres de 1930 e 1940 tinham razão; a capoeira realmente faz a cabeça de seus praticantes.

Poderíamos corrobar este ponto de vista levando em conta o poder da linguagem: "A ordem da linguagem tem a potência de modificar e interferir em qualquer outra ordem que opera no corpo" (22), afirma Noga Wine. O corpo humano, como todo ser vivo, tem um nível de funcionamento que se faz segundo leis e ordens (pre) estabelecidas, "contudo ele é passível de pertubações e modificações resultantes de um outro nível de funcionamento, o da linguagem". (23)

Evidentemente estamos usando uma licença quase poética, extrapolando o pensamento de Wine para a "linguagem corporal" típica da capoeira; um contexto comunicacional que abrange outras áreas e outras compreensões diversas da linguagem falada e escrita a que se referia Wine.

Malícia, a filosofia da capoeira

A malícia, num sentido amplo, é a maneira como o jogador vê e joga com a vida, o mundo e, especialmente, as pessoas - é uma espécie de "saber" ou "sabedoria".

Num sentido mais restrito, a malícia é o que permite um jogador se antecipar aos ataques do outro; e também "enganar" o oponente, fingindo que vai fazer algo quando, na verdade,

Page 16: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

está preparando um outro lance. Poderíamos perguntar o que "sabedoria" tem a ver com "enganar o outro": é que, para enganar o outro, é necessário saber como o outro é, e como ele vai agir; e, por outro lado, conhecer nossas potencialidades de ação e fraquezas.

E talvez caiba uma pequena explicação sobre a maneira pela qual (penso eu) o Jogo faz a cabeça do iniciante: através da malícia, as vezes chamada de mandinga, ou "filosofia da capoeira".

A malícia não é um "saber racional". Não é absorvida, apreendida e encarnada através da leitura ou da fala. A malícia é uma espécie de "conhecimento", "saber corporal" que adquirimos – o iniciante queira ou não - jogando capoeira. Depois de ser absorvida e "encarnada" pelo corpo, a malícia vai se “tornar clara” para o cerébro.

Aos poucos, o jogador começa a entender que o Jogo não é apenas uma troca de golpes e esquivas, quedas e movimentos acrobáticos. O iniciante começa a ver algo que os não-iniciados não percebem: "as brabeiras da vida" se manifestam no jogo, dentro da roda, de maneira crua e, muitas vezes, indigesta.

A gente vê emoções e estranhas reações estampadas nos rostos e nos corpos dos jogadores. E, muitas vezes, o próprio jogador se surpreende com atitudes - motivadas pelo orgulho, vaidade, vontade de vencer à qualquer custo, medo ou inveja - dele próprio em um determinado jogo. E, mais ainda, com os pensamentos conflituosos, as "explicações" e “desculpas” que ficam rodando na sua cabeça quando relembra o que aconteceu.

O jogador, que está tendo seu corpo e sua cabeça “feitos” pelos diferentes jogos com diferentes pessoas, começa a perceber que todo mundo tem uma "fachada social", uma espécie de verniz "civilizado" que só se rompe muito ocasionalmente - nos momentos de tensão, nos excessos do alcool, etc. No Jogo, porém, o buraco é mais embaixo e o jogador constantemente começa a ver e a interagir com o que existe por trás das "fachadas”.

Page 17: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

Poderíamos, para fins didáticos, dividir a malícia em:- Conhecimento da verdadeira natureza dos seres humanos, ver por

trás das fachadas sociais das pessoas; "urubu como folha? é conversa fiada!" (canto de capoeira ironizando a semelhança entre os humanos e determinadas aves de rapina).

- Alegria de viver (talvez fosse melhor "tesão por estar vivo" ou alguma outra expressão).

O conhecimento é consequência direta de jogar na roda com diferentes pessoas em diferentes lugares. Neste sentido, o conhecimento é diferente da alegria de viver, pois a alegria tem de ser alimentada e desenvolvida por iniciativa pessoal de cada jogador.

A alegria de viver não é uma consequência inevitável do Jogo; o capoeirista deve cultivá-la na roda, ajudado pelo som do berimbau; e, na vida diária, procurando conviver com jogadores mais experientes que possuem esta qualidade - uma espécie de "bom humor" e tesão pela vida.

Você já viu crianças brincando na beira do mar? Elas pulam numa perna só, correm, gritam, fogem das ondas que

"se desmancham na areia" e em seguida perseguem-nas sem cançar, pois estão alimentadas por outro tipo de energia, de difícil acesso aos adultos - a alegria de viver.

O conhecimento sem o apoio da alegria de viver pode se tornar muito "pesado"; pode transformar o jogador numa pessoa incapaz de "curtir" a vida. Pois o conhecimento traz um certo cinismo em relação às pessoas e suas "fachadas para otário ver". E, além disso, o conhecimento tambem traz poder: o jogador se impõe no jogo, começa a se tornar ídolo dos mais novos. E o poder sem alegria de viver transforma a pessoa em alguém que só se interessa - e é completamente fascinado - pelo próprio Poder e seus jogos de poder.

O poder, tendo o dinheiro como sua faceta mais vulgar, se torna mais importante que amizade, sexo, amor, arte e curtição. Isso acontece com frequência e pode ser observado em muitos jogadores de capoeira, que se afastam da curtição da vida e da própria essência do

Page 18: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

Jogo. No entanto, a Capoeira - aqui, como uma entidade - não critica os que escolhem o Conhecimento e o Poder; nem elogia os que preferiram a Alegria de Viver - cada jogador faz sua escolha, usufrui das benesses e aguenta o retranco.

Winnicott e a ilusão

Eis, por outro lado, algumas outras idéias de Winnicott (24) em completa harmonia com os fundamentos do Jogo:

- Brincar: uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver.

- Quem não tem capacidade para brincar, acaba com o brincar dos outros (já vimos o "desmancha prazeres" em Huizinga).

- É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral.

- É somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self). - Somente no brincar é possivel a real comunicação.

Ora, isto - brincar e a brincadeira - é oposto à mentalidade "hierárquica" dos militares.

Isto - brincar e a brincadeira - é oposto à mentalidade dos atuais homens de poder, que acreditam que tudo deve se curvar ao Dinheiro.

Isto - brincar e a brincadeira - é oposto à um tipo de mentalidade que tambem existe na Universidade e entre os intelectuais; e também entre muitos artistas "sérios".

Isto - brincar e a brincadeira - é oposto à mentalidade das religiões.

No entanto, está em completa ressonância com a capoeira, e com a mentalidade do samba e dos sambistas (a filosofia da malandragem).

Algumas outras colocações de Winnicott, também encontram ressonância no universo da capoeiragem: referindo-se ao valor da ilusão, Winnicott afirma que a princípio a mãe propicia ao bebê a

Page 19: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

oportunidade para a ilusão de que o seio faz parte do bebe, o seio estaria sob "controle mágico" do bebê; o bebê começa a chorar e "magicamente" aparece um seio para alimentá-lo! Isto é muito importante para dar ao bebê uma sensação de auto-segurança, pois na verdade se o bebê tivesse consciência de sua vulnerabilidade, provavelmente viveria apovorado e paranóico.

No final deste primeiro período, a mãe "desilude" gradativamente o bebê, e o bebê começa a entrar na realidade da vida. O sucesso em criar um filho saudável, no entanto, depende da mãe ter propiciado a "oportunidade para a ilusão" à criança num estágio inicial de sua infância.

Sem dúvida isto tambem seria a proposta ética ideal para o

professor de capoeira de nossos dias: p.ex., nas rodas ao final das aulas, a capoeira deveria se apresentar para o aprendiz como uma brincadeira entre amigos, sem maldades, nem mesquinharias advindas dos jogos de poder e do embate entre personalidades. O risco de dano físico deveria ser limitado ao máximo pelo professor, fazendo o iniciante jogar com alunos mais desenvolvidos; mas somente ele (iniciante) podendo dar os golpes; o aluno mais adiantado somente se esquiva e se movimenta.

Na seqüência desta fase (que pode durar alguns meses), tendo experimentado, semelhante ao bebê de Winnicott, esta "ilusão" de "controle mágico" e onipotência (o outro jogador não ataca, nem revida; apenas se esquiva), o iniciante é introduzido ao jogo propriamente dito, com seus perigos, atritos e mistérios.

E somente numa fase, mais adiante ainda - já sabendo se defender e conhecendo a mardade e a traição que, segundo a Capoeira, é típica dos homens -, o iniciante é introduzido em outras rodas, onde há a possibilidade do encontro com capoeiristas que jogam com o intuito de "vencer" (para "aparecer" e fazer nome); de quebrar os mais fracos ou “incompetentes” (desculpas para o uso de uma violência exagerada); e onde a regra do jogo é: "entra quem quer, sai quem pode".

Page 20: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

Semelhante à mãe, o sucesso do mestre em formar o capoeirista depende de ter proporcionado no início do aprendizado a "oportunidade para a ilusão". É ali que o iniciante percebe e vivencia, jogando despreocupadamente (pois não há revide do jogador mais adiantado), que a essência do Jogo de Capoeira, apesar de tudo, é a brincadeira.

Esta maneira de tratar o iniciante é, para mim, essencial. Eu a utilizo no meu ensino; mas isto não acontece na grande

maioria das outras escolas. As escolas ensinam determinados movimentos e golpes que devem ser reproduzidos exatamento como é feito no "estilo de capoeira" daquela escola - aquilo é o "certo", o "resto é errado". Só depois de vários meses, quando já esta devidamente "catequisado", o iniciante entra na roda e começa a jogar (o inverso do meu método, onde o iniciante joga na roda no primeiro dia de aula).

Eu tive sorte por ter sido aluno de Leopoldina (1933-2007), que era um ícone da malandragem alto-astral do Rio de Janeiro. Leopoldina, por sua vez, foi aluno de Quinzinho (aprox. 1920-1950); Quinzinho apesar de ser chefe de uma gangue de assaltantes, e ter várias mortes nas costas, não admitia que os mais experientes batessem nos iniciantes: "ele fica covarde e não aprende!". Quinzinho tambem era um mestre na cuíca e no samba. Com a influência destes dois caras, pra mim foi fácil desenvolver um lance que abrangesse mais coisas do que estavam rolando no ambiente de capoeira quando eu era iniciante.

Mas, enfim, este é o meu lance; e praticamente cada mestre tem o seu.

Mas voltemos a Winnicot (25):A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas - sejam

crianças ou adultas. Em conseqüência, onde o brincar não é possivel, diz Winnicott, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar, para

Page 21: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

um estado em que é (evidentemente se o terapeuta, ou o mestre de capoeira, não sabe brincar, estaria desqualificado).

Então, a preocupação de um mestre com um aluno iniciante deveria ser, antes de mais nada, levar o iniciante a um estado de espírito em que ele comece a brincar dentro da roda desde as primeiras aulas e até mesmo antes de "saber" jogar.

Ou no caso do jogador que veio de outra academia e não entende o que é "jogar brincando": antes de corrigí-lo de possíveis defeitos "técnicos", o trabalho do mestre é ensiná-lo, ou melhor, aos poucos levá-lo a "brincar e dançar dentro da luta".

O ensino, diz Winnicot, sem esta possibilidade de brincar (dentro ou fora da capoeira) é doutrinação e produz submissão, e não produz a emergência de um self.

No caso de um bebê, Winnicott diz que no caso de fracasso de "fidedignidade ambiental" (quando o "controle mágico" não foi transado nos primeiros meses, ou o bebê não recebeu o carinho e cuidados nos meses seguintes), então o "espaço potencial" - aquele do brincar - é preenchido pelo que é introjetado por outrem; trata-se de material persecutório, sem que o bebê tenha meios de rejeitá-lo - como resultado, emerge um falso self.

É o que acontece em muitos grupos de capoeira, onde o iniciante não vive a experiência da brincadeira sem medo. E, ao invés disto, desde as primeiras aulas, o iniciante é bombardeado com regras: como fazer "corretamente" tal movimento; como respeitar com seriedade os alunos mais graduados; como o grupo dele é o melhor; e como seu mestre é a voz de deus sobre a face da Terra (ou seja: o tal "material persecutório" que é "introjetado por outrem" e faz emergir um "falso self", ou "falso eu" no iniciante).

Winnicott aponta também que, se a excitação física vai além de um determinado patamar - os "plateaux" de Deleuze e Guattari? (26) - , então o brincar se interrompe ou se estraga.

É o que acontece com o jogador que, no afã de “vencer", apela

Page 22: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

para a força bruta, para a violência fora do âmbito do jogo, ou que se embola com o outro jogador pelo chão numa autêntica "briga-de-rua" que escapa ao contexto e ao patamar máximo de excitação e energia necessários para a manutenção das características do Jogo.

Para bem entender Winnicott é necessário conhecer conceitos como "objeto transicional" (o bebê se apega a um ursinho, ou a um travesseiro específico, etc.), e "fenômeno transicional" (a relação que o bebê desenvolve com aquele objeto), que se referem a uma passagem do "sentimento de onipotência" e do "controle mágigo" do bebê, para um relacionamento com o mundo “exterior”:

onipotência -> objeto transicional -> brincar -> -> brincar junto com outros -> jogo c/regras -> cultura. (27)

Estas fases não são necessariamente evolutivas, com uma fase superando totalmente a precedente. Mas o esquema acima é útil, e dentro dele poderíamos situar a capoeira num ponto qualquer entre o “brincar junto” e a “cultura”.

No entanto a capoeira não deve ser associada, totalmente, a um “jogo com regras”, mais típico do esporte. A capoeira não é regida pela racionalidade, ou objetividade (que tudo justificam, e são pragas de nosso tempo). Temos, ao invés disto, algo da ordem do ritual, e da brincadeira “inventada” e inventiva, tal qual encontramos entre as crianças.

Semelhante aos dedos do bebê que acariciam seu nariz (por prazer) e podem se tornar mais importantes que o polegar sugado (por "necessidade", para substituir o seio da mãe); Winnicott afirma que, na brincadeira, o lúdico e o criativo não estão sob o domínio da necessidade.

Isto também pode ser dito da capoeira: a brincadeira faz parte da própria maneira de ser do Jogo, e não está sob o "domínio da necessidade" (a necessidade de vencer e de ser objetivo, ou até mesmo

Page 23: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

a necessidade de fazer um "jogo bonito").

ANTÍDOTO

Agora que vimos a importância do brincar na vida dos seres humanos, e na sociedade; desejamos afirmar que o brincar foi, em grande parte, castrado da capoeira e substituida pela seriedade, em todos os "estilos de capoeira" e linhagens (apesar do discuro politicamente correto dos mestres, a respeito do lúdico, das raízes, da "luta de libertação", de "jogar sorrindo", etc. e tal).

Isto aconteceu pela rigidez dos "métodos de ensino" atuais, e tambem pela forma quase ditatorial como os mestres (e, em consequência, os jogadores "mais graduados") atualmente se relacionam com os alunos.

Mudar o formato do relacionamento "ditatorial" mestre/"graduados"/alunos me parece mais fácil do que se poderia pensar: basta qualquer mestre (até por razões de grana) entrar numa que uma "mentalidade mais flexível" é interessante (e até esta mais próxima da onda da extinta Velha Guarda), e começar a agir numa "outra" - e logo todos seus "graduados" e alunos o seguiriam.

É óbvio que apenas um (ou meia dúzia) mestre não iria "resolver" o "problema da capoeira"; mas não estamos propondo "solução geral" nenhuma. Estamos apenas dando um raio-X na situação; estamos apenas citando ideias de pensadores; e - é claro - eu estou escrevendo o que penso.

Se alguem aproveitar - ótimo!Eu penso ser impossível mudar a totalidade de algo que envolve

tantas pessoas, mas bastam alguns cabeças para manter viva a chama, e a bola rolando numa boa.

Mas mudar os "métodos de ensino" me parece mais difícil.Creio que isto só aconteceria se os (poucos) mestres que (no

Page 24: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

futuro) tivessem abraçado a "mentalidade mais flexível", e tambem estivessem utilisando um método que aprimorasse o técnico dos movimentos (como fazemos agora) e tambem a brincadeira (que é a minha proposta), começassem a ter muito sucesso, dinheiro, e status.

Mas quais seriam os novos "treinamentos" ("treinamentos" ?) que proponho adicionar (não se trata de jogar o que já existe fora) aos que são usados agora?

Falamos que queremos fortificar o brincar e a brincadeira na capoeira.

Bonitas palavras.Mas como fazê-lo na prática da aula?Bem... isso já é outro capítulo.

NOTAS (1) CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p.25. (2) Este texto, do mestre Nestor, é do tempo em que deu aulas de capoeira no Institut for Idraet, da Universidade de Odense (Dinamarca); e publicou um livro, junto com J. Borghal, para aquela instituição: Capoeira, kampdans og livsfilosofi fra Brasilien. Odense: Odense Universitetsforlag, 1997.(3) RUGENDAS, J.M. Voyage pittoresque et historique dans le Brésil. Paris: Engelmann et Cie, Paris, 1835. Ilustração "Jogar capuera ou Dance de la Guerre".(4) Expressão cunhada pelo iluminado Frede Abreu. ABREU, Frederico J. de. Bimba é bamba, a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999.(5), Johan. Homo Ludens. SP: Ed. Perspectiva , 2000, ebook. P.3.(6) Idem, p.3.(7) Idem, p.3.(8) Idem, p.12.(9) Idem, p.36.

Page 25: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

(10) Idem, p.12.(11) TAVARES, J.C.S. in CAPOEIRA, N. Capoeira, os fundamentos da malícia. RJ: Ed. Record, 1992, p.55.(12) Acreditava-se que Sampaio Ferraz tinha "exterminado as maltas de capoeira"; mas Antonio Liberac nos ensinou, baseado principalmente em suas pesquisas nos arquivos da polícia carioca, que o sistema das maltas foi extinto, mas capoeiristas isolados continuaram a existir, a atuar e a ser presos, durante todo o período 1890-1930.(13) Expressão que se tornou clássica - "a pena do escrivão de polícia" -, cunhada por Carlos E.L. Soares no seu A negregada instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994. (14) MOURA< Jair (Mestre Perigo). "A projeção do negro Ciríaco no âmbito da capoeiragem", Revista Capoeira. São Paulo: #11, dez.1999.(15) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ: Paz e Terra, 1982, p.22.(16) Nestor Capoeira entrevista Muniz Sodré, em 13/3/2013, para um documentário a ser feito por Itapuã Beiramar (para o www.abeiramar.tv); e tambem um capítulo, "Muniz Sodré e a capoeira", do livro coordenado pelo Prof. Eduardo Coutinho (ECO-UFRJ).(17) HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. SP: Ed. Perspectiva , 2000, ebook. P.13.(18) Idem. P.19.(19) BATESON. Steps to an ecology of mind. NY: Ballantine, 1972, pp.177-193. (20) 214 LEWIS, J.L Ring of liberation. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1992, p.2.(21) WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,1975, passing.(22) WINE, Noga. Pulsão e inconsciente. RJ: Zahar, 192, p. 32.

Page 26: Texto 1 Congresso 2013 - AbeiramarUniversitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os séculos, e que se

(23) Idem, ibidem.(24) WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,1975, passing.(25) Idem, ibidem.(26) DELEUZE e GUATTARI. Mille Plateaux. Paris: Les Ed. de Minuit, 1980.(27) WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,1975, passing.

O AUTORNestor Capoeira (Nestor Sezefredo dos Passos Neto) foi iniciado

por mestre Leo[oldina (1933-2007) em 1965, e é mestre de capoeira (Grupo Senzala, 1969, RJ). Formou-se em engenharia (UFRJ,1969), tem mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ, 1995 e 2001, ortd. prof. Muniz Sodré). Tem 4 livros sobre capoeira publicados no Brasil (RJ, Ed. Record) e em outros 8 países - em 2011 ultrapassou os 100.00 exemplares vendidos. Quando esta no Brasil, da aulas de capoeira no Galpão das Artes Urbanas, das 19 às 22h., na Gávea, RJ.

www.nestorcapoeira.netwww.abeiramar.tvnestor.capoeira@[email protected]